LUZES E SENTIDOS | da cidade à tela

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luzes e sentidos: da cidade Ă tela


trabalho final de graduação faculdade de arquitetura da universidade de são paulo 2014 | jan. 2015 créditos imagens: aruã wagner


luzes e sentidos: da cidade à tela

aruã oliveira wagner orientação prof. dr. luís antonio jorge



ao Luís Antonio, pelas conversas inspiradoras e orientação precisa, à Iara, pelo amor incondicional e fôlego indestrutível, ao Claudio, pelo grande apoio e discussões enriquecedoras, ao Uirá, pela parceria e cumplicidade, à Eliza, por estar sempre presente e cuidar de mim, ao Lucas, mestre photoshopista, pelo companheirismo e carinho à Laura, parceira de vida em um longo percurso de amizade, estudo e madrugadas à Marieta, que me ensinou otimismo e força de vontade, à Kim, ao Francesco, parceiros de tfg, pelas discussões e força moral, a todos os meus professores, da academia e da vida, por me formarem, especialmente aos professores Vera Pallamin, Fábio Mariz e Francisco Homem de Mello, que contribuíram imensamente para este trabalho, aos técnicos do lpg, pela paciência e por tudo que me ensinaram, ao Marcio, amigo e companheiro de turronice, por não se conformar com o mundo, nem com a mediocridade, ao Matheus e ao Sacha, pelas conversas e por me abrirem as portas ao universo da filosofia, ao Thiago e à Flávia, por existirem na minha vida e a tornarem melhor, ao Luiz, à Cacau, à Anita e à Luiza, pelas confidências e carinho, ao Weliton, ao Zeno e ao Fernando, por me ensinarem muito no convívio diário, e por construírem um dia a dia sempre bacana, aos amigos do jeansa por toda a animação, diversão e também pelos exemplos, a todos que moram no coração, agradeço, profunda e imensamente.



Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões. Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado; o fio esticado do lampião à balaustrada em frente e os festões que empavesavam o percurso do cortejo nupcial da rainha; a altura daquela balaustrada e o salto do adúltero que foge de madrugada; a inclinação de um canal que escoa a água das chuvas e o passo majestoso de um gato que se introduz numa janela; a linha de tiro da canhoeira que surge inesperadamente atrás do cabo e a bomba que destrói o canal; os rasgos na rede de pesca e os três velhos remendando as redes que, sentados no molhe, contam pela milésima vez a história da canhoeira do usurpador, que dizem ser o filho ilegítimo da rainha, abandonado de cueiro ali sobre o molhe. A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, dos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. Calvino, Ítalo. As Cidades Invisíveis



prólogo

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arquitetura e percepção

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meios de conhecimento: científico x não-científico

25

experiência x sobrevôo

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ver e olhar

53

membranas

77

gravuras

93

bibliografia

113



pr贸logo



As primeiras centelhas deste trabalho se acenderam em uma disciplina de produção gráfica do curso de Arquitetura quando entrei em contato pela primeira vez com a técnica de serigrafia. Durante todo o semestre experimentamos diversas técnicas de impressões em série, desde os tipos móveis metálicos ao offset. O tema geral do semestre era: padrões. O final da disciplina consistiu em um trabalho livre, em que resolvi repetir a serigrafia. Com impressoras a laser ou jato de tinta, é possível atingir grande definição e qualidade nas impressões. No entanto o grande espectro de cores que alcançamos se dá através de quadricromia e não de tintas puras. A partir do CMYK é possível imprimir praticamente qualquer imagem colorida, mas o branco da imagem é sempre o branco do papel. Com a serigrafia, esse paradigma se quebra, pois, embora imprimase uma cor por vez, é possível imprimir qualquer cor de tinta sobre qualquer cor de fundo: é possível imprimir branco sobre preto. E mais, é possível imprimir a iluminação das imagens, ao invés do sombreamento. Meu último trabalho da disciplina resultou na impressão de uma foto noturna de uma fachada com várias janelas acesas; impressa em branco sobre preto. Cresceram, a partir daquele trabalho, dois desejos: o de prosseguir trabalhando com serigrafia, e o de investigar um universo imagético de padrões em fachadas iluminadas por suas janelas. Este trabalho iniciou-se como uma sequência de minha investigação das fachadas à noite e suas janelas acesas. Prosseguiu com o desejo de desenvolver uma linguagem e uma forma de expressar essa provocação e encanto que me trazem os padrões de janelas acesas. Em paralelo, iniciei uma investigação sobre o olhar. Como se dá o olhar em nossa época, e 15


sua importância para a arquitetura - tanto no momento de apreciação quanto da criação. O trabalho teve, desde o início, estas duas frentes: uma reflexão mental e uma reflexão gráfica. A frente de investigação mental teve início com a leitura de alguns artigos do livro O Olhar. Durante a leitura, o contato com o discurso filosófico a respeito do olhar foi muito inspirador e ocasionou uma guinada do campo de investigação, que passou a se direcionar para a filosofia. O Olhar levantou uma série de questões, e muitos dos autores mencionavam o filósofo Merleau-Ponty. A investigação, foi ganhando múltiplas e profundas questões sobre o funcionamento e a importância do universo dos sentidos. Assim, à procura de respostas, terminei por encontrá-las em textos do próprio autor. Isso levantou muitos outros questionamentos e ampliou meus horizontes. O processo também me levou ao arquiteto e crítico Juhani Pallasmaa, que faz uma ponte entre a fenomenologia de Merleau-Ponty, os sentidos e a arquitetura. Esta reflexão mental foi um movimento contínuo de trânsito entre estes autores. É importante frisar que esta incursão na filosofia foi uma investigação cujo intento foi trazer alguns conceitos dos autores para uma reflexão do ponto de vista da arquitetura. A estrutura de inquirir e argumentar dos filósofos tem estrutura bastante diferente da dos arquitetos. Entretanto, o contraste do cruzamento das estruturas de pensamento é extremamente enriquecedor. Posto que a arquitetura é uma área interdisciplinar, penso ser imprescindível que os arquitetos consigam integrar ao seu campo todo o conhecimento, mesmo aquele proveniente de outras áreas, para complemento e amplitude de sua formação. 16


A frente gráfica partiu da indagação sobre as semelhanças simbólicas e visuais entre fachadas/membranas/tela serigráfica. Esses elementos configuram mediadores de passagens de conteúdo - no caso deste estudo, de luz percebida, ou de tinta. O intuito foi buscar uma linguagem que revelasse a poética e a expressão gráfica destas relações. Estreou com a formação de um universo imagético a partir da fotografia. Foi feito um primeiro contato com a percepção da cidade através de saídas fotográficas noturnas em que entrei em contato com as possibilidades geradas na intersecção entre a cidade, a câmera fotográfica e eu. Seguiuse uma exploração na qual essas imagens foram filtradas e dissequei as camadas de luz das imagens para transpô-las para a linguagem reticulada da serigrafia. A sequência foi um processo de vai e vem entre testes de impressão serigráfica, retomadas de filtragens no photoshop e mesmo outras saídas fotográficas com base nos resultados dos testes anteriores. O trabalho consiste, portanto, em duas frentes que se retroalimentaram durante todo o percurso, inquirindo e aprofundando as questões entre elas. É notório que as duas frentes não apresentam uma relação causal ou de conclusão entre si. Foram dois caminhos de discussões afins, que se complementaram. Este trabalho é o retrato e síntese deste processo de investigação, apresentando uma discussão textual e imagética entrecruzada.

Nota: As fotografias originais, em cores, foram distribuídas no decorrer do texto para a apreciação conjunta dos discursos textual e gráfico. 17



arquitetura e percepção



A arquitetura é, por excelência, uma prática interdisciplinar. Transita sempre entre as esferas das artes e das ciências. É um ofício complexo que compreende desde criação e concepção de espacialidades, passando pela viabilização e detalhamento, até a construção do corpo físico das edificações. A arquitetura erige anteparos e coberturas, desenhando e dando forma a um espaço antes ilimitado, criando uma escala de dimensões possível ao homem. No livro Os Olhos da Pele, o arquiteto Juhani Pallasmaa explica com maestria como a arquitetura situa o homem no mundo: A arquitetura como todas as artes está intrinsecamente envolvida com as questões da existência humana no espaço e no tempo; ela expressa e relaciona a condição humana no mundo. A arquitetura está profundamente envolvida com as questões metafísicas da individualidade no mundo, interioridade e exterioridade, tempo e duração, vida e morte. (...) A arquitetura é nosso principal instrumento de relação com o espaço e o tempo, e para dar uma medida humana a essas dimensões. Ela domestica o espaço ilimitado e o tempo infinito, tornando-o tolerável, habitável, e compreensível para a humanidade. (Pallasmaa; 2011: 16. grifo nosso) O objeto de estudo do arquiteto abrange desde a unidade mínima de um abrigo construído, até os espaços urbanos. Há muitas formas do arquiteto aproximar-se de seus objetos: de forma objetiva, por meio de mapas, desenhos, dados e tratados, ou de forma subjetiva, construindo um repertório de memórias (de experiências próprias ou projetadas). A aproximação objetiva da arquitetura é indispensável ao arquiteto para a absorção do conhecimento já sedimentado nesta área. Não obstante, 21


a aproximação subjetiva cumpre também papel essencial na formação contínua do arquiteto. Se, como afirma Pallasmaa, “a arquitetura elabora e comunica idéias do confronto carnal do homem com o mundo por meio de ‘emoções plásticas’” 1, é impensável que o arquiteto não se enlace nestas relações. É preciso que o próprio arquiteto esteja em confronto com o mundo e com o espaço para que consiga, num processo consciente e planejado “tornar visível como o mundo nos toca” 2. Por meio de percepção, memória e imaginação - que permanecem em interação constante - funde-se a esfera do presente com imagens, memória e fantasia. A partir do contato com o mundo real, “continuamos construindo uma imensa cidade de evocações e recordações, e todas as cidades que visitamos são ambientes desta metrópole que chamamos mente” 3. Dentro desta metrópole-mente ergue-se o castelo de nossa compreensão do mundo à nossa volta. Desenvolvemos certezas, conceitos, opiniões e é a partir deste castelo, dessas referências e certezas que continuamos a ler o entorno. Tudo aquilo que se experimenta vai ficando registrado neste universo pessoal e sutil, e se torna ponto de partida da próxima experiência. O corpo é o canal através do qual colocamos nossa mente - etérea, sutil - em contato com a carne do mundo. Além de nos colocar no espaço, a arquitetura situa o homem no tempo. A arquitetura e toda a estrutura espacial da civilização ultrapassam o comprimento de uma vida humana, e nos permitem participar de ciclos temporais ampliados.

1  Pallasmaa; 2011: 43 2  Merleau-Ponty apud Pallasmaa; 2011: 43 3  Pallasmaa; 2011: 64

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“A arquitetura nos emancipa do abraço do presente e nos permite experimentar o fluxo lento e benéfico do tempo” 4. Porém, Pallasmaa afirma também, que a cultura contemporânea, de maneira geral, vem engajando-se num movimento de “afastamento, uma espécie de esfriamento, des-sensualização e des-erotização das relações humanas com a realidade” 5. Pallasmaa indica que isto se deve em grande parte à exacerbação da importância das imagens e da visão. Considera o olho um orgão de distância e separação, controlador e investigador. Lastima que a arquitetura de nosso tempo esteja se tornando uma arte retínica, fixada a uma imagem achatada que abandona seu potencial plástico e tátil. Ao iniciar O Olho e o Espírito, Merleau-Ponty afirma que “a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las”. É justamente a partir de uma postura como essa que se desenrola o afastamento do mundo sensível. No caso da arquitetura a ironia é ainda mais gritante, uma vez que cabe a ela projetar não só o desenho do espaço, mas uma expectativa de habitância. Uma espacialidade construída sem a possibilidade de que alguém a experiencie, não existe. O espaço pode ser limitado e desenhado por elementos inertes, dispostos pelo homem ou não, no entando a espacialidade só existe na medida em que há um sujeito que a experimente. A arquitetura não acontece só na mente do arquiteto, em sua prancheta ou no canteiro de obras, ela acende no contato com

4  Pallasmaa; 2011: 49 5  Pallasmaa; 2008: 29

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a experiência humana. O arquiteto não concebe apenas um corpo físico ou uma casca vazia, mas uma expectativa de uso, de vivência ou de percepção. Ora, o esfriamento geral de nossa cultura, bem como a aceleração da vida nas grandes metrópoles e o achatamento da plasticidade dos espaços estão todos relacionados. Esse afastamento do mundo físico para um mundo mais virtual altera a fruição do espaço e do tempo e “à medida que o tempo perde sua duração e seu eco no passado primordial, o homem perde seu senso de individualidade como ser histórico e é ameaçado pelo ‘terror do tempo’” 6. Para que seja possível retomar essa relação mais sensual com o mundo de que fala Pallasmaa é preciso que se consiga transcender a dimensão mais objetiva e utilitária do viver, e isto, é apenas possível através de um exercício de tomada de consciência. Esse esfriamento talvez não seja consequência, apenas, da confiança excessiva em um único órgão sensível, mas uma postura geral com relação ao mundo construída e sedimentada ao longo de muito tempo. O mundo da percepção, isto é, o mundo que nos é revelado por nossos sentidos e pela experiência de vida, parece-nos à primeira vista o que melhor conhecemos, já que não são necessários instrumentos nem cálculos para ter acesso a ele e, aparentemente, basta-nos abrir os olhos e nos deixarmos viver para nele penetrar. Contudo, isso não passa de uma falsa aparência. Eu gostaria de mostrar nessas conversas que esse mundo é em grande medida ignorado por nós enquanto permanecemos numa postura prática ou utilitária.” (Merleau-Ponty; 2004: 1)

6  Pallasmaa; 2011: 49

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meios de conhecimento: cientĂ­fico x nĂŁo-cientĂ­fico



Merleau-Ponty inicia Conversas falando da facilidade de interagir com o mundo da experiência e dos sentidos, em que “basta-nos abrir os olhos e nos deixar viver para nele penetrar”. Traz à tona a imersão do nosso mundo cotidiano no mundo do sensível. O que o autor aponta ao longo dessas conversas é justamente como na verdade passamos a maior parte do tempo tentando nos afastar desta abertura sensível que nos propiciam os sentidos, e como buscamos acessar o mundo por meio do intelecto, uma aproximação [supostamente] mais real e segura com o mundo. Tornou-se mais natural olharmos para o mundo através das lentes da razão e da ciência, que esterilizam os objetos que se deseja conhecer das imprecisões e das ilusões trazidas pelas sensações puras do corpo. No diaa-dia confiamos em nossos sentidos e nossos instintos mais do que nos damos conta. Voltamo-nos ao ouvir um ruído inesperado, não comemos algo que exale mau cheiro, e nos desviamos quando vemos um objeto vir em nossa direção. No âmbito da existência ordinária, dificilmente paramos para questionar qual a frequência do ruído que nos perturba ou qual a velocidade do objeto vindo em nossa direção. Simplesmente reagimos, por uma fé natural nos sentidos. No entanto, quando se trata de construção de conhecimento, não confiamos naquilo que vemos à nossa frente nem naquilo que sentimos, mas concedemos à ciência a prerrogativa de definir aquilo que é real. O real não é aquilo que vejo com meus olhos, mas “o verdadeiro é o objetivo, o que logrei determinar pela medida ou, mais geralmente, pelas operações autorizadas pelas variáveis ou entidades por mim definidas a propósito de uma ordem dos fatos.” 1

1  Merleau-Ponty; 2014: 25

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A desconfiança de nossos órgãos sensíveis, como instrumento de apreensão da realidade, vem aumentando desde o racionalismo clássico e ganha muita força com Descartes e a construção do humanismo. Segundo Merleau-Ponty, Descartes dizia que não era preciso recorrer a pesquisas científicas para provar quão errôneos são nossos sentidos e que devemos nos fiar apenas na inteligência. Em Conversas, Merleau-Ponty apresenta um exemplo muito interessante sobre a aproximação de um objeto: um pedaço de cera. Ele nos indaga o que seria de fato a cera. Sua cor esbranquiçada, seu cheiro, sua firmeza no contato com nossos dedos? Mas se variarmos as condições de entorno, e a temperatura aumentar, a mesma cera far-se-á líquida, sem resistência aos nossos dedos, e sua cor já não será mais opaca, mas transparente. Porém, sabemos que é a mesma cera apresentando-se de forma diferente. O que se mantém de sua existência? O que de sua essência é constante? Nada do que se apresenta aos nossos sentidos. Pode-se a partir disto inferir que a verdadeira cera não é vista com os olhos, mas com a inteligência. Através da inteligência pode-se buscar a essência da cera e, assim, defini-la. Para isso é preciso determinar suas fronteiras e limites, isolando-a: onde termina a cera e começa qualquer outra entidade no mundo? O próprio ato de denominar o objeto é um processo de delimitação e isolamento. Para que seja possível se referir a um objeto por uma palavra é preciso que haja uma convenção em torno daquilo que a palavra representa, qual seu contorno no mundo concreto e o que aquela palavra representará. A cera, agora isolada dentro de um ambiente controlado e estéril - isto é, que impede que o objeto desenvolva interações que não foram determinadas pelo sujeito que promove a investigação - pode ser questionada de forma controlada e sistemática para que se possa extrair informações sobre sua essência e seu funcionamento no mundo. 30


De partida, a ciência prevê um afastamento entre o sujeito e o objeto de pesquisa para garantir precisão e impedir qualquer tipo de contaminação subjetiva imposta pela sujeito sobre o objeto a ser desvelado. Para que um objeto possa ser analisado à luz da razão, ele deve estar isolado e preservado de tudo que não seja próprio dele, nem emanação de sua essência primordial. O isolamento do objeto e a métrica de sua interação com o sujeito seguem um método pré-estabelecido, independente do objeto. A sequência de interações e as interpretações seguem estruturas lógicas a priori e externas ao objeto. O método científico reduz as variáveis atuantes para que se tenha sempre maior controle e regularidade na observação. A filósofa Marilena Chauí cita como a ciência considera que o bom método é aquele que permite conhecer verdadeiramente o maior número de coisas com o menor número de regras. Quanto maiores a generalidade e a simplicidade do método, quanto mais ele puder ser aplicado aos mais diferentes setores do conhecimento, melhor será ele. (Chauí apud Pallamin; 1992: 7)

Previamente estabelecido, tal método é a garantia que valida a investigação realizada sobre determinado objeto, e gera um gabarito para que, se necessário, a investigação possa ser desenvolvida no sentido inverso, quando os resultados não condizem com as previsões. A ciência [e seu método] preveem um grau de racionalização do sujeito em relação ao objeto - e em relação ao próprio processo de aproximação a este objeto - que exterioriza tanto o objeto em relação ao sujeito, e em relação à sua existência no mundo que, tomando-o como “coisa” externa 31


e inerte o transforma em uma “idéia” ou um “objeto de conhecimento”. Desta forma, esta idéia - uma representação do objeto real - substitui satisfatoriamente o objeto dentro deste campo de conhecimento disciplinar. A separação radical entre sujeito e objeto causa uma cisão que toma suas naturezas como diferentes e separadas. Substituir as coisas reais, externas do mundo, por modelos internos à própria estrutura de raciocínio e interagir com elas apenas a partir de um método estabelecido a priori é uma forma artificial, - criada pela ciência, por sua vez, criada pelo homem - de analisar o mundo que nos cerca. É o que Descartes disse sobre confiar apenas na inteligência. No entanto, diz Merleau-Ponty no início de seu O Olho e o Espírito, a ciência tem o hábito de manipular as coisas e renunciar a habitá-las. Segue afirmando que a ciência cria modelos e opera a partir de índices e variáveis e que “só de longe em longe se confronta com o mundo real” 2. Pois bem, a pretensão da ciência de desvelar o mundo real aos olhos ordinários, através dos olhos da inteligência, deparou-se com tropeços. O processo de objetivação desenvolvido por ela ao longo de séculos, em vez de aproximá-la, afastou-a cada vez mais do mundo real. Como dito anteriormente, a ciência neutraliza a particularidade dos objetos e eventos, sendo melhor o método quanto maior a generalização proporcionada. O método afasta o objeto real de seu contexto e a generalização aplica o conhecimento adquirido dentro deste modelo a todos os outros objetos reais externos existentes que o sujeito encontrará no futuro.

2  Merleau-Ponty; 2013: 15

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Assim a ciência começou excluindo todos os predicados atribuídos às coisas por nosso encontro com elas. A exclusão, aliás, é apenas provisória: quando aprender a investi-lo a ciência reintroduzirá a pouco e pouco o que de início afastou como subjetivo; mas integrá-lo-á como caso particular das relações e dos objetos que definem o mundo para ela. Então o mundo se fechará sobre si mesmo e, salvo por aquilo que em nós pensa e faz ciência, salvo por esse espectador imparcial que nos habita, viremos a ser partes ou momentos do Grande Objeto. (Merleau-Ponty; 2012: 25-26)

Pode-se inferir que a ciência desenvolveu uma conceitualização do mundo, um enquadramento do mundo àquilo que já fora conhecido ou perscrutado. Reside nisto a forma de controle a partir do qual há interações controladas e previstas com o real. Em oposição temos o mundo do sensível, explorado por nós através de nossas portas sensoriais conectadas à consciência, cujas interações com o real são espontâneas e particulares. O mundo sensível e a percepção parecem à ciência frágeis, não confiáveis, ou campo de erro. Referem-se não a variáveis quantificáveis, mas a qualidades sensoriais com valores sentidos de forma diferente por cada indivíduo. Podemos dizer que essa oposição tensiona uma divisão do real em duas grandes regiões, uma científica, cujo conhecimento é caracterizado pela objetividade, positividade e universalidade, e outra não-científica. Na científica os dados são ‘fatos’ observáveis dentro de um quadro mínimo pré-estabelecido, e são submetidos ao critério experimental da verdade no qual se busca a ‘pureza’ do conhecimento, entendida como a não interferência do sujeito no funcionamento do objeto em questão. (Pallamin; 1992: 8)

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experi锚ncia x sobrev么o



Os campos do conhecimento da ciência e do pensamento tem uma forma de aproximação de seus objetos que os distancia do mundo real, seja pela extrema objetividade ou subjetividade. A ciência retira os objetos que deseja interrogar de seu contexto natural. Isola-os, quantifica, os cataloga, tranformando-os em dados e medidas. O pensamento intelectual absorve e processa seus objetos, trazendo-os para sua própria linguagem, para seu mundo ideal. Esse processamento dos objetos os transforma em modelos e representações da existência real dos próprios objetos, representações que são iguais para qualquer intelecto que se proponha a estudá-los. A idealização dos objetos causa um descolamento da esfera do real, tensionando ainda mais a importância do método e da linguagem, meios de conexão entre os mundos real e ideal (onde se processam pensamento e ciência). Merleau-Ponty compara a visão das ciências e do pensamento para o mundo a uma visão de sobrevoo, que não apresenta ponto de vista fixo e cujo ponto de vista não parte de dentro do sistema observado, mas é externo a ele, capaz de abarcar a totalidade das partes simultâneamente. No entanto esse sobrevoo é absolutamente artificial e diferente de todas as experiências que temos ao [con]viver no mundo real. Uma artificialidade que já se revela verdade inclusive para as ciências. No início d’O Visível e o Invisível, o autor explica que a física já começara a reconhecer “como seres físicos últimos as relações entre observador e o observado” e que todas as determinações somente possuem sentido para determinada posição do observador. No entanto, é tão natural ao observador considerar-se um ‘Espírito Puro’ diante de um ‘objeto puro’ que, ao tecer correlações entre diferentes observações, já faz 37


constar entre as verdades observadas os enunciados que exprimem a solidariedade do observável com o fato físico. Isto é, unificar várias perspectivas sobre os espaços astronômicos e concluir uma fórmula que permita passar de uma a outra, válida para todas as perspectivas, não é caminhar, necessariamente, para um saber absoluto. A significação física depende de se reportar a observações sempre situadas, ou seja, não é uma ‘visão de universo’, ou uma visão geral - de sobrevôo -, mas a prática metódica que permite unificar umas visões às outras, sendo todas elas perspectivas. “Esta expressão ‘pensamento de sobrevoo’ foi cunhada por Merleau-Ponty em sua crítica radical ao objetivismo científico e ao subjetivismo filosófico, enganos complementares do que ele denomina como humanismo” 1. Em um pólo o pensamento sobrevoa o mundo transformando-o em idéia, conceito, isto é, representações contituídas pelo sujeito. No pólo oposto, a ciência deposita sobre o objeto o poder de recriar a relação com o sujeito. Em ambos os casos há um apagamento paulatino do objeto ou so sujeito: o objetivismo científico vai reduzindo a importância e atuação da consciência, enquanto o subjetivismo filosófico se encaminha para um idealismo em que a realidade vai se tornando cada vez mais uma sombra de realidade. Como Merleau-Ponty coloca no final do Primado da Percepção, a busca não é pela destruição “do absoluto ou da racionalidade, mas do absoluto e da racionalidade separados da experiência”. É preciso lembrar que o movimento

1  Pallamin; 1992: 9-10

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que nos arrasta para o mundo mental e abstrato do pensamento sempre parte de uma inquietação do real e de nossa relação com ele, mas essa relação foi por muito tempo ignorada ou mal vista. A relação com o mundo sensível é a mais imediata e constante que temos, mas é preciso “redescobrir as estruturas do mundo percebido como um arqueólogo. Pois a estrutura do mundo percebido está enterrada sob as sedimentações do conhecimento posterior” 2. Confiamos tanto no conhecimento do intelecto que ele acaba por se sobrepor àquilo que percebemos e, mais, à nossa consciência do perceber. O processo de abstração do mundo realizado pelo pensamento pode nos levar a questionamentos extremos, inclusive a respeito de nossa inserção no mundo: onde está, e ainda, se há mundo. Ao final de seu Primado da Percepção, Merleau-Ponty diz que não há nada mais pessimista que o texto em que Pascal se pergunta o que é amar. Pascal observa, então, que não se ama alguém por sua beleza, que é perecível, ou por sua mente, que pode se perder, ao que conclui que não se pode amar alguém, apenas qualidades. Prosseguindo como um cético que se pergunta se o mundo existe, observa que uma mesa é apenas uma soma de sensações, ao que conclui: uma pessoa nunca vê nada, uma pessoa vê apenas sensações. Em contraponto, o que Merleau-Ponty propõe é uma inversão da estrutura de pensamento, perguntando: e se, ao contrário, chamarmos a coleção de tudo aquilo que podemos perceber de ‘mundo’, e a soma daquilo que amamos de ‘a pessoa’?

2  Merleau-Ponty; 1989: 5 trad. livre

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Inverter essa lógica de pensamento significa toda uma inversão de sentido na busca pelo conhecimento. Ao invés de dissolver tudo aquilo que nos cerca e partir do zero e da lógica para construir a certeza do existir, da realidade, parte-se da realidade dada, e do como a percebemos. É importante notar, novamente, que essas duas lógicas não são paradoxais ou excludentes, mas complementares em sua oposição. Trata-se de duas estruturas de pensamento antagônicas, herméticas uma em relação à outra. No entanto, complementares e igualmente relevantes para a bagagem do conhecimento humano. Tomemos como exemplo o espaço. A estrutura do espaço cartesiano está embutida desde a base de nossa formação intelectual. É muito difícil, para não dizer impossível, imaginar o espaço sem considerar a existência de três dimensões e seus respectivos eixos. Essa construção do espaço permeia a estrutura através da qual o pensamos, o representamos e o descrevemos. Resta uma lacuna, escondida, da pergunta calada: onde está esse espaço? O espaço de Descartes, perfeito, homogêneo e manejável, é um espaço ideal, que existe no campo das idéias. É um espaço “verdadeiro contra um pensamento subjugado ao empírico e que não ousa construir”. Um espaço que “o pensamento sobrevoa sem ponto de vista e reporta por inteiro aos três eixos retangulares” 3. Entretanto, a experiência que temos ao viver não é a de sobrevoo, mas de imersão no espaço. O espaço da experiência é um espaço necessariamente perspéctico, cujo ponto de partida, cujo ponto zero de onde partem os eixos x, y, z, é um eu. No mundo do sensível o espaço e o eu (ser sensível) não são externos

3  Merleau-Ponty; 2013: 34

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um ao outro, mas integrados na trama da existência real. A espacialidade, por sua vez, é medida e percebida a partir do eu - o que na arquitetura é ainda mais caro, já que o espaço não apresenta apenas dados objetivos, mas qualidades subjetivas apreciadas por um sujeito. O mundo do ideal é abstrato, etéreo e habitado pelo conhecimento puro e lógico, como o espaço cartesiano e o teorema de pitágoras. O conhecimento puro, as idéias e o pensamento são transparentes, apresentam-se idênticos para qualquer intelecto, e podem ser transpassados e apreciados como unidades inteiras, acabadas. Podem, portanto, ser sobrevoados, sem ponto de vista ou visões parciais. Ao contrário, o mundo sensível é opaco, concreto e habitado pelas coisas reais. Por conta dessa opacidade, não se apresenta completamente desvelado, mas apresenta-se apenas por perfis, presenças. O campo de busca oferecido por esses dois mundos são díspares e complementares. Enquanto o mundo ideal é fértil ao exercício da lógica e oferece campo para a busca e o desenvolvimento de verdades e conhecimentos absolutos, o mundo sensível oferece o encontro com o que MerleauPonty chama de real. Assim como a interação tanto com o ideal quanto com o objetivo se dá por meio da mente, mas depende também do corpo, a interação com o sensível acontece através do corpo integrado à mente. Há que se lembrar que o corpo não é apenas uma casca, e como já foi dito por Descartes, também não é habitado pela alma como um piloto a um navio. O espírito está completamente integrado ao corpo e vice-versa. Merleau-Ponty diz que a animação do corpo não se encontra na junção de suas partes nem na fixação de um espírito externo, mas está na existência de um ‘si’ que 42


acontece no acender da faísca entre o senciente-sensível. Corpo e alma não existem de forma externa um em relação ao outro, mas “o corpo é para a alma seu espaço natal e a matriz de qualquer outro espaço existente”4. A percepção e toda nossa locação no mundo depende da imbricação destas relações, corpo-espírito-sensível. Para o corpo o mundo não é apenas uma rede de relações entre objetos como descreveria um geômetra que o sobrevoasse, mas é contado a partir do indivíduo. O corpo não percebe o espaço ou o vê a partir de seu exterior completo, mas está dentro dele. Para este eu, o mundo não está à minha frente, mas à minha volta. O corpo do sujeito também é uma ‘coisa real’, e faz parte da coleção de coisas sensíveis que compõe o mundo. Faz parte da trama do real, ao mesmo tempo em que é também sujeito perceptivo de todas essas coisas. Justamente por ser simultâneamente uma das coisas do mundo, e também sujeito que as percebe, não é possível ao sujeito em sua interação absorver, assimilar e transformar os objetos percebidos como pode fazê-lo o pensamento. A interação dos pensamentos com o mundo é, a príncipio, externa, mas transporta os objetos para dentro do campo da idealidade e se relaciona com eles em sua própria linguagem. A interação da percepção com o mundo sensível é de uma interpenetração constante. Não há, porém, alteração dos objetos, já que aquilo que percebo, assim como eu mesmo, encontramo-no imersos fazendo parte da mesma trama. A visão, por exemplo, difere-se assim de uma operação de pensamento, pois não se apropria daquilo que vê, mas aproxima o vidente do visível, através do

4  Merleau-Ponty; 2013: 37

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olhar, abre o vidente para o mundo. Daí apresentam-se dois conceitos importantes e complementares: a perspectiva do senciente e a opacidade do sensível. Se o espaço é contado a partir de mim e eu estou imerso na coleção do sensível, não existe imparcialidade, posto que a existência da percepção é uma experiência, é um ponto de vista que acontece no agora. Se não é possivel nem imaginar um espaço em que o ponto de vista do sujeito não esteja presente, que se pode dizer de uma experiência efetivamente vivenciada por um sujeito. Somado a isso, há o fato de que os objetos reais são opacos, e portanto, oferecem aos olhos, distintas faces. O processo perceptivo é, portanto, sempre fragmentado e parcial. Contudo, a experiência da percepção não é de fragmentos, mas de uma noção de ‘todo’. Na percepção, o ‘todo’ vem antes, predomina sobre as partes, e não é atingido pela soma de uma sequência de sensações ou impressões. A percepção ocorre por um processo metonímico em que cada mirada fragmentada é percebida como um todo, pois em cada fragmento há a mesma estrutura desse todo. Os fragmentos não são somados através da lógica, mas vão se juntando e confirmando a mesma verdade perceptiva por semelhança e confusão. O exemplo utilizado por Merleau-Ponty é o ato de olhar para um cubo. Ao olhar um cubo, dado um único ponto de referência, vê-se apenas algumas de suas faces e arestas: há lados que não são percebidos pelo observador. Não se deve dizer que estes lados ocultos são representações para mim, porque aquilo que é uma representação, não existe de fato, é apenas uma possibilidade. No entanto, aquilo que não é percebido naquele exato momento não deixa de existir. Olhar para o cubo conhecendo sua 44


estrutura através da geometria permite antecipar as percepções que teríamos ao ver os outros lados do cubo. Neste caso, a previsão de seu lado oculto é entendido como uma consequência necessária das estruturas do cubo e de funcionamento da percepção, e não uma experiência a partir da percepção: a antecipação dos lados ocultos é uma conclusão da lógica. Embora seja verdade que o cubo possui outros lados, a percepção não apresenta verdades, mas presenças. Apenas através da percepção, não é possivel dizer nada da face oculta do cubo e a mirada parcial que revela parte de suas faces, mesmo sendo fragmento de sua estrutura total é também uma percepção inteira, um ‘todo’. A síntese efetiva do ‘cubo’ transita por todas as esferas mencionadas até agora. Seria impossível nos despojarmos por completo do intelecto e olhar para algo semelhante à versão concreta do modelo geométrico de um cubo e não associá-los. No entanto, este cubo específico, poderia ser apenas parcialmente um cubo. Para se ter certeza de que este objeto em específico segue a lei estrutural geométrica de um cubo, é preciso observá-lo a partir de vários ângulos. (...) a síntese que constitui a unidade dos objetos percebidos e que significa os dados perceptivos não é uma síntese intelectual. (...) O que me proíbe de tratar minha percepção como um ato intelectual é que um ato intelectual tomaria o objeto ou como possível ou como necessário. Mas na percepção ele é real. (...) apresenta-se como a soma infinita de uma série indefinida de perspectivas nas quais o objeto está presente e em nenhuma se apresenta de maneira a esgotá-lo. (MerleauPonty; 1989: 15, trad. livre)

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Essa característica de realidade da percepção faz com que ela não pertença nem ao extremo do objetivismo nem do subjetivismo, criticados por Merleau-Ponty. A percepção ocorre, justamente, no contato e no cruzamento entre sujeito e objeto. É, portanto paradoxal, dado que o objeto percebido só pode existir se houver quem o perceba, isto é, é preciso que haja um objeto, um sujeito, e que seja estabelecida uma conexão entre eles. A percepção não se desenrola nem depende majoritariamente de um desses pólos, mas ocorre exatamente no vínculo estabelecido entre ambos. Um vínculo que acontece num exato agora, dentro da trama do real. O sensível não é, portanto, uma estrutura fechada, mas um sistema aberto de possibilidades inesgotáveis, uma vez que a quantidade de miradas e perspectivas possíveis é infinita. O objeto em si tem limites, totalidade, mas sua relação com o sujeito através da percepção é potencialmente infinita. E este processo é sempre parcial e metonímico, de forma que, é claro, que um objeto, visto por um único ponto de vista, pode parecer ‘deformado’ com relação à essa totalidade. Este é, segundo Merleau-Ponty, o custo de ser real, e não ideal. “Nosso mundo, como disse Malebranche, é uma ‘tarefa inacabada’” 5. Da mesma maneira como um objeto pode parecer deformado em relação à sua verdade ideal, quando visto sob um único ponto de vista, a percepção pode incorrer em ilusões - isto é, enganos perceptivos. “Merleau-Ponty não presume a percepção como verdadeira, mas sim como

5  Merleau-Ponty; 1989: 6, trad. livre

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acesso à verdade, sendo a evidência, a experiência dessa verdade” 6. O objeto propriamente dito e sua presença estão submetidos à temporalidade, de forma que se encontram em constante processo de modificação. O sujeito confirma, ou não, as evidências através das quais o objeto de apresenta a ele. Por exemplo, um objeto visto ao longe - Pallamin usa o exemplo de uma pedra no chão - mas que à aproximação ou outro olhar, se transforma - em um monte de pano, por exemplo - sobrepondo-se essa transformação por completo à impressão inicial, sem deixar rastro dela, “sem que nenhum dado sensível permaneça o mesmo” 7. No entanto, ambas - a verdade perceptiva e a ilusão - fundam-se na nossa confiança no mundo, naquilo que Merleau-Ponty chama de ‘fé perceptiva’, e fazem parte da totalidade formada por presença e realidade e ambas fundam-se no modo de aparecer das coisas. Como é possível, então, que tenhamos consciência da diferença entre elas? Merleau-Ponty afirma que há “entre elas uma diferença de estrutura” 8. Em uma experiência de verdade perceptiva é possível uma exploração continuada por vários ângulos em que ocorre a manutenção de uma concordância entre as várias miradas da qual é possível presumir uma continuidade. A “ilusão é impermeável” 9 a uma observação mais detalhada, pois a variação de perspectiva resultará num sentido diferente do inicial, substituindo uma evidência por outra. O segundo ponto de vista, porém, não é suficiente, por hora, para definir o real, pois trata-se apenas de uma

6  Pallamin; 1992: 52 7 Idem 8  Merleau-Ponty apud Pallamin; 1992: 52 9  Pallamin; 1992: 52

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primeira desilusão - “a perda de uma evidência porque é a aquisição de ‘outra evidência’” 10. Como foi dito anteriormente, a percepção ocorre sempre no agora e traz sempre uma noção de inteireza. Contudo, ela sempre invoca e se reporta a experiências anteriores, pois “a evidência não nasce de uma única experiência, mas da síntese de uma infinidade de experiências concordantes”11. É importante retomar que a percepção não nos apresenta verdades, mas presenças. Assim sendo, a verdade perceptiva sobre as operações criativas que dela decorrem segue uma lógica diferente daquela que busca verdades puras. No caso das artes, por exemplo, onde se encontram as ilusões: na tentativa técnica da mimetização naturalista, ou na desconstrução da percepção desenvolvida pelos modernos? Pois, as artes são formas de expressão plásticas, possuem uma linguagem própria, que nunca se apresentará a nossos olhos da mesma forma que o mundo real. A tentativa de mimetizar este mundo real, tarefa inatingível, é que se apresenta a nossos olhos como ilusão. Matisse afirmou que “Há duas maneiras de exprimir as coisas: uma é mostrá-las brutalmente, a outra é evocá-las como arte. Ao nos afastarmos da representação literal do movimento, chegamos a uma maior beleza e uma maior grandeza.” 12 Rodin dizia, segundo Merleau-Ponty, que o que faz surgir no bronze e na tela a sensação de transição e duração que nos traz o movimento, é

10  Merleau-Ponty apud Pallamin; 1992: 53 11  Dartigues apud Pallamin; 1992: 53 12  Matisse; 2007: 41. grifo do autor

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a construção de um corpo numa atitude que ele não teve em nenhum momento. Representa-se um corpo em movimento com braços, pernas, tronco e cabeça, cada membro em um instante diferente de um movimento contínuo, impondo a suas partes ligações fictícias num confronto incompossível. Rodin tem aqui uma frase profunda: ‘É o artista que é verídico, e a foto é que é mentirosa, pois na realidade, o tempo não pára.’ A fotografia mantém abertos os instantes que o avanço do tempo torna a fechar em seguida, ela destrói a ultrapassagem, a imbricação, a ‘metamorfose’ do tempo, que a pintura, ao contrário, torna visíveis, porque os cavalos (...) têm um pé em cada instante. (Merleau-Ponty; 2013: 50-51. grifo nosso)

Esta, segundo Rodin, é a verdade perceptiva do movimento. Pois, para ele na percepção, o tempo nunca pára, vivemos uma sucessão interminável de agoras que nunca se repetem. Nas artes, não se busca uma representação bruta, nem o exterior do movimento e da pura aparência, “mas suas cifras secretas.” 13. Da mesma forma como a percepção é a experiência plena do mundo real que nos cerca, a verdade perceptiva está nas artes quando elas atingem a expressão máxima de seu próprio meio. A arte não é nem uma imitação, nem uma fabricação segundo os desejos do instinto ou do bom gosto. É uma operação de expressão. Assim como a palavra nomeia, isto é, capta em sua natureza e põe diante de nós, a título de objeto reconhecível, o que apareceria confusamente, o pintor, diz Gasquet, ‘objetiva’, ‘projeta’, ‘fixa’. Assim

13  Merleau-Ponty; 2013: 51

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como a palavra não se assemelha ao que ela designa, a pintura não é um trompe-l’oeil, uma ilusão de realidade; Cézanne, segundo suas próprias palavras, ‘escreve como pintor o que ainda não está pintado e faz disso pintura absolutamente.’ (Merleau-Ponty; 2013: 137. grifo do autor)

Pode-se afirmar que a arte, não é, portanto, uma simples operação de representação, uma ilusão de ótica que tenta criar uma cópia da realidade. É uma operação criativa que parte do arcabouço de referências e experiências perceptivas, é uma operação de criar uma nova potencialidade de realidade perceptiva. Cézanne dizia da natureza que “é preciso curvar-se a essa obra perfeita. Dela nos vem tudo, por ela existimos, esqueçamos o resto” 14. O pintor afirmava que gostaria de unir a natureza e a arte e, segundo Merleau-Ponty, não estabelece um corte entre ‘os sentidos’ e a ‘inteligência’. Cézanne, abandonou o desenho - e a perspectiva geométrica - e entregou-se ao caos das sensações, sensações essas, que modificam a forma geométrica dos objetos e sugerem constantemente ilusões. O pintor chegou a um [suposto] paradoxo em que buscava a realidade sem abondonar a sensação, e a isso “Bernard chama o suicídio de Cézanne: ele visa a realidade e proíbe-se os meios de alcançá-la” 15. Porém, como reitera, no mesmo texto, Merleau-Ponty, a busca de Cézanne não era por uma réplica da realidade, mas ao pintar o mundo, convertê-lo inteiro em espetáculo. O pintor não queria repetir o mundo, mas, através de sua pintura, “fazer ver como ele nos toca.” 16

14  Cézanne apud Merleau-Ponty; 2013: 130 15  Merleau-Ponty; 2013: 130 16  Merleau-Ponty; 2013: 140. grifo do autor

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A obra de arte resulta, portanto, da dialética entre a mente criativa do artista e a natureza, num movimento de ir e vir entre o corpo do artista e a matéria concreta da obra - a tela, o bronze, etc. Uma dialética em que o artista é influênciado pela percepção da natureza e, por sua vez a aparência da natureza é modificada pelo artista, o que resulta numa sensação mais ‘real’ do que quando comparada à cópias mais ‘fiéis’. O quadros de Cézanne, segundo Merleau-Ponty, trazem uma impressão da natureza em sua origem, enquanto fotografias das mesmas paisagens sugerem a presença e o trabalho do homem. É interessante notar que, a essência da obra, o que lhe confere vida e realidade, tem natureza semelhante à experiência perceptiva: “O sentido daquilo que o artista vai dizer não está em parte alguma, nem nas coisas, que ainda não têm sentido, nem nele mesmo, em sua vida não formulada.” 17. Este sentido nasce quando da execução da obra em que o artista corporifica sua própria sensação. Reacende-se a cada instante em que um sujeito aprecia a obra. A arquitetura é a arte que mais literalmente medeia a experiência do homem com o espaço. Assim como a percepção e a arte, acende-se, acontece exatamente na conexão entre o homem e o espaço. O homem experimenta e aprecia o espaço. O arquiteto, tal qual o pintor que “emprega seu corpo” 18, também deve fazê-lo, permitir-se ser traspassado pelo espaço, ser modificado por ele, para então modificá-lo.

17  Merleau-Ponty; 2013: 139. grifo do autor 18  Valéry apud Merleau-Ponty; 2013: 18

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ver e olhar



Desde os antigos gregos, os escritos de filosofia de todas as épocas têm metáforas oculares abundantes, a tal ponto que o conhecimento se tornou análogo à visão clara e a luz é considerada uma metáfora da verdade (...) O impacto do sentido da visão filosófica é bem resumido por Peter Sloterdijk: ‘os olhos são o protótipo orgânico da filosofia. Seu enigma é que eles não apenas conseguem ver, mas também podem ver a si próprios vendo. Isso lhes confere uma proeminência entre os órgãos cognitivos do corpo. Na verdade, boa parte do pensamento filosófico é reflexo dos olhos, dialética dos olhos, ver a si próprio vendo.’ (Pallasmaa; 2011: 15)

A visão é um sentido privilegiado em comparação aos outros quatro, no funcionamento e na importância dada a ela pelo homem no curso da história, especialmente no campo do conhecimento das ciências e da filosofia. O ver recebeu a confiança do homem como um sentido objetivo e válido para o contato com o mundo. A luz consolidou-se, pouco a pouco, de metáfora a sinônimo da verdade, e do próprio conhecimento. Os outros sentidos, considerados mais primitivos, associados mais diretamente ao mundo das sensações, foram menosprezados, considerados cada vez menos confiáveis como canais de comunicação com o mundo. Do privilégio e importância recebida, este órgão do sentido ficou hipertrofiado. Acompanhando o avanço desmedido da visão, também se desenvolveram e multiplicaram todos os objetos e suas qualidades visuais. Este processo acirra sua curva de aumento exponencial nas últimas décadas devido à informatização. Conforme aumenta o campo 57


de ação da visão - crescem em quantidade e importância as atividades estritamente visuais, como o trabalho em frente a telas - aumenta proporcionalmente a importância e a amplitude de seu campo de significação. Vivemos num mundo em que a imagem, isto é, toda informação visual, tem papel central na cultura e na sociedade. No texto O Olhar Estrangeiro, Nelson Brissac, em 1987, já denunciava uma superexposição e uma saturação visuais. O autor afirma que em um mundo onde tudo é produzido para ser visto, o ver torna-se uma questão central. Hoje, com o avanço da informatização, o aumento da quantidade e importância das atividades desenvolvidas na frente de telas e com a aceleração de velocidade e quantidade de compartilhamento, podemos dizer que trouxemos a “banalização e a descartabilidade das coisas e imagens” 1 a um extremo sem precedentes. A visão é o sentido chave desta era. É talvez o único sentido capaz de acompanhar a velocidade de vida que alcançamos - ou talvez tenha sido esse nosso apoio exacerbado na visão que possibilitou e alavancou este aceleramento. De qualquer forma, os olhos têm sido exacerbadamente estimulados e sobrecarregados com informação em fluxo constante e permanente. Não são apenas os carros que colocam os passageiros metropolitanos em movimento, mas a própria informatização alcançou um tal grau de moto-contínuo fazendo com que as pessoas se tornem passageiros da informação. As mídias sociais e a própria internet está

1  Brissac; 1988: 361

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em movimento. O formato de scrolling 2 se estendeu para as mídias de leitura online, blogs, sites de notícias, tumblrs: praticamente não há mais páginas estáticas, mas sistemas com rolamento contínuo: o olhar não pode parar, a mente não deve parar. Existe um meme 3 que expressa perfeitamente a mente contemporânea em moto-contínuo que alimentamos diariamente: “too long. dind’t read” (muito longo. não li). Se não somos capazes de ler um texto com mais de 140 caracteres 4 na internet, quando pelo menos o corpo se encontra parado, que dirá do que se vê ao atravessar a cidade? Por um lado há a velocidade do deslocamento e das atividades na vida urbana contemporânea. As auto-pistas, os meios de transporte de massas, a internet e a conexão contínua trouxeram um aceleramento nos deslocamentos e nos tempos de comunicação. “O indivíduo contemporâneo é em primeiro lugar um passageiro metropolitano: em permanente movimento, cada vez para mais longe, cada vez mais rápido” 5. Por outro lado - e talvez também como um dos resultados dessa velocidade - recebe-se a todo momento uma avalanche de informações visuais que nos saturam onde quer que estejamos. Mesmo quando parado, se está na verdade em movimento através da informação: telas de computador, televisão, smartphones, e a própria paisagem urbana. 2  Ato de rolar uma página em uma tela sem usar o elevador da barra de rolagem Muitas formas de mídias digitais utilizam uma interface em que o conteúdo é acessado através de um sistema em que a página tem rolagem infinita. 3  O termo Meme de Internet é usado para descrever um conceito que se espalha via Internet 4  Número máximo de caracteres permitido por postagem no Twitter 5  Brissac; O Olhar Estrangeiro, 1988: 361

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Ambos os fatores convergem para um achatamento da percepção do conteúdo, determinando tanto a forma como se interage com o entorno quanto como o próprio entorno se apresenta para o indivíduo . Quanto maior a quantidade de movimento - nosso ou das imagens - maior o achatamento e a perda de profundidade, dado que quanto maior a velocidade, menor o tempo de contato. A esta dinâmica e saturação, Brissac coloca uma questão central sobre a visão: “Como olhar quando tudo ficou indistinguível, quando tudo parece a mesma coisa?” 6 Como sentido mais hipertrofiado, o funcionamento da visão deixa de ser raso e simples e passa a apresentar diversas camadas, e várias possibilidades de aprofundamento. Foram desenvolvidas formas de ver menos aprofundadas, em que apenas apreciamos a passagem dos objetos à nossa frente e não os objetos em si, sem nos relacionarmos de alguma forma com eles. Nessa velocidade os outros sentidos não têm vez já que somente a visão dá suporte ao conhecimento à distância e/ou em movimento. Outros sentidos tomam tempo e requerem mais pontos de contato, proximidade, espaços privados ou cercados. O tato exige um toque sempre em movimento, porém lento o suficiente para um entendimento; o olfato exige duração, que o sujeito e o cheiro estejam no mesmo lugar e a uma distância próxima; o palato exige [muita] intimidade. A audição talvez seja outro sentido que acompanha nossa modernidade, ao menos no que concerne à informatização - o objeto de apreciação da audição é, assim como a imagem, passível de digitalização e experiência à distância, mas possui um outro tempo e outro processo de sedimentação.

6  Brissac; 1987: XX

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Em Os Olhos da Pele, Pallasmaa defende a importância da experiência perceptiva na arquitetura abordando o uso dos cinco sentidos: a arquitetura coloca o homem em contato com a carne do mundo, localiza-o e permite sua existência no espaço ilimitado e no tempo infinito. A existência temporal do homem lhe é especialmente cara quando diz que aos homens importa ter experiências temporais que ultrapassem seu tempo restrito de uma vida individual. A arquitetura e todo o aparato civilizatório colocam o homem em contato com o tempo de toda a civilização. Permitem a este homem presente o acesso a um tempo muito anterior e também a um tempo futuro. No entanto este mundo concreto que o próprio Homem construiu só consegue desempenhar estas funções se o homem conseguir se apropriar dele, experienciando-o. E para Pallasmaa essa velocidade de viver que desenvolvemos também planifica a experiência do presente: “A incrível aceleração da velocidade que ocorreu ao longo do século passado arrasou o tempo contra a tela plana do presente, sobre o qual a simultaneidade do mundo é projetada.” 7 Este encontro do homem com o tempo através do corpo do mundo se dá, no entanto, através de suas formas, de suas qualidades aparentes, da experiência plena do espaço no encontro dos cinco sentidos. E isso ocorre num presente que não é instântaneo. Com a aceleração, não há tempo ou espaço para disparar os sentidos sequer individualmente, quanto mais para que se mesclem. Pallasmaa considera que esta superficialização e esta vivência de imagens rasas do mundo é causada por esse peso excessivo dado à visão e também a características específicas da visão que aumentam e acirram este afastamento dos homens da carne do mundo.

7  Pallasmaa; 2011: 49

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Sob estímulo contínuo, qualquer dos nossos sentidos, superestimulado, perturba a mente e absorve toda a atenção. É importante lembrar que, muito embora, se acredite possuir pleno controle sobre a experiência no mundo, os sentidos são desenvolvidos para experimentar tudo ao seu redor, por todo o tempo, em vigília constante. É possível tentar controlar o que lhe tocará a pele nua, porém a partir do momento em que se é tocado não há mais controle sobre a experiência decorrente; tato e todas as conexões nervosas e límbicas já foram disparadas. O mesmo vale para os outros sentidos. Basta abrir os olhos para ver. E estando de olhos abertos: vemos. Isto mantém a visão hiperestimulada o tempo todo, o que resulta numa simplificação ou desligamento parcial desta função. Assim como os olhos se fecham parcialmente quando há excesso de luz, o corpo não aguenta e a mente desliga parte da leitura de toda essa informação que chega. A visão portanto devido a sobrecarga, reduz sua amplitude mas permanece sendo hiperestimulada, o que favorece a atrofia dos demais sentidos por falta de uso. Pallasmaa traz a importância do tato no contato com o mundo, mesmo para a visão. Nomes e funções dos sentidos são separados racionalmente, mas em uma situação ideal, eles atuam de forma complementar, tecendo relações e mesclando as sensações. A absorção das informações pela percepção é recebida e analisada, constrói nossos castelos mentais. Relaciona, associa e catalóga memórias, referências e sensações similares ou advindas de contextos semelhantes, significa e registra. As sensações táteis que temos ativam memórias visuais, olfativas e auditivas, anteriores e inconscientes. O ver mede e esquadrinha pesos e distâncias a partir da memória tátil. Pallasmaa afirma que o tato poderia ser considerado o sentido inconsciente da visão, que revela apenas o que ele já sabe. 63


Somadas todas essas características - aceleração, sobrecarga e superexposição à informação visual -, a dessensibilização das pessoas com relação ao seu entorno é mais do que esperada. Pallasmaa junta a essa soma o fator de a própria visão ser um sentido que separa, distancia e afasta, ao passo que o tato, por exemplo, aproxima. Contudo, o uso da visão pode variar, já que é um sentido muito desenvolvido. Há mais de uma forma de visão. O Pallasmaa menciona duas formas de visão - focal e periférica afocal - sendo que “A visão focada nos põe em confronto com o mundo, enquanto a visão periférica nos envolve na carne do mundo” 8. Verificase aqui que a questão não é apenas o ver, mas o como ver, assim como não basta a existência do sentir, mas como sentir. A carga informativa passada pela realidade tem sido tão grande que ocorre um soterramento pela avalanche de informação. Como aponta Merleau-Ponty, não basta apenas estar com o aparato perceptivo funcionando para penetrar no mundo e ser por ele penetrado, mas é preciso não se relacionar com ele de forma utilitária como o fazem a ciência e o pensamento. Abordar o mundo com distância, com a razão, com a mente, pode apresentar uma aparente facilidade. A relação de exterioridade entre vidente e visível é mais segura, pois não apresenta riscos. Se o objeto - e o mundo - é homogêneo e completo ao invés de parcial e fragmentado, não existem imprevistos, surpresas - ou encantamento. Ao afastar-se dos objetos e compreender seu todo, suas regras de forma idealizada, o mundo e seu funcionamento se dobram e se explicam às ciências dos homem que tudo alcança. Parece mais estável se relacionar com o mundo

8  Pallasmaa; 2011: 10

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desta forma utilitária que nos fala Merleau-Ponty: idealizar ou objetivar traz sensação de controle e de entendimento total, traz sensação de empoderamento do homem sobre sua vida e sobre o mundo que o cerca. É claro que, como nos explica com precisão Pallasmaa, a visão é um órgão que apresenta a possibilidade do afastamento e do esfriamento, mas felizmente não é a sua única possibilidade. A visão tem espessura e possui possibilidades tão vastas quanto suas variações existentes na linguagem. É capaz de agregar os outros sentidos, de levar o sujeito a uma sinestesia interna e ativar memórias de todos os outros sentidos. Dentro deste espectro, existe uma polaridade recorrente em vários autores que vale a pena ser explorada - uma polaridade que se relaciona diretamente com a oposição que Merleau-Ponty estabelece entre o mundo ideal e o mundo real. No texto O Olhar do Viajante, Sérgio Cardoso contrapõe esses dois pólos da visão por meio dos conceitos de ver e olhar, de forma a mostrar que configuram campos de significação distintos, compondo por assim dizer, sentidos diferentes: O ver, em geral, conota no vidente um certa discrição e passividade ou, ao menos, alguma reserva. Nele um olho dócil, quase desatento, parece deslizar sobre as coisas; e as espelha e registra, reflete e grava. Diríamos mesmo que aí o olho se turva e se embaça, concentrando sua vida na película lustrosa da superfície, para fazer-se espelho... Como se renunciasse a sua própria espessura e profundidade para reduzir-se a esta membrana sensível em que o mundo imprime seus relevos. Com o olhar é diferente. Ele remete, de imediato, à atividade 65


e às virtudes do sujeito, e atesta a cada passo nesta ação a espessura da sua interioridade. Ele perscruta e investiga, indaga a partir e para além do visto, e parece originar-se sempre da necessidade de ‘ver de novo’ (ou ver o novo), como intento de ‘olhar bem’. Por isso é sempre direcionado e atento, tenso e alerta no seu impulso inquiridor... Como se irrompesse sempre da profundidade aquosa e misteriosa do olho para interrogar e iluminar as dobras da paisagem (mesmo quando ‘vago’ ou ‘ausente’ deixa ainda adivinhar esta atividade, o foco que rastreia uma paisagem interior) que, frequentemente, parece representar um mero ponto de apoio de sua própria reflexão. [. . .] Segmentam-se, subrepticiamente, os pólos da visão, e, entre eles, hesita seu sentido; pois dobra-se de um lado a percepção à soberania do mundo e, de outro, tudo se concede aos poderes do sujeito. [. . .] A visão - a simples visão -, ainda que modestamente ciente de seus limites e alcance circunscrito supõe um mundo pleno, inteiro e maciço, e crê no seu acabamento e totalidade. Toma-o como conjunto dos corpos ou coisas extensas que preenchem o espaço, e apóia nas qualidades deste a certeza da sua continuidade. Tudo se compõe, então, numa coesão compacta e lisa, e indefectível... Como aquela que deparamos na crença ou no sonho - pois, como ela, desconhece lacunas e incoerências e, como ele tudo acolhe e integra com naturalidade. Opera por soma, acumulação e envolvimento; busca o espraiamento, a abrangência, a 66


horizontalidade; e projeta, assim, um mundo contínuo e coerente, e acredita fruir e restituir - ainda que por prestações parcelares - a sua integralidade. [. . .] Já o universo do olhar tem outra consistência, o olhar não descansa sobre a paisagem contínua de um espaço inteiramente articulado, mas se enreda nos interstícios de extensões descontínuas, desconcertadas pelo estranhamento. Aqui o olho defronta constantemente limites, lacunas, divisões e alteridade, conforma-se a um espaço aberto, fragmentado e lacerado. Assim, trinca e se rompe a superfície lisa e luminosa antes oferecida à visão, dando lugar a um lusco-fusco de zonas claras e escuras, que se apresentam e se esquivam à totalização. E o impulso inquiridor do olho nasce justamente desta descontinuidade, deste inacabamento do mundo: o logro das aparências, a magia das perspectivas, a opacidade das sombras, os enigmas das falhas, enfim, as vacilações das significações, ou as resistências que encontra a articulação plena da sua totalidade. Por isso o olhar não acumula e não abarca, mas procura; não deriva sobre uma superfície plana, mas escava, fixa e fura, mirando as frestas deste mundo instável e deslizante que instiga e provoca a cada instante sua empresa de inspecção e interrogação. Ao invés, pois, da dispersão horizontal da visão, o direcionamento e a concentração focal do olho da investigação, orientado na verticalidade. É com Merleau-Ponty que talvez possamos compreender o cerne desta oposição. Ela, a simples visão, supões e expõe um campo de significações, ele, o olhar - necessitado, inquieto e

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inquiridor - as deseja e procura, seguindo a trilha do sentido. O olhar pensa, é a visão feita interrogação. [. . .] (...) no ver a integridade e suficiência do mundo, bem como sua sólida e rija consistência, rejeitam o vidente para o domínio de uma total exterioridade em relação a si, (...). No universo do olhar, no entanto, deparamos outra forma de articulação. Nele, vidente e visível misturam-se e confundem-se em cada modulação do mundo, em cada nó da sua tecelagem mostram-se imbricados em cada ponto de sua indecisa extensão. E se a realidade os entrelaça é porque o mundo visível não se dá mais como conjunto de ‘coisas’ rígidas e íntegras, positivas (como também não é matéria inerte nem caos que um sujeito como Demiurgo molda e informa), mas como o contorno de um campo em que o sentido hora se adensa e se aglutina, hora se difunde e dilui numa existência rarefeita, sempre vazado de lacunas e indeterminação. Como tão bem nos soube mostrar Merleau-Ponty, o visível enreda em si o vidente por apresentar-se como abertura e passagem, por só fazer sentido como linha de força e fuga, penetrado portanto de latência e interrogação. Deste modo a conjunção entre eles se faz por participação, incrustração recíproca, por comunidade, aderência e confusão, como indica o filósofo; enquanto no ver que se alicerça na ‘fé perceptiva’ o encontro se dá por contato, justaposição e envolvimento, guardando pois cada pólo sua autonomia e suficiência, sua intransigente identidade. (Cardoso; 1987: 348-349; grifo nosso)

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Ver e olhar são as aplicações ao sentido da visão da oposição colocada por Merleau-Ponty entre os meios pelos quais o mundo é acessado: pela razão ou pela percepção. Assinalam campos de significação diferentes entre os quais não há uma transição concordante, mas um salto, uma vez que a diferença está na intenção e na estrutura da relação estabelecida entre o sujeito e o mundo. No ver ocorre a mesma relação de exterioridade correlata ao mundo do intelecto, ora oscilando para a objetivação, ora para a subjetivação extremas - nas quais as respostas e o suporte se encontram completamente no objeto ou no sujeito, respectivamente. Em contraposição, o olhar acontece na imbricação entre sujeito e objeto, no (con)tato que se dá entre vidente e vísivel que num exato ‘agora’ se inflexionam e se entrelaçam, agindo um sobre o outro. Na mesma coletânea em que se encontra o texto de Sérgio Cardoso, O Olhar, em outro texto, Fenomenologia do Olhar, Alfredo Bosi desenvolve a mesma polarização, em que ele chama o ver de olho clássico. “O olho do racionalismo clássico examina, compara, esquadrinha, mede, analisa, separa, mas nunca exprime. [. . .] É um olho só capaz de perceber, no objeto, a sua objetualidade; logo tudo tratar como objeto, não-sujeito. [. . .] O contexto que o rodeia é um conjunto de coisas; não é uma situação em que um sujeito reconhece outro sujeito, ou reconhece - no outro um sujeito. (Bosi; 1987: 77)

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O olho racional é um olho que não olha para nada, mas que tudo vê, que enxerga através dos objetos sua estrutura, suas leis, e mais seu modelo, seu clichê. Ao suprimir por completo o olhar e confiar apenas no ver, perde-se as particularidades de cada objeto individual, e suas várias perspectivas, e essa percepção única e genérica transborda para todos os campos da criação de cultura. Na pintura clássica, por exemplo, baseada na perspectiva, ao mirar uma paisagem, o sujeito está locado em algum lugar do espaço em relação àquilo que é visto. Durante a apreciação, os olhos passeiam pelo espetáculo, gerando instantes sucessivos de perspectivas. O pintor, então, se esforça por encontrar um denominador comum, interrompendo o modo natural de ver, fechando, por vezes um olho, medindo os objetos e estabelecendo um ponto de fuga para onde todas as linhas irão convergir. Chega, assim, a uma paisagem de “aspecto tranquilo, decente, respeitoso, provocado pelo fato de serem dominadas por um olhar fixado no infinito. [...] o olhar desliza com facilidade por uma paisagem sem asperezas que nada opõe à sua facilidade soberana” 9. Já o olho que olha, é mais despojado, passeia pelas dobras da paisagem, assumindo a fragmentação e a parcialidade, mas num percurso analógico e contínuo. Acontece na relação entre sujeito e objeto. Esse olhar também é mencionado por Bosi em referência à fenomenologia. Ao contrário do olhar racionalista, que reinou soberano por dois séculos, este olhar já nasceu filosóficamente humilde, pois se sabe cativo no emaranhado das necessidades e dos impulsos.

9  Merleau-Ponty; 1948: 13

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[. . .] o olhar do outro para mim não me abarca inteiramente, porque nem a sua visão nem a minha nos constituem como objetos definidos: tanto a perspectiva do outro desliza espontaneamente na minha quanto a minha perspectiva desliza espontaneamente na do outro e, juntas são recolhidas em um único mundo onde todos participamos como sujeitos anônimos da percepção. (Bosi; 1987: 81-82) Ao olhar, sem ver, deparamo-nos com o mundo opaco e perspéctico da percepção. Essa forma de olhar nos coloca diretamente de frente com o real, com as nossas possibilidades perceptivas diretas dos objetos. Merleau-Ponty, no texto Conversas, afirma que muitos pintores após Cézanne recusaram-se a se curvar à perspectiva geométrica, interessados em recuperar o nascimento da paisagem diante dos próprios olhos e aproximar-se do estilo propriamente dito da experiência perceptiva. Esse é o olhar que se contrapõe ao olhar frio e distanciador de que fala Pallasmaa, pois não apenas aproxima, mas coloca o sujeito em conexão profunda com o objeto real, concreto, locado no mundo. Merleau-Ponty afirma que o pensamento e a arte moderna reabilitam a percepção e o mundo percebido - reabilitam o olhar. Mas isso não significa negar ou desvalorizar a ciência e o pensamento intelectual - o ver. Significa questionar o direito da ciência de negar ou excluir todas as outras formas de pensamento que não procedam da maneira clássica como ilusórias. No caso dos campos criativos da cultura isso é

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especialmente importante. Reabilitar e permitir um aprofundamento do olhar é abrir o leque de possibilidades de interação com o mundo e consequentemente das representações e criações assim derivadas dessas observações. As ciências e o pensamento na busca por modelos universais e verdades analisam os objetos e falam a respeito deles, de forma descritiva. O ver analisa e chega a conclusões sobre os objetos, mantendo sempre uma relação de exterioridade. No universo do olhar “não se trata mais de falar do espaço e da luz mas de fazer falarem o espaço e a luz que aí estão”. 10 Nas artes, e mais, na arquitetura, é essencial que o profissional além de ver, abra seu olhar ao mundo, para que desenvolva uma consciência plena das potencialidades de experiências ao criar plásticas ou determinar espaços. O artista e o arquiteto são seres necessariamente criativos, que além de entender o funcionamento ordinário dos objetos, precisam conhecer suas nuances. É preciso vivenciar suas próprias experiências com plena consciência para que se possa criar e transmitir experiências a outros sujeitos. No O Olho e o Espírito, Merleau-Ponty discorre sobre o olhar do pintor. Afirma que o olho já é muito mais do que um receptor de luzes, cores e linhas. O olhar é uma capacidade que se consquista pelo exercício e que não atravessa o mundo, mas se detém sobre cada detalhe, cada curva, passeando e registrando a visualidade do mundo.

10  Merleau-Ponty; 2013: 40; grifo nosso

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Penso que o pintor deve ser transpassado pelo universo e não querer transpassá-lo [...] Espero estar interiormente submerso, sepultado. Pinto talvez para surgir. O que chamam inspiração deveria ser tomado ao pé da letra: há realmente inspiração e expiração do ser [...]. (Klee apud Merleau-Ponty; 2013: 26)

Olhar é abrir-se ao mundo e se deixar transpassar por ele ao mesmo tempo que o percorremos. Nas disciplinas das artes e da arquitetura é importante que se tenha a capacidade de observar o mundo, absorvê-lo para assim criar. Olhar é pedir ao mundo que nos revele os meios “tão somente visíveis” 11 através dos quais um objeto se faz visível aos nossos olhos. Merleau-Ponty menciona, por exemplo, o olhar dirigido a uma piscina. Os azulejos não são vistos apesar da água e das refrações dos raios solares, mas justamente através dessa água e desse sol. Olhar é ver e experimentar o mundo da forma como ele se apresenta, é experimentar a faísca que se acende entre vidente e visível. O olhar tem um tipo de intenção e de atividade diferente do ver, que muitas vezes pode parecer passivo. Em verdade, a passividade do ver está mais no hábito do que em sua natureza, pois também é ativo e investigativo. Porém a necessidade do treino, e de uma busca específica, conferem ao olhar a característica de um olho ativo: um olho (cri)ativo. Matisse discorre a respeito da importância do olhar para o artista, afirmando que a criação começa pela visão pois

11  Merleau-Ponty; 2013: 24

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ver já é uma operação criativa e que exige esforço. Tudo que vemos na vida corrente sofre maior ou menor deformação gerada pelos hábitos adquiridos e esse fato talvez seja mais sensível numa época como a nossa, em que o cinema, a publicidade e as grandes lojas nos impõem diariamente um fluxo de imagens prontas, que, em certa medida, são para a visão o que o preconceito é para a inteligência. O esforço necessário para se libertar delas exige uma espécie de coragem, e essa coragem é indispensável ao artista, que deve ver a vida como quando era criança. (Matisse; 2007: 370) Para Matisse, não há nada mais difícil que pintar uma rosa, pois é necessário esquecer-se de todas as rosas que já foram pintadas. O treino do olhar exige frescor constante, um exercício que não é de ver e rever, como de costume, mas de, a cada vez, ver o novo. Isso não vale apenas para a apreensão do mundo que nos cerca e para a inspiração de que fala Klee, mas para o processo de desenvolvimento dos trabalhos de arte e arquitetura. Segundo Matisse, cada vez que tomava e retomava um estudo, era um novo retrato que fazia. A cada novo ângulo, a cada nova mirada, (trans)parece um novo aspecto.

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membranas



Relações pressupõem um contato entre ao menos dois pólos: sujeitoobjeto, objeto-objeto, sujeito-sujeito. É indispensável que haja dois pólos que existam separadamente e que, em um dado momento do tempo e espaço, estabeleçam um vínculo. Para que existam no mundo, ambos devem apresentar um contorno, uma totalidade, e estarem locados no espaço. A relação estabelecida pode se dar de forma objetiva, como nas ciências, de forma subjetiva-conceitual, como no pensamento, ou de forma perceptiva. Na relação perceptiva a conexão é estabelecida a partir de uma interpenetração entre os dois pólos ocorrendo um transbordo de informações entre um e outro. Embora a relação atinja o interior de ambos, ela se estabelece por meio de seus exteriores. Todos os objetos que formam a realidade apresentam um contorno, um limite, que é seu invólucro exterior. É por meio dessa camada mais exterior, e por vezes através dela, que se estabelecem as conexões. Podese assim dizer, que todas as relações apresentam um vetor exteriorinterior viabilizado pelo contato ou transpassamento de uma pele externa. É possível dizer que toda a vida corrente é desenhada em relações de binariedade: dentro/fora, cheio/vazio, claro/escuro, 0/1. É claro que entre os extremos existe uma espessura de gradação, mas ainda assim permanece entre esses extremos uma polaridade muito forte que tensiona as relações. Seja uma espessura ou uma linha, há algo que separa, e mais, regula a passagem de informação entre esses extremos, uma pele exterior que limita e dá contorno.

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A qualidade e quantidade do transbordo de informação que ocorre nas relações depende da permeabilidade desta pele, desta última camada externa do objeto que também pode ser chamada de membrana. Uma das definições de membrana na biologia é uma barreira permeável e seletiva que restringe a tranferência de massa entre duas fases, isto é, atua simultaneamente como limite e filtro. As membranas celulares são um excelente exemplo: determinam o limite da célula e contêm todos os componentes e estruturas celulares. É a última barreira e contém moléculas de proteínas que atuam como canais, promovendo a passagem de determinadas moléculas para dentro ou para fora da célula. Existe uma variedade dessas proteínas-passagem, e cada tipo libera ou barra a passagem de diferentes tipos de materiais. É possivel extrapolar essa estrutura celular como metáfora para as relações entre objetos - incluindo aqui os sujeitos, uma vez que habitam o mundo das coisas reais assim como os objetos. Considerando cada objeto como uma célula (unidade), suas membranas atuam como limites e filtros de matéria e informação. Na percepção, os órgãos dos sentidos são como as proteínas celulares que intermedeiam nossas relações perceptivas com o mundo, filtram e selecionam a informação que pode passar livremente, parcialmente ou ser bloqueada. Os olhos, orgãos perceptivos da visão, por exemplo, são dispositivos bastante complexos, onde ocorrem múltiplos processos de filtragem e modificação. Assim como nas câmeras (ou vice-versa), o meio que traz a informação perceptiva aos olhos é a luz. A luz passa por uma abertura controlada (diafragma/pupila), atravessa a espessura do olho (ou os jogos de espelhos dentro da câmera), e projeta-se sobre uma tela (retina/filme). Além disso, toda informação visual chega às retinas 82


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invertida (em relação ao mundo), e como os olhos estão diretamente conectados ao cérebro pelos nervos ópticos, a imagem é corrigida quase instantaneamente. O ato de ver é, portanto, intermediado por uma série de filtragens e edições estruturais do próprio sentido. Filtragem é uma palavra chave de nossa era, definitiva para o conhecimento intelectual e perceptivo. A sistematização do conhecimento intelectual e atualmente, todo o conhecimento informatizado, a configuração dos computadores, etc - é toda estruturada por filtros: de palavras, de dados, de assunto, até de relações nas mídias sociais. Mesmo nas relações humanas, sociais, afetivas, profissionais, há sempre uma regulagem do quanto de informação, de conteúdo pode ser compartilhado em cada conexão, seja no âmbito do concreto, ou das idéias. Limites e filtros são também elementos estruturadores e organizadores do espaço na cidade. Podem aparecer como barreiras concretas, ou linhas imaginárias: muros, grades, paredes, degraus, divisas, fronteiras. Os elementos constitutivos da cidade passam informações sobre limites e seleções, o tempo todo. O desnível e a diferença do tipo de piso entre a calçada e o leito carroçável separam a circulação de pedestres e veículos, ao passo que a faixa de pedestres sinaliza uma confluência entre as duas categorias. A mudança de piso, o muro, a grade entre a calçada e o início de um lote marcam uma divisa entre dois tipos de espaço, separam o espaço público de um espaço privado ou de acesso mais controlado. Todos esses elementos atuam como membranas. Alguns separam fisicamente, outros sinalizam convenções. Seguindo o paralelo das membranas celulares, as membranas urbanas também apresentam as proteínas intermediadoras: rebaixos na calçada, pinturas no asfalto, 84


indicam confluências entre categorias nas ruas, portões, portas e janelas permitem a passagem de pessoas, objetos, etc. No espaço urbano, há membranas que discriminam e selecionam objetos e espaços, categorizando-os e organizando-os. Dentre estas membranas, há as que separam fisicamente os espaços dividindo-os em unidades, células. A própria construção do espaço urbano é, como o corpo humano: o resultado de uma trama formada pela organização e justaposição de unidades mínimas, e seu agrupamento em estruturas maiores e mais complexas. No entanto, é interessante notar que a maior parte das subdivisões e membranas ocorre na dimensão horizontal. É comum referirmo-nos e referenciarmo-nos na cidade por mapas e fotos aéreas: distritos, zonas, bairros, quarteirões, lotes, são todas divisas horizontais. O eixo horizontal é, para as sociedades humanas, mais dinâmico que o eixo vertical, dado que somos animais terrestres, e é nesta dimensão que nos deslocamos mais facilmente. É, portanto, esperado que esta seja a dimensão que incite mais amplo leque de limites e filtros. Já a dimensão vertical é mais estática, dado que são necessárias estruturas construídas - como escadas ou elevadores - para transpô-la. A própria possibilidade de habitar a cidade de forma vertical exige a construção de solos elevados que atuam como separações, mas também como piso: é uma dimensão necessariamente compartimentada, e mais estática. Embora haja ampla gama de qualidades de membranas urbanas, existem alguns tipos que ocasionam uma polaridade espacial muito recorrente: interno-externo. Assim como os objetos e sujeitos, considerados na sua 85


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inteireza, criam uma tensão exterior-interior ao estabelecerem conexões com outros, também os espaços urbanos apresentam essa polarização. Pode-se considerar que o espaço externo é o espaço em sua infinitude. O espaco que Pallasmaa afirma ser, para o Homem, insuportável em sua imensidão. O arquiteto afirma que a construção das cidades, a arquitetura “domestica o espaço ilimitado e o tempo infinito, tornando-o tolerável, habitável, e compreensível para a humanidade” 1. No entanto, a própria atividade de construir gera uma “dialética do espaço interno e externo” limitando o tamanho, extensão e articulação do espaço habitado a cada momento. O espaço interno é, portanto, este espaço domesticado, isto é, delimitado, cercado pela construção. A circunscrição e o cercamento do espaço são como fazer bolhas de sabão. O ar externo é o mesmo ar interno à bolha. É no momento em que se forma a película - membrana - de água e sabão que enclausura um pouco deste ar, que nossa percepção muda. O ar que estava distribuído num espaço ilimitado, passa agora a apresentar forma e limites. Do mesmo modo, ao erigir paredes, cúpulas e lajes, limitamos o espaço, dando-lhe forma e finitude. Edifícios podem ser mais ou menos complexos e compartimentados. Todavia, para um observador externo ao edíficio, ainda que se conheça sua compartimentação interna, um edíficio se apresenta a esse observador como uma bolha. A membrana limitadora desta bolha

1  Pallasmaa; 2011: XX. grifo nosso

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aparente é a fachada desta massa construída. A membrana da célula edificada separa e protege o espaço interno das intempéries, e cria um microclima(cosmos) interior. A fachada também contém elementos intermediadores entre interior e exterior: janelas e portas. A porta é um elemento arquitetônico que constitui uma abertura, uma ligação entre o dentro e o fora, conectando estes dois espaços. Uma abertura passível de fechamento, permite ou veta a passagem dos homens, da luz e do ar, ilustrando, como afirma Simmel, “até que ponto separação e reaproximação nada mais são que dois aspectos do mesmo ato”2. Dentre os elementos intermediários mencionados, a porta e a janela são especialmente expressivas pois, constituindo construções humana, apresentam uma carga de significado muito superior à das proteínas das membranas celulares: carregam uma intencionalidade de ligar ou separar. A janela tem, segundo Jorge, em O Desenho da Janela (1995), uma de suas origens em uma variação da porta, a partir da redução de sua parte inferior, criando o que é conhecido por nós como peitoril. A mudança física na composição desta abertura, de porta para janela, resulta em uma grande mudança qualitativa de sua função de passagem. Por onde antes poderia haver passagem de pessoas, um “deslocamento físico dos corpos” 3, agora, é permitida apenas uma passagem da luz, do ar, e mais, do olhar. O impedimento do translado de corpos físicos e objetos ressalta a janela

2  Simmel; 1986 3  Jorge; 1995: 23

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como um intermediário que permite apenas a passagem de informação perceptiva, em especial, informação visual: luz. É interessante notar como, ao reconstruir a etmologia da palavra janela, “que deriva do vulgar januella, diminutivo de janua (ou ianua) que designava a porta, passagem (...)”, Jorge identifica a existência de Jano, divindade das portas de passagem. Explica que Jano é mencionado como o abridor e fechador de todas as coisas e “era representado com duas faces (bifrons), uma voltada para frente e outra para trás, sugerindo vigilância constante ou simbolizando sua sabedoria como conhecedor do passado e adivinho do futuro” 4. Este deus, assim como portas e janelas, olhava os dois lados ao mesmo tempo. A correlação entre janelas e olhos fica cada vez mais próxima. Ambos permitem a passagem de informação luminosa, enquadrando e permitindo uma comunicação visual com o exterior. O bloqueio da passagem através da janela transforma-a numa abertura para a criação de um ponto de vista ‘à distância’, fixando a separação entre o sujeito que está dentro e o sujeito que está fora. Impede a passagem que permitiria a conexão concreta dos dois sujeitos, mas permite que haja um transbordo das qualidades perceptivas entre os dois espaços, conectando-os. A ocorrência de janelas nas membranas (fachadas) dos edifícios tem ainda a possibilidade - justamente por não indicarem passagem - de serem posicionadas repetidamente, independentemente de altura (em relação ao chão exterior). Dessa forma, a composição das janelas na fachada

4  Jorge; 1995: 21-22

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de um edifício pode desenvolver uma trama de aberturas, tornando a membrana do edifício mais ou menos permeável. Quem revela o espaço aos olhos é a luz, o que significa que a forma como um determinado espaço é iluminado altera completamente a apreensão obtida. Na verdade, toda a atividade perceptiva da visão depende diretamente da luz e da forma como ela incide sobre os objetos. A luz que entra pela janela qualifica e revela o espaço interior. Entretanto, um observador que olhe de fora para a célula-edifício apreende-o de uma forma muito diferente de um sujeito que esteja dentro - para quem é impossivel ignorar as compartimentações existentes. Durante o dia, a luz do sol é soberana, banha a célula-edifício de fora para dentro, refletese e ilumina as áreas concretas, fechadas da membrana. A luz externa revela a massa do edifício, e a sombra revela discreta e sutilmente as aberturas e janelas, como olhos vazados na construção. Durante a noite, a situação se inverte. A luz artificial do interior da célula emana para fora, transbordando e projetando imagens na membrana, revelando detalhes e cores novas do espaço interior. Massas contínuas, linhas, quadros de luz flutuam na cidade. Agora, apenas a silhueta fantasmagórica dos edifícios pode ser apreendida. Os vazios se tornam cheios de luz, e a massa se dissolve na escuridão. Durante o dia, a cidade percebida é a cidade desenhada, planejada, projetada pelos homens. O que vemos dos edifícios são seus exteriores tais como desenhados nas elevações e ‘perspectivas artísticas’ de projeto. Linhas, cores e materiais, desenhados, projetados e executados por profissionais. Todos os andares, todas as aberturas, toda a volumetria exterior do prédio se apresenta aos transeuntes. Durante a noite, pelo 91


contrário, a arquitetura projetada é encoberta pelo véu noturno. Todos os gatos passam a serem pardos, e já fica difícil discernir uma arquitetura renomada e autoral de uma outra anônima e prosaica. O escuro oculta as massas, as linhas, as volumetrias e revela um mosaico de aberturas acesas que flutuam na noite. Mas este mosaico não foi designado por homem algum, é obra do acaso e do anonimato. À noite é possivel encontrar o sublime onde durante o dia existe apenas o banal. É dentro deste campo que foi desenvolvida a reflexão gráfica deste trabalho.

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gravuras



Caminhar pela cidade no período da noite é uma experiência completamente diferente do que caminhar durante o dia. Toda a experiência perceptiva é díspar: temperatura, percursos, fluxos e acima de tudo, a luz. A ausência do sol e a iluminação artificial invertem completamente as dinâmicas visuais do espaço urbano. Não existe uma luz direta e difusa soberana sobre os objetos ou a terra. Há múltiplos feixes de luz indo e vindo em variadas direções. A iluminação pública cria cones de luz, iluminando de forma desigual e descontínua os percursos. As aberturas dos edifícios, cegas durante o dia, abrem seus olhos ao se acenderem, revelando cores e texturas de persianas, projetando sobre a membrana das células-edifício, danças de luzes e sombras que insinuam as vidas sob a membrana. A homogeneidade da luz solar durante o dia gera riqueza de sombras e contrastes, iluminando e revelando a massa do mundo. Já a escuridão da noite abre espaço para um olhar mais fragmentado. Luzes de postes, sinais luminosos, faróis de automóveis iluminam apenas parcialmente os espaços, criando uma descontinuidade da paisagem. Janelas acesas de casas e edifícios preenchem as aberturas na massa construída revelando apenas indícios de forma e tamanho de suas construções. A paisagem noturna é enigmática e favorece enfoques e recortes em comparação à continuidade do dia. Embora o que nossos olhos registrem seja sempre a luz refletida pela massa dos objetos, durante a noite a descontinuidade da paisagem e a fragmentação das aberturas nas membranas dos edifícios causa a impressão de conseguirmos enxergar a própria luz, e mais, os vazios dessas aberturas. A luz artificial, vinda de dentro das células-edifício, é projetada sobre a tela das membranas-fachadas revelando o quanto e onde elas são permeáveis.

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A visão que se tem é a de uma imagem bastante retínica. A omissão da maior parte da informação visual cria uma aura de imaterialidade que esconde a massa dos edifícios e reduz seu peso. Vê-se apenas manchas de luz, formas geométricas flutuando no ar, e fragmentos iluminados de áreas concretas: pode-se ver a massa se desmanchando no ar. Retiradas referências mais concretas, perde-se a dimensão da profundidade e ocorre uma planificação da percepção. Vale aqui reiterar as afimações de Rodin e Merleau-Ponty sobre a fotografia: ela altera a percepção natural, evidencia a presença do homem, e congela o fluxo do tempo. A fotografia, de fato, congela aquilo que, aos olhos, é efêmero. Omite e destrói a espessura, a ‘metamorfose’ do movimento, pois mantém “abertos os instantes que o avanço do tempo torna a fechar em seguida” 1. No exemplo de pinturas de cavalos correndo, o objetivo é captar a própria ‘metamorfose’ do movimento. Porém, ao fotografar as paisagens noturnas, o escopo não é captar o momento da alteração de estado das luzes, o acender ou apagar, mas capturar um momento que é presente e efêmero em sua duração. Não quis recorrer ao desenho, que como diz Matisse, “vem direto do coração” 2, passando pelo braço e depois pela mão, para compor os traços. Preferi um processo que se assemelhasse fisicamente ao olhar: captar a própria luz através de um processo óptico. Isto gera um movimento de bidimensionalização do conteúdo percebido, e induz a um produto

1  Merleau-Ponty; 2013: 50 2  Matisse; 2007: 217

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gráfico. Optou-se por enfatizar a carga de informação puramente gráfica da sensação visual. A fotografia digital utilizada para a captação e fixação dessa informação visual passa a informação obtida a partir do espaço para um plano, no caso, das telas digitais. Todo o processo definido, desde a captura da imagem, através da fotografia, até a impressão, através da serigrafia, é uma sequência de operações de filtragem: de luz e de tinta. Cada ação e decisão tomadas para a captura fotográfica fazem parte do processo criativo. A fotografia, assim como o olhar, é um ponto de vista, e tem um enquadramento, isto é, o limite do recorte da paisagem que será registrado. A partir das primeiras saídas fotográficas, ficou claro que enquadramentos que abarcassem múltiplas janelas eram mais expressivos que janelas solitárias. As coleções de janelas acesas formam mosaicos, tramas de quadros de luz e representam também uma multiplicidade de pontos de vista e de contatos entre interior e exterior. A pluralidade potencializa a própria carga simbólica da janela, pois ainda que se esteja solitário dentro de uma quitinete, esta vida é apenas um ponto de luz na profusão de janelas da metrópole. Cada uma destas janelas abre-se para que o exterior penetre, mas também permite um transbordo do interior para fora. Cada fotografia é um retrato do efêmero, de um agora. Os mosaicos formados pelos conjuntos de janelas são frutos do acaso, porém capturados com consciência e intenção. Cada composição de janelas só existe por um período de tempo, e pode nunca mais se repetir, ou, ao contrário, repetir-se indefinidamente. O controle possível sobre esse processo fotográfico encontra-se na seleção, conquanto a construção 99


das paisagens é resultado de uma ação coletiva e involuntária. Em vez de retratar a arquitetura ideal, a fachada apresentada em uma elevação de projeto, captei uma arquitetura em movimento, que não foi projetada ou desenhada por ninguém. As composições gráficas registradas nas fotos tem autoria e contrução anônima e espontânea. Você sabe que o homem só tem um olho, que olha e registra tudo, esse olho, como uma magnífica câmera fotográfica, fabrica minúsculos clichês muito precisos, bem pequenininhos; na posse desse clichê, o homem diz a si mesmo: agora conheço a realidade das coisas, e ela fica ali por um instante, depois, sobrepondo-se lentamente a esse clichê, surge outro olho, invisível, que fabrica outro clichê com cada peça. Então nosso homem já não enxerga claro, inicia-se uma luta entre o primeiro e o segundo olho, o combate é encarniçado, finalmente o segundo olho vence, aprisiona o primeiro olho, sem discussão; dominando a situação, o segundo olho agora pode continuar seu trabalho, elaborar seu próprio quadro de acordo com as leis da visão interior; esse olho único está aqui [e Matisse aponta o alto da cabeça]. (Marchand apud Matisse; 2007: 229)

Após desenvolver o olhar, citado e definido em capítulos anteriores, fresco e sempre sensível à novas percepções, foi necessário desenvolver este olho interior de que fala Matisse. Além de eliminar o preconceito sobre a verdade dos objetos, foi necessário desenvolver uma familiaridade com a técnica final de impressão, e suas possibilidades de linguagem. Foi necessário aprender a planejar o início do processo, a captação da luz, prevendo suas possibilidades gráficas de impressão.

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A serigrafia foi escolhida como técnica por ser uma metáfora das fachadas-membranas dos edifícios. As fachadas são compostas por elementos concretos opacos e aberturas translúcidas. Da mesma forma, a serigrafia baseia-se em uma tela a princípio permeável, na qual selase áreas selecionadas e controla-se por onde a tinta poderá passar ou será bloqueada. Este processo se dá da seguinte forma: é aplicada uma emulsão fotosensível sobre o tecido permeável da tela; em seguida, coloca-se a tela em uma mesa de luz, e entre a tela e a luz, uma matriz (fotolito) em que, a informação da imagem que se deseja imprimir seja preta, e o restante seja transparente; a emulsão reage à incidencia da luz - isto é, onde a matriz é translúcida - e não passa onde a matriz é opaca (positivo da imagem); revela-se, então, a tela com um jato de água e as áreas onde a emulsão não reagiu são lavadas, mantendo-se permeáveis à passagem da tinta. A tela serigráfica pronta para a impressão é, portanto, uma membrana que filtra as informações da imagem a ser impressa, permitindo a passagem de tinta em áreas específicas. Opera de maneira binária, positiva ou negativa: a tinta passa, ou não. Diversamente da fotografia, e de nossos olhos, a impressão na serigrafia não permite um meio-tom contínuo, um sombreamento ou iluminação com larga escala de tons de luz. Pode-se, a partir de uma imagem em tons de cinza, criar uma retícula que simula a sensação de meio-tom pela variação de tamanho e distância entre seus pontos. Foi necessário um vai e vem experimental para desenvolver familiaridade e alguma capacidade de controle sobre o que e como fotografar, e quais os resultados gráficos finais possíveis. Foram necessárias uma série de idas e vindas entre fotografar, tratar as imagens, fazer testes de impressão. 101


Outra característica da serigrafia diferente da fotografia é sua grande possibilidade de experimentação com cores. Como explicado anteriormente, a serigrafia não opera, necessarimente sobre a composição CMYK. É possivel imprimir em quadricromia na serigrafia, mas neste estudo, a escolha da técnica foi também pela possibilidade de imprimir em uma variedade de cores sólidas. Vale lembrar que cada cor deve ser impressa em uma tela, ou seja, em uma camada diferente, o que significa que quanto mais cores houver em uma imagem, mais telas serão necessárias. Uma das coisas que mais encanta nas primeiras fotos foi a grande variedade de cores que as luzes e as janelas apresentavam. Além disso, a leitura que pretendia fazer era menos literal, e era um processo de descontrução das imagens originais. As luzes captadas pela câmera deveriam expressar-se agora através da tinta. Procurei imprimir a luz através de cores puras e criar luminosidade pelas relações entre as cores de tinta e de fundo. Sobre a luz e as cores, Matisse tem passagens inspiradoras em que afirma: “A cor contribui para exprimir a luz, não o fenômeno físico, mas a única luz que realmente existe, a do cérebro do artista.” (Matisse; 2007: 225) “A cor existe em si mesma, possui uma beleza própria. (...) Então entendi que era possível trabalhar com cores expressivas que não são obrigatoriamente cores descritivas.” (Matisse; 2007: 227)

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“Era preciso sair da imitação, mesmo da luz. Pode-se criar luz com a invenção de camadas de cores lisas, como se faz com os acordes de música. Usei a cor como meio de expressão de minha emoção, e não de transcrição da natureza. Utilizo as cores mais simples. Não sou eu que as transformo, são suas relações que se encarregam disso. Trata-se apenas de valorizar diferenças, de apontá-las. Nada impede compor com algumas cores, assim como a música que é construída tãosomente sobre sete notas.” (Matisse; 2007: 227) Experimentei, assim, construir a luz através das cores e suas relações, e a retícula teve, aqui, um papel fundamental. Onde, na fotografia, havia meios tons de luz, na impressão há uma trama de pontos que variam distância e tamanho. Ao imprimir a cor da tinta sobre a cor do papel, a relação que estas duas cores estabelecem não é apenas nas bordas da massa de cor, mas na própria trama do meio-tom, que se forma pela aparente mistura das duas cores. Ainda inspirada em Matisse, estabeleci uma matriz de variáveis para testes. Testei a impressão de cinco cores de tinta sobre oito cores de papel para testar e afinar os primeiros acordes. Embora estivesse buscando sair da imitação, durante a experimentação ficou claro que as impressões de cores claras sobre fundos escuros apresentavam maior força expressiva dado que o objetivo ainda era uma experiência luminosa. As tentativas de impressões sobre fundos mais claros também manifestavam força e beleza, mas não exprimiam a luz naturalmente. Ao contrário, assemelhavam-se a imagens bastante solares, com um

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fundo de luz banhando o campo, a as janelas como olhos vazados. Seria necessária uma operação mental muito artificial para acreditar que a tinta impressa fosse luz. Ainda lembrando Matisse, ele afirma que, as cores não devem ser necessariamente descritivas, mas elas possuem uma beleza própria. A percepção do contraste entre o claro e o escuro sempre associa o claro à luz. Assim sendo, dado o universo real que estava representando, optouse por manter combinações de cores de tinta e de fundo que geraram auras mais noturnas. Busquei, motivada pelos escritos de Matisse, Cézanne e Merleau-Ponty, criar um produto gráfico que inspirasse uma verdade perceptiva tão sincera quanto à experiencia que tive frente às paisagens ao vivo, e mesmo frente às fotos. Criar uma percepção bastante rica, mas sem mimetizar a realidade. Ao experienciar a realidade testemunhei a existência de muitos céus noturnos e diversas temperaturas de luzes nas janelas. A manutenção de mais de uma cor de papel, e de váriações das cores de tinta em uma mesma imagem visam realçar a pluralidade da experiência perceptiva nessas paisagens noturnas, e sua impermanência. A repetição e variação das imagens é apenas uma amostra do que seria possível. Da mesma forma como a percepção é sempre um todo criado a partir de uma fragmento de um sistema de possibilidades infinitas, as composições dos mosaicos de janelas são múltiplas, e as variações de cores a partir de cada foto seguem se multiplicando.

Ao lado, exemplo de matriz para queima da tela. As áreas em preto são onde a tela pemanecerá permeável. Esta matriz é impressa em preto opaco sobre vegetal. >>

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Testes de impressão em serigrafia com diferentes combinaçþes de cores


Testes de impressão em serigrafia com diferentes combinaçþes de cores


Testes de impressão em serigrafia com diferentes combinaçþes de cores


Testes de impressão em serigrafia com diferentes combinaçþes de cores


Testes de impressão em serigrafia com diferentes combinaçþes de cores


Testes de impressão em serigrafia com diferentes combinaçþes de cores


Testes de impressão em serigrafia em diferentes combinaçþes de cores


Testes de impressão em serigrafia: variação da retícula



bibliografia



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