Geonovas n.º 18

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REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE GEÓLOGOS

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Resgate científ ico num túnel da Auto-estrada do Cantábrico Consequências e ensinamentos

Radioactividade natural e ordenamento do território O contributo das Ciências da Terra

Isotope Geochemistry In Metallogenesis New Insights


Geonovas Revista da Associação Portuguesa de Geólogos Associação Profissional fundada em 1976, membro fundador da Federação Europeia de Geólogos Rua da Academia das Ciências, 19 – 2º Apartado 2109 – 1103-301 LISBOA Tel. 21 347 76 95 – Fax 21 342 46 09 apgeologos@mail.telepac.pt

Comissão Directiva Presidente Fernando Noronha (Univ. do Porto) Vice-Presidente Pedro Proença e Cunha (Univ. de Coimbra) Secretário Geral e Tesoureiro José Brandão (INETI) Vogais Edite Bolacha (Esc. Sec. Camarate, Lisboa) Luísa Borges (Câmara Mun. do Porto) José Brilha (Univ. do Minho) Ana Maria Antão (Inst. Polit. da Guarda)

Vice-Presidente Alexandre Lima (Univ. do Porto) Vogais João Mata (Univ. de Lisboa) Narciso Ferreira (INETI) Zélia Pereira (INETI)

Delegado FEG Rui Moura (Univ. do Porto)

Comissão Editorial Carlos Meireles (INETI) José Feliciano Rodrigues (INETI) Paulo Castro (INETI) Zélia Pereira (INETI) Rua da Amieira 4466-956 S. MAMEDE DE INFESTA Apartado 1089 Tel. 22 951 19 15 – Fax 22 951 40 40 paulo.castro@ineti.pt

Graf ismo Assembleia Geral Presidente Maria dos Anjos Ribeiro (Univ. do Porto) Vice-Presidente Alexandre Araújo (Univ. de Évora) Secretário Elisa Preto (Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro) Vogais José Feliciano Rodrigues (INETI) Carlos Meireles (INETI)

Conselho Fiscal Presidente Bernardo Reis (Consultor)

Filipe Barreira (INETI)

Impressão APPACDM-Braga

Depósito Legal 183140/02

Tiragem 850

Foto Capa O autor da exposição didáctica sobre o Túnel Ordovícico del Fabar junto à maquete gigante de Nesuretus tristani

FCT Apoio da FCT ao abrigo do regulamento do programa Fundo de apoio à Comunidade Científica – FACC




Editorial Nestes últimos anos tem sido afortunada a “descoberta” ou a eleição dos chamados patrimónios geológicos, uma temática relativamente recente das Ciências da Terra chegada com alguns anos de atraso à Geologia portuguesa. Trata-se de uma sensibilização dos tempos, impensável há uns anos atrás na nossa sociedade. Os patrimónios geológicos constituem objectos que sempre tiveram interesse para a ciência, como mais valias e achegas científicas, e, ultimamente, a ter também para a cultura e fruição da sociedade em geral, apelando, deste modo, para a sua preservação. Se o legado Arqueológico já era reconhecido desde as suas primeiras manifestações, o Paleontológico tinha a abrangência da escala geológica tendo sido dos primeiros “decifradores” da História da Terra. Surge, mais recentemente, o Arqueológico-mineiro suportado pelos instrumentos de mineração, de escavação, de tratamento dos minérios e da própria escavação ou mina. Finalmente organiza-se, no extremo da escala, o Geomorfológico-paisagístico, sendo que as paisagens, mais ou menos “ornamentadas” pelo coberto vegetal, assentam no que as geodinâmicas lhes proporcionam na sua estruturação morfológica. Todas estas invocações entendem-se ser hoje quase plenamente aceites, necessariamente contempladas nos PDM autárquicos. A sua preservação como documentos-relíquias do passado da História da Terra é, deste modo, alargada à sensibilidade da sociedade civil, através das inúmeras acções que o Programa Ciência Viva parece, agora, merecidamente, vir novamente a contemplar. Outros temas, não menos interessantes, traz este volume a público, e igualmente de grande oportunidade para o Ordenamento do Território. É o caso do risco radiactivo que potencialmente as extensas áreas graníticas, nomeadamente, das Beiras e Alto Alentejo, debitam, fazendo apelo à elaboração de cartas de risco. Ou a escolha de sítios para barragens que podem vir a afectar o património geológico. Salienta-se, ainda, a sismicidade local que estudos de Impacte Ambiental alegadamente menosprezam, não tendo em devida conta o Sismo Máximo Credível, como no caso da Barragem do Baixo Sabor. A aplicação de isótopos radiogénicos em depósitos minerais é uma importante ferramenta na determinação de modelos conceptuais ou de modelos genéticos para as mineralizações, diz-nos o único “resumo alargado” que optou pela língua de Shakespeare, desde há muito entendida como veículo de informação científica. E, finalmente, o resgate científico no “Túnel Ordovícico del Fabar”, que mostra como é possível conciliar um empreendimento de utilidade pública com o respeito pelo conhecimento e fruição científicas, que emerge claramente para o futuro como paradigma a seguir, escrito em Português por um “nuestro hermano” em homenagem à Língua de Camões.

Bernardo Barbosa



Associação portuguesa de geólogos

Geonovas nº 18, pp. 5 a 12, 2004

Património Geológico Português – importância científica, pedagógica e sócio-económica Miguel de Magalhães Ramalho Investigador Coordenador do ex-Instituto Geológico e Mineiro Professor da Faculdade de Ciências de Lisboa

Embora a área emersa do território nacional seja relativamente reduzida é grande a sua diversidade geológica (geodiversidade) e seu registo geológico bastante completo, pois, do Fanerozóico, só o Pérmico e o Triásico Inferior não estão representados. Muito simplificadamente, podemos caracterizar geologicamente o território português continental nos seguintes conjuntos: 1. O soco antigo, constituído essencialmente por rochas quer magmáticas, em especial granitos, quer metassedimentares, do Precâmbrico Superior ao Carbónico, profundamente afectadas pela Orogenia Hercínica. 2. As bacias sedimentares mesozóicas (Lusitânica e Algarvia), onde se depositaram calcários, margas e arenitos, de ambientes marinhos de plataforma a fluviais, excepcionalmente fossilíferas, tendo nomeadamente revelado uma grande riqueza em fósseis de dinossauros (ossos e pegadas). De salientar, também, os fenómenos cársicos que se observam nas regiões calcárias, e que se deram durante o Quaternário. 3. Os 3 maciços magmáticos do final do Cretácico: Sintra, Sines e Monchique, cuja instalação foi acompanhada por intenso vulcanismo sub-aéreo (Lisboa).

a isto juntamos as belíssimas ilhas da Madeira e Açores, de génese vulcânica, de clima ameno, em pleno oceano, bem podemos agradecer a sorte com que a Natureza nos brindou. Assim soubéssemos cuidar capazmente do que nos foi dado... Esta diversidade geológica e climática influenciou profundamente a forma de ocupação e de utilização do território, através da matéria prima disponível (materiais de construção, minérios, solos). Assim, ainda hoje é perfeitamente visível como essa diversidade se reflecte na vegetação, na agricultura, nos hábitos das populações, na arquitectura popular e, mesmo, na gastronomia regional e nos vinhos. O empenhamento do Estado no conhecimento geológico do nosso território iniciou-se em 1848, com a Comissão Geológica e Mineralógica chefiada por Charles Bonnet. Os resultados obtidos não foram satisfatórios e, por isso, aquela Comissão foi extinta cerca de dez anos depois. É com a criação da Comissão Geológica, em 1857, que podemos dizer que nasceu a Geologia portuguesa. Os nomes de Carlos Ribeiro, Nery Delgado e Paul Choffat, são bem conhecidos de todos, como os pioneiros do conhecimento geológico do nosso território, que incansavelmente desenvolveram durante as últimas décadas do sec. XIX e princípios do sec. XX.

4. As bacias cenozóicas do Tejo e Sado, de fácies marinhas a continentais, por vezes com ricas fau- A par da publicação de notáveis estudos científinas de vertebrados. cos, começou a surgir a cartografia geológica do 5. As formações dunares, móveis e consolidadas, nosso país, primeiro com esboços e finalmente terraços marinhos e fluviais, aluviões e areias de em 1867, numa carta colorida à mão sobre a então praia do Quaternário, bem como vestígios da gla- recente base topográfica á esc. 1/500.000, versão essa apresentada na Exposição de Paris, onde foi ciação Würm (Serras da Estrela e Gerês). premiada. A sua publicação oficial dá-se só em Quando viajamos pelo nosso território, temos 1876. a sensação de percorrer regiões pertencentes a países diferentes, tal é o contraste que apresen- Esta actividade não mais parou até aos dias de tam entre si, o qual é acentuado pelas influências hoje, embora, atravessando por vezes, períodos climáticas atlânticas e mediterrânicas. Quando demasiado longos em que o desinteresse e a in-


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competência das entidades responsáveis e a con- niche, cabo Mondego, litoral do SW Alentejano sequente falta de meios, motivaram atrasos signi- e outros. ficativos nesses trabalhos. Duma forma geral, todo o nosso litoral rochoso, Com o progressivo conhecimento do território a par da sua grande beleza, apresenta um notável foram sendo evidenciados locais de particular in- registo geológico, com excelentes condições de teresse geológico, quer por motivos científicos ou observação, como acontece para as séries jurássipedagógicos, quer, ainda, pela sua espectaculari- cas e cretácicas das costas ocidental e algarvia. dade. Em consequência foi surgindo o interesse Bons exemplos de geomorfologia cársica podem pela sua protecção. ser observados no Parque Natural da Serra de AiEstes locais são considerados como geossítios ou res e Candeeiros, Pedra Furada (Sintra), Cabo geótopos e, nos casos em que a sua importância é Carvoeiro, Cascais, Algarve, etc. As Serras da excepcional, são assumidos como geomonumen- Estrela e do Gerês apresentam os vestígios mais tos. Podem considerar-se como justificativos des- meridionais que se conhecem na Europa das glaciações quaternárias (Würm). sa importância, os seguintes argumentos: - Por serem testemunhos do passado da história Os Arquipélagos dos Açores e da Madeira são um da Terra, ocorrendo de forma particularmente repositório de belos exemplos de fenómenos vulinteressante e pouco frequente ou rara e sendo cânicos, quer do passado quer ainda em actividade. muitas vezes, locais únicos. - Por terem interesse científico, permitindo o Entre nós, e do meu conhecimento, uma das priconhecimento aprofundado do passado da Terra, meiras manifestações públicas em prol da sale, mais localmente, da evolução do nosso terri- vaguarda de um local com interesse geológico, deve-se a A. J. Marques da Costa (Comun. Serv. tório. Geol., 1916, p. 115) a propósito da Pedra Furada, - Por possuírem interesse pedagógico, oferecen- em Setúbal, que se refere, em termos que contido aos alunos e ao público em geral, a exemplifi- nuam actuais, a este tipo de problemas: cação dos fenómenos geológicos. “A Pedra Furada é um exemplar geológico muito - Por apresentarem interesse turístico, uma vez raro senão único e que deve, por isso mesmo, ser que o Turismo da Natureza é uma componente conservado à vista de todos os visitantes ilustracom crescente interesse económico. dos. Já, por vezes, tem estado em risco de desaEstes sítios têm características e importância parecer para dar lugar à passagem de uma estrada muito variadas. Assim, podemos referir geossí- ou à construção de qualquer oficina. Pessoas intios que têm importância científica excepcional, teligentes têm intervindo para evitar tais vandacomo acontece com o estratotipo da passagem do lismos, que aliás a actual proprietária do terreno, Aaleniano-Bajociano no Cabo Mondego, que se em que se acha esse notável exemplar é a primeira tornou uma referência estratigráfica internacio- a não consentir. Oxalá que os futuros sucessores nal; a antiga mina da Guimarota (Leiria) pela da actual dona pensem do mesmo modo que ela sua fauna jurássica de vertebrados única a nível ou, ainda, que qualquer entidade oficial adquira mundial, ou, ainda, algumas das jazidas com tri- o terreno, para que se assegure definitivamente lhos, dos mais longos que se conhecem, de pe- a existência desta manifestação geológica, digna gadas de dinossauros, como acontece no Parque do estudo dos competentes, que nela procurem a Natural da Serra de Aires e Candeeiros e em explicação do modo como se formou”. Carenque (Sintra). Há locais que são notáveis, a Mais tarde, o Professor Carlos Teixeira, da Faculnível nacional, do ponto de vista paleontológico, dade de Ciências de Lisboa, teve uma intervenção como são os casos de Arouca (trilobites) de Penha notável neste campo, publicando diversos artigos Garcia (icnofósseis) e de Lourinhã (dinossauros) onde não só pugnava pela salvaguarda de diverou pela importância estratigráfica das séries que sos geossítios, como procurava chamar a atenção afloram: Cabo Espichel, Barrancos, Sagres, Pe- para o interesse científico e pedagógico de que se


Património Geológico Português Importância científica, pedagógica e sócio-económica

revestiam, chegando a organizar uma colecção de diapositivos para divulgação de alguns desses locais.

Assim, a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 66º, diz claramente que “incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e a participação dos cidadãos: criar e desenvolver reRecordo-me bem quando, como aluno, particiservas e parques naturais e de recreio, bem como pava nas excursões geológicas por ele orientadas, classificar e proteger paisagens e sítios, de modo do entusiasmo que punha na salvaguarda do paa garantir a conservação da natureza e a preservatrimónio geológico nacional. ção de valores culturais de interesse histórico ou Em 1978, tive a oportunidade de solicitar ao Ser- artístico” (alínea c do seu nº.2). E, mais adiante, viço Nacional de Parques, Reservas e Património no seu artº.78 diz que “todos têm direito à fruição Paisagístico, através dos então Serviços Geológi- e criação cultural, bem como o dever de presercos de Portugal, a protecção oficial dos seguintes var, defender e valorizar o património cultural” locais: lapiás de Cascais-Guincho, duna consoli- e ainda, que incumbe ao Estado, em colaboração dada de Oitavos, dunas actuais da Crismina, li- com todos os agentes culturais: “promover a saltoral entre o Guincho e Praia das Maçãs, lapiás vaguarda e a valorização do património cultural, da Pedra Furada, litoral entre Sesimbra e o Sei- tornando-o elemento vivificador da identidade xalinho, Cabo Mondego e arriba fóssil da Costa cultural comum (alínea c do nº.2). da Caparica. Os agentes do Estado que são aqui referidos, no Com maiores ou menores dificuldades e demoras quase todos foram objecto de protecção oficial. Tiveram direito a diploma legal específico o lapiás da Pedra Furada e a arriba fóssil da Caparica; outros ficaram incluídos nos Parques Naturais de Sintra-Cascais e no da Serra da Arrábida, entretanto criados. O único para o qual, até hoje, não foi possível obter um estatuto de protecção por parte da Administração Central foi o cabo Mondego, embora tenha sido já classificado como “Património de interesse municipal” pela Câmara Municipal da Figueira da Foz.

que respeita à conservação dos valores culturais naturais, (biológicos e geológicos), são, fundamentalmente, dois: o Instituto da Conservação da Natureza (ICN) e as Autarquias. O processo de classificação de maior peso legal será, obviamente, através do ICN, mas tem a grande desvantagem de ser mais complicado e demorado.

A Lei de Bases do Património Cultural Português (Lei nº.107/01) permite, entre outros, a classificação de “bens naturais, ambientais, paisagísticos ou paleontológicos” (artº.14º.) o que, obviamente, inclui os geológicos e atribui aos municípios a Hoje, a questão da protecção do património ge- faculdade de classificação de bens culturais como ológico faz parte das preocupações da comuni- de interesse municipal, (artº. 94º), o que, à pardade científica nacional. Todos nos recordamos tida, permite dar, de forma expedita, um estabem do que foram as campanhas e iniciativas por tuto de protecção àqueles locais. Posteriormente, parte do Professor Galopim de Carvalho, da Fa- quando se justificar, poder-se-á iniciar o procesculdade de Ciências de Lisboa e do Museu Nacio- so de classificação de maior importância (bens nal de História Natural, que tão bons resultados de interesse público e de interesse nacional). No entanto, aquele é o processo mais eficaz de proconseguiram, como a salvaguarda das jazidas de tecção, dado que as Autarquias estão no local e, Carenque (Sintra), Pedreira da Galinha (P. N. desde que o queiram, serão as melhores zeladoras Serra de Aires e Candeeiros), Pedra Furada (Sedesses sítios. Por outro lado, numerosos geossítúbal) e outras. tios estão incluídos na rede de Parques Naturais Actualmente, a Lei portuguesa consagra e permi- portugueses, que actualmente cobrem cerca de te a classificação desses locais e, embora não seja 10% da área do território português ou são objecespecífica para os geossítios, estes encontram-se to de legislação de protecção específica ou geral incluídos nos conceitos de “património cultural”, (Reserva Ecológica Nacional, Domínio Público Marítimo, Rede Natura). “conservação da natureza”, e “bens naturais”.

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Sabemos bem, que o facto de um determinado local possuir um estatuto de protecção não significa que a sua integridade esteja automaticamente salvaguardada, mesmo quando integrado num Parque Natural . A vigilância desses locais deixa muito a desejar e as acções judiciais contra os prevaricadores só raras vezes surtem efeito, prevalecendo a ideia de que quem não cumpre a lei é que é beneficiado! Desde há muito que tenho vindo a defender que quando estão em jogo valores relevantes do património natural (geológico e biológico), o Estado deve adquirir essas áreas, por um preço justo, aos seus proprietários. Desta forma, não só se garantirá melhor a protecção daqueles, como o dinheiro de todos nós servirá para adquirir um património que é do interesse geral, não obrigando os particulares a arcarem com essa responsabilidade, que tantas vezes corresponde a um onus económico. É necessário, portanto, um grande trabalho de sensibilização das entidades governamentais e locais, pois as questões do património geológico ainda estão longe da aceitação de protecção que é dada aos valores da fauna e da flora. Isto devese, principalmente, à deficiência em Geologia nos currículos do Ensino Secundário, atingindo a iliteracia geológica grande parte da população portuguesa, nomeadamente a nível dos responsáveis. Boa parte desta falta de sensibilidade para a salvaguarda dos valores naturais, incluindo os estéticos-paisagísticos, por parte dos responsáveis interventores no território, deve-se à ausência destas preocupações a nível dos cursos superiores que lidam com estas matérias. Por aquilo que tenho visto ao longo de muitos anos, com honrosas excepções, gerações de engenheiros, arquitectos, economistas, advogados e outros, devem sair da universidade muito pouco, ou mesmo nada, sensibilizados para este tipo de questões. Ciente da necessidade de sensibilizar a opinião pública para a importância dos valores geológicos e, obviamente, dos responsáveis políticos, o Instituto Geológico e Mineiro iniciou a publicação de roteiros geológicos simplificados, com carta e notícia explicativa, relativos aos Parques Naturais. Assim, foram já editados os correspondentes

aos Parques Naturais de Peneda-Gerês, de Sintra-Cascais, da Serra da Estrela, estando a aguardar impressão o da Ria Formosa e em preparação os de Montesinho e do Douro Internacional. Foi, também, publicado o roteiro do Parque Arqueológico do Vale do Côa e um folheto sobre a geologia das Berlengas. Com estas publicações pretende-se, também, fornecer uma boa base de apoio à actividade de campo dos professores e alunos do Ensino Secundário e às actividades geoturísticas das empresas que desenvolvem acções de turismo de Natureza. O IGM lançou, em 1998, o projecto “Geologia para Todos”, por ocasião das Comemorações dos 150 anos da 1ª. Comissão Geológica, que previa excursões no terreno destinadas, principalmente, a despertar no grande público o interesse pela geologia. Este projecto acabou por estar na origem da “Geologia no Verão”, patrocinado pelo programa Ciência Viva. As visitas realizadas ao longo de vários anos demonstraram que os temas geológicos, vistos no campo, são capazes de despertar um grande interesse na maior parte do público. Finalmente, está em fase de conclusão a 1ª. fase do projecto “Geo-Sítios”, com o apoio de vários colegas, do Instituto e de universitários, que pretende constituir uma base de dados de geossítios nacionais, acessível pela Internet. A questão da divulgação pública dos locais com interesse geológico deve, no entanto, ser encarada com precaução, pois existem alguns, nomeadamente jazidas de fósseis ou de minerais, que rapidamente podem ser destruídos por coleccionadores, comerciantes ou simples curiosos. Nestes casos, também, os professores devem evitar levar alunos a esses sítios. É um hábito salutar, nas visitas de estudo, proibir o uso do martelo em certos afloramentos. É bem conhecida a devastação que estas visitas, ao longo de anos, podem causar. Um outro aspecto a ter em conta, no tema da divulgação, é o tratamento a dar a certos locais visitáveis. Em meu entender, dever-se-á respeitar ao máximo as características naturais do local, evitando a artificialização exagerada dos acessos ou a colocação de painéis interpretativos que descaracterizem a paisagem ou o envolvimento natural. É preferível à colocação destes painéis, em especial


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quando em locais despropositados, a existência de roteiros ou folhetos explicativos, que têm a vantagem de poder ser levados para casa, evitando-se, assim, também a sua rápida vandalização, até porque eles são bastante dispendiosos. No nosso país, a protecção da zona costeira , em especial a rochosa, merece um cuidado especial. Esta, que representa cerca de 60% do nosso litoral, apresenta troços de grande beleza paisagística e corresponde a afloramentos com excepcional exposição, de séries de várias idades. São locais em que o registo geológico pode ser estudado e/ ou apreciado, constituindo frequentemente cortes geológicos de referência nacional ou, mesmo, internacional.

humana, o facto é que com a urbanização desenfreada a que hoje se assiste (sem se perceber quem irá habitar as casas construídas ou a construir, cujo total dará já, para 30 milhões de pessoas...) aliada á abertura de estradas e auto-estradas, implantação de pedreiras, barragens e marinas, entre outras, tudo feito sem grande preocupação pelo ordenamento e sustentabilidade económica e pelos valores naturais, têm provocado impactos negativos em sítios com interesse geológico, e não só.

A isto acresce, nestes últimos tempos, a implantação, nas zonas cimeiras dos relevos, de antenas de todos os tipos e dos aerogeradores. Por aquilo que já é dado saber, não parece haver quaisquer preÉ com grande preocupação que se vê o recrudesci- ocupações estético-paisagísticas na escolha desses mento das intervenções no litoral, mesmo aque- locais, e a “procissão ainda vai no adro”... las ligadas aos Planos de Ordenamento da Orla Se é certo que o desenvolvimento económico é Costeira. Não tenho dúvidas que a tónica que ul- indispensável, não o é menos a salvaguarda dos timamente se tem posto no problema da erosão valores naturais quando estes são relevantes. A costeira e da instabilidade das arribas faz parte da descaracterização da paisagem ou a destruição propaganda para que a opinião pública aceite os do património natural ou arquitectónico, que muitos milhões que se prevêem gastar em betão. são valores culturais insubstituíveis, representam Um dos casos mais escandalosos que tive conheci- também perdas económicas significativas, que é mento foi a cimentação das arribas de S. João do indispensável contabilizar, em especial quando se Estoril, tecnicamente injustificada, que custou afirma pretender um turismo de qualidade para cerca de 150.000 contos e de efeito paisagístico o nosso país. Será que os responsáveis do nosso desastroso. Para grande parte desses casos, o mais turismo saberão o que isso implica? seguro e mais económico seria retirar o que lá foi É, no entanto, muito triste constatar que, ainconstruído, muitas vezes abusivamente, mesmo da no sec. XXI, as entidades responsáveis e boa que se tivessem de pagar indemnizações justas. Mas nestas coisas do betão, os interesses econó- parte dos seus técnicos continuem a actuar como se fazia há décadas. A falta de sensibilidade e de micos têm razões que a razão desconhece... cultura estética continuam hoje, como ontem, a Apesar de, em muitos casos, os geossítios “resis- destruir o que de melhor possuímos e que temos a tirem” bastante bem às agressões da intervenção obrigação ética de deixar às gerações futuras.

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1 Vale glaciário do rio Zêzere (P .N. Serra da Estrela). Foto M. Ramalho

2 - Formas de erosão do granito (P.N. Serra da Estrela). Foto Narciso Ferreira

3 - Fórnea do Barranco do Zambujal, em calcários do Jurássico (P.N. Serras de Aire e Candeeiros). Foto M. Ramalho

4 - Lapiás da Pedra Furada nos calcários do Cenomaniano (Negrais, E de Sintra), Foto M Ramalho

5 - Disjunção colunar (Ilha de Porto Santo). Foto João Mata

6 - Dobra nos sedimentos de fácies fliche, do Carbónico (P.N. Costa Vicentina e SW Alentejano) Foto M. Ramalho


Património Geológico Português Importância científica, pedagógica e sócio-económica

7. Discordância angular entre o Carbónico e o Triásico (P.N. Costa Vicentina e SW Alentejano). Foto M. Ramalho

8. Filões nos calcários do Jurássico Superior (P.N. Sintra-Cascais). Foto M. Ramalho

9. Trilho de pegadas de dinossáurio, nos calcários do Jurássico Médio (P.N. Serras de Aire e Candeeiros). Foto Museu Nacional de História Natural.

10. Dobras sin-sedimentares, tipo “slump”, nos calcários do Caloviano (Sagres). Foto M Ramalho

11. Figuras de escape em sequência fluvial do Jurássico Superior (Foz do Lizandro ). Foto M. Ramalho

12. Disjunção colunar em basaltos (Portela de Teira). Foto M. Ramalho

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13. Arribas do Cretácico da praia de S. João do Estoril, antes da intervenção. Foto M. Ramalho

14. Aspecto das arribas da praia de S. João do Estoril depois da intervenção. Foto M. Ramalho

15. Coral em posição de vida, assente num nível oncolítico, do Jurássico Superior (a S. da Nazaré). Foto M. Ramalho

16. Arribas do Jurássico Superior do Cabo Espichel. Foto M. Ramalho


Associação portuguesa de geólogos

Geonovas nº 18, pp. 13 a 19, 2004

Introdução ao Património Paleontológico Português: definições e critérios de classificação Mário Cachão 1,2 & Carlos Marques da Silva 1,2 1- Dep. Geologia da Fac. Ciências da Universidade de Lisboa 2- Centro de Geologia da Universidade de Lisboa mcachao@fc.ul.pt Paleo.Carlos@fc.ul.pt

1. Introdução Nunca, na história da ciência nacional, a Paleontologia teve tanta projecção e tanto impacte junto do grande público como nos últimos anos. O ressurgimento do estudo dos dinossáurios, nas suas vertentes osteológica (somatofósseis: ossos, dentes) e icnozoológica – na sequência do qual se fizeram, nos últimos anos, descobertas notáveis quer em Portugal quer no estrangeiro – teve, e continua a ter, um papel fundamental e muito positivo na divulgação da Paleontologia e na sensibilização do público para questões de índole paleontológica (Silva, 1995; Silva et al., 1998; Cachão et al., 1999; Silva, 1999; Santos et al., 1998, 2001). As transformações socio-económicas gradualmente operadas na nossa sociedade, que se traduziram num incremento do nível económico e cultural das populações, conduzem a que temas antes considerados irrelevantes assumam, nos nossos dias, destaque nacional e interesse generalizado (e.g. “A Batalha de Carenque”; Carvalho, 1994). Assim, a sociedade portuguesa é hoje confrontada com novos temas, como o do seu Património Paleontológico, actualmente convertido em motivo de atenção e preocupação crescentes não só para a comunidade científica, como também para o poder central e local (Santos et al., 1995, 1998; Cachão et al., 1999). É apanágio das sociedades humanas de todos os tempos a preocupação de salvaguardar elementos patrimoniais comuns, espirituais ou materiais, que individualizem e conservem a sua identidade e a sua memória colectiva. O conceito de Património e a noção de que a sua conservação constitui um factor-chave da gestão racional da sociedade moderna são aquisições recentes, mas hoje em dia universalmente aceites.

Uma consequência imediata da massificação da Paleontologia é o aumento substancial da procura, por parte do grande público, de informação paleontológica directa (os fósseis) e indirecta (materiais didácticos, vídeos, palestras, percursos de interesse paleontológico, etc.). Infelizmente, este interesse generalizado exerce uma pressão enorme sobre as entidades paleontológicas fundamentais (os fósseis) e as jazidas, ao nível de um coleccionismo desenfreado e desinformado traduzindo-se, muitas vezes, na destruição de jazidas e na delapidação do património paleontológico nacional, como resultado da extracção desregrada de fósseis para colecções particulares e/ou para comercialização. A estes juntam-se os constantes efeitos da alteração, por exposição subaérea, e da erosão meteórica (Santos et al., 1995). Este quadro pode ser travado, em boa medida (ainda que não exclusivamente), através da explicitação de conceitos paleontológicos na legislação relativa à protecção patrimonial. Na realidade, a ausência de regras de conduta paleontológica vulnerabiliza os recursos paleontológicos nacionais, dado não providenciar cobertura legal a acções de salvaguarda e de valorização. Por exemplo, a obrigatoriedade dos Planos Directores Municipais (PDM’s), Planos Municipais e Regionais de Ordenamento do Território (PMOT’s e PROT’s, respectivamente) e os Planos de Ordenamento da Orla Costeira (POOC’s) contemplarem a inventariação do património paleontológico de cada região permitiria, por um lado, a sua salvaguarda e, por outro, a canalização de recursos tendo em vista a sua conservação, valorização e utilização futura pelas comunidades locais e população em geral. As acções de protecção de jazidas paleontológicas, no nosso País, possuem ainda carácter de excepção


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Mário Cachão & Carlos Marques da Silva

(e.g. “Monumento Natural da Jazida de Pegadas de Dinossáurios da Serra de Aire”, vulgo “Pedreira do Galinha”) pois não fazem parte de um plano global e sistemático de definição, protecção e conservação do Património Paleontológico Português (Santos, V. et al.,1997, 1998; Santos, A. et al.,2001; Cachão et al., 2003). Assim, se é verdade que algumas ocorrências fossilíferas estão abrangidas, circuns-tancialmente, por enquadramento jurídico de protecção, como é o caso da jazida de Cacela, no âmbito do Parque Natural da Ria Formosa (Santos, A. et al., 1998, 2001), existem outras importantes ocorrências, como as associadas ao estratótipo do limite Aaleniano-Bajociano (limite cronostratigráfico padrão internacional para o Jurássico Médio) no Cabo Mondego (Henriques, 1998), ameaçadas por indústria cimenteira local. Por tudo isto, para que possa ser gerido de modo coerente e sustentado, o Património tem obrigatoriamente que assentar no desenvolvimento equilibrado entre a Investigação científica, de qualidade e internacionalmente reconhecida, a Divulgação científica, junto do grande público, e a publicação de Legislação adequada (Fig. 1). 2. Definições e Princípios Para que a discussão do património paleontológico possa ser feita sobre bases objectivas e possa

Fig. 1 - O Património Natural, em geral, e o Património Paleontológico, em particular, só se pode desenvolver através do equilíbrio entre uma investigação científica de qualidade, a divulgação dos conhecimentos junto do grande público e a concretização de medidas legislativas eficazes.

resultar na criação de legislação que promova a sua salvaguarda, é necessário, antes de mais, compreender e demonstrar a sua importância, bem como definir os conceitos básicos com ele relacionados, as actividades com ele envolvidas e o estatuto dos indivíduos e das instituições intervenientes no estudo, conservação e valorização de recursos paleontológicos (Silva et al.,1998). Os fósseis, as entidades paleontológicas elementares, são fundamentais para os estudos paleontológicos, pois são os portadores materiais de informação biológica do passado da Terra. Na medida em que os fósseis não ocorrem naturalmente fora de um contexto geológico (e porque o contexto também é informação), torna-se necessário introduzir o conceito patrimonial de jazida paleontológica (ou jazida fossilífera), i.e. a ocorrência de fósseis no contexto do seu suporte geológico, mais ou menos limitada geograficamente, e que não possa ser removida sem recurso a escavação. Assim, o registo paleontológico (ou registo fóssil) constitui o conjunto de toda a informação paleontológica (os fósseis, suas relações e seu contexto) preservada no registo geológico do Planeta. Os fósseis e as jazidas, na medida em que constituem bens de origem natural, finitos e irrepetíveis, mas com múltiplas implicações científicas, educativas e culturais, devem ser considerados recursos paleontológicos i.e. recursos naturais/ culturais não-renováveis com origem bio/geológica ou, num sentido geológico mais amplo (mas não exclusivamente), geo-recursos culturais. Para além disso, deverão ainda considerar-se recursos paleontológicos as colecções de fósseis, ou os fósseis isolados, recolhidos em território nacional e/ ou depositados em museus (públicos ou privados), instituições científicas e de ensino ou na posse de particulares. O Património Paleontológico, não obstante apresentar uma ligação imediata, genética, ao registo geológico, ultrapassa, na sua delimitação conceptual e nas suas implicações científicas, educacionais e culturais, os limites do património geológico (Fig. 2). Ao integrar entidades geológicas com uma origem biológica remota, i.e. com uma história bio/geológica independente (os fósseis), o património paleontológico torna-se, também, património (paleo)biológico, representando a


Introdução ao Património Paleontológico Português Definições e critérios de classificação

Fig. 2 – Modelo conceptual das relações e dimensões do Património Paleontológico.

Na medida em que a Paleontologia é uma área específica de intervenção científica, educacional e cultural, que exige, por parte dos seus agentes, os paleontólogos, habilitações e preparação adequadas, também as actividades que envolvam recursos paleontológicos devem ser reguladas em conformidade. Assim, por definição, os responsáveis pela realização, orientação e/ou acompanhamento de todas e quaisquer actividades paleontológicas, no seio de instituições paleontológicas são, única e exclusivamente, os paleontólogos (Silva et al.,1998).

Paleontólogo é um indivíduo que desenvolve investigação científica em Paleontologia e possui memória biológica do Planeta que pretendemos formação superior numa ou mais áreas do conhecimento relevantes para os estudos paleontológicos preservar (Silva et al., 1998). (por exemplo, Geologia ou Biologia). Para além Neste sentido, o Património Paleontológico, en- disso, comporta formação específica pós-graduaquanto registo da Vida do passado geológico da da (mestrado, doutoramento ou equivalentes) em Terra, representa a memória biológica remota Paleontologia ou publica regularmente artigos do Planeta que entendemos dever preservar, para científicos de cariz paleontológico em revistas da nossa própria fruição científica, educacional e especialidade. cultural e para transmitir às gerações futuras. Constituem Actividades paleontológicas, e deAssim, o Património Paleontológico Português vem ser reguladas e conduzidas como tal, todas as (P.P.P.) será formado pelo conjunto dos recursos acções que envolvam a escavação de jazidas palepaleontológicos existentes em território nacional ontológicas, a preparação, a replicação e o estu(Portugal continental e regiões autónomas da do de recursos paleontológicos, ou que tenham Madeira e dos Açores), no domínio público por objectivo a conservação, a valorização e/ou ou privado, desde que apresentem valores a musealização desses mesmos recursos, realizacientífico, educativo e cultural tais que sejam das com fins científicos, educativos ou culturais. considerados entidades ou objectos a preservar Devem, ainda, ser consideradas como actividades paleontológicas todas e quaisquer acções envolpara as gerações vindouras. vendo, directa ou indirectamente, o Património Poderão ser igualmente considerados Patri- Paleontológico (Silva et al.,1998). mónio Paleontológico Português, livros, Instituições paleontológicas são instituições fotografias, estampas e quaisquer objectos sem fins lucrativos, com programas de relevantes (nomeadamente por perda dos investigação, de musealização, de conservação recursos paleontológicos originais) quer para e/ou de ensino da Paleontologia acreditados o conhecimento científico quer para a história por autoridades competentes, que possuam da Paleontologia, em geral, e da Paleontologia paleontólogos nos seus quadros permanentes de pessoal e que garantam condições apropriadas de portuguesa, em particular. armazenamento, de conservação e de acesso aos O Património Paleontológico Português, enrecursos paleontológicos que albergam. quanto suporte material de informação paleontológica, representa a parcela da memória paleo- 3. Critérios de Selecção biogeológica do Planeta, registada em território Torna-se evidente que nem todos os corpos ronacional, que pela sua relevância deve ser salva- chosos com fósseis podem ou devem ser classifiguardada. Este património é um bem nacional, cados como Património Paleontológico. Património Paleontológico é, pois, distinto de inventário fundamental e inalienável.

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paleontológico, pois este procura ser exaustivo na recolha de informação e descrição de todos os recursos paleontológicos existentes. Contudo, esta inventariação é fundamental, à correcta avaliação das potencialidades em termos de património paleontológico nacional. A realização prévia de um inventário geral dos recursos paleontológicos servirá, igualmente, de base à definição do que pode e deve ser classificado como Património Paleontológico. A avaliação dos recursos paleontológicos inventariados (fósseis, jazidas e colecções) e a sua classificação como Património Paleontológico deverá ser efectuada por paleontólogos e obedecer aos critérios científicos, educativos e/ou culturais abaixo apresentados (Cachão et al.,1998).

se todas as jazidas que representem ou se insiram em estratótipos de unidades cronostratigráficas ou estejam na base da caracterização de unidades litostratigráficas (formações geológicas) ou biostratigráficas (biozonas). Deverão ser igualmente contempladas jazidas representativas de intervalos de tempo geológico com registo fóssil geralmente escasso ou único no contexto do nosso País ou à escala mundial;

iii) Critério tafonómico Certos mecanismos de fossilização traduzem-se em registos paleontológicos de elevada qualidade, nomeadamente através da preservação, total ou parcial, de certas constituições químicas ou estruturas De modo geral pode dizer-se que a importância morfológicas originais, pois o estado de conservação de uma jazida é directamente proporcional ao dos fósseis determina o grau de informação número de publicações de índole científica, pale- paleobiológica e geológica que estes comportam. ontológica, sobre ela realizada. Contudo, a im- Assim, incluem-se jazidas com fósseis de elevada portância científica poderá não ser o único cri- qualidade, nomeadamente grupos de paleorganismos tério de classificação. Há que salvaguardar situa- geralmente com menor potencial de fossilização ções em que os fósseis assumam valores educativos (com endo ou exosqueletos de baixo ou nulo grau e culturais, já que estes factores concorrem para de biomineralização ou constituído por elementos a definição de Património Paleontológico, para mineralógicos menos estáveis), tanto mais que este além de serem determinantes nas acções condu- é dos critérios que melhor ilustra, junto do grande centes à sua protecção, conservação, uso e gestão público, a importância das acções de conservação e valorização do Património Paleontológico; (op. cit.). 3.1 Critérios científicos i) Critério taxonómico Jazidas paleontológicas possuindo um ou mais grupos de fósseis de elevado interesse científico, como por exemplo: (1) jazidas donde provieram exemplares em que se baseiam táxones novos para a ciência (holótipos); (2) jazidas que comportem exemplares-tipo (isótipos, paratipos, topótipos, honamótipos, etc.), de táxones figurados ou descritos, em publicações científicas; (3) jazidas contendo restos fósseis de paleorganismos vertebrados, em conexão anatómica ou em quantidade; (4) jazidas contendo fósseis de grupos animais ou vegetais que caracterizem etapas importantes da evolução biológica do nosso planeta, ou cujo registo seja raro no nosso País ou à escala mundial; ii) Critério biostratigráfico A idade é uma característica intrínseca a dada jazida e elemento fundamental da importância de determinado(s) fóssil(eis). Assim, incluem-

iv) Critério paleoecológico Os estudos paleontológicos incidem não só sobre fósseis individuais mas igualmente sobre associações fósseis. Inclui jazidas que comportem fósseis representativos de paleobiocenoses (isto é, de paleorganismos vertebrados, invertebrados e/ ou plantas, outrora constituindo um ecossistema integrado), determinantes para o conhecimento dos modos de vida e ambientes do passado; v)Critério arqueológico Dada a valorização que a história do Homem comporta no seio do conhecimento científico, registos fósseis associados a artefactos arqueológicos comportam interesse acrescido para o estudo do modo de vida dos nossos antepassados. Inclui todas as jazidas importantes para o conhecimento da Paleontologia humana. vi) Critério geológico Inclui jazidas paleontológicas que se insiram em unidades de particular interesse geológico (Ge-


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ótopos, Geomonumentos), permitindo o seu enquadramento temporal, a melhor caracterização do seu ambiente de formação ou enriquecem complementarmente a sua informação geológica. 3.2 Critérios educacionais i) Potencial pedagógico Jazidas com potencialidade para a sensibilização e divulgação, junto do grande público, da História Geológica do nosso planeta, da Evolução dos seres vivos bem como da Educação (Paleo)Ambiental (e.g. Monumento Natural, Geótopo e Geomonumento), como temas fundamentais para a cultura do cidadão moderno; ii) Potencial didático Jazidas com potencialidade na prática do ensino das Ciências Geológicas e Biológicas, no âmbito de aulas de campo de graus do ensino Básico, Secundário e/ou Universitário, visando o ensino da Paleontologia e dos fósseis bem como dos conceitos de Património Paleontológico; iii) Potencial turístico As jazidas fossilíferas estão disponíveis, todo o ano, para a realização de percursos pedestres de observação, o mesmo não acontecendo com outras actividades naturalistas, como por exemplo, a observação de aves ou outros grupos animais ou plantas não perenes, actividades estas fundamentalmente sazonais. Assim, incluem-se as jazidas com potencialidade para a realização de visitas de grupos de pessoas interessadas em turismo científico-cultural, associado à temática do estudo do estudo da Terra, da Origem e Evolução da vida, dos fósseis, etc.

nelas inseridas, em janelas privilegiadas para observação do passado geológico, como ocorre, por exemplo, na região de Lisboa. Assim, incluem-se jazidas que se situem próximo de ou integradas em espaços urbanos ou urbanizáveis, atendendo ao elevado número de potenciais visitantes e à sua maior vulnerabilidade face ao crescimento urbanístico; iii) Valor histórico Jazidas paleontológicas clássicas (i.e. jazidas estudadas de modo mais ou menos contínuo há mais de 50 anos, ou sobre as quais se tenham realizado estudos paleontológicos pioneiros) que façam parte do conhecimento da história da Paleontologia nacional e internacional, ou estejam inseridas em áreas de valor patrimonial histórico, comportando dimensão cultural acrescida; iv) Valor espiritual No nosso País, existem ocorrências fossilíferas com particular significado de culto ou crença para as populações locais, como por exemplo, as pegadas de dinossáurios de Cabo Espichel 1 e, menos conhecido, o icnito de Vila do Rei 2. Jazidas nestas condições deverão ser incluídas. Para a classificação de uma jazida como P.P.P. cada um dos critérios acima enunciados vale por si mesmo, independentemente dos demais. Contudo, quando para uma jazida paleontológica concorrem vários critérios de selecção, estes convertem-se em argumento de maior premência face à sua integração no P.P.P. 4. Situações particulares de protecção e conservação

Conceito de Vulnerabilidade A vulnerabilidade de uma jazida está relacio3.3 Critérios culturais nada, por um lado, com a extensão e a espessura i) Valor ambiental natural da unidade fossilífera e por outro, com a Jazidas que se situem em áreas protegidas pelo resistência (cimentação, coerência) da sua matriz seu valor ambiental natural, quer de interesse litológica, face à meteorização química e/ou nacional (Parques Nacionais, Parques Naturais, física. Será tanto mais vulnerável quanto menos Reservas Naturais e Monumentos Naturais) quer extensa e menos espessa for, ou quanto mais de interesse regional e local (Geomonumentos, friável seja a sua matriz. Em associação com os critérios acima enunciados, a vulnerabilidade Paisagens Protegidas); de uma jazida (ou de qualquer outro recurso ii) Situação socio-geográfica paleontológico) determina qual o tipo e grau A acentuada cobertura do solo por estruturas ur- de protecção e/ou conservação a aplicar. Por banas transformam as jazidas paleontológicas, protecção entendem-se medidas de salvaguar-

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da sem recurso a intervenção directa que não a vigilância activa. Por conservação entendem-se medidas de salvaguarda com recurso a meios complementares de intervenção no sentido da preservação de afloramentos e/ou fósseis (Cachão et al.,1998).

obtenção de novos exemplares fósseis; e.g. a mina de lignito, abandonada, da Guimarota – Leiria, ou a pedreira de xistos com trilobites, em Arouca, explorada para ardósia; (2) a sua suspensão temporária (para recolha de exemplares em bolsadas fossilíferas, vulneráveis); (3) o seu cancelamenTodas as actividades que, previsivelmente, acar- to, quando a actividade é incompatível com o esretem o risco de destruição de recursos paleonto- tudo e conservação do Património Paleontológilógicos (obras públicas, construção civil, labora- co (como ocorreu com a exploração de brita na ção de pedreiras, etc.), em particular em regiões “Pedreira do Galinha”); (4) ou a sua reconversão onde ocorrências relevantes já foram registadas, pós-exploratória (em curso com a “Pedreira de devem ser acompanhadas por paleontólogos. Os Carenque”) (op. cit.). recursos paleontológicos e a sua gestão racional, Realização de obras públicas bem como o património paleontológico e a sua protecção, deverão ser títulos a considerar no or- A construção de edifícios, estradas, túneis e outras denamento territorial e em estudos de impacte obras de engenharia, é fonte de descoberta potenambiental desde o seu início. Como regra fun- cial de novas jazidas mas igualmente um meio de damental, deve ser proibida legalmente a comer- destruição das já conhecidas. É fundamental reacialização de recursos paleontológicos de impor- lizar estudos de inventariação do P.P.P., ao longo tância científica relevante (nomeadamente, todos dos traçados previstos, encontrando soluções que os fósseis de vertebrados), assim como de todo e visem a sua salvaguarda. A título de exemplo, requalquer recurso paleontológico proveniente de fira-se que o conhecimento atempado do traçado jazidas ou áreas classificadas ou protegidas a qual- da CREL (Carvalho, 1994) e as acções de esclarequer título (Silva et al.,1998; Cachão et al.,1998). cimento e sensibilização da opinião pública para a importância da jazida de pegadas de dinossáurio de As ocorrências de fósseis de importância cientíCarenque, evitaram a sua destruição e permitiram fica relevante, em terrenos públicos ou privados, no seu contexto geológico original ou fora dele, que o duplo túnel, construído para o efeito, tenha acrescido, nas estruturas devem ser comunicadas a instituições paleonto- sido integrado, com valor 3 lógicas. Todos os fósseis de importância científi- da própria via rápida (op. cit.). ca relevante, recolhidos em terrenos públicos ou privados, como resultado de escavação ou de recolha de superfície, devem constituir propriedade pública e ser depositados em instituições paleontológicas, devendo a sua posse por privados e a sua comercialização ser proibida legalmente (Cachão et al.,1999). Actividades extractivas As explorações de jazigos minerais não metálicos (pedreiras, saibreiras, areeiros, barreiros) são das actividades que mais contribuem quer para o aparecimento de novas jazidas quer para a destruição de recursos paleontológicos. Tendo em conta o valor e especificidade da actividade extractiva em causa, deverão existir mecanismos especiais de intervenção e/ou compensação económica que permitam: (1) a reabertura ou o acompanhamento de explorações, quando as mesmas resultem na única via possível para

Erosão costeira Da conjugação de vários factores geoistóricos e do enquadramento geográfico do nosso País resulta o facto da erosão costeira se exercer, frequentemente, sobre unidades sedimentares de elevado potencial paleontológico (e.g. litoral da Região Oeste). Neste sentido, é imperioso consciencializar o organismo tutelar do Domínio Público Marítimo (presentemente o Instituto da Água - INAG) de que muitos troços da arriba costeira apresentam recursos paleontológicos abrangidos pelos critérios (acima enunciados) de integração no Património Paleontológico Português. Deste modo, este organismo deverá dotar autarquias e instituições científicas com meios de pesquisa activa de jazidas em risco de destruição, promovendo a sua protecção ou remoção para instituições paleontológicas, públicas, que os estudem e os salvaguardem (op. cit.).


Introdução ao Património Paleontológico Português Definições e critérios de classificação

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1 - Estes icnofósseis, de há muito conhecidos pelos pescadores da região de Sesimbra estiveram na base da lenda de Nª Srª da Mua (ou Mula), venerada sob a forma de romaria religiosa, anual, ao Convento de Nª Srª do Cabo. Reveladas ao especialista em oceanografia biológica, Luis Saldanha, só na década de setenta a comunidade científica paleontológica tomou consciência da sua existência. 2 - Igualmente com protagonismo no domínio do místico-cultural das populações, está na origem da lenda de um “bezerro de ouro” próximo da “Bicha Pintada” (estrutura atribuída a cultos celtas), entidade esta que corresponde, na realidade, a pista fóssil de invertebrados paleozóicos. 3 - Foram integradas estruturas estilizadas representando a cabeça e a cauda de dinossáurios à entrada e saída dos túneis da CREL, respectivamente, no seu troço de Carenque.

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Associação portuguesa de geólogos

Geonovas nº 18, pp. 21 a 33, 2004

Resgate científico num túnel da Auto-estrada do Cantábrico (Astúrias-Espanha): consequências e ensinamentos Juan Carlos Gutiérrez-Marco Instituto de Geología Económica (CSIC-UCM), Facultad de Ciencias Geológicas, 28040 Madrid, Espanha. jcgrapto@geo.ucm.es

Resumo: A construção de um túnel na Auto-estrada do Cantábrico (A-8) no norte de Espanha, que entrou em serviço em Novembro de 2002, constitui um exemplo paradigmático do resgate de informação científica, em tempo real, durante o desenvolvimento de uma grande obra pública. A actividade de investigação durante a escavação subterrânea ajustou-se em todo o momento ao ritmo de execução da obra, sem interferir em situação alguma com a mesma. Graças a isto pôde ser estudada uma secção com mais de 800 m lineares de xistos e quartzitos do Período Ordovícico, que serviram para documentar com grande detalhe um avanço do mar sobre o desaparecido continente de Gondwana, em rochas excepcionalmente fossilíferas de antiguidade compreendida entre os 457 e os 490 milhões de anos. Os estudos geológicos e paleontológicos efectuados e os resultados científicos obtidos chamaram a atenção internacional, facto que teve como consequência que o túnel, situado em Ribadesella (Astúrias), se passasse a chamar “Túnel Ordovícico del Fabar”. Uma exposição itinerante com uma selecção do material encontrado perdura a sua utilização como recurso didáctico e exemplo vivo de que é possível harmonizar o aproveitamento científico das grandes obras, inclusive das subterrâneas, com a obtenção de grandes benefícios sociais e científicos para o futuro. Palavras-chave: Ordovícico, Zona Cantábrica, Auto-estrada, túnel, exposição, Espanha. Abstract: The construction of a tunnel on the Cantabrian superhighway A-8 in northern Spain, inaugurated in November 2002, constitutes a good example of recovery of scientific information during the execution of a major civil engineering project. The research activity was parallel to the tunnelling work, without affecting its planned schedule. The study covered an 800 meter long section of Ordovician shale and quartzite and allowed to document in detail the Ordovician transgression over the Gondwanan continent. The record includes exceptionally fossiliferous rocks from the Late Cambrian to the Middle Ordovician (490-457 Ma). The geological and paleontological results received so much international attention, that the tunnel in Ribadesella (Asturias) was officially renamed as “El Fabar Ordovician Tunnel”. An ongoing temporary exhibition with a selection of the best fossils found in the tunnel will serve as an educational resource and a living example of the integration of scientific research into major civil engineering projects, thus gaining social and scientific relevance for similar future projets. Key-words: Ordovician, Cantabrian Zone, superhighway, tunnel, exhibition, Spain.

1. Introdução Em finais de 1998 iniciava-se a construção do troço Caravia-Llovio da Auto-estrada do Cantábrico no norte de Espanha, enquadrada no “Plan de Infraestructuras de Transportes 20002007”, co-financiado com fundos de desenvolvimento regional (FEDER) da União Europeia. O seu custo ascendeu a 157,4 milhões de euros, e as obras foram executadas pelas empresas Unión Temporal de Empresas (UTE Sella), FCC Construcción e Dragados Obras y Proyectos. O novo troço da auto-estrada tem um comprimento de 11,6 km, com quatro viadutos e três túneis, e entrou em serviço em 25 de Novembro de 2002. Os grandes cortes do terreno e os movimentos de terra gerados por uma obra desta magnitude, numa área de orografia especialmente complexa

como é o caso da região costeira asturiana, proporcionavam uma janela temporal única para a realização de estudos científicos de geologia e paleontologia, antes da preparação definitiva dos taludes com tela metálica ou coberto vegetal e da asfaltagem das faixas de rodagem. Tratava-se de uma oportunidade ímpar para poder investigar pormenorizadamente os materiais paleozóicos da zona, uma vez que muitas unidades não afloravam por completo ou se apresentavam muito alteradas à superfície devido ao clima húmido e aos importantes cobertos vegetal e edáfico. Esta era a realidade da sucessão ordovícica local, enquadrada na Zona Cantábrica do Maciço Ibérico, que tínhamos revisto em anos anteriores em função dos escassos afloramentos disponíveis (Gutiérrez-Marco et al., 1996; 1999).


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Juan Carlos Gutiérrez-Marco

A ideia de aproveitar as obras da auto-estrada para completar o estudo do Ordovícico surgiu de uma maneira fortuita no verão de 1999, durante umas férias familiares na zona de Ribadesella (Asturias), quando se iniciava a perfuração de um túnel que forçosamente teria de atravessar a sucessão ordovícica da Serra do Sueve-Fito. Falando com os geólogos e técnicos das empresas construtoras, tivemos ocasião de conhecer o projecto e as sondagens efectuadas, mas a autorização de acesso à obra requereu uma longa tramitação junto do Ministério de Fomento, que finalmente nos brindou com a almejada autorização, sob a condição de os estudos científicos se ajustarem em cada momento ao ritmo imposto pelas obras e de não interferirem de modo algum com as mesmas. A realidade era complicada porque o túnel seria escavado com a técnica denominada “Novo Método Austríaco”, seguindo um processo contínuo de rebentamentos, remoção dos escombros e sustentação imediata, o que exigia um acompanhamento permanente, ao pé da obra, de toda a escavação. A nossa obstinação científica e o desafio assumido perante o Ministério e as empresas construtoras de que existiam possibilidades para o resgate de dados, ainda que ao ritmo frenético da grande obra subterrânea, serviram para negociar um pequeno patrocínio da união de empresas construtoras, que possibilitou a contratação de

um cientista da nossa equipa (Dr. Enrique Bernárdez) para trabalhar a tempo inteiro na obra. O objectivo do nosso estudo centrou-se no então chamado Túnel de El Fabar, situado a sul de Berbes (Ribadesella), que na realidade corresponde a um duplo túnel com 1.294 m de comprimento e 89 m2 de secção, com duas faixas de rodagem em cada sentido e 60 m lineares de falso túnel nas bocas. Os dados técnicos da sua escavação, rendimento e inovações estão patentes nos trabalhos de García-Arango Cienfuegos-Jovellanos e Hacar Rodríguez (1998), Díaz Reigadas e Mayo Martín (2000), Díaz Minguela et al. (2002) e García-Arango Cienfuegos-Jovellanos (2004). O custo aproximado do duplo túnel ascendeu a 31,2 milhões de euros, com um movimento final de terras de aproximadamente meio milhão de metros cúbicos (1.330.000 toneladas de rocha). 2. A investigação científica do túnel Os materiais geológicos das Serras do Sueve e Fito, atravessados pelo Túnel Ordovícico del Fabar, correspondem a sedimentos marinhos compreendidos entre o Câmbrico e o Carbónico, representados de forma parcial devido à existência de importantes lacunas estratigráficas (Fig. 1). As rochas ordovícicas com os seus primeiros

Fig. 1 – A - mapa geológico com as secções fossilíferas da auto-estrada (1, Túnel Ordovícico de el Fabar; 2, meia encosta de Torre) e outras localidades estudadas nos seus arredores (pontos 3 a 8). O Manto de Laviana é a estrutura geológica atravessada pelo túnel. Cartografia de E. Bernárdez; B - vista aérea do talude frontal do Túnel Ordovícico ao sul de Berbes (Ribadesella), com os limites de algumas unidades litoestratigráficas atravessadas na perfuração (a-b, Ordovícico Inferior e Médio; c-f, Devónico terminal a Carbónico inferior).


Resgate científ ico num túnel da Auto-estrada do Cantábrico (Astúrias-Espanha) Consequências e ensinamentos

fósseis tinham sido descobertas na zona nos princípios do século XX, nas desaparecidas minas de ferro de Caravia, na vertente setentrional da serra (Adaro e Junquera, 1916). Em finais da década de sessenta, a realização de novos estudos na área confirmaram a existência de xistos fossilíferos do Ordovícico Médio (Pello e Philippot, 1967; Julivert et al., 1968). Apesar disso, a investigação geológica e paleontológica de detalhe não se desenvolveu até ao decénio 1989-1998, quando uma equipa multidisciplinar formada por cientistas da Universidad de Oviedo e de cinco centros nacionais e estrangeiros, financiados pelo Ministério da Educação e Ciência, levou a cabo um trabalho sistemático que culminou na descoberta de algumas secções fossilíferas em antigas minas, caminhos e ribeiros das Serras do Sueve e Fito (Aramburu, 1989; Gutiérrez-Marco et al., 1996). Os novos e importantes dados obtidos singularizaram a área entre o extenso conjunto de materiais ordovícicos conhecidos no noroeste peninsular (Gutiérrez-Marco et al., 1999), mas colocaram também numerosas incógnitas que não puderam ser resolvidas com recurso aos afloramentos de superfície, muito meteorizados e recobertos de vegetação como é comum nas Astúrias, e que ainda nos facultaram um conhecimento incompleto da coluna estratigráfica.

correria sempre em materiais do Câmbrico, com menor interesse para o grupo investigador.

O acompanhamento científico do túnel e a aquisição de dados geológicos foram realizados ajustando-se em cada momento ao ritmo imposto pelas obras, com uma média de duas intervenções diárias de 20 minutos (Fig. 3, A) no interior e 4-5 horas de trabalho na escombreira. A investigação no interior do túnel centrou-se na obtenção de dados estratigráficos e sedimentológicos de detalhe, assim como na aquisição de amostras para micropaleontologia e na localização de possíveis níveis fossilíferos. A breve duração do estudo após cada desmonte era imposta pela simultaneidade com a remoção posterior a cada rebentamento na frente do túnel (Fig. 3, B). Este era o único momento em que era possível aceder às rochas “in situ”, que terminava com a rápida betonagem das paredes e a sua sustentação com ancoragens e telas metálicas. O material levado para a escombreira exterior (cerca de 3 m estratigráficos por cada manobra de desmonte) era cuidadosamente examinado em busca de fósseis. A rocha derivada dos níveis paleontológicos mais interessantes, detectados dentro do túnel, era controlada durante a remoção e levada para uma escombreira à parte, onde se investigava durante os dias ou semanas subsequentes, antes de ser reintegrada na escombreira geral. Esta actuação Nestas condições teve lugar o início da constru- constituiu a única interferência científica com ção do túnel de El Fabar, que haveria de atravessar o processo de escavação do túnel, sem qualquer quase perpendicularmente a sucessão de estratos efeito sobre o rendimento geral, não tendo afecpaleozóicos correspondentes à estrutura conhe- tado de modo algum o andamento da obra no incida como Manto de Laviana, e em especial as terior. unidades de quartzitos e xistos ordovícicos aqui A investigação englobou mais de 800 m lineares dispostos em camadas verticais a levemente in- de túnel ao longo de cinco meses de trabalho, vertidas (Fig. 1). Durante a escavação do túnel correspondentes a uma espessura real de 639 m deveríamos aceder a um corte fresco e completo de rocha estratificada, uma vez que o traçado se dos materiais ordovícicos, onde poderíamos es- apresentava algo oblíquo em relação à direcção tudar os troços estratigráficos desconhecidos à das camadas. O volume de rocha controlado superfície e dar resposta às interrogações cientí- geologicamente durante a fase de desmonte ficas surgidas nos estudos precedentes. ascendeu aos 34.000 m3. A investigação geológica e paleontológica programou-se para a segunda fase de desmonte no ramo 3. Resultados estratigráficos e paleoambientais sul do duplo túnel, com acesso a partir da O túnel proporcionou o estudo estratigráfico boca ocidental ou de Caravia, onde a sucessão de alta resolução de duas unidades ordovícicas: ordovícica se intersectava imediatamente após o a Formação Barrios, essencialmente constituída início do túnel (Fig. 1). A escavação que partiria por quartzitos com duas intercalações espessas das bocas orientais (Llovio) do duplo túnel de- de xistos, e a Formação Sueve, uns xistos escuros

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com escassos níveis de arenitos (Fig. 2). Ambas equivalem “grosso modo” ao “Quartzito Armoricano” e aos “xistos com Neseuretus”, respectivamente, de muitas outras localidades ibéricas. As observações geológicas colocaram-se numa coluna estratigráfica realizada à escala 1:100 (Fig. 2), que reúne dados sobre a granulometria e natureza das rochas, as estruturas sedimentares, a posição das amostras e as sequências e parasequências deposicionais. O número de troços litológicos diferenciados na coluna foi de 205, com uma média de 3,12 m de espessura individual. A estratigrafia sequencial documentou as flutuações do nível do mar ocorridas durante uma prolongada transgressão marinha, em que os sedimentos costeiros da Formação Barrios acabaram por ser cobertos por lodos ricos em matéria orgânica depositadas a muito maior profundidade (Formação Sueve).

da Formação Barrios da parte oriental das Astúrias, onde em grande parte tinha sido interpretada como fluvial e inclusive lacustre (Aramburu, 1989; Aramburu e García-Ramos, 1993). Na parte mais baixa desta unidade localizou-se uma intercalação de 40 m de xistos fossilíferos (“Camadas del Fabar”), que forneceram dados paleobiogeográficos insuspeitos de alcance europeu (Gutiérrez-Marco e Bernárdez, 2003; Albani et al., in press). Uma importância especial é contida por duas camadas singulares intercaladas na parte alta da Formação Barrios (Fig. 2). A primeira corresponde a um nível de caulino com 70 cm, conhecido e explorado a oeste de Oviedo num posição estratigráfica idêntica (García-Ramos et al., 1984; Aramburu, 1989). A sua génese corresponde à alteração de antigas cinzas vulcânicas, acumuladas no mar, que foram emitidas por uma O registo fóssil e a mineralogia das areias permi- gigantesca erupção ultrapliniana, provavelmente tiram confirmar o carácter plenamente marinho ocorrida num foco insular distante. O achado do

Fig. 2 – Coluna estratigráfica esquemática da sucessão Câmbrico-Ordovícica atravessada pelo túnel. O sentido do avanço da escavação do túnel visualiza-se perfeitamente da esquerda para a direita, após uma rotação em sentido anti-horário para a horizontal, devido ao facto de os estratos estarem subverticais. Na fotografia observa-se uma parte das amostras paleontológicas recolhidas no túnel. A coluna estratigráfica de detalhe, à direita da imagem, foi elaborada à escala 1:100 e mede 6,39 m de comprimento.


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túnel amplia a distribuição desta camada numa com consequências catastróficas para as comuniárea de 45.000 Km2, com mais de 30 Km3 de dades de organismos filtradores que habitavam no cinzas acumuladas apenas nas Astúrias, o que a sedimento (Emig e Gutiérrez-Marco, 1997). converte na maior das erupções documentada em território espanhol (Gutiérrez-Marco e Ber- Nos 85 m de espessura da Formação Sueve, as ronárdez, 2003). A segunda camada de interesse chas mais distinguíveis são os níveis de ferro sedié uma lumachela de lingulídeos (Fig. 3, D), que mentar oolítico, que foram objecto de exploração concentra os fragmentos de milhões de conchas nas desaparecidas minas de ferro de Caravia (Fig. destes braquiópodes de composição fosfática. 3, C). O mais antigo deles marca uma ausência Trata-se de um estrato mineralizado descoberto do registo estratigráfico de cerca de três milhões na mesma posição estratigráfica numa área mui- de anos no contacto entre as formações Barrios to extensa do sudoeste da Europa e do norte de e Sueve, ao passo que do segundo se desconhecia África, que representa o desmantelamento, por a sua posição precisa até ao seu achado no acção de um gigantesco tsunami, de uma plata- túnel. Os xistos próximos à base da Formação forma marinha muito plana e pouco profunda, Sueve foram rocha mãe de hidrocarbonetos, cujos

Fig. 3 – A - após a remoção do desmonte ficavam visíveis alguns metros de parede, que tinha de ser estudada em cerca de 20 minutos, antes das operações de ancoragem e betonagem que a tapariam para sempre; B - aspecto do túnel durante a construção, numa fase de montagem das cargas explosivas para se proceder a mais um desmonte; C - bolinhas de ferro sedimentar (oólitos) aglutinadas na mesma camada sedimentar que foi explorada nas vizinhas minas de Caravia; D - o estrato de coloração mais escura corresponde a uma concentração lumachélica de lingulídeos registada na parte alta da Formação Barrios, 42 m abaixo do seu limite com a Formação Sueve (tecto à direita). Esta ocorrência é conhecida na Serra do Marão, em Valongo e no Buçaco, entre outro locais do sudoeste da Europa e norte de África; E - afloramento de petróleo visível nas paredes do túnel, mesmo após a betonagem.

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vestígios se conservaram milagrosamente no sistema de fracturas da Formação Barrios, devido a circunstâncias tectónicas totalmente excepcionais ocorridas durante a formação do Manto de Laviana (Fig. 3, E). Como resultado deste processo temos o petróleo mais antigo conservado da Europa centro-meridional, similar ao de alguns contextos norte-africanos, mas sem possibilidades comerciais. As suas autoctonia e antiguidade ordovícica foram confirmadas pelos valores dos índices de coloração e transparência de acritarcos compatíveis com uma maturação orgânica própria da “janela petrolífera” e similares aos dos sistemas petolíferos norte-africanos (Gutiérrez-Marco e Bernárdez, 2003).

preliminar concluiu com a identificação de 197 espécies distintas para o conjunto das formações Barrios e Sueve, das quais 66 são macrofósseis de invertebrados, 101 microfósseis planctónicos e 29 icnofósseis (Gutiérrez-Marco e Bernárdez, 2001, 2003; Gutiérrez-Marco et al., 2003). Entre todas elas encontraram-se 14 géneros ou espécies novas, uma das quais recebeu um nome alusivo à sua descoberta no túnel (Tunelia riosellana: Fig. 5, A). Também há fósseis raros, como por exemplo as primeiras trilobites rafioforídeas ibéricas ou a trinucleóide Dionide mareki Henry e Romano, uma forma descrita em Valongo e no Maciço Armoricano francês, mas que até à data não tinha sido encontrada em Espanha.

Os icnofósseis dominam nos estratos quartzíticos da Formação Barrios e nas intercalações A escavação do túnel permitiu localizar um total arenosas da Formação Sueve. Correspondem de 181 níveis fossilíferos na sucessão estudada a marcas deixadas pelos organismos marinhos (79 na Formação Barrios e 102 na Formação ao deslocarem-se ou ao escavarem no fundo, Sueve), na sua maioria novos, alguns dos quais onde ficam reflectidos as suas formas de vida ou a merecerem a catalogação de excepcionais. O de comportamento. Há uma grande variedade estado de conservação dos fósseis é bastante bom destas estruturas, como galerias de habitação por serem provenientes de rocha fresca, com casos ou escavação, rastos de pegadas, pistas de de preservação excepcional em fósseis ordoví- reptação e predação, coprolitos, etc. Quase todas cicos ibéricos (Fig. 4). O estudo paleontológico se conservam moldadas por arenitos ou quartzi4. Resultados paleontológicos

Fig. 4 – Detalhes de conservação: A - olho composto de uma trilobite, semelhante ao dos insectos actuais, que revela o enorme detalhe de conservação dos fósseis do túnel; B - larva protaspis de Prionocheilus mendax, conservada delicadamente na superfície de um xisto da base do Membro Cofiño (Formação Sueve), podendo-se observar que se começa a marcar a glabela e a segmentação axial do pigídeo; C - exemplares de Ectillaenus giganteus que preservam no cefalão marcas escuras arredondadas, que correspondem à matéria orgânica acumulada nas áreas de inserção dos músculos que fixam o estômago e os apêndices ventrais; D - colónia piritizada de um graptólito bisseriado, antes e depois de ser branqueado com óxido de magnésio. A pirite precipitou no espaço interno do graptólito quase imediatamente após o enterramento deste num lodo anóxico. O recheio de pirite resistiu à compactação e as tecas do graptólito conservaram o seu relevo original.


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Fig. 5 – Exemplares de icnofósseis recolhidos no túnel: A - Tunelia riosellana, um novo icnofóssil dedicado ao Túnel Ordovícico rioselhano; B - Cruziana barriosi, cujo nome deriva da área tipo da Formação Barrios em Los Barrios de Luna (León).

tos, desconhecendo-se os organismos que as produziram, a maioria dos quais deveriam ser vermes ou outros animais de corpo mole não fossilizável, além de algumas marcas deixadas por patas rígidas atribuídas a artrópodes (Fig. 5, B). Os fósseis mais comuns nos xistos da Formação Sueve são os restos de conchas e carapaças de diversos grupos de invertebrados, entre os quais trilobites (Fig. 6), moluscos (bivalves, gastrópodes, cefalópodes e triblidióides – ex: “monoplacóforos”), equinodermes (cistóides, crinóides, estilóforos), graptólitos, braquiópo-

des, etc. Também há restos de grupos enigmáticos como macaerídeos, hyolithídeos e conularídeos, dos que se desconhecem com certeza as suas afinidades biológicas. Finalmente, os fósseis mais delicados correspondem a restos de carapaças com menos de 1 mm de diâmetro e cápsulas orgânicas visíveis unicamente com a ajuda do microscópio ou após a dissolução da rocha em ácidos. Os microfósseis encontrados são de vários tipos. Os de parede orgânica são os mais diminutos e abundam de forma extraordinária em determinados níveis de xistos, onde se

Fig. 6 – Algumas das trilobites recolhidas em amostras do túnel: A - Prionocheilus mendax; B - Placoparia (Coplacoparia) tournemini; C - Neseuretus tristani, a trilobite mais conhecida do Ordovícico ibérico.

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Fig. 7 – Microfósseis do plâncton vegetal (acritarcas) das “Camadas del Fabar” (Câmbrico Superior): A - Lusatia dendroidea; B - Acanthodiacrodium sp.; C - Timofeevia sp.

obtêm dezenas a centenas de exemplares por cada grama de rocha dissolvida em ácido fluorídrico. Os mais frequentes são os acritarcas, quistos do fitoplâncton marinho, que consistem em vesículas espinhosas magnificamente conservadas (Fig. 7). Outros microfósseis apresentam-se mineralizados em fosfato, como os conodontes, umas peças minúsculas que formavam parte do aparelho filtrador ou dentário, retráctil, de uns diminutos seres nadadores com afinidades biológicas ainda por esclarecer. Entre os microfósseis de carapaça calcária são frequentes as valvas desarticuladas de vários grupos de ostracodos primitivos.

cavação subterrânea durou cinco meses com turnos duplos e todos os dias se perfurava, estudava e amostrava o equivalente a mais de 200.000 anos de tempo geológico.

A oportunidade científica foi recompensada por um sem-fim de dados valiosos de relevância internacional que estão a ser estudados por um grupo de especialistas espanhóis, italianos, franceses e norte-americanos. Além de um relato na revista Science (Cho, 2003), a escavação gerou interesse nos meios de comunicação nacionais e estrangeiros, com dezenas de artigos publicados na imprensa diária, aos que se acrescenta um número O estudo do aparecimento, apogeu e extinção crescente de reportagens em revistas dirigidas tanou substituição vertical de determinadas espé- to para o grande público (por exemplo Panizo Picies fósseis, ao longo da sucessão de estratos do farré, 2004; Silva, 2004, Ronda Iberia, 2004) túnel, permitiu-nos datar as rochas com recurso como para o mundo da engenharia civil (Santos, a técnicas biocronológicas. Dessa forma, as asso- 2003; Ventosa, 2003; García-Arango Cienciações de fósseis presentes num mesmo estrato fuegos-Jovellanos et al., 2004). serviram para estabelecer muitas inferências de tipo paleoecológico, aplicadas à reconstrução dos ambientes sedimentares. 5. Consequências e ensinamentos A escavação do Túnel del Fabar constituiu uma extraordinária experiência de colaboração de uma grande obra pública com o progresso e o conhecimento científico, onde a actividade geológica e paleontológica teve de ser ajustada ao ritmo imposto na execução da infra-estrutura, sem interferir com ela em qualquer momento. O estudo desenvolveu-se camada a camada através de mais de um milhão de toneladas de antigos sedimentos marinhos do Período Ordovícico. A es-

Fig. 8 – Sinal de trânsito que precede a entrada no túnel onde consta o nome oficial de “Tunel Ordovícico del Fabar”


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O interesse despertado levou a Subcomissão Internacional de Estratigrafia do Ordovícico a reconhecer a relevância científica do túnel, que por nossa insistência mudou o seu nome oficial para passar a chamar-se “Túnel Ordovícico del Fabar”, por acordo do Ministério de Fomento e do Ayuntamiento de Ribadesella (Fig. 8). O Ministério de Fomento promoveu a realização de uma exposição itinerante em colaboração com o Museo Geominero (Fig. 9, A-D), com a finalidade de dar a conhecer a actuação científica e os materiais extraídos. Esta exposição, intitulada Un tesoro geológico en la Autovía del Cantábrico, descreve os métodos e o dia-a-dia da escavação geológica e paleontológica, com o objectivo de apresentar os principais lucros científicos alcançados com a

mesma. A mostra estrutura-se em duas partes: a primeira compreende três blocos expositivos: · A obra e o túnel, que narra o método construtivo (Novo Método Austríaco) e a recolha de dados científicos (três painéis); · O enquadramento temporal da exposição, localizado no Período Ordovícico da história da Terra (um painel); · A geologia do túnel, com a estratigrafia e as particularidades dos ambientes marinhos da época, que nos falam de uma invasão do continente pelo mar (dois painéis e uma vitrina de rochas). A segunda parte da amostra exibe e explica os grupos fósseis encontrados na auto-estrada (dois painéis), que correspondem a:

Fig. 9 – Exposição didáctica sobre o Túnel Ordovícico del Fabar: A - o autor junto à maquete gigante de Nesuretus tristani; B - visitantes na exposição sobre o túnel patente no Museo del Carmen (Ribadesella); C - globo terrestre evidenciando a posição paleogeográfica dos continentes durante o Ordovícico Inferior; D - desenho realizado no âmbito do concurso infantil organizado pelo Museo del Carman sobre a temática da exposição.

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· Restos fósseis de animais marinhos (nove painéis e oito vitrinas com macrofósseis);

aulas leccionadas na Universidad Complutense de Madrid. Diz assim:

· Fósseis microscópicos de organismos unicelulares ou de partes diminutas de animais maiores (microfósseis): dois painéis;

“No entanto, junto a todos estes interesses mundanos e crematísticos, constatáveis no antes, durante e depois da construção de qualquer auto-estrada, em todas estas etapas há outros seres envolvidos que se interessam, deambulam e finalmente esgravatam na nova ferida aberta na Gea pelos explosivos e pelas escavadoras. Ao contrário dos zoólogos, botânicos, ecologistas e arqueólogos, estes outros cientistas não conseguem ser tão bem entendidos socialmente, apesar de os seus fins serem também inquestionavelmente altruístas e em prol do conhecimento do património natural. Geralmente são reconhecidos porque levam martelo, lupa, bússola e mochila, golpeiam as pedras, parecem fotografar obstinadamente o seu martelo em distintos lugares, consultam mapas e neles escrevem anotações ou em esquisitos cadernos de capa dura. Não são santos: por vezes introduzem-se furtivamente em quintas e obras ou param nas auto-estradas, uma vez terminadas, fingindo uma avaria ou saltando a vedação. Muitos deles são bebedores, brigões e mulherengos, porque viajam com frequência e, por isso, adoptam em cada lugar a via de aclimatação mais directa. Também são “gente de lei”, estudada, que sabe comportar-se em sociedade quando as circunstâncias o requerem e, o que é mais interessante, misturam a sua educação universitária com um conhecimento bastante directo da realidade social e da diversidade humana. Os assim conhecidos como geólogos e paleontólogos vangloriam-se de passar inadvertidos pelos lugares por onde transitam e onde picam com os seus martelos: evitam deixar pistas sobre as jazidas fossilíferas susceptíveis de posterior localização ou destruição por aficionados, ao mesmo tempo que evitam os inconvenientes jurídicos derivados das suas descobertas, pois da sua intromissão não deverá ficar mais do que uma marca semelhante à deixada pela passagem de um animal selvagem, ainda que os resultados se materializem no final em benefícios de todo o tipo, derivados dos seus mapas geológicos, e nos progressos no conhecimento científico do terreno, da vida no passado ou dos movimentos dos continentes” (Gutiérrez-Marco e Bernárdez, 2003, p. 23).

· Marcas fósseis deixadas pelos animais sobre o fundo (icnofósseis): dois painéis e quatro vitrinas. Como material complementar, um grande globo giratório (Fig. 9, C) permite compreender a posição geográfica dos terrenos ibéricos há mais de 460 milhões de anos, quando estavam na margem do gigantesco continente Gondwana e muito próximo do Pólo Sul terrestre. Entre os seres mais representativos do Período Ordovícico, as trilobites interpretam-se com uma grande maquete de Neseuretus, uma das formas mais frequentes do túnel (Fig. 9, A). A exposição inaugurou-se no dia 15 de Novembro de 2003 no Museo de El Cármen em Ribadesella (Astúrias), onde permanecerá até finais de Fevereiro de 2005. Posteriormente será trasladada para o Museu de Geologia da UTAD em Vila Real (Portugal), de onde regressará novamente a território espanhol para iniciar o percurso itinerante estabelecido no circuito de exposições temporais do Museo Geominero (Instituto Geológico y Minero de España). O livro-catálogo da exposição (Gutiérrez-Marco e Bernárdez, 2003) possui 400 páginas e mais de 600 ilustrações a cores e foi patrocinado pela empresa FCC Construcción. A urgência de datas imposta pelo Ministério de Fomento para o desenho e realização da exposição e do livro (dois meses e meio) transformou ambos os objectivos numa aventura de igual ou maior calado que a própria escavação do túnel. Sem tempo para reflexão, o livro foi escrito apenas num mês, procurando transmitir ao grande público o porquê de geólogos e paleontólogos termos logrado predizer aquilo que poderíamos encontrar ao estudar o túnel, e que tipos de achados resultaram afinal mais interessantes. Nestas condições, o livro consiste principalmente num grande anedotário da escavação, tão descontraído como ilustra a seguinte passagem, que procura reproduzir o sentir de alguns dos geólogos envolvidos na obra e que já é utilizada fora do contexto em algumas


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De qualquer forma, o grande ensinamento provocado pelo Túnel Ordovícico del Fabar é de que nós, geólogos, podemos afrontar sem complexos o desenvolvimento da nossa vocação científica em qualquer circunstância, por adversa que possa parecer, como foi a nossa “intromissão” na realização de uma grande obra pública. Sempre que estejamos predispostos a afrontar com rigor, ilusão e esforço esta vocação, talvez exista uma forma que nos permita resgatar o imenso caudal de informação geocientífica que potencialmente originam este tipo de obras, sem prejudicar os interesses gerais das empresas construtoras nem, o que é mais importante, afectar a própria dinâmica do processo. Em segundo lugar, no túnel aprendemos a tratar por tu e a apreciar o trabalho de outros profissionais socialmente mais qualificados, entre os quais, como geólogos, não desmerecemos nada. Apenas com esta convicção e valoração como cientistas foi possível negociar o “preço certo” da exposição que, finalmente, se nos apresentou em troca. O esforço tornou a merecer a pena, porque o seu êxito incipiente demonstra o interesse do cidadão comum pelos mistérios que rodeiam a história da Terra, onde nem tudo são episódios jurássicos ou momentos marcantes da evolução humana, nem todos os fósseis simples petrificações de ossos.

grandes escavações e movimentos de terra derivados das obras públicas, para que a construção deste túnel na Auto-estrada do Cantábrico não permaneça como uma simples excepção.

O investimento directo relacionado com o túnel Ordovícico del Fabar para a Ciência (contratos de escavação e preparação de amostras) a que acresceu a divulgação (exposição e livro), ascendeu a um total de 226.000 euros, o que representa 0,00072 % do custo do túnel e 0,00014 % dos investimentos realizados nestes 11,5 km de auto-estrada. Não foi fácil conseguir este financiamento, mas os frutos do esforço científico incrementar-se-ão nos próximos anos, conforme avançar o estudo das amostras geológicas e paleontológicas. O benefício cultural derivado do resgate de toda esta informação e o aproveitamento social da exposição serviu também para convencer determinados sectores produtivos e políticos de que a “intromissão científica” em certas obras pode ser não apenas útil, como também um bom negócio em termos de futuro. De tudo isto se conclui que seria desejável criar algum mecanismo administrativo para instruir o aproveitamento de todos os dados científicos interessantes, potencialmente gerados pelas

Albani, R.; Bagnoli, G.; Bernárdez, E.; Gutiérrez-Marco, J.C.; Ribecai, C. (em prensa). Late Cambrian acritarchs from the “Túnel Ordovícico del Fabar”, Cantabrian Zone, N Spain. Review of Palaeobotany and Palynology.

Agradecimentos O presente texto é a resposta ao convite da Geonovas para resumir o conteúdo da palestra ministrada em Vila Real no dia 12 de Março de 2004, organizada pelo Museu de Geologia da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Agradeço à Associação Portuguesa de Geólogos e aos responsáveis da UTAD a oportunidade de divulgar aqui esta curiosa experiência profissional, assim como a reprodução da capa do livro da exposição no número 17 da revista. O meu colega e amigo Artur Sá (UTAD) realizou a tradução do texto para português, tendo-o assim revestido com a poesia que sempre emana do vosso doce idioma. Bibliografía Adaro, L. de; Junquera, G. (1916). Criaderos de Hierro de España. Tomo II. Criaderos de Asturias. Memorias del Instituto Geológico de España, 27: 1-610.

Aramburu, C. (1989). El Cambro-Ordovícico de la Zona Cantábrica (NO. de España). Tesis doctoral, Universidad de Oviedo: 1-530. Aramburu, C.; García-Ramos, J.C. (1993). La sedimentación cambro-ordovícica en la Zona Cantábrica (NO de España). Trabajos de Geología, Oviedo, 19, 45-73. Cho, A., ed. (2003). Tunnel Vision. Science, 302: 1890. Díaz Minguela, J.; Hacar Rodríguez, F.; Monteagudo Fernández, R. (2002). Túneles blancos en la Autovía del Cantábrico. Cemento y Hormigón, 73 (843): 96-108.

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Juan Carlos Gutiérrez-Marco

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Associação portuguesa de geólogos

Geonovas nº 18, pp. 35 a 65, 2004

Os Testemunhos que as Rochas nos Legaram: Geodiversidade e Potencialidades do Património do Canhão Fluvial de Penha Garcia Carlos Neto de Carvalho Centro Cultural Raiano - Gabinete de Geologia e Paleontologia. Avenida Zona Nova de Expansão 1º, 6060-101 Idanha-a-Nova. Centro de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Bloco C6, 4º piso, P-1749-016 Lisboa. Email: praedichnia@hotmail.com

Resumo: Neste trabalho são apresentadas algumas singularidades paleontológicas no seio da diversidade natural do canhão fluvial do Rio Ponsul. O roteiro de locais de interesses paleontológico e geológico, associado intrinsecamente a um património construído de índole etnográfica (unidade moageira do Ponsul, hortas) e histórica (Castelo medieval e restos do “castelo da Bufa”), caracterizam o Geomonumento de Penha Garcia. Os vestígios de actividades paleobiológicas de invertebrados (pistas de alimentação, estruturas de habitação, trilhos de pegadas) são salientados pela sua particular diversidade em termos de comportamentos assumidos e grau de preservação, verdadeiros apanágios de uma identidade cultural milenar enraizada nas fragas quartzíticas. Por fim, encontram-se reunidos alguns dos critérios que fundamentam a protecção e criação de um espaço temático em Penha Garcia, que actualmente já é dado a conhecer pela Rota dos Fósseis. Palavras-chave: Património Paleontológico; Icnofósseis; Parque Icnológico; Penha Garcia; Idanha-a-Nova. Abstract: In the present work it is introduced several paleontological singularities found among the heart of the Ponsul river canyon natural diversity. The itinerary of paleontological and geological sites, intrinsically associated to an inherited ethnographic (Ponsul watermills complex, ancient vegetable gardens) and historical (medieval castle and vestiges of “castelo da Bufa” tower), typify the Penha Garcia Geomonument. The remains of invertebrate paleobiological activities (feeding burrows, dwelling structures, tracks and trails) are emphasized by their peculiar diversity in assumed behaviors and preservation rate, real attribute for a millenary cultural identity implanted over the quartzitic relieves. There are assembled some criteria which establish the preservation and creation of a thematic park in Penha Garcia, actually already make known by the Rota dos Fósseis (Fossils Trail). Key-words: Paleontological Heritage; Ichnofossils; Ichnological Park; Penha Garcia; Idanha-a-Nova.

1. Introdução Quando vislumbramos a região de Penha Garcia do mirante que é o inselberg de Monsanto, sobressai na planura o dorso crispado da Serra do Ramiro prolongada na Serra da Gorda, até desaparecer no horizonte espanhol. Na verdade, este relevo esconde uma crista gémea, correspondente à Serra da Ribeirinha estendendo-se pela Serra da Cacheira. As duas estruturas correspondem aos flancos de grande dobra em U que, irrompendo da campina raiana em Aranhas, se prolonga quase ininterruptamente muito para além da fronteira do Erges, atravessando várias províncias espanholas. São os testemunhos residuais de uma mega-colisão continental que terá constituído, deformado e levantado em grande extensão o que é hoje o território português, em múltiplas fases decorridas há mais de 300 milhões de

anos. São também um exemplo de como a Terra é brutalmente dinâmica e de como muita coisa se terá modificado desde a sua origem. A Vida é um exemplo disso. As rochas metassedimentares da região de Penha Garcia, particularmente aquelas preservadas no interior da dobra, são extremamente antigas e encontram-se, por vezes, pejadas de evidências fossilizadas de hábitos e formas de vida extintas há muito. É esta associação geológica entre o fóssil e o estrato em que este se integra que nos permite relatar o modo como as comunidades biológicas se estruturavam face às sequenciais variações ambientais, a face visível e mutável de um sistema dinâmico universal. É pela riqueza na diversidade, na preservação, na singularidade das formas e rochas, mas também pela necessidade da contextualização geológica e pela urgência da sua


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compreensão como substrato vital para os frágeis ecossistemas actuais, que se deverá considerar Penha Garcia como um verdadeiro Exomuseu (sensu Galopim de Carvalho, 1989). Este trabalho pretende resumir a importância das associações fósseis no quadro geológico e mesmo etnográfico de Penha Garcia, sumarizando e ilustrando em jeito de conclusão os geótopos ou locais de interesse geológico e paleontológico, para além do património construído de realce (veja-se o ANEXO). A presente proposta resulta do processo decorrente de classificação como Imóvel de Interesse Municipal, no âmbito do Decreto-Lei 107/2001, do Conjunto cultural de Penha Garcia que compreende: · O Património Geológico presente nas vertentes do canhão fluvial de Penha Garcia (dobras, falhas, filões de quartzo, estruturas sedimentares, litologias, …); · o Património Paleontológico (todas as lajes com icnofósseis in situ ou descontextualizadas da sequência estratigráfica e outro fósseis abrangidos na área delimitada); · o Castelo de Penha Garcia; · a Unidade Moageira do Rio Ponsul (todos os moinhos e estruturas associadas preservadas); · os vestígios de atalaia (“Castelo da Bufa”); · as hortas tradicionais em socalcos. A classificação apresenta-se como um mecanismo necessário para a salvaguarda urgente do rico e diversificado património paleontológico e geológico de Penha Garcia, substrato paisagístico e responsável em última análise pela existência de outros elementos de cariz histórico-etnográfico importantes aí implantados ao longo de centenas de anos, como o castelo medieval de Penha Garcia, os vestígios da atalaia denominada por “Castelo da Bufa” e todos as infra-estruturas associadas à actividade moageira. Este conjunto é considerado notável pela sua unidade e integração na paisagem e pelo seu interesse científico, histórico, arqueológico e mesmo cénico. Só a interrelação entre os vários componentes referidos permite compreender a sua origem.

2. Diversidade de comportamentos presentes e sua preservação delicada nas rochas quartzíticas de Penha Garcia A Formação do Quartzito Armoricano, correspondente às cristas que irrompem da paisagem desde Aranhas até ao Rio Erges, prolongando-se muito para lá da fronteira, é constituída por sequências detríticas, argilo-quartzoareníticas datadas do Arenigiano (490-480 milhões de anos), correspondendo a uma deposição em ambientes do tipo supralitoral a infralitoral com influências tempestíticas frequentes. A sua distribuição em Portugal abrange uma área superior a 2500km2, correspondendo ao prolongamento de unidades correlativas pertencentes ao Maciço Armoricano europeu. Em Penha Garcia, a sequência quartzítica apresenta-se completa, assentando segundo uma discordância angular sobre unidades neoproterozóicas e sendo sobreposta por uma sequência xistenta em continuidade estratigráfica, datada do Oretaniano?-Dobrotiviano (480-460 milhões de anos). A ausência de fósseis esqueléticos contrasta com a abundância e diversidade em vestígios de actividades paleobiológicas ou icnofósseis, distribuídos por toda a Formação. Só recentemente se iniciou um estudo mais aprofundado e sistemático dos icnofósseis de Penha Garcia (Neto de Carvalho et al. 1998; Neto de Carvalho, 2003a, 2003b, 2004). De facto, não obstante a sua grande importância, reforçada pela comunidade geológica nacional no recente workshop intitulado Fósseis de Penha Garcia-Que Classificação? promovido no ano transacto pela Câmara Municipal de Idanha-a-Nova, a Paleoicnologia destas unidades quartzíticas é conhecida apenas pontualmente através dos trabalhos clássicos do ilustre paleontólogo português Nery Delgado, datados dos finais do séc. XIX, os quais incidiram fundamentalmente sobre as Bilobites (Delgado, 1885, 1888). O termo Bilobites era dado no final do séc. XIX, a todos os fósseis de atribuição duvidosa encontrados nos quartzitos, como Cruziana, Arthrophycus ou Skolithos. No entanto, conhecem-se actualmente as origens, muitas vezes completamente díspares, destas formas, sendo conveniente designálas separadamente por um nome estabelecido. Por outro lado, Bilobites já era o nome formal de


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um fóssil de braquiópode antes de se darem nomes à maioria dos icnofósseis. Embora o termo expresse efectivamente a forma bilobada das Cruziana, o baptismo deste tipo de estruturas foi da responsabilidade de Alcides d’Orbigny em 1842, um naturalista francês que, explorando a Bolívia, concedeu o nome do seu amigo General de Santa Cruz (responsável pela independência deste país em 1825), às estranhas formas que aí tinha descoberto e descrito pela primeira vez. Desta forma, pensamos que fica claro porque é errado utilizar Bilobites para designar o que está estabelecido como Cruziana ou outros icnofósseis.

grupo das “Bilobites”, Rusophycus, Arthrophycus, “Fraena” e, sobretudo Cruziana, como moldes internos de algas relacionados com as Sifonáceas (Delgado, 1885). Para este autor, as “algas” que estudava cresciam horizontalmente em ambientes marinhos litorais, formando grandes comunidades. A acção da rebentação sobre a estrutura levaria ao desprendimento de numerosas tiras que se iriam acumular na praia, acabando por ser enterradas e fossilizarem como moldes internos, e originando as já então célebres lajes com abundante Cruziana. Bastantes anos volvidos, a conotação de Cruziana com a botânica foi mantida por autores desta reMas o que são realmente as Cruziana? Nery Delga- gião, que a atribuíram a marcas de raízes (Lobo e do considerava apenas as formas que englobava no Lucas, 1972).

Fig. 1 – Perspectiva aérea com a localização dos principais elementos patrimoniais da Via Icnológica de Penha Garcia (Idanha-a-Nova), a jazida paleoicnológica mais importante de toda a região de Idanha-a-Nova e uma das importantes jazidas paleontológicas do Paleozóico português (o percurso marcado corresponde ao PR3 – “Rota dos Fósseis”). O trecho do vale do Rio Ponsul que atravessa a crista quartzítica situa-se a NNE da povoação de Penha Garcia. O acesso faz-se por caminho situado a 75 m W do Castelo, na zona alta da vila (Rua da Lapa) e ainda pela estrada municipal que faz o acesso entre a EN239 a Vale Feitoso, com ligação à Barragem de Penha Garcia. O mirante da Igreja Matriz, de onde se pode perspectivar todo o cenário geológico envolvente ao circuito proposto, tem acesso directo a partir do centro da vila, pela Rua do Castelo.

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Curiosamente, os icnofósseis de Penha Garcia virão a ter, precisamente um século mais tarde, um papel importante no conhecimento do modo de formação de Cruziana (Goldring, 1985) e sua consequente atribuição a icnofósseis de alimentação de trilobites (Fig. 2) e de outros artrópodes morfologicamente similares, produzidos no substrato marinho. As Cruziana correspondem a sulcos essencialmente horizontais, bilobados, com uma crista central mais ou menos definida, apresentando intricados padrões ornamentais de estrias. A sua atribuição a pistas de alimentação de trilobites e outros artrópodes morfo-funcionalmente análogos deve-se ao achado de estruturas correlativas imediatamente sob uma espécie destes organismos, à ocorrência frequente de trilobites e Cruziana nas mesmas unidades, a comparações neoicnológicas com artrópodes que produzem sulcos análogos, às frequentes marcas que acompanham Cruziana e Rusophycus e que definem claramente estruturas esqueléticas de trilobites, assim como à morfologia e tipo sequencial das estrias que ornamentam as Cruziana, correspondentes às impressões dos apêndices locomotores deixadas no acto de obtenção de alimento (Fig. 2). Regressemos ao passado e imaginemos uma trilobite a alimentar-se de matéria orgânica contida nos sedimentos, escavando e revolvendo, “la-

Reconstituição de uma Trilobite (perspectivas dorsal e ventral)

vrando” o substrato arenoso até atingir a interface deste com um nível argiloso de elevada plasticidade. A depressão gerada no nível argiloso por acção dos apêndices locomotores, à medida que o animal avança processando alimento, pôde ser preservada e realçada através de certos mecanismos de fossilização, dando origem às inúmeras marcas meândricas que hoje podemos contemplar nas imediações de Penha Garcia. Nas escadas de acesso ao castelo, construídas em 1995, nas últimas obras de reconstrução do castelo, é possível estabelecer o primeiro contacto com icnofósseis como Cruziana (parte do corrimão e alguns degraus possuem lajes onde ocorrem profusamente estes icnofósseis, resultado da sensibilidade e esforço de protecção demonstrados pela Junta de Freguesia local). A Via Icnológica, onde se encontraram os exemplares de icnofósseis mais espectaculares à mistura com tradições culturais milenares ainda hoje bem vincadas na paisagem, deverá ser realizada ao final da tarde, pois o ângulo de incidência da luz solar com as superfícies das camadas com icnofósseis permite ver até as mais delicadas marcas dos apêndices locomotores dos artrópodes marinhos que os produziram, como resultado de um estilo de preservação muito perfeito e raro. Alguns dos exemplares de Cruziana encontrados figuram entre os icnofósseis

Modo de locomoção de uma Trilobite (Alguns apêndices locomotores foram retirados para facilitar a observação)

Sentido de movimento (Perspectiva Oblíquo-ventral)

Produção de pistas-Cruziana (Trilobite Em Corte Transversal)

As pistas do tipo Cruziana são o resultado da escavação do substrato por acção do aparato locomotor (As incisões apendiculares são evidentes na ornamentação estriada de Cruziana )

Fig. 2 – Produção de Cruziana por trilobites (esquema adaptado de Hawle & Corda, 1847; Whittington, 1980 e Seilacher, 1970).


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Fig. 3 – Diversidade de comportamentos patente nas Cruziana, a dimensão ímpar atingida por algumas estruturas e uma preservação delicada são alguns dos factores que tornam o vale do Ponsul um parque icnológico único a nível nacional e raro no resto do mundo. A - Cruziana rugosa e C.furcifera formando longas rectas (estação 11);

B - Grande C. rugosa com forma em U (estação 15);

D - Idem (estação 69, escala=10cm);

C - Roller Coaster behavior numa laje clássica com C. furcifera (estação 18, escala=20cm);

E - Estrutura teichichnóide em C. furcifera (estação 69, escala=20cm);

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F - C. rugosa orientadas em oposição à orientação das correntes (estação 74);

G - Laje intensamente bioturbada por grandes C. rugosa com 16-19cm de largura (estação 19);

H - A maior Cruziana in situ figurada do mundo, com 24cm, provavelmente produzida por uma trilobite asafídeo (estação 71, escala=20cm).


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mais bem preservados que se conhecem a nível mundial (Seilacher, comun. Pessoal; Fig. 3G).

podendo corresponder à acção alimentar de organismos em estado precoce das suas vidas.

A tectónica fez um trabalho magnífico em Penha Garcia. Por deformação, verticalizou grandes lajedos que só muito mais tarde foram “limpos” pelo encaixe do Rio Ponsul. Da tectónica e da erosão fluvial resulta o espectáculo incomum das grandes lajes com inúmeros icnofósseis (Fig. 3C, F), particularmente Cruziana que sobressai pelas dimensões. Com efeito, surgem aqui verdadeiros recordes mundiais nas dimensões das Cruziana, o que daria organismos seus produtores com quase 0,5m de comprimento (Fig. 3B, H)! No entanto, as dimensões médias das trilobites em Penha Garcia eram inferiores a 8cm. Ocorrem ainda pistas com padrões idênticos, com menos de 1cm,

Em Penha Garcia, identificam-se quatro morfotipos de Cruziana, a maioria dos quais apresenta estádios intermédios que os correlaciona com os demais. Correspondem a quatro formas preservadas diferentes de obter alimento produzidas por outros tantos tipos diferentes de produtores ou, o que parece mais correcto, são o resultado das vicissitudes de apenas um único grupo de organismos, com uma morfologia muito semelhante. Facto ainda mais extraordinário e único é a grande diversidade de comportamentos de alimentação observáveis em Penha Garcia que, quando aparecem conjugados numa mesma laje, lembram uma verdadeira “montanha-russa” pe-

Fig. 4 – Diplichnites isp. são trilhos atribuídos à actividade de locomoção de trilobites.

Fig. 5 – Merostomichnites isp. A seta indica o sentido de locomoção.

A - O trilho ocorre associado a galerias em forma de U do tipo Diplocraterion paralellum (estação 14); A - proximidades da estação 57; B - estação 7 (escala=2cm).

B - Pegadas cortadas por estruturas cilíndricas do tipo Skolithos (proximidades da estação 57).

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las curvas, voltas, arcos e cruzamentos dos sulcos bilobados (Fig. 3A, D, E). Há quase 500 milhões de anos, as trilobites seriam capazes de grandes proezas artísticas, que só actualmente podem ser compreendidas e admiradas. Os trilhos de pegadas do tipo Diplichnites (Fig. 4) são relativamente comuns nos quartzitos de Penha Garcia, sendo normalmente atribuídos à actividade locomotora de trilobites. Esta correlação genética deriva da composição morfológica das impressões, geralmente em forma de crescente simples, bífido ou com padrões radiais, presentes em duas fiadas de séries paralelas (mais ou menos complexas por variação preservacional), com forte obliquidade em relação à linha média e disposição simétrica em “V”. Por outro lado, observa-se ocasionalmente a transição das formas de Diplichnites para Cruziana.

Fig. 6 – Arthrophycus alleghaniensis (estação 74, escala=20cm).

tre as quais, em espécimes bem preservados, se podem observar finos pregueamentos paralelos, testemunham a actuação peristáltica (movimento semelhante à descida do bolo alimentar pelo esófago) de um organismo vermiforme celomado Os trabalhos de campo recentemente efectuados sedimentívoro. Este apresentaria uma cutícula em Penha Garcia levaram à descoberta de um tri- de revestimento com finas rugas funcionalmenlho e de séries de impressões atribuídas, para já, te eficazes para facilitar o processo de escavação, a Merostomichnites isp., sendo o segundo do género implicando o movimento de sedimento ao longo conhecido em Portugal e o primeiro com locali- do animal. zação ao alcance de todos. O trilho principal pode As ocorrências de níveis quartzíticos grosseiros ser visto facilmente a 102m do topo da sequência, em grande bloco “in situ” situado junto do cami- apresentam abundantes e finas estruturas cilínnho que vai da Barragem para as piscinas fluviais. dricas verticais, simples, atribuíveis a Skolithos lineEsta forma rara representa locomoção contínua aris (Fig. 7). Já em pleno vale do Ponsul, a meio da paralela à camada com apêndices morfológica e Formação do Quartzito Armoricano, é frequente dimensionalmente idênticos (Fig. 5). As grandes encontrar níveis de Skolithos intercalados com oudimensões da estrutura (mais de 13cm de largu- tros de Cruziana. O número de estruturas é imenra), a morfologia das pegadas e o padrão de loco- so, constituindo uma verdadeira biostratificação moção permitiram inferir um grande Phylloca- que na literatura especializada foi denominada rida como o possível produtor de Merostomichnites, de piperock. A sua ocorrência, inusitada em paconstituindo esta a única evidência indirecta da presença mais antiga em Portugal de toda uma subclasse de organismos. As galerias do tipo Arthrophycus alleghaniensis (Fig. 6) correspondem a feixes tridimensionais de ramificações em cacho ou que curvam tendencialmente num único sentido. É uma forma de comportamento preservada no registo estratigráfico que desapareceu há mais de 435 milhões de anos. Esta icnoespécie pode apresentar um padrão divagante e com entrecruzamento de estruturas, como acontece em exemplares observados no vale do Ponsul. Quanto aos produtores de Arthrophycus, e no caso de A. alleghaniensis, a presença de anelações transversas ao longo das galerias em U, en-

Fig. 7 – Skolithos a cortar uma Cruziana rugosa. As setas indicam exemplos (proximidades da estação 52).


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leoambientes então dominados pelos produtores de Cruziana, é interpretada como uma instalação efémera de uma comunidade de organismos poliquetas ou foronídeos com modos de vida generalistas imediatamente após cada evento tempestítico, em condições impróprias para os organismos mais especializados e característicos desses paleoambientes de plataforma. Por vezes, certos tubos verticais abrem em cone no sentido ascendente, designando-se por Monocraterion.

visível. No caso de Daedalus halli, o movimento das duas extremidades do tubo terá diferido na sua amplitude. A extremidade que estaria em contacto com a interface água-sedimento mostra uma curta deslocação quando comparada com a extremidade mais profunda, o que origina a forma cónica característica (Fig. 9A). A deslocação de uma estrutura rectilínea rígida no interior dos sedimentos é problemática se não for auxiliada por um mecanismo ciliar que disponha o sediAs formas de Arenicolites são outro tipo de estru- mento para trás do organismo em movimento. A turas produzidas após cada evento tempestíti- dimensão da estrutura é função da instabilidade co. Tendem a aparecer para o topo da formação na sedimentação, como resultado do reajuste do quartzítica (Fig. 8). Correspondem a galerias em organismo seu produtor no nível de ocupação. U, simples, orientadas perpendicularmente à camada, produzidas possivelmente para habitação de poliquetas ou pequenos crustáceos que se alimentariam de partículas em suspensão na água. O seu alinhamento com o presumível sentido das paleocorrentes está relacionado com a oxigenação contínua da estrutura, fornecimento alimentar e/ou com o afastamento dos dejectos do organismo da sua área de alimentação. Quando apresentam um spreite intermédio motivado por equílibrio ecológico face a variações na taxa de sedimentação, estas galerias em U têm a designação de Diplocraterion. Fig. 9 – Daedalus predomina nos níveis arenosos tempestíticos da Ainda dentro das galerias vermiformes verticais, parte média e superior da sequência de Penha Garcia. podem ser encontradas formas de Daedalus em Pe- A - Daedalus halli a cortar laminação do tipo hummocky (estação 17; nha Garcia. São curiosas escavações que retraba- escala = 15cm); lham o sedimento nas três direcções do espaço por Como causa deste comportamento será o seu hádeslocamento helicoidal (D. halli) ou horizontal bito suspensívoro. O modo de vida do produtor (D. labechei) de uma galeria vertical a oblíqua, com de D. labechei é equivalente ao inferido para D. halli. forma de J; o eixo de enrolamento é raramente O comportamento assumido difere apenas no facto da inexistência de reajustes no nível de ocupação motivados por erosão/sedimentação. Com efeito, o movimento lateral da galeria faz-se num plano curvo, sem variação vertical do seu posicionamento (Fig. 9B). Este pode gerar círculos sucessivos ou prolongar-se no plano de estratificação por quase 1m.

Fig. 8 – Galeria em U simples atribuída a Arenicolites isp. (estação 70).

Por fim, são abundantes as galerias horizontais simples de vermes, sobretudo em níveis onde também ocorrem as Cruziana, os quais erraram através do substrato marinho escavando túneis em busca de detritos orgânicos, desde cadáveres a micropartículas. As estruturas que produziram são denominadas de Palaeophycus ou de Planolites, consoan-

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sencialmente siliciosos e muito pobres em outros constituintes químicos. São de salientar as turfeiras existentes no vale do Ponsul, em dependência directa de pequenas surgências de água, as quais constituem verdadeiros santuários pautados por dezenas de espécies num espaço exíguo de apenas alguns metros. É frequente o Sphagnum (esfagno) e a delicada planta carnívora Drosera rotundifolia (erva-orvalhinha), esta última em risco de extinção. As turfeiras de Penha Garcia são elementos quase únicos em áreas de clima mediterrânico (Manuel João Pinto, Jardim Botânico de Lisboa, Comun. pessoal). No entanto, permanecem desconhecidas a todos aqueles que as pisam enquanto passeiam junto ao leito do rio Ponsul para ver os icnofósseis. Estes santuários correm um sério risco, se não forem conjugados os interesses geológicos e biológicos. 4. O Património etnográfico e monumental de Penha Garcia Penha Garcia é uma povoação alcandorada na B - Daedalus labechei (Serra da Gorda, proximidades de Monfor- crista quartzítica dominada pelas ruínas de um tinho). castelo medieval roqueiro, que soube aproveitar o penhascoso substrato para edificar a defesa de te o preenchimento é semelhante ou difere da sua bens e gentes ao longo de séculos. Da atalaia isocomposição em relação à matriz sedimentar. lada no ponto mais alto da zona, denominada de Na Fig. 10 são identificados os vários grupos de “Castelo da Bufa”, são ainda visíveis a base circular organismos que participaram nos ecossistemas do em argila com 6m de diâmetro. A casa tradicioOrdovícico Inferior de Penha Garcia, reconheci- nal aplica a rocha quartzítica e quartzo filoniano dos a partir do seu registo icnológico. nas suas paredes. A unidade moageira do Vale do Ponsul, a mais importante do concelho de Ida3. Uma palavra para os ecossistemas actuais de nha-a-Nova e ainda hoje muito bem conservada, Penha Garcia resulta do aumento de eficiência hidráulica do As serranias de Penha Garcia oferecem, pela Rio Ponsul por encaixe na sequência quartzítica inacessibilidade do relevo e pelo desenvolvimen- ao longo de um canhão fluvial apertado. to áreas florestadas, protecção para uma avifauna muito diversificada dominada pelas rapinas, As fragas quartzíticas, com os seus recantos, lajes contando com elementos em sério risco de ex- com padrões “hieroglíficos” de génese misteriotinção. A lontra refugia-se no vale do Ponsul, um sa (icnofósseis) e escuras cavidades (surgências de dos poucos predadores do introduzido lagostim- nascentes ao longo de zonas de falha), contribuíamericano, um voraz crustáceo que tem relegado ram para uma etnografia diversificada que soube ultrapassar as últimas décadas de grande desenpara último plano o lagostim-europeu. volvimento tecnológico e social. Sobrevive hoje à As comunidades botânicas das cristas quartzíticas custa de uma população maioritariamente idosa e de Penha Garcia marcam pela sua originalidade, dos esforços de investigadores que se dedicam ao pela especialização a solos muito imaturos, es- seu levantamento e registo.


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Fig. 10 – O bestiário das serranias de Penha Garcia, à escala: um dos maiores triunfos da Paleoicnologia, estudando os vestígios fossilizados da actividade biológica, é o da reconstituição de comunidades biológicas com reduzido ou nulo potencial de fossilização. Estas comunidades foram, por vezes, compostas maioritariamente por organismos sem um esqueleto fortemente mineralizado, extintos há já muitos milhões de anos. De outra forma, ficariam para sempre perdidos entre as memórias fragmentárias do tempo. No sentido dos ponteiros do relógio e de cima para baixo: crustáceo filocarídeo que nada livremente na coluna de água deslocando-se ao fundo para se alimentar; vermes foronídeos/poliquetas sedentários em estruturas verticais, que se alimentam de matéria orgânica que capturam em suspensão; celenterado (anémona) epibentónico séssil; verme poliqueta sedentário com galeria de habitação em U; verme poliqueta errante que escava os sedimentos em busca de matéria orgânica; trilobite asafídeo que viveu livremente sobre o fundo marinho, escavando o substrato em busca de detritos orgânicos (de notar as três ordens de grandeza dimensional (estádios de crescimento?) existentes cujo valor médio da população é dado pela dimensão da trilobite disposta no centro-mais à direita). Pela mesma ordem, gravuras adaptadas de Rolfe (1969), Bromley (1990) e Harrington et al. (1959).

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5. Interesse Patrimonial do legado cultural de Penha Garcia As razões para a necessidade de preservação do conjunto de interesse cultural de Penha Garcia sob a alçada jurídica encontram-se sintetizadas nas seguintes principais valências do património. Património Paleontológico

Património Histórico-Arqueológico · Composto pelas ruínas medievais do Castelo de Penha Garcia e do “Castelo da Bufa”; · Elementos referenciais para a compreensão da História da área geográfica envolvente à Bacia do Tejo e fundamentais para o conhecimento histórico de Penha Garcia; Património Etnográfico

· As camadas ou lajes com icnofósseis de Penha Garcia apresentam grande raridade e fenómenos únicos em toda a estratigrafia portuguesa;

· Elevada preservação da maior unidade moageira do concelho de Idanha-a-Nova;

· A preservação das estruturas apresenta detalhes raros ou únicos a nível mundial;

· Paisagem de características rurais pouco intervencionada nos tempos mais recentes.

A diversidade e abundância dos icnofósseis permite compreender de forma inigualável ecossistemas existentes na região num intervalo compreendido entre há 490 e 480 milhões de anos;

Considera-se, segundo os artigos 1º e 2º da Lei nº 107/2001, que o património cultural descrito apresenta bens de interesse relevante a nível do concelho de Idanha-a-Nova, designadamente pa· Os icnofósseis de Penha Garcia fazem parte da leontológico, geológico, histórico, arqueológico, memória colectiva desde tempo imemoriais (as arquitectónico e etnográfico pela sua antiguidaCobras Pintadas); de, autenticidade, originalidade, singularidade, · A jazida paleontológica de Penha Garcia é clás- raridade e exemplaridade, devendo ser considesica nos estudos paleontológicos portugueses; rada a necessidade urgente de protecção e valori· A jazida paleontológica de Penha Garcia é reco- zação através da classificação como Conjunto de nhecida, pelo seu interesse científico, pela comu- Interesse Municipal. nidade científica nacional e internacional. O Património Paleontológico Português (PPP) Património Geológico (Cachão et al. 1998) constitui o conjunto de re· A Geologia local condicionou a ocupação do es- cursos paleontológicos nacionais que, pela sua relevância a título científico, educativo ou outro paço ao longo de milénios; · A arquitectura tradicional utiliza matérias-pri- constituam um bem patrimonial fundamental que deverá ser valorizado como entidade simmas reportadas às litologias locais; bólica de uma comunidade ou de uma região e · A paisagem foi fortemente condicionada e espreservado para as futuras gerações. Para a clastruturada pela evolução geológica da área; sificação de uma jazida paleontológica como PPP · Os recursos geológicos são abundantes, caracte- deve haver um conjunto de critérios, tão diversos rísticos e possuem fácil acessibilidade, com conquanto sólidos, que permitam reconhecer o seu dições mais do que adequadas para uma fruição carácter ímpar e o melhor modo de explorar as científica, pedagógica e turística. suas potencialidades. O trabalho científico exerPatrimónio Biológico cido nestes últimos anos na região de Penha Gar· Diversidade botânica e faunística, com espécies cia permitiu angariar um conjunto de factores raras ou em vias de extinção; paleontológicos de extraordinário interesse nos · Biótopos de relevância regional e de elevada ra- vários domínios científico, educativo e cultural ridade nacional; (no sentido de Cachão e Silva, 1999).


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Critérios científicos Critério tafonómico Na Formação do Quartzito Armoricano, onde condicionalismos tafonómicos não permitiram a fossilização da quase totalidade dos restos esqueléticos, são as marcas de actividade das populações de organismos que denunciam a presença fervilhante de vida, em tempos tão remotos. Os icnofósseis são extremamente comuns nas formações argilo-quartzíticas de Penha Garcia. De entre eles, ressalta à vista com frequência a forma bilobada e curvilínea, por vezes de grandes dimensões e forte relevo, com a denominação de Cruziana. A qualidade de preservação de todos os icnofósseis em geral, e de Cruziana em particular, é excelente, apresentando-se por vezes em grandes lajes, onde é possível fazer análises etológicas e estudos de interacção entre estruturas biogénicas de origem diversa. Para este registo paleontológico de elevada e rara qualidade terá contribuído grandemente a granulometria e grau de consolidação dos sedimentos contemporâneos da actividade dos organismos produtores das pistas, em íntima relação com as condições paleoambientais reinantes. Todavia, a exposição dos icnofósseis em grandes lajes foi favorecida pela estruturação tectónica de toda a sequência, a qual terá verticalizado as camadas sedimentares, combinada com o encaixe do Rio Ponsul paralelamente à direcção das camadas, resultando numa garganta rochosa sem coberto vegetal importante nem uma camada espessa de solo a esconder e deteriorar as ocorrências fossilíferas. Deste modo, é possível analisar as superfícies das camadas em ambas as vertentes do vale do Ponsul, ao longo de quase toda a sequência, como quem espreita, uma a uma, todas as páginas de um livro. Consideramos, após conhecimento sistemático de todas as cristas quartzíticas portuguesas (Neto de Carvalho, in prep.), que as condições de preservação dos icnofósseis de Penha Garcia são únicas em Portugal e apresentam elevada raridade a nível mundial. Critério paleoecológico A diversidade de icnofósseis presente na sequência de Penha Garcia permite inferir um conhe-

cimento mais aprofundado dos ecossistemas marinhos bentónicos, característicos da plataforma continental, datados de há mais de 480 milhões de anos. Os icnofósseis permitem determinar o modo de vida das comunidades bióticas e suas adaptações às variações ambientais, como sejam as modificações da composição do substrato face à espessura da coluna de água e à acção das frequentes tempestades que assolavam os fundos marinhos. Nestas associações de icnofósseis é possível estudar a ecologia de organismos sem estruturas esqueléticas mineralizadas, o que lhes confere um baixo potencial de fossilização. Na condição citada encontram-se igualmente os órgãos da zona ventral, incluindo o aparelho locomotor das trilobites, cuja morfologia, modo de funcionamento e aplicações podem ser conhecidas a partir dos diversos icnofósseis atribuídos a este grupo de organismos. Critérios educativos Potencial pedagógico A qualidade de exposição dos afloramentos e os excelentes exemplos de estruturas geológicas observáveis nos blocos que constituem o PR3-Rota dos Fósseis e em afloramento (descritos num roteiro, caso a caso, em capítulo próprio), conferem a este circuito paleoicnológico/geológico um interesse singular na divulgação e sensibilização do grande público para as Geociências. Potencial didáctico O circuito geológico, de ampla acessibilidade aos pontos de maior interesse, apresenta grandes potencialidades em actividades lectivas de campo, passíveis de serem ajustadas a qualquer grau de ensino. Os alunos poderão aprender os conceitos básicos de Geologia e da Paleontologia a partir, por exemplo, da observação das características morfológicas dos icnofósseis e da caracterização das rochas associadas, estruturas sedimentares, tectónicas e geomorfológicas. Poderão ainda relacionar a Geologia com as práticas milenares de aproveitamento dos georrecursos (castelo medieval para defesa, a unidade moageira do Rio Ponsul para a produção de farinha). Estas observações no campo estimularão não só um desenvolvimento

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a nível cognitivo e sócio-afectivo, como também sensibilizarão o aluno para a defesa e preservação de um património natural e etnográfico que deverá ser considerado seu (educação para a cidadania). O circuito geológico encontra-se disponível durante o ano inteiro, permitindo visitas de índole científico-cultural (Geoturismo), as quais poderão incidir sobre o estudo dos icnofósseis, sua interpretação etológica e extrapolações para o conhecimento da evolução da vida nos primeiros estádios de radiação morfológica e comportamental. É possível ainda apreender conceitos ao nível das Ciências da Terra a partir de exemplos elucidativos e, por vezes, espectaculares e únicos. Poder-se-á relacionar as propriedades físicas das rochas quartzíticas com a sua popular utilização como material de construção dos moinhos junto do rio, recentemente reconstruídas, assim como do castelo e das casas tradicionais da vila. No âmbito deste critério e a título exemplificativo desenvolveu-se, no evento da Geologia no Verão 2001 - uma iniciativa à escala nacional, e com grande sucesso, do Ministério da Ciência e Tecnologia -, um conjunto de excursões turístico-científicas à Via Icnológica do vale do Ponsul e a Penha Garcia, sob a coordenação científica conjunta de elementos do Centro de Geologia da Universidade de Lisboa, do Museu, Laboratório e

Jardim Botânico da Universidade de Lisboa e da Associação de Defesa e Desenvolvimento da Serra da Gardunha (Neto de Carvalho et al. 2001). Estas excursões, abertas ao público, trouxeram à região dezenas de pessoas de diversos pontos do país (Fig. 11). Critérios culturais Valor histórico A série quartzítica de Penha Garcia é considerada uma jazida paleontológica clássica, conhecida e estudada desde os trabalhos pioneiros de Nery Delgado (Delgado, 1885). Um século mais tarde, o geólogo inglês Ronald Goldring provou a formação intra-estratal dos icnofósseis do tipo Cruziana, os quais reflectem o comportamento de alimentação manifestado pelas trilobites, tendo para tal seccionado e radiografado, entre outras, algumas amostras provenientes de Penha Garcia (Goldring, 1985). Este trabalho contribuiu para “arrefecer” uma longa e por vezes acesa discussão entre reputados especialistas que se dedicam ao estudo do modo de vida das trilobites, um grande grupo de artrópodes há muito extinto. Os resultados obtidos por este autor permitiram um conhecimento mais profundo dos mecanismos biológicos que permitiram às trilobites e a outros artrópodes morfologicamente homólogos realizar estruturas do tipo Cruziana. Desta forma, a jazida deverá ser considerada um marco na história da Paleontologia portuguesa e internacional.

Fig. 11 – Exemplo do interesse demonstrado pelos icnofósseis de Penha Garcia durante a Geologia no Verão’01.


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Valor espiritual A expressão popular Cobra Pintada utilizada em Penha Garcia para designar algumas estruturas do tipo Cruziana parece ser muito antiga e pode ser relacionável com a designação Bicha Pintada de Vila de Rei, estrutura de origem biológica anteriormente interpretada como símbolo de culto ofiolátrico Celta (Neto de Carvalho et al. 1999, 2000). O verdadeiro significado socio-etimológico (antropológico) destas variantes e o seu alcance geográfico encontram-se em fase de rasteio.

mio Crafoord 1992, pela Academia de Ciências da Suécia), a qual teve como principal objectivo realizar moldes em látex de lajes com icnofósseis para a sua exposição internacional itinerante Fossil Art, tendo quatro destes sido exibidos no Japão em 2001 (Seilacher, 2001: 30-31) e em Porto Alegre, Brasil, no ano transacto (Seilacher, 2003: 40-41).

Quanto à protecção e preservação destes espaços e estruturas geológicas, o circuito PR3-Rota dos Fósseis apresenta características quase singulares em O circuito paleontológico/geológico/etnográfico Portugal. É comum encontrar a frase “É PROIde Penha Garcia encontra-se inserido numa área BIDO DANIFICAR OS FÓSSEIS” escrita junto de grande valor patrimonial histórico. Esta po- de alguns focos de interesse. É frequente a popuvoação enquadra-se na medieval linha defensiva lação local, pessoas simples mas sensibilizadas há da fronteira beirã, hoje em dia um circuito mo- muito para a preservação de um legado patrimonumental, de onde se poderão destacar, pela sua nial que considera seu, indicar espaços onde se relevância e proximidade, as povoações de Ida- podem encontrar icnofósseis em maior quantinha-a-Velha, Monsanto e Penamacor. A utiliza- dade, deixando sempre a advertência “há ali muição dos quartzitos como fonte de matéria-prima tas pedras…mas não leve as pedras de cá…”. Este para construção data nesta região, pelo menos, é um caso único num país que só agora “acorda” da construção do castro lusitano precedente ao para as elevadas potencialidades do seu patrimócastelo medieval de Penha Garcia. Em toda a po- nio natural, ainda que algo delapidado pela devoação ainda hoje se denota a tipologia litológica gradação que tem vindo a sofrer através de actos do substrato onde foram implantadas as primi- vergonhosos, alguns com a “bênção” de entidades tivas habitações, os resguardos para os animais e estatais. Contra o abandono e destruição, o vale as edificações comunitárias. Esta prática, presen- do Ponsul e os seus icnofósseis contam actualtemente em declínio, de construção com blocos mente com a vigilância intensa do Sr. Domingos, quartzíticos e com lajes de quartzitos com icnofuncionário da autarquia que acompanha atenfósseis, comporta uma dimensão cultural, passítamente os visitantes e impede, não raramente, vel de ser compreendida à medida que se vagueia a acção furtiva de colectores maioritariamente pelas ruas de Penha Garcia e, sobretudo, quando se realiza o circuito geológico que desce ao vale do oriundos de Espanha. Rio Ponsul. Estes cumes fragosos que deram protecção duNeste espaço natural que é o vale do Rio Pon- rante milénios a populações receosas pela perda sul, onde as Ciências da Terra podem ser estu- das suas vidas e dos seus poucos haveres, vêem-se dadas da melhor forma, quer seja ao nível básico nesta era de crescente progresso, quando Lisboa e secundário ou ao nível universitário, com ex- se encontra apenas a uma distância de 3 horas por celentes exemplos de fácil compreensão, e onde auto-estrada, quase destituídos de uma populaexistem evidências singulares de formas de vida ção cada vez mais envelhecida, face a um modo de de há cerca de 480 milhões de anos, urge fazer vida rude e de poucas oportunidades. Contudo, algo mais de forma a dar a conhecer e a dinami- e mais uma vez, a solução para a desertificação zar esta verdadeira e monumental sala de aula em humana nesta região pode passar pelo aproveitaplena Natureza. O seu crescente interesse cientí- mento turístico-cultural das construções monufico encontra-se bem patente nas iniciativas de- mentais e dos espaços naturais inerentes às cristas senvolvidas em 2001 no âmbito da Geologia no quartzíticas escarpadas e à profunda garganta do Verão acima referidas e na recente visita a Penha Rio Ponsul, onde a um cenário idílico se acresce Garcia da equipa de trabalho do eminente Pale- uma imensa base de informação científica (geoontólogo alemão, Prof. Dr. Adolf Seilacher (Pré- lógica e biológica) e cultural.

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Agradecimentos O autor agradece o reconhecimento da importância do património geológico de Penha Garcia pela ProGeo-Portugal que, associada à National Geographic Portugal, atribuiu em 2004 o Prémio Geoconservação à Câmara Municipal de Idanha-a-Nova. Bibliografia Bromley, R. G. (1990) - Trace Fossils. Biology, Taphonomy and Applications. Chapman & Hall, London, 361 p.

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Anexo Roteiro do Parque Icnológico de Penha Garcia com inventário dos bens de interesse geológico, paleontológico, arqueológico e etnográfico no perímetro em classificação O percurso pedestre PR3 – Rota dos Fósseis iniciase no Largo do Chão da Igreja. Existe parque de estacionamento, sanitários públicos, parque infantil, centro de reciclagem e placa explicativa do percurso com mapa. O caminho, quase sempre muito bem indicado, sobe na direcção da Rua do Espírito Santo, passando à esquerda da alva capela. Esta rua vai desembocar no Largo das Portas da Vila, com fonte, forno comunitário e a antiga placa de madeira que indicava o percurso para os fósseis. O circuito faz-se agora pela Rua da Praça, por entre casas de paredes quartzíticas. Esta rua espraia-se um pouco na Travessa do Canto do Pelourinho. Antigo símbolo da autonomia municipal perdida para Idanha, o pelourinho de Penha Garcia é sebastianista. O percurso aumenta de declive na Rua do Pelourinho até atingir o Largo da Igreja, onde se situa a Igreja matriz. Aqui existe mais uma placa com indicações dos percursos pedestres e da escola de escalada, outro aproveitamento turístico dos quartzitos. A Igreja matriz guarda uma Virgem do Leite, imagem em Pedra de Ançã, esculpida pelo mestre João Afonso em 1469. Estação 1 Mirante sobre a garganta do Vale do Ponsul. O canhão fluvial do Rio Ponsul resulta da erosão provocada pelo encaixe epigénico do rio, força motriz dos moinhos construídos no seu leito. Pode observar-se grande parte da sequência estratigráfica da Formação do Quartzito Armoricano ao longo das vertentes íngremes do canhão fluvial, assim como os dois flancos quartzíticos da dobra sinclinal de Salvador-Penha Garcia-Termas de Monfortinho, no centro da qual se situam as unidades xistentas suprajacentes à sequência quartzítica.

Estação 2 Junto da placa indicativa do PR3, existe fraga de quartzito composta por 7 espessas camadas, de cor cinza-amarelada, com planos bem definidos mas ondulados, muito fracturadas e recristalizadas, de atitude S0 =N30ºW, 62ºNE. Esta sequência é cortada por falha com preenchimento quartzoso F1= N56ºW, ~40ºSW, sendo intersectada por fractura que vem do castelo F2= N80ºE, 40ºSW.

Ao longo da escadaria do castelo, são abundantes os icnofósseis de Cruziana, seja em formas côncavas preenchidas por sedimento de composição distinta da matriz, seja em formas convexas. Pequenos bancos e muretes convidam ao descanso e à contemplação da paisagem sobre o núcleo da dobra e as sequências quartzíticas, seja sobre a Superfície de aplanação poligénica de Castelo Branco.

Estação 3

Magníficos icnofósseis podem ser encontrados no último muro das escadas de acesso à porta Sul do castelo, assim como no início do corO percurso prolonga-se pelas escadarias do cas- rimão do lado ditelo. Desde logo se vêm icnofósseis nas primeiras reito, com formas pedras que encimam o muro do mirante (peque- de origens divernas Cruziana e Daedalus seccionados pelo plano de sas, colocadas aí estratificação, em preservação do tipo Humilis). de propósito.


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Estação 4 Ruínas do castelo medieval, sobranceiro ao povoado, todo ele construído em quartzito, aproveitando as camadas quartzíticas para melhorar as defesas. As ruínas do castelo medieval, para além do seu interesse histórico-arqueológico, são um belo mirante geomorfológico sobre a crista quartzítica do flanco Norte do sinclinal, o núcleo xistento e afundado do sinclinal, a Superfície de Aplanação de Castelo Branco, os Inselberge de Monsanto-Moreirinha, ao fundo a Cordilheira Central (Serra da Estrela) e os relevos residuais de dureza da Murracha, Murrachinha e de Pedras Ninhas, sobre a linha da Falha do Ponsul.

resultar de erosão provocada por nascentes agora extintas. As rochas apresentam coloração negra nas zonas menos expostas e para o interior da lapa, desaparecendo junto da densa rede de diaclases. Resulta de intensa precipitação de óxidos de manganês. A surgência fica numa zona de falha com intensa fracturação N20ºE, sendo algumas destas falhas preenchidas por veios de quartzo leitoso. Estação 6 Filão de quartzo leitoso com cristais zonados e orientação N70ºW. Por vezes, apresenta agregados de goethite.

Sai-se pela porta Norte por escadaria que desce, com muitos icnofósseis, alguns deles delicadamente preservados. Observa-se bairro tradicional de casas quartzíticas e muretes afeiçoados às possantes camadas quartzíticas. Vira-se à direita para a Rua da Lapa, que desce a calçada em quartzito que vai na direcção da Barragem. O caminho calcetado, a agora denominada Via Icnológica, percorre as camadas quase perpendicularmente, desde a parte inferior à parte superior da Formação do Quartzito Armoricano, na Barragem. É como subir na escala do tempo geológico, permitindo observar as sucessivas modificações paleoambientais.

Estação 7

Projecção rochosa com níveis decimétricos de quartzitos em alternância com silto-argilitos laEstação 5 minados cinzentos alterados para vermelho, com Lapa do Castelo. Logo à entrada do espaço recen- Cruziana goldfussi irregularmente meandrizante, temente intervencionado, encontra-se colocada fazendo semi-círculos ou dispondo-se de modo no muro grande Cruziana furcifera cortada por tubos quase rectilíneo. Pela largura homogénea, foi verticais de Skolithos. O chão do novo espaço en- produzida por um único organismo. Estes níveis contra-se coberto por lajes de grauvaque do Gru- são cortados por Monocraterion. Ocorrem algumas po das Beiras, extrínsecas ao local. A lapa parece camadas com a superfície coberta com fendas de

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sinérese. Num nível micáceo, 10cm acima, observa-se Diplichnites (Fig. 4B). Plano de falha a cortar série estratificada: F= N42ºW, 16ºSW, com estrias e esquírolas a dar sentido de movimento para NW.

torno dos 45mm), o que indica um único produtor. As pistas são atravessadas por galerias verticais do tipo Monocraterion. Acima da placa onde se lê “é proibido danificar os fósseis” vê-se rocha solta com Monocraterion, outras lajes com Cruziana, uma delas tombada com C. furcifera com inflexão teichichnóide. 2m para a esquerda, laje caída com Estação 8 “circling behavior” em C. furcifera-goldfussi dextrógiro e 5m mais à frente, do lado esquerdo, comprida sinistrógiro. laje quartzítica com marcas de ondulação simétricas (ripples de onda) que indicam direcção de paleocorrentes NE-SW. Nos planos perpendiculares aos planos de camada vê-se laminações horizontais, comum no membro médio xistento da sequência de Penha Garcia. Bem próximo vê-se outro exemplo de ripples de onda, mas com direcção NNE-SSW. Estação 9 Junto da curva em cotovelo à direita. Várias Cruziana furcifera com lobo central, em epirrelevo côncavo, formando arcos, com preenchimento siltítico da camada sobrejacente, a cortar plano com ripples de corrente assimétricas a dar sentido para NNW. Estação 10 Numerosas lajes na calçada com icnofósseis, como galerias de vermiformes e Cruziana em epirrelevo côncavo e hiporrelevo convexo, o que sugere que Estação 11 estas estruturas seriam galerias produzidas no inBerma do caminho à direita. 2 grandes lajes serterior dos sedimentos. viram para construir calçada, com preservação Laje solta com as clássicas “cobras pintadas”, for- magnífica de grandes C. rugosa e de pequenas C. mas intermédias C. furcifera-goldfussi mal preserva- goldfussi, ambas mostrando comportamento linedas, revelando comportamento sinuosoidal, leve- ar, inseridas num contexto de elevada bioturbamente meandriforme, com incremento dimen- ção no plano de camada por pequenas C. furcifera sional por mudança de nível ocupacional. Apenas curvilíneas (Fig. 3A). C. goldfussi de 26mm de larestá representada uma dimensão de largura (em gura e prolonga-se de uma forma rectilínea qua-


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se perfeita por 104cm, estando fracturada dos dois lados. O mesmo acontece com C. rugosa que se prolonga por 130cm, tendo 95mm de largo. Durante o percurso, a Cruziana mergulha em U, aumentando em largura para 115mm e tem, por vezes, marcas do lobo genal. A laje encontra-se totalmente bioturbada no plano de camada por Cruziana de várias dimensões que se entrecruzam com muita frequência. Ocorrem as 4 icnoespécies do grupo Cruziana rugosa (incluindo C. rouaulti) mais um Rusophycus (escavação vertical produzida por trilobites). Existem várias inflexões apertadas e várias estruturas a promover círculos passando da preservação goldfussi para furcifera. O Rusophycus tem 32mm de largura por 40mm de comprimento. Embora as Cruziana sejam muito abundantes existem apenas 2 medidas para as larguras de C. furcifera-C. goldfussi e apenas 1 medida para C. rugosa. À esquerda, desenvolvem-se em afloramento dobras nos níveis xisto-quartzíticos finos, que começam por verticalizar ou inverter a inclinação, desenvolvendo logo a seguir complicadas dobras vergentes para NNE, com planos axiais N50ºW. Estas foram geradas durante a formação da grande dobra de Penha Garcia, devido às camadas de quartzitos com espessura métrica imediatamente sobrejacentes que serviram como barreira de dureza. São dobras de arrasto de uma falha normal WNW-ESE (aqui denominada Falha da Barragem) com componente vertical de movimento normal e subida do bloco N. Para ESE esta falha vai gerar mais dobras de arrasto no topo do membro xistento. A deformação em regime frágil gerou a fracturação observada nas camadas quartzíticas inferiores do membro superior segundo dois planos ortogonais, o que dá origem aos blocos prismáticos que ocorrem na continuação da falha para oriente. Pode encurtar-se o PR3, se descer para o rio à direita até à ponte de madeira e depois subir pelos moinhos.

suem depressão central, o que demonstra que a ponta genal correspondente deveria ser convexa. No muro do lado direito existe bloco com pista que tem marca do cefalão, lobo em crescente transverso à estrutura com início nos lobos genais e deformação na zona central. Pode ter sido produzido pela trilobite Neseuretus devido a apresentar marca de doblura cefálica fortemente convexa. Estação 13 Rabiscos de Daedalus (preservação Humilis) na calçada, um pouco depois de passar o grande afloramento de camadas quartzíticas métricas verticalizadas. Estação 14 Passada a barragem, segue-se vereda à esquerda por 20m que sai do percurso principal, até zona plana entre duas fragas. A laje central apresenta rara Merostomichnites assim como Arenicolites (Fig. 5A). Arenicolites tem um preenchimento que difere da matriz e o plano de estratificação corta apenas as bases das estruturas o que indica a profundidade no sedimento atingida por todas as restantes formas etológicas. Estas galerias em U podem mostrar spreite (distúrbio sedimentar) entre as porções verticais das galerias, o que as identifica como gradações para Diplocraterion. As estruturas Arenicolites-Diplocraterion mostram orientação preferencial e chegam a entrecruzar-se. Existe ainda Cruziana em epirrelevo côncavo preenchidas e sub-impressões de C. furcifera. Por detrás desta fraga são comuns as C. furcifera e C. goldfussi rectilíneas e curvas para além de camadas com estruturas HCS (tempestitos), visíveis se se seguir o caminho sinuoso que volta ao PR3. Existe ainda C. rugosa em U, secções verticais de Arenicolites formando pares de pontuações. Uma das camadas apresenta ripples de onda que indicam direcção de paleocorrentes NE-SW. Existe uma camada com circling behavior sinistrógiro de Cruziana goldfussi. Por fim, no canto esquerdo do afloramento ocorre C. furcifera que corta várias laminações, mantendo o estilo preservacional.

Estações 12 Junto da ponte, no muro à direita, foram colo- Estação 15 cadas diversas lajes com Cruziana, com algumas Seguindo pela calçada, encontram-se belas Crudas maiores pistas descobertas. Trata-se de uma ziana furcifera e C. rugosa em epirrelevo côncavo, as grande C. rugosa com 26cm de largura, que é ca- quais resultam de um efeito de carimbo da comracterizada por apresentar lobos genais que pos- pacção diagenética-tectónica.

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Estação 16 Bases de camada à direita e ligeiramente abaixo da estação 14, com piperock de Skolithos assim como Monocraterion em nível pouco bioturbado.

venientes do membro superior da Formação do Quartzito Armoricano, resultado da actuação da Falha da Barragem sobre a rede ortogonal de diaclases que corta os quartzitos.

O trilho passa pelo núcleo de moinhos correspondente à unidade moageira mais importante do concelho Idanha-a-Nova pelo número de edifícios que acompanham o Ponsul ao longo do canhão fluvial e pelo elevado estado de preservação e de acesso ao grande público. Encontra-se perfeitamente adaptado à geologia local. Junto, amontoado caótico de blocos quartzíticos pro-

Estação 17 Na primeira casa de quartzito à esquerda do caminho, existe uma grande laje na parede que mostra fendas de sinérese e outra com Monocraterion. À volta da casa existe unidade xisto-quartzítica com vários níveis com fendas de sinérese, sobretudo no afloramento que está por detrás da casa. Um nível tem ripples simétricas a dar orientação das paleocorrentes NNE-SSW. Nesta zona mostram-se as duas fragas com mais lajes com icnofósseis in situ encontradas na região de Penha Garcia, separadas por linha de água, ao fundo do qual se desenvolve um pequeno prado sustentado por muros tradicionais de quartzito. Estação 18 A seguir à piscina fluvial, logo à esquerda do percurso, ocorrem numerosas lajes in situ com a clássica Cruziana furcifera em circling behavior (Fig. 3C), para além de níveis com fendas de sinérese. Uma laje próxima apresenta C. goldfussi e C. furcifera formando quase um círculo. Corresponde à laje em que Cruziana ocorre marcada com tinta preta. 5m acima desta laje ocorre nível com numerosas galerias horizontais de vermes (Palaeophycus) apresentando um forte índice de bioturbação no plano de camada. Algumas lajes deste percurso terão sido sinalizadas com tinta no início da década de 80. Aqui a sequência está dobrada (dobra secundária) em antiforma com vergência para NE. Estação 19 Logo após sair da zona da fraga, por debaixo de um sobreiral. Grandes Cruziana rugosa, apresentando uma das melhores preservações registadas a nível mundial (Seilacher, comun. pessoal). O modo de formação de Cruziana requere argilas tixotrópicas ou com coesão microbiana e diagénese diferencial para que se produza o “efeito de carimbo” ou sub-impressão. As elevadas dimensões das 13 C. rugosa mostram que esta seria produzida por organismo ou espécie de maiores dimensões que as C. furcifera e C. goldfussi. As C. rugosa cortam e são cortadas por marcas de vermes. A camada mantém as características de bioturbação intensa


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cortadas por Monocraterion, o que significa que estes seriam pós-deposicionais. Junto da fonte datada de 1919 encontram-se grandes planos de camada com ripples de onda que dão orientação NW-SE. Passa-se à direita de pequena mesa onde se pode merendar junto do rio e de moinho em funcionamento, por dentro do qual se passa. O caminho segue junto à margem direita do rio, passando por moinhos e passadiços feitos com troncos, seguindo a levada. O caminho vira à direita numa casa e volta novamente à direita para começar a subir, voltando na 1ª à esquerda ao longo de um sobreiral. O caminho volta a inflectir para a direita na casa nº 4. Estação 22 próximo da casa nº 1 existe pequeno afloramento com níveis metargilíticos amarelo-rosados correspondentes aos depósitos turbidíticos do Grupo das Beiras, imediatamente infrajacentes e em discordância angular, com a Formação do Quartzito Armoricano.

por 5m. É um nível de quartzito com 10cm de espessura, cuja camada infrajacente é um siltoargilito micáceo cinzento-azulado com 20cm de espessura, numa sequência com alternâncias rítmicas; os topos das camadas quartzíticas apresentam-se ondulados e com laminações horizontais ou HCS. Pequena falha inversa N30ºE, inclinada, com dobra de arrasto, a cortar o afloramento. O percurso atravessa o rio segundo uma técnica ancestral, de pedra em pedra (as poldras), junto da cascata da piscina fluvial produzida pela abertura da levada de moinho. Estação 20 No topo do caminho, junto de grande bloco quartzítico, bela panorâmica sobre a sequência monoclinal, aqui e além complicada por apertadas dobras secundárias que se vêem sobretudo nas porções heterolíticas finas. Estação 21 Na base rochosa de casa, à esquerda de caminho sinuoso, junto da figueira, belas ripples de onda

O caminho volta a intersectar a Avenida Joaquim Lopes Dias para virar logo à esquerda, subindo na direcção da igreja, através de escadaria suave com bela perspectiva à direita sobre o membro médio da Formação do Quartzito Armoricano. Estação 23 O afloramento quartzítico encontra-se bastante fracturado, indiciando a presença de falha importante com possível orientação E-W, inclinando para S. A escadaria da Rua do Reduto vai dar novamente ao Mirante da Igreja. Estação 24 Pouco mais à frente da estação 17 existe fraga com vários níveis bioturbados. Perto do topo vê-se a grande laje com C. rugosa orientadas. Na base, ripples de onda indicando direcção NNE-SSW. Numerosas lajes in situ com ripples. Cruziana sinuosoidal (Laje 6) ou curvilíneas, dispostas em camadas como um livro rabiscado entreaberto. Próximo da estação 17, nas unidades à esquerda da furda, ripples a dar direcção NE-SW em quatro níveis, sendo que outros três níveis dão orientação NNW-SSE. Na base, camada quartzítica com HCS e abundantes Daedalus halli.

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Estação 25 No caminho pedonal junto da albufeira da Barragem, observa-se a transição gradual da Formação do Quartzito Armoricano para a Formação de Brejo Fundeiro. A atitude das camadas é aqui S0=(N32ºW, 76ºNE). Estação 26 Grande laje solta com Daedalus a cortar estruturas HCS nos dois estilos preservacionais em associação (tipo normal e tipo Humilis). Logo abaixo observam-se em afloramento base de camada com fendas de sinérese. Estação 27 Afloramento com numerosos níveis HCS, Humilis, fendas de sinérese e, eventualmente, Skolithos. Ripples de onda dão direcção das paleocorrentes NNE-SSW. Fractura com direcção E-W, possivelmente com movimento vertical atendendo à formação de dois blocos desnivelados. Os níveis tempestíticos com Daedalus são muito frequentes no membro médio e isto vê-se muito bem neste sector. Estação 28 Níveis com várias C. rugosa e C. furcifera. São estruturas de várias dimensões, produzidas por organismos em vários estádios de desenvolvimento, alimentando-se com comportamentos muito se- tra em C. rugosa deslocando-se no sentido invermelhantes. so que, por sua vez, é penetrada por pequena C. furcifera deslocando-se no mesmo sentido. Estas Estação 29 estruturas cortam e são cortadas por galerias de Magnífica laje onde se mostra a interacção de Cru- vermes com 9mm de diâmetro com anelações ziana rugosa com galerias de vermes. São cerca de 42 transversas. Observa-se ainda C. goldfussi a cortar grandes C. rugosa. No lado direito desta laje ocorre C. rugosa onde se vê marca genal no lado esquerdo uma C. rouaulti apenas com 2mm de largo. Exis- da pista. tem algumas fendas de sinérese. A maior parte das marcas de vermes são oblíquas ou paralelas Estação 30 ao curso de Cruziana. As marcas de vermes mudam Circling behavior em C. furcifera a fazer quase um círfrequentemente de nível ocupacional, assim como culo fechado. Encontra-se mal preservada. C. rugosa. Uma das galerias vermiformes mostra um tipo diferente de constrições peristálticas, Estação 31 com espaçamento de quase 10mm e abaulamen- Nível com Palaeophycus pouco sinuosos, de diâmetro tos, o que poderá indicar retrocesso pela mesma regular de 3mm e extensões decimétricas desendirecção. volvidas no mesmo plano ocupacional. A camada Os campos de pasto para as trilobites seriam em que lhe sucede é dominada por Daedalus halli que se áreas pontuais, atendendo à distribuição agre- mostra incompleta, pois corta normalmente vágada de Cruziana. Outra laje, cerca de 2m abaixo rias camadas mas é truncada pela camada sobreda anterior, é composta por C. furcifera que pene- jacente. Podem ocorrer em níveis com espessura


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de várias dezenas de metros, entre a crista, mais elevada, e o Vale das Casas. O ressalto morfológico prolonga-se para SE pela Barroca do Tendeiro até ao Pinhal do António Paulo, chegando aqui a deslocar a crista do Carvalhal. Belo mirante sobre toda a garganta do Ponsul, observando-se numerosas dobras secundárias na sequência quartzítica. Local com colmeias típicas, em casca de sobreiro. inferior a 20cm. Um pouco abaixo, nível siltítico onde, num pequeno espaço, se observam estruturas enrugadas (wrinkle structures). Estas tendem a ocorrer ocasionalmente no membro médio da Formação e correspondem à actuação de correntes de fundo no mar ordovícico sobre um nível de areia coeso por acção bacteriana. Estação 32 Falha com direcção N34ºE, vertical, com caixa preenchida com brecha de falha de 1m de espessura, apresentando cimento ferruginoso e vacúolos preenchidos com goethite. A partir desta falha, as camadas inflectem de direcção, tornandose muito irregulares até à perda da definição de planos de camada, devido a intensa fracturação e recristalização.

Estação 34 Grande bloco tombado da crista para o rio, encontrando-se invertido no seu leito. C. rugosa fazendo dois U ao longo do seu percurso, com grande variação dimensional em função da profundidade alcançada (passa de 111mm para 124mm). C. furcifera aparece aqui a fazer 3 arcos, com uma largura idêntica. Estação 35 Topo de camada junto ao solo com fracturas mostrando dendrites ferruginosas, raros Daedalus, fendas en échelon a dar cisalhamento direito com a direcção N28ºW e fracturação posterior ortogonal com fendas a dar cisalhamento esquerdo.

Estação 33 A discordância entre a Formação do Quartzito Armoricano e o Grupo das Beiras parece ser aqui de natureza tectónica, por falha de desligamento esquerdo, com orientação N70ºW. A falha é importante visto a deformação fazer-se sentir numa faixa de mais de 50m de espessura, sendo ainda discernível pelo ressalto na paisagem, na ordem

Estação 36 Grande exposição de base de camada com ripples de onda em nível quartzítico métrico do membro inferior, a dar orientação das paleocorrentes NE-SW. 2 falhas paralelas ( direcções N86ºW, 70ºSW) na vertente que sobe para o mirante. Estação 37 Dobras apertadas com vergência para N.

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tar, resultante da formação em ambiente litoral sob acção constante das ondas. Ocupa uma área de cerca de 3m numa extensão em largura maior máxima de 2m. Estação 42 Falha normal N38ºE, com dobras de arrasto e intensa fracturação dos quartzitos a dar o sentido de movimento. Estação 43 Galerias de vermes extensas (Palaeophycus) que se Estação 38 entrecruzam e bonitas fendas de sinérese subRusophycus muito pequenos. Podem encontrar-se prismáticas. Gruta paralela ao plano de camamuitos calhaus com icnofósseis a atapetar o chão. da resultante da exsurgência de antiga nascente Monocraterion com auréola de deformação sedimen- onde se observam 2 planos de diaclases que geram pequenos paralelipípedos nos níveis psamíticos. tar envolvente. Existem dentro desta gruta pelo menos 4 grandes Estação 39 C. rugosa. Geode com cristais euédricos de quartzo hialino em veio de quartzo leitoso com a atitude N54ºW, localizado em pleno caminho que liga os moinhos à E.M. 1275. Estação 40 Monocraterion apresentando uma auréola de deformação sedimentar (em positivo seria uma depressão em torno da galeria), com alguns Daedalus e Cruziana mal preservadas. Observam-se igualmente galerias sem auréolas atribuíveis a Skolithos. Pode existir relação genética entre Skolithos e Monocraterion, constituindo o primeiro icnogénero secção transversal dado em nível mais profundo que Monocraterion. Sendo os topos das camadas erosivos é difícil ter a certeza absoluta desta afirmação. Ripples de corrente a dar sentido das paleocorrentes para NNW. O percurso ao longo do membro superior, sempre a subir e passando ao longo das vias de escalada, apresenta belas paisagens sobre o núcleo do sinclinal e aspectos de caos de blocos nos quartzitos com fracturação provocada por dois planos principais. Estação 41 Estrutura pouco preservada em sequência de quartzitos puros, métricos, unilobada, com padrão scribbling ou circling característico de Cruziana. Toda a camada se encontra bioturbada por Skolithos. A pouca preservação deve ser sinsedimen-

Estação 44 Falha inversa WSW-ENE evidenciada pela brechificação intensa dos quartzitos. O seu movimento pode ser observado no PR3, no 1º cotovelo do caminho à direita, a seguir à lapa do castelo. Ocorrem aqui várias exsurgências. Próximo, existem veios de quartzo leitoso com cerca de 50cm de espessura. Estação 45 Junto do nº7 da Rua da Lapa existe afloramento de quartzitos deformados muito próximos do Grupo das Beiras (contacto das duas unidades por falha?). Estação 46 Grande laje com mais de 15m de altura que é atravessada por fractura N56ºE, sub-vertical. Esta fa-


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se, algumas formando scribbles após percursos rectilíneos de mais de 50cm. Observam-se ainda estruturas HCS. No prolongamento de algumas C. goldfussi ocorrem Rusophycus por aprofundamento da estrutura. Predomina C. goldfussi sobre C. furcilha é posterior à fracturação no plano de camada fera. Observam-se ainda algumas raras galerias de N-S. Em redor da falha mostram-se abundantes vermes. A colonização pelo produtor de C. rugosa estruturas espiraladas. Terá uma origem bioglíparece ser pioneira em relação às restantes estrufica ou tectónica? As estruturas dispõem-se em porções da camada, de uma forma heterogénea. turas (indiciando comunidades diferentes). Dá a ideia que foram actuadas por movimentos ao Estação 48 longo dos planos da camada. O preenchimento Numa placa caída, observam-se 2 Cruziana furcifenão difere da matriz. ra com a mesma largura (46mm) mostrando um Estação 47 comportamento teichichnóide em curva que termina “Pala das Cobras Pintadas”. Conjunto de 3 na parte mais profunda (zona de inflexão) com grandes placas invertidas. Uma das lajes mostra marca de verme na zona do sulco central, com 10 uma perfuração circular com 10cm de diâme- e 11mm de diâmetro, em interacção com o bortro, o que indica acção do Homem na disposição do direito e bordo esquerdo da estrutura. Não se das lajes. Uma camada in situ mostra a tecto ripples sabe quem é que corta quem mas é curioso a prolinguóides cortadas por Cruziana em galerias con- cura da paralelização entre as estruturas, levando vexas unilobadas e intrastratais, mostrando que a inflexões apertadas. Grande Cruziana rugosa com estas estruturas seriam produzidas no interior duas marcas genais. Os lobos genais possuem dos sedimentos. O índice de bioturbação nestas 14mm de lado. placas vai de IB3 a IB5, em zona de 12m2. Aqui está presente todo o grupo-rugosa a entrecruzarEstação 49 Grandes e numerosas Cruziana rugosa e algumas C. furcifera e C. goldfussi em interacção com algumas galerias de vermes. Aparece ainda Diplichnites, um pouco mais acima, com 15mm de largura do trilho. Estação 50 Gigantescas C. rugosa em interacção com galerias vermiformes de 10mm de diâmetro com constrições anelares. Sendo cilíndricas, não mostram evidências de deformação tectónica/diagenética.

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Estação 55 Estação 51 Base de camada com fendas de sinérese e pseu- Laje 24. Base de camada com abundantes scribbles do-nódulos. Interacção de galeria de verme com apertados de C. rouaulti. Ocorrem ainda algumas sulco axial de C. rugosa. Esta sequência de 2m de estruturas do icnogénero Helminthoidichnites com espessura possui ainda camada muito bioturbada 1mm de diâmetro ou inferior. A laje é atravessada com C. rouaulti de 2 a 7mm de largura, produzindo por alguns Daedalus. Esta camada tem mais de 4m abundantes scribbling traces. de extensão mas a bioturbação só é distinguível em 2m. É a melhor laje com C. rouaulti observada Estação 52 pelo autor em Portugal. Os níveis onde aparece Laje 21. Numerosas C. furcifera semi-circulares apenas C. rouaulti seriam “escolas” como acontece com 1 C. rugosa contemporânea. A laje tem 3x1m. com alguns crustáceos. Ripples de corrente a dar sentido das paleocorrentes para N.

Estação 53 Compridos Skolithos linearis (decimétricos) em camadas métricas de quartzito, junto dos muros do bairro tradicional. Estação 54 C. furcifera em mudança progressiva de nível ocupacional ficando só um lobo visível até desaparecer. Na transição apresenta a morfologia típica de C. rugosa. Em laje situada 5m acima na sequência mostram-se pequenas C. rugosa muito bem preservadas com lobos marginais, indícios de relação genética com o resto do grupo C. rugosa. O espaçamento entre crenulações é muito apertado. São cortadas por fendas de sinérese e por finas galerias de vermes com 2mm de diâmetro.

Estação 56 Nos níveis centimétricos a milimétricos de xistos e quartzitos podem ocorrer slumps gravitacionais. Não deverá ser deformação tectónica uma vez que as dobras não têm um sentido de vergência definido.


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de vermes e a largura das pistas de trilobites que sugira uma relação predador-presa. Talvez haja a exploração estratégica das Cruziana por parte dos vermes. Apresenta ainda várias C. furcifera em U. Estação 59 Falha inversa (N65ºE, 70ºNNW), junto da levada do segundo conjunto de moinhos. Estação 60

Estação 57` Grande laje com bioturbação densa (IB 4 a IB5) de C. furcifera e C. goldfussi, com algumas C. rugosa contemporâneas. A camada prolonga-se por 20m (interrompida), sempre bastante bioturbada. Ocorre ainda C. rouaulti e galerias de vermes. As estruturas foram maioritariamente geradas por um mesmo indivíduo. A coesão dos sedimentos era de tal ordem que o mesmo organismo corta a sua estrutura sem deformação e “penetra” a estrutura prévia. Isto deverá resultar de compacção quando o sedimento ainda estava plástico, próprio de zonas de abundante acarreio sedimentar. A compacção é pene-contemporânea da formação das pistas.

Estação 58 C. furcifera de 26mm de largura mostra-se acompanhada ao longo de 120mm por galeria de verme de 9mm de diâmetro, sub-paralela e logo abaixo do eixo axial. A galeria do verme acompanha todas as variações de profundidade da pista. Não parece haver relação entre o diâmetro das galerias

Apertadas dobras de arrasto a dar movimento cavalgante do bloco S ao longo da Falha da Barragem. Estação 61 Grande C. rugosa e laje com ripples de interferência cortadas por numerosas fendas de sinérese e formas afins das microbial sand chips que dão um aspecto granulado em áreas restritas, cortadas por fendas de sinérese (que se mostram posteriores), em laminação silto-argilítica. No prolongamento desta laje para a direita observa-se Diplichnites, pegadas de trilobites e um Rusophycus onde se nota a localização do hipostoma, dos lobos produzidos pelos apêndices cefálicos e a marca da doblura a toda a volta. Direcção das paleocorrentes NNESSW dado por ripples de onda.

Estação 62 Exposição de camada com 10x4m com ripples de onda e de interferência a dar direcção das paleocorrentes N-S, cortadas por grandes fendas da família das fendas de sinérese, de grandes dimensões, com terminações cegas. Atrás desta laje existem diversas C. furcifera e C. goldfussi. 10m abai-

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xo ocorre camada com numerosas Cruziana furcifera semi-círculos. Neste local, próximo da zona da produzidas por um número restrito de organis- falha da barragem, sub-paralelos à estratificação, mos atendendo à pouca variação das larguras. existem filões de quartzo leitoso com vacúolos. Estação 66 Sobreposição de numerosas e grandes Cruziana rugosa e C. goldfussi. As C. rugosa mostram disposição teichichnóide em leque dado pelos feixes divergentes de lobos genais de um mesmo lado. Existem ainda algumas C. rugosa associadas a galerias de vermes. Falha inversa (N26ºE, 52ºSE), com movimento dado por desfasamento de camadas e por intensa fracturação das rochas.

Estação 63 Quase todas as camadas apresentam evidências de bioturbação, maioritariamente produzidas por trilobites. As Cruziana apresentam uma preservação excepcional dos bióglifos, própria do membro médio desta sequência. O Índice de Bioturbação raramente atinge o IB3. O domínio é quase absoluto de Cruziana. Observam-se ainda estruturas unilobadas curvas em epirrelevo convexo e Palaeophycus anelados no tecto das camadas, com até Estação 67 13mm de diâmetro, cilíndricos, sem evidências Exposição de 2m por pouco mais de 50cm, com de deformação diagenética/tectónica. grandes C. furcifera curvilíneas. Falha N-S com Estação 64 grandes cavidades ao longo da zona de falha (exsurgências que aproveitaram esta zona de fraqueA Falha da Barragem prolonga-se por esta zona tendo gerado dobras de arrasto com vergência za estrutural). para NE, junto a caixa de falha bem definida. Estação 68 Espectaculares dobras de arrasto mesoscópicas em S, fracturadas pelo plano axial, com vergência para NE. Estação 69

Estação 65 Grande plano de camada exposto numa área de 4x2m, com C. furcifera e C. rugosa formando diversos

Laje encontrada com as formas meandriformes de C. furcifera-goldfussi (Fig. 3E). A laje tem pouco mais de 2,5m por 5cm de espessura. Mostra mudanças de nível ocupacional progressivas, formando arcos e sinusóides. Existe uma galeria de Arthrophycus alleghaniensis e estruturas Cruziana techichnóides que dispersam em feixes, como em Arthrophycus. No prolongamento da laje para a direita existem alguns pequenos Rusophycus mal preservados. Na camada abaixo abundam as fendas de sinérese. 2m abaixo


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ocorre camada com circling behavior dextrógiro de C. goldfussi.

Estação 70 Antiga zona de extracção ilegal de quartzitos onde teria havido, até há bem pouco tempo, uma grande laje com abundantes Diplocraterion que terá caído ou sido retirada. Neste novo nível encontram-se raros Diplocraterion, fendas de sinérese, C. goldfussi em vários estádios de preservação (na dependência do nível estratinómico ocupado nestes sedimentos coesos), assim como grande C. rugosa em nível estratinómico que não permitiu a incisão dos bióglifos.

Estação 72 No bordo esquerdo da fraga existe topo de camada com grandes bolas de quartzito flanqueadas por xisto que só ocorrem na proximidade da falha normal N60ºE que aqui passa. Estação 73 Cruziana de padrão rabiscado, como sub-impressão unilobada, por vezes levemente bilobada quando rompe a última laminação, sem presença de bióglifos que não chegaram tão profundamente.

Estação 74 Nível com Arthrophycus alleghaniensis assumindo comportamentos lineares (Fig. 6). 50cm abaixo ocorre Estação 71 laje com Cruziana goldfussi muito pouco marcadas e peCamada com grande C. rugosa (Fig. 3H) , a maior quenos Rusophycus com dimensões 26x23mm e 15x22, do mundo em largura no conhecimento presente bem como uma marca em crescente da doblura do (24mm). Esta é cortada e corta pequenas e nu- cefalão com 22mm de largura, semelhante às Cruziamerosas C. furcifera, que são cortadas por fendas de na superficiais que ocorrem associadas. Existe ainda sinérese. No entanto, a C. rugosa não é cortada por uma diminuta C. rugosa com 38mm de largura. Próestas. A laje prolonga-se por mais de 3m para a ximo, fica uma laje com grandes C. rugosa sub-paraesquerda, sempre com largura inferior a 50cm, lelas (Fig. 3F), orientadas quase todas no sentido S. com grandes C. rugosa, pequenas C. furcifera e fendas Faz sentido se a orientação das paleocorrentes prede sinérese. No nível abaixo ocorre C. rouaulti. dominantes fosse para N, como parece ser o caso a partir das leituras efectuadas pelas ripples de corrente. Algumas formas de C. rugosa anteriores a estas possuem um sentido N. Dada a variação dimensional das larguras, é evidente a formação destas pistas por mais do que um organismo. Na mesma laje observa-se C. furcifera com 33mm de largura, paralela a galeria de verme com 9mm de diâmetro que se prolonga na zona do sulco axial ao longo de 50cm, acompanhando sempre a galeria do verme todas as alterações de nível estratinómico da Cruziana. 30cm abaixo ocorre camada com possível Merostomichnites, o raro icnogénero produzido por filocarídeos.

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Geonovas nº 18, pp. 67 a 75, 2004

O “Parque Geomorfológico de Monsanto” através do seu percurso pedrestre As Pedras para Além do Sagrado Carlos Neto de Carvalho Centro Cultural Raiano - Gabinete de Geologia e Paleontologia. Avenida Zona Nova de Expansão 1º, 6060-101 Idanha-a-Nova. Centro de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Bloco C6, 4º piso, P-1749-016 Lisboa. E-mail: praedichnia@hotmail.com

Resumo: O Parque Geomorfológico de Monsanto é uma área de interesse lúdico e científico, apta essencialmente para a divulgação das Ciências da Terra num contexto histórico-cultural milenar, ainda hoje invulgarmente preservado. Poderá vir a ser constituído por um núcleo museológico e por um ou mais percursos pedestres com carácter multidisciplinar. A espinha dorsal deste espaço natural é a pequena rota As Pedras para Além do Sagrado. O seu interesse científico é abordado no presente trabalho. Palavras-chave: património geomorfológico; formas graníticas; Monsanto; Idanha-a-Nova. Abstract: The Geomorphologic Park of Monsanto is an area of recreational and scientific interest with vocation for Earth Sciences divulgation in a rich millenary historical-scientific context, nowadays still unusually preserved. The Park will be composed eventually by a museum and by one or more multidisciplinary pedestrian circuits. The backbone of this natural place is the short track Stones beyond the Sacred. Its scientific interest is described in this work. Key-words: geomorphologic heritage; granite landforms; Monsanto; Idanha-a-Nova.

1. Introdução Os granitos em Portugal abundam na região Norte e Centro. Mas é irrompendo da Superfície Fundamental da Meseta sob a forma de Inselberge, ao longo do Distrito de Castelo Branco, que os granitos vincam a paisagem sobremaneira. Zona de povoamento milenar, desde cedo os inselberge foram habitados no sentido de incrementar a defesa de vastas regiões aplanadas. Povoações como Monsanto, Penamacor ou Sortelha ainda hoje se aninham entre colossais bolas de granito, que lhes serviram enquanto sentinelas da raia, de paredes e de muralhas. Nestas regiões, os povos praticaram a sua religiosidade naturalista sacralizando espaços e pedras que a Natureza se esmerou ao dar forma. E a Natureza foi particularmente imaginativa com os granitos. O modo como se deu a sua meteorização associada a um padrão característico de fracturação das rochas, promoveu a escultura natural de formas que se repetem no espaço. Para as explicar houve a necessidade de as “espiritualizar”. Muito mais tarde, com o advento do Catolicismo, muitas das formas graníticas

particulares associadas ao “culto das pedras”, loca sacra que tinham sido ritualizadas nas práticas dos primeiros tempos de conversão cristã, foram infligidas de cruzes ou excomungadas (Vasconcelos, 1989). Mas estas pedras estão de tal modo enraizadas na religião popular portuguesa (Espírito Santo, 1990) que ainda hoje não se encontram esquecidas. São alguns exemplos de granitos devotos (Amarante, 2003) as pedras de escorregar, blocos partidos e deslocados como a Pedra Comprida, na Serra de S. Domingos (Lamego), a Pedra dos Namorados (Monsaraz), uma rocha-pedestal, ou a Pedra Leital (Famalicão). As cruzes gravadas na rocha e os rituais “pagãos” são, ainda hoje, particularmente evidentes no Monsanto. Monsanto da Beira, alcandorada no cabeço conhecido desde há muitos séculos por Mons Sanctus, é uma das terras em Portugal onde ainda se respira uma profunda relação espiritual do Homem com a rocha. E ainda hoje é procurada pelos “druidas modernos” de todo o mundo. Na “aldeia mais portuguesa de Portugal” o granito


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é omnipresente na sua forma talhada ou em bruto e serviu para quase tudo o que é passível de ser construído, desde as paredes das casas de habitação e das furdas e bebedouros do gado, aos panos das fortificações e das igrejas, capelas, para além das alminhas e sepulturas. É nesta paisagem cultural própria conservada viva que surge a ideia de constituir o “Parque Geomorfológico de Monsanto”, um espaço temático com características raras onde às numerosas crenças acresce a interpretação científica da origem natural de algumas das pedras graníticas mais emblemáticas. O parque surge também como uma necessidade de erradicar preconceitos antropocêntricos criacionistas quanto à génese de certas pedras, numa região onde desde os finais do séc. XIX tudo o que é antigo pode ser explicado por fundamentos arqueológicos, perfeitamente enquadráveis no intervalo de tempo bíblico. Como exemplo, vejamse as deliciosas interpretações antropomórficas de formas graníticas beirãs por Pires (2000).

geará o brilhante geógrafo Orlando Ribeiro pela sua extensa obra no âmbito da Geomorfologia e da Cartografia Geológica da Beira Baixa, realçando-se os seus estudos sobre a formação dos montes-ilha de Monsanto-Morerinha (Ribeiro, 1939, 1942, 1949, 1951). Por outro lado, mas que se quer em interdependência, existe um percurso pedestre de pequena rota denominado “As Pedras para Além do Sagrado”, com características mistas (urbano/montanha), onde os mais afoitos do desporto na Natureza e o público compelido pela curiosidade encontrarão ciência e cultura popular num espaço natural privilegiado e, ainda hoje, praticamente incólume. Os objectivos do “Parque” prender-se-ão essencialmente com a divulgação e incremento do conhecimento geológico, assim como do património cultural de Monsanto, e não com qualquer tipo de gestão territorial. 3. Descrição da rota de As Pedras para Além do Sagrado

O presente trabalho pretende fazer a descrição dos principais Locais de Interesse Geomorfoló2. A definição do “Parque Geomorfológico de gico (daqui para a frente referidos como LIG) presentes ao longo do percurso pedestre circular, Monsanto” já parcialmente marcado com sinalética própria, O “Parque Geomorfológico de Monsanto” corque liga o santuário de S. Pedro de Vir-a-Corresponderá a um espaço pedagógico e de lazer ça, na base do inselberg, ao Castelo de Monsanto, sem fronteiras definidas nem restrições adicioatravessando a povoação (Fig. 1). Existem outros nais tuteladas por lei, abrangendo as paisagens locais interessantes em redor de Monsanto com graníticas da região de Monsanto. Este espaço acesso fácil através da estrada que rodeia o cabeço, muito bem preservado em termos paisagísticos e como o Penedo da Escaleira situado a NW, ou as com uma pressão humana controlada encontraserras da Moreirinha e Alegrios a E, passíveis de -se actualmente em fase de avaliação de projecto vir a constituir novos percursos de interesse. pela Câmara Municipal de Idanha-a-Nova. Pretende-se que este seja um pólo de dinamização da Cabe nesta introdução fazer um apontamento sugeomorfologia na região NE de Idanha, em si- mário sobre a origem do cabeço do Monsanto. O tuação estratégica numa das principais zonas tu- granito de Monsanto é a porção visível da termirísticas do concelho, abrangendo a “aldeia mais nação Sul do plutonito tardivarisco de Penamaportuguesa de Portugal” e o magnífico mirante cor. O granito em geral é de duas micas, porfique é o inselberg encimado pelo vetusto castelo de róide, de grão médio a grosseiro, com uma baixa Monsanto. O parque poderá vir a ser constituído deformação e uma fracturação pouco densa. A por um centro de interpretação/núcleo museoló- formação do relevo, um impressionante inselberg gico, onde qualquer tipo de público poderá fazer acastelado com um knick (ou ângulo entre o relevo uma viagem científica e pretensamente sensorial e a superfície de aplanação) pronunciado, elevanao Mons Sanctus mítico num espaço restrito e com do-se mais de 3 centenas de metros acima da sutodas as comodidades. Esta exposição homena- perfície de aplanação (altitude máxima de 758m)


O “Parque Geomorfológico de Monsanto” através do seu percurso pedrestre As Pedras para Além do Sagrado

Fig. 1 – Localização do “Parque Geomorfológico”, com a indicação das distâncias pelas principais vias de acesso, e distribuição dos principais Locais de Interesse Geomorfológico (LIG) ao longo da rota As Pedras para Além do Sagrado.

teve, curiosamente, uma génese abaixo da superfície topográfica (Fig. 2). De facto, o granito são tende a possuir uma reduzida permeabilidade e porosidade às águas meteóricas. No entanto, sob condições climáticas quentes e húmidas, como as que existiram durante o Cretácico, os fluidos percolantes puderam alterar profundamente o granito, por decomposição das plagioclases e cir-

Fig. 2 – O inselberg acastelado de Monsanto.

culação através da fracturação ortogonal. No entanto, os xistos do Grupo das Beiras envolventes alteraram-se ainda mais depressa promovendo uma frente de meteorização basal do tipo etchplain (Cabral, 1995) e levando à exumação do relevo granítico por remoção mecânica do manto de alteração durante o período árido do Paleogénicoinício do Neogénico (Fig. 3). A diferenciação altimétrica dos inselberge de Monsanto-MoreirinhaAlegrios e Penamacor face à restante área granítica poderá derivar de uma alteração diferencial motivada por uma variação granulométrica ou textural na composição mineralógica do granito, na densidade de fracturas ou num alteração marginal pronunciada ao longo de importantes fracturas verticais. Esta questão encontra-se actualmente em fase de estudo, sendo que a última hipótese poderia explicar a existência de “fontes de águas quentes” na zona de S. Pedro de Vir-aCorça anteriormente ao terramoto de 1755 (Salvado, 1993). A correlação altimétrica de Mon-

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Fig. 4 – O espaço e o sagrado em S. Pedro de Vir-a-Corça no dizer de Salvado (1993). Fig. 3. Esquema ilustrativo do desenvolvimento bifásico do inselberg de Monsanto. A exploração sub-superficial de fracturas pela meteorização é seguida de erosão do manto de alteração e exposição da frente de meteorização basal (inspirado em Twidale, 1982).

3.1. LIG1: S. Pedro de Vir-a-Corça

& Twidale, 1998), onde os ângulos sofrem uma maior alteração. O rególito resultante terá sido removido por erosão, deixando expostos os núcleos graníticos arredondados. Os caos de bolas de S. Pedro apresentam muitos blocos fendidos naturalmente por fracturas do tipo apresentado, em que as partes deslocadas encontram-se frequentemente tombadas na base do afloramento. Às fracturas verticais variscas associa-se uma fracturação horizontal motivado por descompressão adiabática do plutonito visível pelas fracturas de descamação patentes no afloramento junto da estrada.

Este local de grande interesse arqueológico, antropológico e geológico, um possível ponto de partida para o circuito geomorfológico, encontrase bem sinalizado e possui um parque de estacionamento, o antigo terreiro da feira do séc. XIV. No posto de turismo de Monsanto poderão ser obtidas mais informações sobre esta região e sobre esta pequena rota. Cenário de crenças milenares (Salvado, 1993), este espaço de sombras convida à introspecção pelo seu silêncio. De realce, a igreja românica rodeada por um frondoso chaparral de onde sobressaem aqui e além impressionantes caos de bolas, culminando o amontoado caótico que se estende ao longo da vertente (Fig. 4). O Campanário é independente da igreja, sobreposto a uma enorme bola de granito. Muitas destas enormes bolas de granito, em aparente equilíbrio instável, nunca se moveram. A sua origem prende-se com o modo como os fluidos percolantes nos solos alteram os granitos através da sua circulação por uma fracturação tipicamente ortogonal (Romaní

O espaço sagrado é ainda composto pela “gruta” do anacoreta Santo Amador, uma reentrância erosiva num afloramento granítico, sobrepondo--se a esta os vestígios de um lagar, assim como pelo complexo de sepulturas antropomórficas situado a N da igreja, e anteriores a esta. Nos blocos situados a poente encontram-se cruzes gravadas e é frequente encontrar nas superfícies verticais depressões circulares a poligonais decimétricas, consideradas antropomórficas (Salvado, 1993). No entanto, tratar-se-ão, em muitos casos, de tafoní, pelo qual não será de estranhar os alinhamentos de covas ligadas por finas fracturas. Normalmente, estas depressões são associadas pelos arqueólogos a “Penedos Santuário”. A sua origem natural, por alargamento de fracturas através da circulação de fluidos meteóricos (Campbell, 1997; Romaní & Twidale, 1998) e ubiquidade em contextos não arqueológicos não dão créditos à pretensa tese de sacralização das rochas onde ocorrem. Todavia, não é fácil definir o que foi

santo com as cristas de Penha Garcia mostra que o relevo granítico é anterior à deposição das rañas de Monfortinho, o que significa que o inselberg já teria atingido a forma actual grosso modo no préZancleano (de acordo com a litostratigrafia de Cunha, 1996).


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feito por mão humana daquilo que é natural. Pensamos que deverá ter-se cuidado neste tipo de interpretações, podendo o geólogo ter um papel determinante no diagnóstico. Mais além, podem encontrar-se as ruínas de um possível torreão (Salvado, 1993). Para nascente da igreja de S. Pedro, observa-se enorme bola fendida com cerca de 15m de altura (Fig. 5) e quase 4000 toneladas(!) de peso, em que uma das partes se terá soltado e rolado sobre si até atingir a posição actual. Na parte oposta, é notável a descamação em casca de cebola e a alteração

Fig. 6 – Alteração poligonal incipiente numa das faces da bola anterior, um granito de grão médio equigranular.

tra o magnífico exemplar de uma casa “de uma só telha” em ruínas, um abrigo sobre uma imensa laje de granito que representa o aproveitamento sensato da Natureza pelo monsantino. 3.2. LIG2: Trilho da serra Voltando ao enorme bloco junto do eremitério, um pequeno trilho entre fetos sobe para leste até um granito com profunda alteração poligonal, também esta de origem meteórica subsuperficial controlada por uma fracturação tectónica (Fig. 7). Fig. 5 – Grande bola de granito fendida e com deslocação de uma das partes.

poligonal (Fig. 6), com génese correlacionada. Este tipo de descamação com lajes lenticulares é responsável pelo arredondamento das bolas graníticas. O padrão reticulado da alteração poligonal em superfície plana gerou-se ao longo de um diaclasamento fino na parte mais externa da frente de alteração, não atingindo mais do que alguns centímetros de profundidade. A fractura de descompressão leva à dissociação de delgadas placas convexas decimétricas. Um trilho para SSE levará o visitante à Fonte da Corça escavada na rocha, junto da qual se encon-

Fig. 7 – Alteração poligonal mais profunda e irregular. A descamação da rocha resultante assemelhase à figura anterior.

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O trilho em ascensão até Monsanto, agora com sentido N, torna-se fortemente sinuoso. Entra-se no povoado pela Rua da Sarça. 3.3. LIG3: Aldeia A aldeia de Monsanto apresenta um núcleo habitacional extremamente bem preservado, com ruas de traçado medieval limitadas por casas tradicionais e bolas de granito que servem de suporte, parede ou de tecto. Na Rua de Nossa Senhora do Castelo, à entrada do burgo, poderá apreciar-se uma bela casa “de uma só telha” (Fig. 12), aproveitando um bloco, com aproximadamente 2400 toneladas, como telhado! Ao longo da rua poderá encontrar-se a gruta, um espaço entre bolas de granito que há muito foi transformado num lugar de devoção. Vale a pena observar ainda o pelourinho, a Igreja de Matriz, a Torre de Lucano, como exemplos de arquitectura erudita onde o granito domina, assim como os numerosos chafarizes que abundam por todo o povoado (Mono, Fonte Nova, Meio, apenas como exemplos), os quais são testemunhos da importante circulação de água que se faz no interior do maciço granítico e que, certamente, continua a promover a sua alteração. 3.4. LIG4: Penedos Juntos A Rua Marquês da Graciosa, entre solares setecentistas brasonados, dá acesso à Rua da Azinheira, por onde se ascende ao castelo através de Penedos Juntos. Ao longo do caminho surge à esquerda uma forma em chama, bloco granítico em forma de cogumelo com várias caneluras nos seu topo convexo. Resulta de uma alteração mais activa na base da rocha, certamente coberta primitivamente por rególito. As caneluras são produzidas pela escorrência das águas pluviais na cúpula, quando o seu volume é superior à permeabilidade da rocha (Romaní & Twidale, 1998). Logo a seguir, ocorre uma pseudo-estratificação motivada por fracturas horizontais de descompressão mais densas.

Fig. 8 – Pequeno Tor resultante da degradação de um bloco pseudo-estratificado.

nhecer a sua composição mineralógica e a textura hipidiomórfica. O prolongamento do trilho leva à passagem por pequenos Tor, acumulações de blocos in situ (Fig. 8). A sua origem é poligénica, bifásica, e terá como justificação a mesma dada para a formação do inselberg de Monsanto e para a esmagadora maioria das formas de pequena escala já descritas. A sua pequena dimensão deve-se a uma fracturação vertical mais densa. 3.5. LIG5: 13 Tigelas

A paisagem próxima do castelo é ciclópica pelo caos de enormes bolas, algumas delas demonstrando a descamação em casca de cebola e fendas de descompressão, numa das quais se pode observar, junto do caminho, as 13 tigelas. Estas estruturas são vistas por muitos como mais um Penedo Santuário com covas insculpidas, símbolo abstracto de uma religião pré-cristã ao qual se associam lendas, como a senhora que vinha aí distribuir a sopa aos pobres. Segue uma interpretação inglesa com mais de 200 anos, segundo a qual se relacionariam com cerimónias druídicas (Romaní & Twidale, 1998). As tigelas são depressões circulares a ligeiramente ovais alinhadas no mesmo plano Os Penedos Juntos correspondem a duas enormes de fractura de descamação sub-horizontal. Na bolas fracturadas que, por justaposição, formam verdade são 14 as covas, mais uma isolada no topo um túnel atravessado pelo trilho. Nas paredes do mesmo monólito, distanciada das restantes mais protegidas podem ser observadas superfícies poucos metros (Fig. 9). Estas depressões apresencom o granito pouco alterado, permitindo co- tam uma dimensão semelhante (<20cm de eixo


O “Parque Geomorfológico de Monsanto” através do seu percurso pedrestre As Pedras para Além do Sagrado

gnammas são abundantes e ocorrem com formas e dimensões distintas, podendo “estas” ser irregularmente alongadas se forem “rotas” por caneluras e coalescerem, resultado natural da sua evolução meteórica. Os tafoní em superfícies oblíquas são muito mais raros.

Fig. 9 – Caos de bolas entre o Castelo e a Torre do Peão, com a Igreja de S. Miguel ao centro.

maior ou raio), mas diferem em profundidade e na distância entre elas. O seu fundo côncavo também não é regular, com menor inclinação segundo a pendente do plano principal (12-18º de inclinação para E). As covas do bordo do bloco são incipientes ou encontram-se “rotas” no sentido do normal extravasamento das águas pluviais. Estas estruturas têm uma clara génese natural, tratando-se de gnammas ou pias, normalmente formadas em superfícies sub-horizontais ao longo de fracturas ou na sua intersecção (Campbell, 1997). São posteriores à rede ortogonal de fracturas verticais que assola a rocha, alinhando-se em três fiadas segundo a sua orientação predominante N60ºE e N28ºW (Fig. 10). Terão resultado da concentração pontual de fluidos meteóricos em zonas de fractura em cunha, onde se poderá potencializar a hidrólise diferencial das plagioclases ao longo das microfissuras e consequente alargamento progressivo da cavidade resultante por remoção dos detritos segundo a maior pendente. Nos afloramentos envolventes a NE, os

Próximo destas estruturas encontram-se as magníficas ruínas da Igreja de S. Miguel, construção românica do séc. XII, a antiga matriz situada no centro no extinto burgo, de que hoje só restam vestígios. Em torno desta, os afloramentos graníticos encontram-se sulcados de sepulturas antropomórficas medievais. 3.6. LIG6: Castelo medieval Implantado sobre antigo castro, o actual castelo de Monsanto foi uma das mais emblemáticas sentinelas da raia. Para a sua história conturbada muito contribuiu a sua posição estratégica e o substrato alcantilado onde se instalou (Fig. 11). Do vértice geodésico ou das suas muralhas, a paisagem impressionante de 360º abarca muito para

Fig. 11 – A morfologia das 13 tigelas, inclinando segundo o plano onde se encontram, assim como o seu alinhamento ao longo de fracturas pré-existentes, aponta para uma origem natural idêntica à dos gnammas.

além dos territórios planos de Idanha. A descrição da paisagem pode ser encontrada nos pontos seguintes.

Fig. 10 – Afloramento das 13 tigelas.

No vértice geodésico (758m), afloram granitos com covas e depressões cúbicas que não devem ser confundidas com gnammas ou tafoní. São formas muito regulares e com fundo plano, elaboradas na rocha para suporte de travejamento de madeira.

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próprio, prolongam-se para Espanha, aos quais Saindo do castelo para N através da Porta da Trai- se sobrepõe, em plano mais próximo, o flanco S ção, um trilho contorna grandes amontoados de do sinclinal de Penha Garcia, com uma linha de blocos arredondados in situ, e permite alcançar o cumeada a cotas muito homogéneas. Em Salvaque resta da Capela de S. João. O seu portal é um dor, adivinha-se a terminação periclinal desta magnifico mirante sobre a Superfície de Castelo importante estrutura tectónica. Branco, separada da Superfície de Alto Alentejo a 3.9. LIG9: Porta de Santo António SE pela escarpa de linha-de-falha do Ponsul, cuja Da Torre de Lucano acede-se à capela de Santo génese e reactivações foram explicadas por RibeiAntónio. É pela porta medieval de Santo Antóro (1943), Dias & Cabral (1989) e Cabral (1995). nio, muito mais tarde munida de guarita, que se O alinhamento quartzítico residual de Penha Garcia prolonga-se para SE, muito para além sai da aldeia de Monsanto, aqui respeitando a cinda fronteira do Erges, onde é interrompido pelo tura de muralhas. Seguindo as marcas do percurencaixe fluvial deste rio. Quase paralelamente a so de grande rota das aldeias históricas, da estraeste, desenvolvem-se os relevos residuais cenozói- da alcatroada entra-se pela esquerda na Via Romana cos de forma trapezoidal a cónica da Murracha, que ligava o povoado a S. Pedro de Vir-a-Corça. Murrachinha e Pedras Ninhas. Em primeiro pla- O caminho serpenteia ao longo da encosta. À direita deste, surge um afloramento granítico que no, abundam os tor. ostenta pseudo-estratificação. Esta encontra-se mas3.8. LIG8: Mirante do Balvarte carada por um denso diaclasamento sub-vertical Descendo do castelo pela calçada, torna-se à Rua alargado pelas águas pluviais (Fig. 13). de Nossa Senhora do Castelo até à Matriz, por onde se desce para o mirante do Balvarte. Deste mirante observa-se em primeiro plano o inselberg da Moreirinha-Alegrios a levantar-se da Superfície de Castelo Branco e, para N, o inselberg de Penamacor, permitindo ter uma perspectiva da área ocupada pelo plutonito de Penamacor. Para NW eleva-se o horst da Serra da Estrela e o maciço granítico da Gardunha, separada deste pela área deprimida da Cova da Beira. Para NE, os cabeços xistentos da Serra da Malcata, com um modelado 3.7. LIG7: Porta da Capela de S. João

Fig. 13 – Pseudo-estratificação fortemente seccionada por fracturas verticais N-S, alargadas por circulação de fluidos.

3.10. Balneário

Fig. 12 – Casa de “uma só telha” próximo da Rua de Nossa Senhora do Castelo: um aproveitamento singular e estético do granito.

No prolongamento do trilho rodeado de muros graníticos tradicionais, e passando a fonte, à esquerda é visível um conjunto de grande tinas escavadas na rocha, por vezes conectadas. Poderá ter sido um balneário de idade incerta (Salvado, 1993). Mais uns metros, e esta viagem termina com o regresso ao espaço idílico de S. Pedro de Vir-a-Corça.


O “Parque Geomorfológico de Monsanto” através do seu percurso pedrestre As Pedras para Além do Sagrado

4. Conclusão O inselberg de Monsanto é um dos ícones geomorfológicos de eleição em Portugal. Tal se associa ao pioneirismo do geógrafo Orlando Ribeiro que, nestas paragens, promoveu estudos com repercussões internacionais mas com um principal impacto na forma como a Geologia portuguesa perspectivava, ou se desvinculava até aí, do estudo da evolução do relevo. No entanto, a esta mega-estrutura se associa um conjunto de formas menores de elevado interesse, seja estético e cultural, porque se associam lendas e tiveram importância na história local, ou científico, porque permitem visualizar o modo como este grandioso relevo evoluiu até ao aspecto presente. Numa região onde a Geologia começa a florescer da sua diversidade para um novo estilo de turismo, Monsanto pode finalmente deixar de ser a sentinela da raia para tornar-se um novo farol da cultura portuguesa. Bibliografia

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Geonovas nº 18, pp. 77 a 92, 2004

O Património Geológico e Geomorfológico do concelho de Idanha-a-Nova contributo para a sua classificação como Geoparque António J. D. Sequeira* & J. M. Serejo Proença** * Geólogo do Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação, Estrada da Portela- Zambujal – Apart. 7586- 2720 Alfragide ** Médico Veterinário municipal de Idanha- a- Nova, sócio da Associação Portuguesa de Geólogos, Rua do Calvário, 31- 6060- 621 Olêdo.

Resumo: o património geológico e geomorfológico do concelho de Idanha-a-Nova é muito diversificado e rico em monumentos naturais que importa preservar por constituir valioso património natural e ser importante do ponto de vista geoturístico. São inventariados os locais de interesse geológico e geomorfológico do concelho a nível do afloramento, do sítio e da paisagem (Galopim de Carvalho, 1998; 1999) e localizados pontos privilegiados de observação geomorfológica e paisagística. Salienta-se a importância da classificação da região como GEOPARQUE, dado o seu elevado valor geoturístico, geológico e geomorfológico, que poderá ser potenciado com indicadores arqueológicos, históricos, biológicos, etnográficos e outros de carácter cultural, em relação aos quais a região também é rica. Palavras - chave: Património geológico; património geomorfológico; Idanha- a- Nova; Portugal central.

Fig. 1 – Localização do concelho de Idanha-a-Nova com indicação dos locais de interesse geológico e geomorfológico: 1 - cavalgamento da Devesa; 2 - litofácies do granodiorito de Olêdo; 3 - cristas quartzíticas em Penha Garcia; 4 - corte geológico do rio Erges; 5 - rejeito das cristas quartzíticas provocado pela falha do Ponsul e sequência ordovícica do sinclinal de Penha Garcia; 6 - Termas de Monfortinho; 7 - sinclinal de Penha Garcia (no seu conjunto); 8 - Inselberge de Monsanto e Moreirinha; 9 - elevações pliocénicas de Murracha, Murrachinha e Pedras Ninhas; 10 - retalho da Superfície da Meseta encostado à crista quartzítica; 11 - escarpa da falha do Ponsul; 12 - gargantas epigénicas do rio Ponsul.


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1. Introdução O concelho de Idanha- a- Nova, um dos mais vastos do país ,com 1414 km2 de área, está situado na Beira Baixa (Portugal central), sendo os seus limites Sul e Este constituídos pelos rios Tejo e Erges, respectivamente, que definem a fronteira com Espanha. A Norte e Oeste, localizam-se os concelhos de Penamacor, Fundão e Castelo Branco (Fig. 1). Na área deste concelho, um substrato geológico e geomorfológico heterogéneo permitiu um património diversificado e rico em Locais de Interesse Geológico (LIG) (Elizaga Muñoz, 1988), importantes pela sua singularidade e pelos seus conteúdos, constituindo geo-recursos culturais importantíssimos para o reconhecimento e interpretação dos fenómenos que modelaram o nosso planeta e pelo valor e utilidade científica, museológica ou turística. O seu número e variedade estão de acordo com o conceito de Geodiversidade (Gray, 2004) pois compreendem um mosaico de sistemas geológicos com significado relevante, representativos da região e da sua história geológica, eventos e processos, podendo mesmo alguns ser considerados como Geosites (Wimbledon et al., 1998; Garcia Cortés et al., 2000; Gray, 2004).

Este trabalho corresponde a um maior desenvolvimento da comunicação apresentada no workshop “Fósseis de Penha Garcia - que classificação?” (Sequeira, 2003 a) que teve lugar, em Junho de 2003, em Penha Garcia, organizado pela Câmara Municipal de Idanha- a- Nova , e do roteiro da excursão geológica efectuada no âmbito desse mesmo Workshop (Sequeira, 2003 b). 2. História Geológica A longa história geológica da área deste concelho estende-se desde o Neoproterozóico (há cerca de 650 a 600 Milhões de Anos) até aos nossos dias. Vários eventos sedimentares, magmáticos e tectónicos tiveram lugar durante esse período de tempo. A região é dominada pela ocorrência das rochas metassedimentares do Grupo das Beiras (Silva et al., 1988) (Fig. 2), uma das unidades do “Complexo xisto-grauváquico anteordoviciano” (Costa, 1950), que correspondem a sedimentos depositados em meio marinho. Existe aqui um conjunto inferior, constituído por xistos e metagrauvaques,

O principal objectivo deste trabalho é inventariar locais de interesse geológico que importa preservar, não só por serem interessantes do ponto de vista geo- turístico como também por constituírem valioso património natural não renovável que não deverá ser degradado. Do mesmo modo, algumas paisagens deverão ser protegidas por possuírem características próprias e únicas. Os locais de interesse geológico apontados justificam a criação de um Geoparque (Unesco Geopark) segundo o conceito de Patzak e Eder (1998), pois correspondem a uma área que pode ser protegida, com limites bem definidos, e é portadora de locais de interesse geológico de especial importância científica, singularidade e beleza. Deverá ser potenciada ao nível de outras valências pois encerra também valores arqueológicos, históricos, ecológicos e culturais.

Fig. 2 – Esboço geológico da região de Idanha-a-Nova, modificado de Serviços Geológicos de Portugal (1992). Legenda: 1 - Depósitos Cenozóicos; 2 - Granitóides; 3 - Ordovícico; 4 - Grupo das Beiras; 5 - Cavalgamentos. IN - Idanhaa-Nova


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e um conjunto superior, mais variado na sua litologia, formado por xistos, metaconglomerados, metagrauvaques e metaquartzovaques (Sequeira, 1991;1993a ;Romão, 1994; Sequeira et al., 1999). A existência de microfósseis planctónicos (cianobactérias), encontrados pela primeira vez, em Portugal, na região de MonfortinhoSalvaterra do Extremo, demonstra que estes metassedimentos têm idade neoproterozóica (Vendiano médio?- superior) (Palacios,1989; Sequeira, 1991; 1993 a). Entre Termas de Monfortinho e Salvador, aflora o sinclinal ordovícico de Penha Garcia, com direcção geral NW – SE a WNW – ESE (Fig. 2), que se destaca da planície que o cerca e se prolonga para Espanha. Constitui um relevo definido por bancadas possantes de quartzitos, que são rochas muito duras, portanto difíceis de serem destruídas pela erosão. Os quartzitos formam os dois flancos do sinclinal. As unidades que se sobrepõem aos quartzitos são constituídas por xistos e metarenitos , mais sensíveis à erosão diferencial. Preenchem agora uma área mais baixa, entre os dois flancos.

Intruindo as litologias do Grupo das Beiras, são comuns rochas filonianas de carácter ácido, intermédio e básico (Ribeiro e Sequeira, 1997; Sequeira et al., 1999) e rochas graníticas e granodioríticas. Os granitóides (Fig. 2) afloram em maior quantidade na parte norte do concelho (Idanha-a-Nova e Monsanto), incluídos nos grandes maciços de Castelo Branco- Idanha e Penamacor- Monsanto. Junto à fronteira com Espanha existem pequenas manchas, os granitos de Salvaterra do Extremo e de Segura e o tonalito de Batão de Baixo, que são prolongamentos em território nacional dos maciços de Zarza-la-Mayor – Ceclavin (Corretge et al., 1989) e de Cabeza de Araya (Corretge, 1971). Em Zebreira e proximidades destacam-se dois corpos de granodioritos de dimensão quilométrica (Pereira, 1985; Pereira et al, 1986). Estas rochas ao instruírem os metassedimentos formam auréolas de metamorfismo de contacto que têm normalmente uma espessura de algumas centenas de metros (Sequeira et al., 1999).

Os granitos e granodioritos são considerados herToda a sequência é rica em icnofósseis, fósseis cínicos (Serviços Geológicos de Portugal, 1992). animais e figuras sedimentares que mostram que Posteriormente evoluíram na região de Monsanto o conjunto começou por ser depositado num am- para estruturas geomorfológicas do tipo inselberg. biente fluvio - deltaico, passando rapidamente a Atravessando toda a área do concelho numa faixa um ambiente marinho de plataforma, de águas alongada com direcções ENE – WSW, afloram normalmente pouco profundas (Sequeira, 1993 b). sedimentos continentais de idade cenozóica (EoO Grupo das Beiras apresenta dobramentos mui- cénico sup. a Pliocénico sup.), constituídos por to apertados, frequentemente com eixo vertical, conglomerados, arenitos e lutitos (Fig. 2). que correspondem à interferência de duas fases de deformação. A mais antiga, de idade ante-ordovícica, gerou dobramentos de direcção geral NE-SW, sem clivagem de plano axial associada. A mais recente, e também a mais intensa, foi a 1ª fase de deformação hercínica, que deu origem a dobramentos com direcção N 60º W acompanhados por clivagem de plano axial muito penetrativa. O Ordovícico do sinclinal de Penha Garcia foi afectado apenas por esta última fase, que controla a estruturação geral da região. Localmente existe uma fase de dobramento posterior, hercínica, que origina dobramentos de pequena amplitude e clivagem de crenulação.

Constituem dois grupos de unidades. O grupo inferior corresponde a depósitos aluviais resultantes da alteração e desmantelamento de rochas preexistentes (granitóides e metassedimentos) (Ribeiro et al., 1965; Cunha, 1996). O conjunto superior é consequência das sucessivas fases de soerguimento da Cordilheira Central Portuguesa, e é formado por depósitos de cone aluvial localizados no sopé de escarpas tectónicas (Cunha, 1996). Todos estes depósitos terão anteriormente ocupado uma mais vasta área , mas agora estão tectónicamente limitados por falhas essencialmente ENE-WSW, como a falha do Ponsul e a falha de Segura. Para Norte da falha do Ponsul apenas existem alguns pequenos retalhos de se-

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dimentos cenozóicos encostados ao maciço granitico de Castelo Branco-Idanha, na região de Senhora do Almurtão. A fracturação existente deverá ser muito antiga, tendo funcionado durante a orogenia hercínica e rejogado durante o ciclo alpino. A falha do Ponsul e a falha de Segura funcionaram durante a orogenia alpina como falhas inversas, com levantamento dos blocos NW. Mais recentemente terraços fluviais, aluviões e coluviões individualizaram-se ao longo dos cursos de água e nos flancos das encostas (Sequeira et al., 1999). 3. Geomorfologia Os últimos eventos tectónicos estão preservados na geomorfologia.

Os terrenos estão geralmente aplanados, se exceptuarmos as cristas quartzíticas e os inselberge graníticos, e são drenados por cursos de água mais ou menos encaixados, normalmente controlados pelas estruturas tectónicas. Este aplanamento não se encontra, contudo, uniformemente à mesma cota, estando a região dividida nas seguintes unidades geomorfológicas (Ribeiro, 1949) (Fig.3): · A Superfície de Castelo Branco, que se estende para Norte da falha do Ponsul e corresponde ao seu bloco levantado, onde afloram metassedimentos do Grupo das Beiras, assim como granitos e granodioritos, à cota média de 400 metros. Esta superfície está inclinada para a falha do Ponsul e levantada para NE. O relevo residual das cristas quartzíticas do sinclinal de Penha Garcia ergue-se neste compartimento, 300 a 350 metros acima do aplanamento geral.

A área situa-se no rebordo sul da Cordilheira Central Portuguesa, que é constituído por uma escadaria de blocos tectónicos com orientação ge· Os restos da Superfície da Meseta, como é o caso ral NE – SW a ENE – WSW. dos terrenos que se estendem entre as duas cristas quartzíticas e de um retalho encostado à crista quartzítica NE, com cerca de 5km2 de área, a cotas superiores a 600 metros. · A Superfície do Alto Alentejo (ou Superfície de Nisa), que corresponde ao bloco rebaixado da falha do Ponsul, conserva espesso registo cenozóico, está inclinada para o lado da falha e levantada para NE. Tem altitude média de 200m na campina de Idanha. Continua-se depois pelos terrenos do Grupo das Beiras, por pequenas manchas de rochas intrusivas e por alguns retalhos de sedimentos cenozóicos que se estendem para SE. 4. Locais de interesse geológico e geomorfológico

Fig. 3 – Esboço geomorfológico da região de Idanha-a-Nova, modificado de Ribeiro (1943; 1949). Legenda: 1 - Superfície da Meseta; 2 - Superfície de Castelo Branco; 3 - Cobertura Cenozóica; 4 - Superfície do Alto Alentejo; 5 - Cristas quartzíticas; 6 - Inselberg; 7 - Escarpa de falha; IN - Idanha-a-Nova; PG - Penha Garcia; Ms - Monsanto.

Na apresentação destes locais seguir-se-á a classificação de Galopim de Carvalho (1998; 1999) considerando três tipos de locais de interesse geológico, consoante as suas características e níveis de intervenção necessários à sua protecção, manutenção e fruição: · A nível do afloramento, pequenas ocorrências, geralmente à escala decamétrica;


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· A nível do sítio, áreas maiores, à escala hectó- um filão básico que o intruiu, mostrando a movimetrica, podendo-se circular no seu interior, mentação inversa. para observação dos seus pormenores; Importância: Nacional · A nível da paisagem, grandes áreas à escala quilométrica, susceptíveis de ser abarcadas a partir Interesse Tectónico- estrutural: Excepcional de um ou mais pontos privilegiados de observa" Geomorfológico: Elevado ção. Neste caso, a sua protecção e manutenção " Didáctico: Elevado pressupõem estratégias semelhantes às definidas para as Áreas Protegidas. Medidas de protecção recomendadas: Para cada local são apresentadas vários itens como localização, caracterização, importância, interesse e medidas de protecção recomendadas No concelho de Idanha-a-Nova consideram-se os locais de interesse geológico e geomorfológico a seguir indicados: 4.1. Locais a nível do afloramento 4.1.1. O Cavalgamento da Devesa Localização – No talude da estrada nacional nº 354 (Senhora da Graça- Alcafozes), ao km 25. (Foto 1).

Foto 1 – O cavalgamento da Devesa.

Recuperação do talude da estrada, em vias de deterioração rápida. Placa explicativa das movimentações tectónicas havidas. 4.1.2. Litofacies do Granodiorito de Olêdo Localização: No talude da estrada PenamacorCastelo Branco, ao Km 87,5 (Ponte de S. Gens), junto ao cruzamento para Olêdo e Idanha- aNova. (Foto 2) Caracterização: Litofacies característica do granodiorito de Olêdo, com encraves microgranulares, melanocráticos, fortemente biotíticos. O granodiorito tem granularidade média e é rica em biotite. Junto à bomba de gasolina, o afloramento, muito interessante, está cortado por vários filões aplíticos e mostra disjunção esferoidal, que consiste na formação de bolas com o típico descasque em cebola. Do outro lado da ponte, na curva para Olêdo, observa-se um bom corte do mesmo granodiorito. Trata-se de um granitóide sintectónico, relativamente à fase F3 hercínica (Serviços Geológicos de Portugal, 1992).

Caracterização: Cavalgamento do granito de Idanha sobre as arcoses do Cenozóico (Formação de Cabeço do Infante), através de falha de transferência de direcção NW – SE, associada à falha do Ponsul, com movimentação direita (Dias & Cabral, 1989). O cavalgamento tem pendor 35º a 45º NE, podendo observar-se no talude da estrada e é acompanhado de outras fracturas paralelas, desenvolvidas no interior do granito, também possíveis de observar no mesmo talude, uma das quais rejeita

Foto 2 – Granodiorito de Olêdo

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Importância: Local Interesse Petrológico: Elevado "

Didáctico: Elevado

Medidas de protecção recomendadas: Placa explicativa dos mecanismos de intrusão das rochas granitóides e filonianas. 4.2. Locais a nível do sítio 4.2.1. A crista quartzítica em Penha Garcia

Foto 4 – Cruziana

Localização: Em Penha Garcia, entre o castelo e a barragem (Foto 3).

Observa-se também o rejeito da crista quartzítica provocado por falha transversal esquerda. O conjunto está integrado numa área de grande valor histórico, etnográfico e paisagístico. Importância: Internacional Interesse Sedimentológico : Elevado

Foto 3 – Vista parcial da crista quartzítica em Penha Garcia.

Caracterização: Conjunto de bancadas quartzíticas pertencentes à Formação do Quartzito Armoricano (Ordovícico inferior), orientadas segundo N 60º- 70º W, com forte pendor para NE, frequentemente métricas, e que correspondem ao flanco SW do sinclinal de Penha Garcia. Estas bancadas são ricas em icnofósseis, excepcionalmente bem preservados, principalmente Cruziana, Skolithos, Diplichnites e Merostomichnites (Neto de Carvalho, 2003) (Foto 4). O local pode ser considerado um Geosite (Wimbledon et al., 1998; Garcia Cortés et al., 2000; Gray, 2004). Do castelo de Penha Garcia abarca-se o conjunto quartzítico, podendo descer-se até ao leito do rio Ponsul por um trilho que corta todo esse conjunto, permitindo observar os icnofósseis e frequentes figuras sedimentares.

"

Paleontológico: Excepcional

"

Didáctico: Elevado

"

Tectónico estrutural: Elevado

"

Paisagístico: Excepcional

Medidas de protecção recomendadas: Propõe-se Área de Paisagem Protegida. Deste local já existe roteiro pedestre, editado pelo Clube Ibérico de Montanhismo e Orientação e promovido pela Câmara Municipal de Idanha-a-Nova, intitulado “PR- 3- Rota dos Fósseis”. Propõe-se também placa explicativa, localizada num dos miradouros existentes (Capela, Castelo ou Lapa) contendo informações sobre o ambiente sedimentar, a paleontologia e a tectónica. 4.2.2. O corte geológico do rio Erges Localização: Ao longo do rio Erges, entre o Cabeço das Popas e a Azenha do Charco Redondo, cerca de 7km a Sul das Termas de Monfortinho (Foto 5). Caracterização: Corte geológico no Grupo das Beiras (Complexo Xisto-Grauváquico), abrangendo as Formações de Ribeira de Arades, de Carril das Travessas e de Cabeço das Popas (Rosmaninhal), aqui pela primeira vez reconhecidas e


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ra Vermelha (537m.), no flanco SW do sinclinal de Penha Garcia, e entre o v. g. Fraga da Nave (524m.) e o Cabeço do Monte Trigo (378m.), no flanco NE do sinclinal, localiza-se a falha do Ponsul, que rejeita as cristas quartzíticas, com movimentação esquerda, de cerca de 1km, e com abatimento do bloco oriental.

Foto 5 – O rio Erges no local do corte geológico.

O bloco abatido está em parte coberto pelos sedimentos cenozóicos (Sequeira et al, 1999), apenas sobressaindo no flanco SW o alto da crista quartzítica entre o v. g. Piçarra Vermelha e a Fonte Santa.

definidas (Sequeira, 1991; 1993 a). Especial interesse têm os metaconglomerados do Cabeço das Popas (orto e paraconglomerados), que para alguns autores têm origem glacioderivada (San Jose et al., 1995).

No flanco NE do sinclinal, a sequência ordovícica observada no bloco abatido está praticamente completa desde o Quartzito Armoricano até aos arenitos do Caradociano.

Podem ser observadas, no corte, as várias litofacies do Grupo das Beiras, desde os metaconglomerados, com dropstones e clastos de fosforitos, até aos metaquartzovaques, metagrauvaques, xistos laminados e xistos maciços. Podem ser, também, observados os aspectos tectónicos-estruturais, como foliações e dobramentos, geralmente de eixo vertical ou verticalizado, assim como rochas filonianas ácidas e básicas que intruem o Grupo das Beiras.

Interesse Tectónico- estrutural: Elevado

Importância: Regional Interesse Estratigráfico: Elevado "

Sedimentológico: Elevado

"

Tectónico- estrutural: Elevado

"

Didáctico: Elevado

Medidas de protecção recomendadas:Roteiro pedestre ao longo do rio Erges, com explicações detalhadas. Propõe-se Área de Paisagem Protegida.

Importância: Regional "

Estratigráfico: Elevado

"

Didáctico: Elevado

"

Paisagístico: Elevado

Medidas de protecção recomendadas: Um bom local para observação do rejeito das cristas e de boa parte da sequência ordovícica, é o Cabeço do Monte do Trigo, não acessível de momento, por ser propriedade privada. Propõe-se roteiro pedestre. 4.2.4. As Termas de Monfortinho Localização: Junto do rio Erges, na fronteira com Espanha (Foto 6). Caracterização – Os centros hidrotermais são exemplos que por si só constituem áreas de interesse natural, paisagístico, ambiental e terapêutico (Barbosa et al., 1999).

As águas minerais naturais das Termas de Monfortinho são hipossalinas, silicatadas, bicarbonatadas sódicas (Carvalho, 2001). Segundo este 4.2.3. O rejeito das cristas quartzíticas provocado pela falha do autor, as águas têm uma temperatura de descarga Ponsul e a sequência ordovícica do sinclinal de Penha Garcia de 30,5º C e o seu aquífero está instalado nos Localização: Cabeço do Monte do Trigo e ime- Quartzitos Armoricanos, entre a falha do Ponsul diações. e o rio Erges. Caracterização: Entre a Serra Gorda (v. g. Fonte A recarga do aquífero é efectuada pela infiltração Longa, 629m.) e o vértice geodésico (v. g.) Piçar- das águas das chuvas na crista quartzítica, mui-

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território nacional, com uma largura média de 2 km, e continuando-se para Espanha. É constituída por duas cristas sub- paralelas formadas pelos quartzitos do Ordovícico inferior, no interior das quais se encontram, a cotas mais baixas, as unidades do Ordovícico médio e superior. Em Portugal possui registo desde o Tremadociano (?) até ao Ashgiliano.

Foto 6 – Termas de Monfortinho.

to fissurada. O aquífero está confinado entre os xistos e metagrauvaques do Grupo das Beiras e os xistos do Ordovícico médio. A circulação da água é profunda. Estas águas estão indicadas para o tratamento de doenças de pele, especialmente da psoríase, e do aparelho digestivo. Já eram utilizadas pelos romanos. Importância: Regional Interesse Hidrogeológico: Elevado "

Terapêutico: Elevado

"

Turístico: Elevado

Medidas de protecção recomendadas: Dada a vulnerabilidade das áreas termais, estas devem ser acauteladas, principalmente no aspecto ambiental. Aqui, os perigos de contaminação das águas termais podem provir das cheias do rio Erges ou das actividades humanas perto da zona de descarga.

A sequência é muito rica no aspecto paleontológico, com fósseis marinhos e inúmeros icnofósseis (alguns de rara qualidade) (Nery Delgado, 1885; Neto de Carvalho, 2003). De alguns locais é possível a visualização do fecho da megadobra sinclinal, à escala quilométrica. Importância: Nacional Interesse Estratigráfico: Elevado "

Sedimentológico: Elevado

"

Paleontológico: Excepcional

"

Tectónico- estrutural: Elevado

"

Geomorfológico: Elevado

"

Didáctico: Elevado

"

Paisagístico: Excepcional

Medidas de protecção recomendadas: Propõe-se Área de Paisagem Protegida. Miradouro situado no v. g. Vaca (828m.) donde se observa o fecho da estrutura nas imediações de Salvador, assim como vista espectacular para o interior do sinclinal e para a planície que o cerca (Foto 7).

Contudo, a situação está controlada pela empresa que gere o balneário termal. 4.3. Locais a nivel da paisagem 4.3.1. O sinclinal de Penha Garcia (no seu conjunto) Localização: Entre a fronteira (Termas de Monfortinho) e Salvador, quase totalmente dentro dos limites do concelho de Idanha-a-Nova. Caracterização – Estrutura geológica de grande beleza paisagística, com direcção geral N 60º70º W, estendendo-se ao longo de 21,5 km em

Foto 7 - Fecho do sinclinal de Penha Garcia observado do v. g. Vaca.


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4.3.2. Os Inselberge de Monsanto e Moreirinha Localização: Em Monsanto e imediações (Foto 8).

Foto 8 – O inselberg de Monsanto.

Caracterização: Estruturas geomorfológicas constituídas por relevos que emergem bruscamente de uma superfície de aplanação de altitude média de 400m. (a Superfície de Castelo Branco), atingindo os 679m. em Moreirinha e os 763m em Monsanto. Estão situadas na parte sul do maciço granítico de Penamacor - Monsanto, considerado como tardi a póstectónico, relativamente a F 3 hercínica (Serviços Geológicos de Portugal, 1992). São devidas a uma fase climática bastante árida, acompanhada de fortes enxurradas (Ribeiro, 1949). Em cada um destes inselberge formaram-se tors e caos de blocos arredondados (bolas), que foram aproveitados em Monsanto como cobertura ou paredes das habitações. Conjunto integrado numa área de grande valor histórico, etnográfico e paisagístico (Aldeia Histórica de Monsanto).

4.3.3. As elevações pliocénicas da Murracha, da Murrachinha e das Pedras Ninhas Localização: Entre Alcafozes e Monfortinho, numa extensão de 9 km. Caracterização: São três elevações que se estendem ao longo da falha do Ponsul, formando um alinhamento ENE – WSW, e constituindo monadnoks no limite entre os terrenos antigos (Grupo das Beiras) e a bacia cenozóica. Têm morfologia de colinas abauladas ou de lombas com perfil trapezoidal e cimo plano. Com cotas bastante acima da superfície de aplanamento geral de 350- 400m., a Murracha atinge 580 m., a Murrachinha 514 m. e a Pedras Ninhas 529 m.. São constituídas por sedimentos essencialmente conglomeráticos, formados por leques aluviais no sopé de escarpas tectónicas e correspondem às sucessivas fases de soerguimento da Cordilheira Central (Cunha, 1996). Em parte fossilizam a falha do Ponsul (Ribeiro, 1943; Sequeira et al., 1999). Importância: Regional Interesse Sedimentológico: Elevado "

Tectónico- estrutural: Elevado

"

Geomorfológico: Excepcional

"

Didáctico: Elevado

Medidas de protecção recomendadas: Propõe-se Área de Paisagem Protegida. De alguns miradouros, v. g. Vaca e v. g. Monsanto (castelo), obtém-se uma visão geral das três elevações (Foto 9).

Importância: Nacional Interesse Tectónico- estrutural: Elevado "

Geomorfológico: Excepcional

"

Paisagístico: Excepcional

"

Didáctico: Elevado

Medidas de protecção recomendadas: Propõe-se Área de Paisagem Protegida. Miradouro no castelo de Monsanto (763m.), com notas explicativas.

Foto 9 – As elevações pliocénicas (Murracha, Murrachinha e Pedras Ninhas) vistas do v. g. Monsanto.

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4.3.4. O retalho da Superfície da Meseta encostado à crista quartzítica Localização: Na estrada de Penha Garcia a Vale Feitoso. Caracterização: Encostada à crista quartzítica do flanco NE do sinclinal de Penha Garcia, em terrenos do Grupo das Beiras, encontra-se um testemunho da Superfície da Meseta (Ribeiro, 1949), com área de cerca de 5 km2 e cota que varia entre 655m. (v.g. Alagoas) e 600m. Está basculado para SW, para o lado da crista. É um retalho preservado da velha paisagem, destruída pela erosão aquando da formação da Superfície de Castelo Branco. Do caminho que segue para o Medronhal, ao longo da encosta do flanco NE da crista, pode ter-se uma visão à distância da crista quartzítica, do degrau desta para a Superfície da Meseta e do degrau desta para a Superfície de Castelo Branco (Foto 10). Mais ao longe, numa linha contínua, que da região de Penamacor-Sabugal se dirige para território espanhol, pode observar-se o degrau da Superfície da Meseta, a qual se desenvolve para Norte. Importância: Regional. Interesse Geomorfológico: Elevado "

Didático: Elevado

"

Paisagístico: Elevado.

Foto 10 – Retalho da Superfície da Meseta. À esquerda, a crista quartzítica. À direita, a descida para a Superfície de Castelo Branco.

Medidas de protecção recomendadas: Propõese Área de Paisagem Protegida.Miradouro, com notas explicativas, situado em local do caminho indicado, donde se possa observar a paisagem até à Serra da Malcata. 4.3.5. A escarpa da falha do Ponsul Localização: A falha do Ponsul tem cerca de 120 km de extensão. Atravessa todo o concelho de Idanha-a-Nova, continuando-se para os concelhos de Castelo Branco e de Vila Velha de Ródão e para Espanha. Caracterização: A escarpa de falha é visível na paisagem ao longo de todo o concelho. A falha, com direcção geral N 60º E, tem movimentação inversa e esquerda, como se pode comprovar pelo rejeito das cristas quartzíticas do sinclinal de Penha Garcia e dos metaconglomerados do Grupo das Beiras. O bloco que subiu foi o bloco NW. Em quase todo o seu trajecto faz o contacto entre os terrenos do soco hercínico e os depósitos cenozóicos, entrando já perto da fronteira com Espanha, no interior do soco. Tem associadas falhas de transferência, normalmente direitas, como acontece no local 4.1.1 (cavalgamento da Devesa). A escarpa de falha está melhor preservada nos terrenos graníticos que nos xistentos, como se vê junto a Idanha-a-Nova (Foto 11). Contudo, mes-

Foto 11 – A escarpa de falha do Ponsul em Idanha- a- Nova.


O Património Geológico e Geomorfológico do concelho de Idanha-a-Nova Contributo para a sua classificação como Geoparque

mo nestes últimos consegue-se reconhecer, no terreno, o degrau correspondente à falha.

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Tectónico-estrutural: Elevado

Actualmente, o rio forma garganta apertada sobre o granito de Idanha, entra em seguida na campina (bloco abatido), regressando alguns quilómetros depois, de novo ao soco, onde forma nova garganta epigénica, desta vez, no Grupo das Beiras.

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Didático: Elevado

Importância: Regional.

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Paisagístico: Elevado.

Interesse Geomorfológico:Excepcional

Importância: Regional. Interesse Geomorfológico: Elevado

Medidas de protecção recomendadas: Propõese Área de Paisagem Protegida. Miradouros com notas explicativas no sítio do castelo de Idanha-aNova e no alto do castelo de Monsanto. O conjunto dos dois miradouros abarca a quase totalidade da escarpa de falha até aos limites do concelho. 4.3.6 . As gargantas epigénicas do rio Ponsul Localização: No troço do rio Ponsul, de Idanhaa-Nova para SW (Foto 12).

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Tectónico-estrutural: Elevado

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Didático: Elevado

Medidas de protecção recomendadas: Propõese Área de Paisagem Protegida. Miradouros, com notas explicativas, no sítio do castelo de Idanhaa-Nova, para observação da garganta epigénica no granito, e na Ponte da Munheca, na estrada de Ladoeiro a Castelo Branco, para observação da garganta epigénica instalada no Grupo das Beiras. 4.4. Outros locais A acrescentar aos locais enumerados anteriormente, existem ainda outros, com interesse geológico, principalmente a nível do afloramento ou do sítio.

4.4.1. Locais com interesse mineiro e arqueológico-mineiro · As antigas explorações (romanas?) de Termas de Monfortinho, na margem direita do rio Erges, nos locais designados por Veiga do Cravo, Veiga de Cima e Veiga de Baixo. DocumentamFoto 12 – A garganta epigénica do rio Ponsul vista do sítio do se antigos trabalhos a céu aberto, provavelmente castelo de Idanha- a- Nova. romanos e/ou medievais (Carvalho e Ferreira, Caracterização: O rio Ponsul traçou o seu cur- 1954), para exploração de ouro na base da Formaso nesta região, indiferentemente, sobre os dois ção de Monfortinho (Sequeira et al., 1999). Estes blocos separados pela falha do Ponsul, formando trabalhos deram origem a enormes amontoados de blocos de quartzito, normalmente designados gargantas epigénicas no bloco soerguido e traçanpor conheiras, e respectivas cicatrizes no terreno, do meandros no bloco abatido (Ribeiro, 1949). visíveis até há poucos anos, mas que ficaram praIsto demonstra que o leito do rio é anterior ao ticamente destruídos por terraplanagem aquando levantamento tectónico, quando ainda toda a re- da construção das piscinas municipais. gião estava coberta pelos depósitos cenozóicos. · Galerias subterrâneas romanas, na região de À medida que se deu o levantamento do bloco Rosmaninhal, em vários locais junto ao rio Tejo, NNW, estes sedimentos foram sendo erodidos segundo indicação do engenheiro e arqueólogo e depositados no compartimento abatido. Mais Samuel Schwarz (1933). Estas galerias serviriam tarde, o rio ao atingir as rochas do soco hercíni- para lavagem e extracção do ouro dos aluviões. Schwarz indica a sua existência nos sítios de Caco, cavou o seu leito nelas.

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beço do Mouro, Couto,Minas, Santa Marinha, Algarves, Fonte Santa e Cubeira. · Restos de antigos poços de exploração de galena em Currais da Arvéola (Salvaterra do Extremo), situados em terrenos do Grupo das Beiras · As instalações mineiras e antigos poços de exploração do Couto Mineiro de Segura, donde se extraiu galena, barite, volframite e cassiterite.

5. Locais privilegiados de observação Existem vários locais, no concelho, de onde se pode fazer uma boa observação geomorfológica e paisagística abarcando os vários locais indicados anteriormente. Consideramos como mais importantes os seguintes: 5.1. Sítio do castelo de Idanha-a-Nova (cota 362 m.)

Deste local, situado sobre o granito de Idanha, 4.4.2 . Locais com interesse estratigráfico no limite da plataforma que constitui a Super· Corte de referência da Formação de Torre fície de Castelo Branco, vê-se ao longe Castelo (Tortoniano superior a Messiniano) ao longo Branco (assente nessa plataforma), e para sul das E. N. 239 e 240 , entre Torre e Termas de tem-se uma visão geral sobre a campina de IdaMonfortinho (Cunha, 1996), com níveis alter- nha, com altitude média de 200 m, preenchida nantes de conglomerados, litarenitos e lutitos. pelos depósitos de idade eocénica a oligocénica inferior (arcoses da Formação de Cabeço do · Corte de referência da Formação de Monfortinho (Zancleano), entre Monfortinho e Termas Infante). A campina faz parte da Superfície do de Monfortinho (Cunha, 1996), mostrando a Alto Alentejo. passagem de conglomerados heterométricos a Aos nossos pés, o contacto entre as rochas do arenitos e lutitos. soco hercínico e os depósitos cenozóicos faz-se · Sucessão de referência do Membro de Murrachinha, da Formação de Falagueira (Placenciano), na elevação da Murrachinha (Cunha, 1996), onde se destacam conglomerados heterométricos, de leque aluvial.

através da falha do Ponsul, estrutura tectónica cuja escarpa se pode reconhecer deste local ao longo de vários kms.

· Observação da escarpa do cavalgamento de Segura, com desnivelamento entre 25 e 50 metros (Dias et al, 1993), que se pode reconhecer no terreno, a W de Segura.

Observam-se, também, na campina de Idanha algumas pequenas cristas com direcção paralela à da falha do Ponsul, que correspondem a terrenos antigos exumados acima da superfície

Um troço do rio Ponsul que se encaixou no bloco que subiu, ocupa uma garganta · Estratotipo do Membro Vaca, da Formação de epigénica, o mesmo acontecendo com a ribeira Louredo (Caradociano). O Membro Vaca , mem- de Alcafozes, que se observa em segundo bro xistento, localizado no topo da Formação de plano. Louredo, foi definido nas bermas da estrada florestal que passa no interior do sinclinal de Penha A escarpa de falha ficou melhor preservada no Garcia (estrada de Entre Serras), cerca de 1600 granito que no xisto, sendo possível comprometros a Leste do colo da Serra Gorda , junto a var este facto comparando este local com o que acontece para SW. Pode-se observar que a esBandonais (Young, 1988), a NE do v.g. Vaca. carpa já recuou em relação ao acidente, tendo· Estratotipo da Formação da Serra Gorda (Trese degradado (Foto 13). madociano?), unidade inferior do Ordovícico do sinclinal de Penha Garcia, formado por me- Junto à Senhora da Graça, cerca de 1 km para taconglomerados , quartzitos e xistos e situado Este, a escarpa ramifica-se e muda de direcno flanco SW da crista, por debaixo do v.g. Vaca ção seguindo uma falha de transferência NW(Sequeira, 1993 b). Apresenta numerosas figuras SE que se vê daqui rejeitar em cerca de 5 km o sedimentares e alguns icnofósseis. contacto entre o soco hercínico e a bacia sedimentar. 4.4.3. Locais com interesse tectónico e geomorfológico


O Património Geológico e Geomorfológico do concelho de Idanha-a-Nova Contributo para a sua classificação como Geoparque

titui um pequeno relevo tabular um pouco acima da superfície geral que se observa bem perto da linha do horizonte, em dias de boa visibilidade. Para E e SE, as cristas quartzíticas do sinclinal de Penha Garcia ressaltam da Superfície de Castelo Branco (Foto 14). Nesta direcção, em último plano, distingue-se a Superfície da Meseta, já em território espanhol.

Foto 13 – Vista do castelo de Idanha-a-Nova sobre a campina e a escarpa de falha.

dos sedimentos. Nota-se esta superfície basculada para o lado da falha do Ponsul. No quadrante Este, em último plano, desenvolve-se a crista ordovícica de Penha Garcia, que se continua em território espanhol, onde certos fragmentos apresentam carácter de inselberg (Ribeiro, 1949). Um pouco mais perto destacam-se o inselberg granítico de Monsanto e o relevo tabular da Murracha, constituído por conglomerados pliocénicos.

Dirigindo as nossas observações para Norte, notamos que a superfície de aplanamento, de altitude média de 400m., é interrompida por relevos que emergem brusca e vigorosamente formando os inselberge de Moreirinha à nossa frente, e de Monsanto no alto do qual nos encontramos. É de notar a morfologia granítica constituída por tors e caos de blocos.

5.2. Castelo de Monsanto (cota 763 m.) Este é outro local privilegiado para observação geomorfológica. Está situado no interior do maciço granítico de Penamacor-Monsanto. Para Sul, para lá do contacto do granito, estenFoto 14 – Vista do castelo de Monsanto para SE. À esquerda a dem-se os metassedimentos do Grupo das Beiras crista quartzítica. até à falha do Ponsul. A escarpa, que se reconhece, corresponde a essa falha. Nesta região, os meNota-se um basculamento da Superfície de Castassedimentos cavalgam os depósitos miocénicos telo Branco, que inclina para Sul, para a falha da Formação de Torre. de Ponsul. Alinhadas ao longo da falha, e fossilizando-a em parte, as três elevações de Murracha, Murrachi- Para NW, observam-se os degraus (Serra da Garnha e Pedras Ninhas, constituídas pelas Forma- dunha e Serra da Estrela) para a Cordilheira ções de Monfortinho e de Falagueira, mostram- Central Portuguesa. São blocos levantados por nos a sua orientação geral ENE – WSW. falhas paralelas à falha do Ponsul, ela própria Os depósitos cenozóicos têm aqui uma largura de constituindo um dos primeiros degraus desse 6 a 7km. Para Sul, nota-se, ao longe, um novo conjunto (Foto 15). desnivelamento que marca a fronteira com os terrenos do soco varisco (Grupo das Beiras e alguns Mais para Norte, nota-se o degrau para a Superretalhos de rochas granitóides). Um desses reta- fície da Meseta, que corresponde ao planalto da lhos, o granito de Salvaterra do Extremo, cons- região do Sabugal.

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6. Conclusões Não se pretendeu com este trabalho fazer uma enumeração exaustiva de todos os locais de interesse geológico e geomorfológico existentes no concelho mas sim dos mais importantes e significativos. Os locais apontados aos vários níveis (afloramento, sítio e paisagem), dada a sua diversidade e interesse, justificam a criação de um GEOPARQUE. Foto 15 –Vista do castelo de Monsanto para NW. Ao fundo os degraus da Gardunha e da Estrela.

5.3. V.g. Vaca (cota 828m.) O vértice geodésico (v.g.) Vaca constitui um dos pontos elevados da Serra Gorda (ou Serra da Gorda), como é conhecido este sector da crista quartzítica do flanco SW do sinclinal de Penha Garcia, entre esta povoação e Monfortinho. Deste local é possível ter uma visão geral sobre o sinclinal, permitindo observar de SE o fecho da megadobra, assim como as cristas dos dois flancos e os terrenos menos elevados do interior da estrutura (Foto 7). Daqui se pode observar, também, a planície que se estende para SW do sinclinal (que se encontra desnivelada pela falha do Ponsul) (Foto 16) e individualizando-se dela, as três elevações pliocénicas e os inselberge graníticos.

Recomenda-se a sua sinalização, com painéis explicativos adequados, nos locais de observação mencionados, podendo ser enquadrados ou complementados com outros locais de interesse turístico-cultural de que o concelho, também, é rico. Destes, destacamos os de natureza arqueológica (do Paleolítico ao Romano, e mesmo posteriores), histórica (aldeias históricas, os vários monumentos), etnográficos (arraiais, moinhos) biológicos (vegetação autóctone, fauna), etc. Mas, para que todo este património possa ser aproveitado e usufruído é necessário agir com rapidez em ordem à sua sinalização e preservação. Neste sentido parece-nos fundamental a elaboração de cartografia geológica detalhada da região, que ainda não se encontra concluída. Ela será importante para documentar, inventariar, defender e preservar esse mesmo património, para além de outros fins de interesse concelhio, como o Planeamento e Ordenamento territorial. Complementada com outros estudos poderá dar origem à elaboração de um mapa de riscos naturais, nomeadamente os associados ao risco sísmico e à radioactividade natural, que acompanhado da divulgação de normas de segurança a cumprir, seria de grande utilidade na prevenção da saúde e segurança das populações. Agradecimentos

Foto 16 – Vista do v.g Vaca para W. Em primeiro plano a Superfície de Castelo Branco e as elevações de Murracha e Pedras Ninhas. Em ultimo plano, a Superfície do Alto Alentejo.

Os autores agradecem ao Prof. Jorge Medina (Univ. Aveiro) a colaboração na composição das figuras e aos Drs. Narciso Ferreira e Paulo Castro (INETI) as sugestões relativas ao texto.


O Património Geológico e Geomorfológico do concelho de Idanha-a-Nova Contributo para a sua classificação como Geoparque

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Associação portuguesa de geólogos

Geonovas nº 18, pp. 93 a 97, 2004

Linhas gerais do desenvolvimento de um projecto de trabalho no âmbito da musealização de um espaço mineiro abandonado1 José M. Brandão2 1

Texto guia de apresentação nos “Encontros Museológicos – Pesquisa em Museologia e seus diferentes vetores acadêmicos” do CEMAE, Universidade de S. Paulo, 2003. 2

Museu Geológico - INETI.

Palavras chave: Património mineiro; identidade; cidadania; desenvolvimento local; museu mineiro ...As antigas minas permitem ao público visualizar (....), uma actividade humana iniciada em tempos pré-históricos e que contribui para a riqueza industrial (....). Elas são também a imagem de um corpo de trabalho, o dos mineiros, e o estudo das minas do passado permite analisar a história desta profissão através dos tempos e o impacto económico, social e cultural da actividade mineira nas comunidades envolvidas... Jean Féraud (1996)

1. Pontos de partida Vivemos num período marcado por contradições entre valores e lógicas de desenvolvimento, nomeadamente no que respeita à memória colectiva e à preservação do património. Se por um lado é necessário investir na melhoria ou construção de equipamentos de uso colectivo de forma a possibilitar a todos as mesmas oportunidades, tendo em vista a (lenta) correcção das assimetrias na repartição dos recursos, por outro, pode dizer-se que tal tem sido feito, tantas vezes, à custa da descaracterização dos valores tradicionais - frequentemente encarados como símbolos de atraso -, mercê da sub-reptícia globalização que vai fazendo perder quadros de referências a troco de um certo “progresso” tecnocrata. Enquanto modo de apreender e representar a realidade natural e humana geradora de cultura (Stránski 1993:17), a museologia apresenta-se como estratégia de mudança de comunicação entre a sociedade e os produtos da sua actividade, apontando desta forma aos museus um novo rumo como instituições ao serviço da comunidade, tendo como missão participar na formação da consciência da comunidade que servem, de forma a que esta apreenda através de um quadro histórico os problemas do homem enquanto indivíduo e enquanto ser social3.

culturais com forte base espacio-temporal e são capazes de promover identificações (....) Os museus são espaços de resistência, uma vez que podem operar como identidades locais (em devir) frente à tentativa de massificação cultural (p. 18). Esta perspectiva, consonante com a de M. Célia Santos (1999:3) para quem o objectivo social da Museologia é a compreensão e valorização da nossa identidade cultural através do património, permite-nos encarar o processo de musealização como vector fundamental no reforço da auto-estima e identidade locais, permitindo a aproximação dos cidadãos aos seus “bens culturais” (democratização da cultura) e contribuindo para o reforço do exercício do direito de cidadania, mediante o aumento da capacidade do cidadão de participar no processo de inventário e decisão sobre a sua herança patrimonial. Estas reflexões espelham, de certa forma, as profundas mudanças vividas pelos museus nas últimas décadas, que P. Van Mensch (1987:50) sintetiza nos seguintes tópicos principais: ·

Ampliação do conceito de objecto museológico.

·

Tendência para a preservação in situ.

Deslocação da centralização no objecto para centralização na comunidade.

·

Nestes tempos de globalização – novo nome para o velho imperialismo - escreve Mário Chagas (2000), os museus Tendo presentes estes princípios orientadores, têm um papel importante. Eles operam com documentos/bens partilhamos da ideia de museus ao serviço do de-


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José M. Brandão

senvolvimento local e/ou regional, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida das comunidades a que se encontram ligados, mediante a criação de interacções que se projectem na elevação do seu nível cultural e económico.

cultural, consequência da crescente democratização do ensino e do alargamento da escolarização.

pectivo património e memória colectiva. A este fenómeno acresce ainda, em geral, a existência de um considerável passivo ambiental (herdado dos tempos em que as preocupações ambientais se limitavam aos casos em que pudessem constituir obstáculos ao ritmo da produção), que tende a agravar-se consideravelmente ao longo do tempo, nas minas abandonadas.

Argozelo nunca foi o que se poderia chamar uma “grande mina” do ponto de vista da produção, no entanto, ocupou o terceiro lugar no “ranking” das minas portuguesas de volfrâmio e estanho, com uma história de exploração de cerca de cem anos (Brandão 1999, 2002 b, d). Assim se entende que, embora abandonada há mais de dez anos, esta mina continue a ser um lugar chave na história da mineração do volfrâmio e constitua, quer pelo património que ainda lhe está associado, quer pelo seu entrosamento na comunidade, um caso exemplar5.

Esta conjunção de interesses tem vindo a permitir a salvaguarda do património histórico-industrial que, no caso em apreço, se expressou pela conversão de algumas áreas mineiras abandonadas, 2. A situação problema económica e socialmente degradadas em pólos Em Portugal, mercê de uma diversificada histó- de atracção e de desenvolvimento cultural e ecoria geológica, ocorre um vasto lote de substâncias nómico. Só na Europa, segundo O. Puche e M. minerais com interesse económico que, pontual- Mazadiego (1998:1), são mais de 500 as antigas mente, deram origem, desde os tempos pré-his- minas convertidas em museus mineiros históritóricos, a largas centenas de explorações, que a, cos, minas-museu, museus de território, ecomucomo sublinha J. Menezes (1988) a maioria das vezes seus ou parques recreativos, visitados anualmente constituiu a principal ou única actividade existente em muitas por muitos milhares de pessoas 4. zonas do interior do país (p. 332). É, pois, neste contexto, que surge a possibilidaSalvo raras excepções, não se conhecem, porém, de de recuperação e reaproveitamento turísticojazigos de grandes dimensões o que determinou cultural do património geomineiro nacional, caa formação de um subsector extractivo baseado racterizado nas últimas décadas, como refere A. em pequenas empresas de fraca capacidade tec- Leite (2000), por um abandono generalizado em virtude nológica e produtiva. Tal facto, aliado ao baixo do encerramento das inúmeras unidades que fizeram história em nível de remunerações e à dureza das condições muitas localidades do país (p. 5). de trabalho, acabou por determinar o prematuro encerramento de muitas minas, o que ficou pro- 3. Um caso exemplar fundamente marcado na economia e estrutura Conhecendo há longos anos a mina de Argozelo social das diversas áreas que tinham nessas minas (Vimioso, Trás-os-Montes) e o respectivo cona principal fonte de sustento. texto, de região deprimida, onde avultam (ainda) A evolução dos mercados internacionais e o como alternativas a debandada para as capitais de esgotamento de muitos jazigos determinaram, distrito e a emigração, não temos dúvida em retambém, nas últimas décadas, o encerramento e conhecer o rude golpe imposto ao tecido social e abandono da maior parte das minas, com a con- económico pelo encerramento forçado da mina sequente degradação, alienação e perda do res- em 1986.

Todavia, com a recente e progressiva afirmação da arqueologia industrial nas suas diferentes valências, o interesse pelo estudo e preservação do património mineiro ampliou-se muito para além dos vestígios da mineração na antiguidade, po- A necessidade de melhorar a qualidade de vida tenciado pelo aumento da apetência pelo turismo dos habitantes desta antiga aldeia mineira po-


Linhas gerais do desenvolvimento de um projecto de trabalho no âmbito da musealização de um espaço mineiro abandonado

tenciando os recursos endógenos da comunidade e os exemplos de sucesso conhecidos no âmbito da preservação e (re)utilização de património industrial, apontam de forma inequívoca para a possibilidade recuperar e valorizar o antigo complexo mineiro constituindo um museu ancorado numa ampla participação da população local, simultaneamente actriz6 e principal destinatária do projecto.

valorização da sua herança patrimonial mineira visando a melhoria da qualidade de vida da população”.

Embora a proposta de programa museológico que apresentámos considere como objectos da musealização os três elementos fundamentais território, população e património, o mais tangível e sensível destes elementos é, sem dúvida, o conjunto dos testemunhos materiais ligados ao antigo complexo mineiro, designadamente o poço mestre e as É consensual a ideia de que os museus mineiros galerias, os anexos mineiros (onde ainda se conservam parte dos equipamentos existentes durantêm por missão fundamental a preservação da memória te a lavra), as escombreiras e o bairro operário. e do património mineiro móvel e construído, propiciando o coSão também parte integrante do património menhecimento dos recursos geológicos, dos métodos e técnicas utilimorial das minas os bens móveis de carácter mais zados na sua prospecção e extracção e favorecendo o conhecimen- pessoal como por exemplo os equipamentos de to da história local, social e económica7 (Brandão 1998:7). protecção individual e de iluminação, fotografias A preservação dos traços fundamentais da paisa- e documentos escritos, os quais se encontram na gem industrial é, também, uma razão de peso, na posse de vários dos antigos trabalhadores, passímedida em que a instalação das minas ocasiona modificações mais ou menos importantes da paisagem pré-existente, decorrentes da introdução de elementos técnicos (cavaletes, lavaria, parques de minério e rejeitados, etc.), como também da instalação das necessárias infra-estruturas sociais e de comunicação. Nesta óptica, o Museu das Minas de Argozelo deveria assegurar, pelo menos, os seguintes dois pilares essenciais da acção museológica: · a preservação / conservação in situ do conjunto de bens móveis e imóveis da mina, conhecidas que são as ameaças de destruição e total desaparecimento deste património, e a · produção de uma mostra / encenação, pela qual se faça, como diz M. Olímpia Campagnolo (1991) a propósito dos museus locais, “a restituição sob a forma de apresentação permanente ou temporária de bens identificados e documentados à população a que estes «pertencem» directa ou indirectamente” (p. 60). A missão deste museu tal como já oportunamente tínhamos tido oportunidade de formular sumariamente (Brandão 2002a:704; 2002b:169), poderia então ter a seguinte expressão: Aprofundar os sentimentos de auto-estima e identidade da comunidade de Argozelo pelo conhecimento, estudo, recuperação e

Fig. 1 – O cavalete metálico e algumas das vagonetas de transporte do minério. Foto J.Brandão 2001.

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José M. Brandão

elevação da qualidade de vida das comunidades envolvidas. Na nossa óptica, o projecto de preservação e valorização do património cultural de Argozelo, alicerçado na criação de um museu mineiro, deverá, também, constituir-se num importante veículo de requalificação ambiental e económica local, pela requalificação dos espaços e minimização do impacte decorrente da antiga exploração e pela criação de novas actividades/oportunidades ligadas ao turismo cultural. Fig. 2 – A galeria de Litarães aberta em flanco de encosta ao nível do 6º piso, encontra-se ainda praticável, conduzindo directamente a uma das zonas mineralizadas mais interessantes. Foto J.Brandão 2001.

Ao lançarmos as bases de reflexão sobre a criação do Museu das Minas de Argozelo à luz dos princípios orientadores da museologia de intervenção, tivemos em mente não apenas a prossecução de veis de serem negociados entre os seus legítimos um projecto de preservação e salvaguarda dos monumentos técnicos da mina, agora arredado proprietários e a equipa projectista do museu. das suas funções produtivas originais e constituíO conjunto destes elementos constituirá o supor- dos em objectos-memória, mas também a criação te material do programa expositivo, organizado de um espaço que combine de forma pedagógica e segundo um percurso de descoberta polinuclea- lúdica o espírito do lugar com a função de símbodo, com eixo na cadeia operatória das actividades lo de identidade e desenvolvimento comunitário ligadas à extracção e ao processamento dos miné- desta pequena região transmontana. rios (Brandão 2002 a, b, c). Referências No que respeita à (re)utilização dos espaços inBrandão, J.M. (1998) – Património Mineiro dustriais da mina para as (novas) finalidades muPortuguês: um filão a explorar. Actas do seológicas, a proposta formulada teve em conta Seminário Arqueologia e Museologia Mineiras, não apenas as funções gerais e as actividades pre- Publ. do Museu do IGM pp. 5-9. vistas no esboço de projecto cultural, como também o inter-relacionamento das diferentes áreas, — (1999) – Museu das Minas de Argozelo: contribuição para o estabelecimento do necessário tendo em vista a harmonização da circulação dos programa museológico. Actas do Simp. Sobre visitantes, do pessoal técnico e dos materiais, facPatrimonio Geológico y Minero, Tomo II, pp. tores determinantes no plano de acessibilidades 167-178. Esc. Sup. Politécnica de Belméz, Univ. do museu. de Córdova. 4. Nota final Se bem que a preservação da memória através da selecção dos seus testemunhos materiais e imateriais seja, na sociedade actual, um exercício de modernidade e cidadania, tal não pode, porém, ser alheado de todo um contexto social e económico local e/ou regional, a fim de que possa constituir-se em verdadeiro acto cultural, isto é, numa fonte de conhecimento e experiências inter-geracionais e inter-populacionais. Estas acções deverão ter uma finalidade eminentemente social, delas resultando benefícios directos na

— (2002a) – O Projecto de musealização das Minas de Argozelo (Vimioso). Actas do Congresso Internacional Sobre Património Geológico e Mineiro. Pub. do Museu do IGM. Lisboa, pp. 697-705 — (2002b) – A Problemática da musealização de espaços mineiros. Um caso exemplar: proposta de instalação do Museu das Minas de Argozelo. Tese de Mestrado Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias., Lisboa. 266 p. + anexos. — (2002c) – Núcleos de interesse do projecto de instalação do Museu das Minas de Argozelo


Linhas gerais do desenvolvimento de um projecto de trabalho no âmbito da musealização de um espaço mineiro abandonado

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V. Declaração de Santiago do Chile, 1972

4 A maior parte destes museus situa-se na Alemanha, Bélgica e Reino Unido, conhecendo-se, no entanto, muitas experiências tanto nos restantes países da Europa Central, como no leste europeu.

Embora tenhamos tido conhecimento da recente e total destruição dos diversos edifícios do antigo complexo mineiro de Argozelo e que, em consequência, por perda de contexto e circunstância esteja comprometida a implementação do projecto museológico tal como fora oportunamente elaborado, é nossa convicção que o presente texto mantém intacta a sua pertinência, pelas propostas metodológicas e de intervenção social, passíveis de serem aplicadas noutros lugares com problemáticas idênticas.

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Antigos operários e mineiros, autoridades locais, professores, pároco, médico, associações, comunidade em geral.

Os museus de mina são também lugares de excelência para o encontro, estudo e divulgação da história local, nomeadamente nas suas vertentes social e económica, tantas vezes marcada pela agitação política e pelas greves, pelo desemprego, pela morte violenta e pelas doenças profissionais, e para o estudo da organização do espaço social e laboral, definido segundo padrões estabelecidos a partir das relações hierárquicas entre a comunidade de trabalhadores e das próprias relações funcionais das instalações. A vertente paisagística é também uma componente de peso na medida em que a instalação destas unidades industriais se traduz em modificações mais ou menos importantes, marcadas não apenas pela introdução dos novos elementos tecnológicos como também pela instalação das infra-estruturas sociais e de comunicação.

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Associação portuguesa de geólogos

Geonovas nº 18, pp. 99 a 102, 2004

Sismos e Barragens: o caso da Barragem do Baixo Sabor João Carlos C. V. Baptista Departamento de Geologia da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e-mail: jbaptist@utad.pt

Resumo: A intenção de se construir a Barragem do Baixo Sabor (Moncorvo) tem produzido um conflito aparente entre técnicos e políticos. Todos nós, como cidadãos, concordamos que a decisão para a sua construção deve ser dada pelos políticos, mas baseada em aspectos técnicos, nomeadamente ter em consideração a relação custos/benefícios. Quando chega a altura de quantificar os custos e avaliar os benefícios, os diferentes pareceres técnicos são muito díspares. Não nos interessa, neste trabalho, determinar porque existe discordância entre os relatórios técnicos dentro das mesmas especialidades. O Estudo de Impacte Ambiental (EIA), obrigatório por lei, deve ser um documento técnico fidedigno, a ter em conta na tomada de decisão da construção ou abandono da Barragem. No Estudo de Impacte Ambiental sobre “Avaliação comparada dos Aproveitamentos do Baixo Sabor e Alto Côa”, existe uma tendência notória para menosprezar os dados geológicos. Os dados geológicos que constam do EIA são obtidos unicamente através da bibliografia existente, são meramente descritivos e não apontam para a necessidade de se realizarem estudos geológicos adicionais. O EIA subestima a perigosidade sísmica da zona e nada diz sobre o Património Geológico. É necessário realizar estudos geológicos adicionais, antes de se tomar a decisão política, que não transparecem no EIA, para se caracterizar a zona do ponto de vista da neotectónica e da sismotectónica. O objectivo desses estudos deve ser a determinação do valor do Sismo Máximo Credível (SMC). A tomada de uma decisão política, sem ter em conta estudos técnicos fidedignos, pode ter custos elevados para todos nós. Palavras-chave: Sismo Máximo Credível, Perigosidade Sísmica, Neotectónica, Sismotectónica, Barragem do Baixo Sabor. Abstract: Earthquakes and Dams: The Case of the Lower Sabor The intention to build the Lower Sabor Dam (Moncorvo) has created an apparent conflict between some technicians and politician. All of us, as citizens, agree the final decision rests with politicians; however, such decisions need to be informed ones based on a responsible assessment of technical concerns along-with considerations of costs and impacts versus benefits. When it comes to quantifying costs and appraising benefits, different technical assessments are particularly discordant. This piece will not seek to explain or examine the disparities among specialists examining the same subject matter. Rather, it will touch on the lack of attention given to certain highly important concerns. Any environmental impact study (EIS), mandatory by law, must be a trustworthy and thorough technical document that lays out essential information for decision makers. The EIS report, “Comparative Assessment on the Exploitation of the Lower Sabor and Upper Côa [Rivers]”, is notable for its tendency of playing down the geological data. The data that make up this EIS were taken wholly from existing bibliographic sources; the information extracted is merely descriptive and fails to stress the need for additional studies. This report has serious shortcomings in its coverage of the seismic risks of the zone and mentions nothing of the area’s geological heritage. It is imperative that further geological studies are carried out and the resulting information presented to the decision makers before they make a political commitment. This EIA does not fulfil a requisite to portray the neotectonic and seismotectonic features of the zone. The aim of such studies would be to determine the value of the Maximum Credible Earthquake (MCE). Political decisions that do not take into account trustworthy technical studies could result in exceedingly high costs and harm for us all. Key words: Maximum Credible Earthquake, Seismic Hazard, Neotectonics, Seismotectonics, Baixo Sabor Dam

1. Introdução A construção da Barragem no Baixo Sabor tem dividido opiniões de ambientalistas, autarcas, técnicos e decisores políticos. Dado o tipo de barragem que se pretende construir – armazenamento de água (com uma altura desde a fundação que poderá estar compreendida entre 114 e 139 metros, dependendo da opção

escolhida), e o ambiente sismotectónico envolvente - salientado em estudos de neotectónica (Cabral,1985 1989, 1993, 1995; Baptista, 1998; entre outros), admitimos que se deviam realizar estudos geológicos específicos, antes de se decidir a sua construção, pois estes podem ter implicações nos custos dessa grande obra de engenharia.


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João Carlos C. V. Baptista

2. Sismos e Barragens

mostram uma correlação entre tamanho do sismo As barragens devem ser projectadas para que pos- e os parâmetros das falhas (comprimento da susam resistir ao Sismo Máximo Credível (SMC) perfície de ruptura, deslocamento superficial dos capaz de ocorrer na área ou nas falhas activas pró- blocos envolvidos, taxas de deslizamento e área de ximas, num raio compreendido entre 50 a 100 ruptura). Comprimentos de superfície de ruptukm a partir do local de construção. A estimativa ra de sismos da ordem de 20 km e 50 km são relado valor da magnitude do SMC desempenha um cionados com sismos de Magnitude de momento papel importante no custo final do projecto de de 6,5 e 7, respectivamente. uma grande obra de engenharia. Por exemplo, é Segundo Bolt (1993, p. 205), actualmente “o muito diferente dimensionar uma barragem para caminho mais realista é aceitar que a previsão que possa resistir a um sismo de magnitude 6 do no sentido estrito não é possível”. Contudo, em que a um de magnitude 7, pois este liberta apro- determinados ambientes tectónicos, é possível ximadamente 30 vezes mais energia do que aque- estimar o tamanho máximo de um futuro sismo, le. Por cada aumento de uma unidade no valor e calcular as probabilidades de ocorrência de um da magnitude, aumenta cerca de 30 vezes o valor sismo nas próximas décadas (ob. cit.). Estes aspectos da energia libertada. O SMC é uma estimativa do sismotectónicos deverão ser considerados quando maior sismo que uma zona de falha pode produ- se pretende reduzir o risco sísmico, tomar zir, independente do tempo, isto é, nesta defini- decisões realistas a nível de segurança de grandes ção não se considera qualquer janela temporal. estruturas de engenharia, e canalizar recursos Na determinação do SMC devem ser considerados públicos, para continuar as investigações que cenários realistas privilegiando uma abordagem têm como objectivo a obtenção de dados úteis na prudente e moderada e não, como muitas quantificação dos processos sismotectónicos. vezes acontece, subavaliar ou sobreavaliar a perigosidade sísmica na área de implantação de grandes estruturas de engenharia. A utilização do sismo máximo histórico não é um procedimento adequado porque o intervalo de tempo é significativamente mais pequeno (1000 anos ou menos) que o intervalo de recorrência dos grandes sismos, que em ambientes tectónicos intraplaca, pode ser de 4000 a 20000 anos. As práticas mais comuns, para estimar o SMC, incluem a maximização das características físicas de uma fonte sísmica, usando rupturas em múltiplos segmentos ou adicionar um valor incremental aos dados da sismicidade histórica. A análise da perigosidade sísmica consiste na caracterização das diversas fontes potenciais de sismos. Será então possível estimar o tamanho dos sismos que podem ocorrer ao longo de uma falha ou numa região? A resposta afirmativa depende da qualidade dos dados sismotectónicos e neotectónicos. Os dados disponíveis até ao momento, que são baseados nos estudos de sismos que ocorreram um pouco por todo o planeta,

3. A barragem do Baixo Sabor No Estudo de Impacte Ambiental (EIA) sobre “Avaliação comparada dos Aproveitamentos do Baixo Sabor e Alto Côa” (AGRI-PRO AMBIENTE & ECOSSISTEMA, 2002) no sub-capítulo 2.5.Sismotectónica e Sismicidade (Vol. III, p. 419 a 427), são referidas as falhas activas existentes, nas proximidades da futura albufeira, como as falhas da Vilariça, a falha da Ribeira de Zacarias e a falha entre Felgar e Larinho. Contudo, nestes estudos, não é explicado o comprimento destas falhas e não são determinadas as relações geométricas entre elas, factos que são muito importantes do ponto de vista da sismotectónica. No que respeita à sismicidade (Vol. III- p. 426), são considerados dois sismos históricos (1751.12.19 – Intensidade (MM) VI – Magnitude estimada de 4 e 1858.03.19 – Intensidade (MM) VII – Magnitude estimada de 4,5 a 5), e é feita referência à sismicidade difusa onde os registos sísmicos apresentam magnitudes inferiores a 5. Esta constatação deveria levar à realização de estudos de Neotectónica, de Paleosismicidade e de monitorização da microsismicidade (alguns anos


Sismos e Barragens O caso da Barragem do Baixo Sabor

anteriores e posteriores à construção da obra) caracterizar a zona do ponto de vista neotectónico numa área envolvente ao local de construção da e sismotectónico, com o máximo rigor científico barragem. A monitorização da microssismicida- possível. A determinação do valor do Sismo Máde poderia responder a duas grandes questões que ximo Credível (SMC), para a zona, deverá ser banão são explicadas neste capítulo do EIA, que seada nesses estudos geológicos específicos. são: a relação entre actividade sísmica e as falhas cartografadas e a determinação do comprimento É comum, nas grandes obras de engenharia, os custos não previstos contratualmente ultrapassados segmentos das falhas activas. Para se determinar o Sismo Máximo Credível rem valores admissíveis, em virtude da não reacom o máximo rigor é necessário ter em conta, lização ou minimização de estudos geológicos de além da sismicidade instrumental e histórica a base. Basta lembrar os valores adicionados aos paleossismicidade, isto é, os sismos que ocorreram custos contratuais, necessários para solucionar nos tempos pré-históricos e que poderão estar aspectos geotécnicos surgidos quando da consregistados nas rochas. É indispensável realizar trução do túnel para o metro, no Terreiro do a cartografia pormenorizada das falhas activas Paço em Lisboa e os relacionados com a selagem existentes na zona, com recurso a trabalhos de de uma falha, não considerada nos estudos geocampo específicos e análise de fotografias aéreas técnicos, com injecção de milhares de toneladas e imagens de satélite. É importante realizar de betão, na Barragem do Alqueva. também a monitorização da microssismicidade (sismos de magnitude inferior a 2), assim O custo real da construção de grandes obras de como estudos de segmentação das falhas activas engenharia é um dado importante a ter em conta (Vilariça, falha entre Larinho e Felgar e falha na relação custos/benefícios. A consideração de da Ribeira de Zacarias, e de outras estruturas estudos técnicos onde se minimizam os custos e geológicas que possam ocorrer), determinar no se maximizam os benefícios em detrimento de campo a geometria das falhas activas, e as relações estudos técnicos realistas e imparciais pode levar espaciais entre elas e com o padrão da sismicidade à tomada de decisões políticas que se revelam basinstrumental. tante onerosas para todos os cidadãos. Do EIA depreende-se que só se entra em conta com os dados da sismicidade histórica e instru- 5. Bibliografia mental, e dados geológicos obtidos por consulta AGRI-PRO AMBIENTE & ECOSSISTEMA bibliográfica, o que é insuficiente, consideran(2002) - Estudo de Impacte Ambiental “Avaliação do que o tipo de barragem projectada (armazenamento de água) e o ambiente sismotectónico comparada dos Aproveitamentos do Baixo Sabor e particular (com uma falha inversa na bacia da Alto Côa”, para a CPPE – Companhia Portuguesa Vilariça que inclina para este e falhas normais na de Produção de Electricidade. bacia do Souto da Velha a este, associadas a mi- Baptista, J. (1998) – Estudo Neotectónico da crossismicidade), configuram uma situação de zona de Falha Penacova-Régua-Verin. Dissertação aumento da perigosidade sísmica. O valor conside Doutoramento, Departamento de Geologia da derado pela EDP para o Sismo Máximo Credível parece ser de 6,7? (valor ainda não confirmado Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, oficialmente, nem referido no EIA). Este valor 346 pp., policopiado. parece ter sido calculado unicamente pela adição Bolt, B. (1993) – Earthquakes and Geological de um valor incremental aos dados disponíveis da Discovery. Scientific American Library, New sismicidade histórica. York. 4. Considerações finais Cabral, J. (1985) - Estudos de neotectónica em É imperioso, caso se pretenda avançar com a barragem, realizar estudos geológicos adicionais, que não transparecem no EIA, para se

Trás- os -Montes Oriental. Tese de equivalência a Mestrado, Dep. Geol. Fac. Ciências de Lisboa, 124 pp.

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João Carlos C. V. Baptista

Cabral, J. (1989) - An example of intraplate neotectonic activity, Vilariça Basin, northeast Portugal. Tectonics, vol. 8, n. 2, pp. 285-303. Cabral, J. (1993) - Neotectónica de Portugal Continental. Dissertação de Doutoramento,

Departamento de Geologia, Fac. Ciências Universidade Lisboa, 435 pp. Cabral, J. (1995) - Neotectónica em Portugal Continental. Memórias do Instituto Geológico e Mineiro, nº 31, Lisboa, 265 p.


Associação portuguesa de geólogos

Geonovas nº 18, pp. 103 a 114, 2004

Radioactividade natural e ordenamento do território: o contributo das Ciências da Terra Luís F. Neves Dep. Ciências da Terra – Univ. Coimbra, luisneves@dct.uc.pt

Alcides C. Pereira Dep. Ciências da Terra – Univ. Coimbra, apereira@dct.uc.pt

Resumo: A radioactividade natural é responsável, em média, por 85% da dose total anual de radiação ionizante recebida pelo ser humano, cabendo ao gás radão cerca de metade deste valor. O gás radão, produzido nas rochas e solos a partir do urânio, tende a concentrar-se em espaços confinados, como é o caso das habitações, contribuindo a sua inalação, bem como a dos seus descendentes radiogénicos imediatos, para o desenvolvimento de neoplasias pulmonares (estimadas em ca. 10% da mortalidade devida a cancro de pulmão). O risco devido à radioactividade natural e em especial ao gás radão depende de diversos factores geológicos, como sejam os teores nas rochas e solos dos elementos radiogénicos U, Th e K, da permeabilidade e ainda da distribuição mineralógica do urânio. Portugal é um país de risco acrescido no que respeita à radioactividade natural, atendendo a que ocorrem rochas graníticas em parte significativa do território nacional, contendo teores de U superiores à média crustal; acresce que se associam a alguns deles numerosas mineralizações de urânio, em especial na região das Beiras e Alto Alentejo, frequentemente suportadas em falhas e filões, as quais constituem um significativo risco ambiental. Na base do estudo detalhado dos factores geológicos referidos, é possível a construção de cartas de risco de radioactividade natural em escala adequada (1:5000 a 1:10000), susceptíveis de utilização nos Planos Directores Municipais, as quais permitem optimizar a relação custo-benefício em protecção radiológica. Palavras-chave: radioactividade natural, radão, cartas de risco, ordenamento. Abstract: Natural radioactivity accounts, in average, for 85% of the annual dose of ionizing radiation that affects the human being; half of this dose is related with the exposure to radon. Radon is a radioactive gas produced in soils and rocks as the result of uranium decay; it usually concentrates in dwellings. The exposure of lung tissues to the radiation produced by radon and its short-lived decay products is the second main cause of lung cancer (10% of the total fatalities). The risk of exposure to natural radioactivity is controlled by geological factors, namelly the U, Th and K contents of rocks and soils, permeability and the mineralogical distribution of uranium. Portugal is a country susceptible to the occurrence of high levels of natural radioactivity, as the result of the presence of granites in a significative proportion of the country, some of which showing relation with a large number of uranium mineralizations (specially in the Beiras and Alto Alentejo regions); these mineralizations are usually surficial (<50 m) and controlled by faults. The availability of natural radioactivity risk maps at a detailed scale (1:5000 to 1:10000) allows to optimize the radiological protection of the population, if properly used for land use planning by local authorities. Keywords: natural radioactivity, radon, risk maps, land use

1. Introdução A radioactividade foi descoberta por Henri Becquerel, em 1896, na sequência da investigação das propriedades de materiais fluorescentes (sais de urânio), aos quais reconheceu a emissão de radiação independentemente da indução por uma fonte de energia externa. Consiste na transformação natural e espontânea de isótopos instáveis, por emissão de radiação alfa ou beta, em isótopos de elementos químicos distintos. No caso da emissão de partículas alfa, as quais correspondem a um núcleo de Hélio (contendo 2 protões e 2 neutrões), o isótopo resultante apresenta por consequência um número atómico duas unidades

inferior, e um número de massa 4 unidades inferior; esta situação pode ser exemplificada pelo decaimento do isótopo 235 do urânio, o qual se converte espontaneamente no isótopo 231 de tório, através da emissão de uma partícula alfa (1).

(1)

+

O decaimento beta resulta da conversão no núcleo atómico de um neutrão num protão, sendo emitido um electrão por forma a ser conservada a carga eléctrica total, o qual corresponde à


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Luís F. Neves & Alcides C. Pereira

partícula beta. Neste caso, o isótopo descendente apresenta o mesmo número de massa mas um número atómico superior em uma unidade: como exemplo pode referir-se o decaimento do isótopo 40 de potássio, o qual se converte por transformação beta no isótopo 40 de cálcio (2).

(2)

+

Em ambos os tipos de decaimento, o núcleo do isótopo descendente permanece em geral num estado de excitação, sendo a energia dissipada através da emissão de radiação gama, de carácter electromagnético, correspondente a fotões de elevada energia. A instabilidade dos átomos que conduz à sua desintegração radioactiva resulta de um desequilíbrio nos núcleos entre o número de neutrões e de protões, com predomínio dos primeiros; assim, os processos de desintegração espontânea produzem isótopos descendentes com menor número de neutrões, conforme é patente nos exemplos apresentados. Não é possível prever o momento em que um isótopo específico irá decair por desintegração radioactiva, sendo o processo de carácter estocástico; é no entanto possível medir a velocidade a que tal processo decorre, sendo esta característica de cada isótopo, e exprimindo-se sob a forma da constante de decaimento. Em termos práticos, é mais perceptível traduzir a velocidade de decaimento através do conceito de meia-vida, que corresponde ao tempo necessário para que uma certa quantidade de átomos de um isótopo se reduza a metade por desintegração radioactiva espontânea. A desintegração radioactiva segue uma lei exponencial, pelo que, decorridas apenas 7 meias-vidas, e não existindo reposição, restarão menos de 1% dos átomos inicialmente presentes. Este facto parece sugerir que na natureza não possam existir isótopos de meia-vida curta comparativamente à idade da Terra, como é o caso 224Ra, com meia-vida de 3,6 dias. Tal não é no entanto correcto, uma vez que o “stock” deste

isótopo está continuamente a ser reposto na natureza, pelo facto de se integrar numa cadeia de decaimento; as cadeias de decaimento têm início num isótopo com meia-vida longa, como 232Th (14 Ga), e consistem numa série de isótopos radioactivos gerados em sequência, até ser atingida uma forma final estável (no caso referido 208Pb). São ainda importantes na natureza as cadeias de decaimento dos isótopos 238 e 235 de urânio, no âmbito das quais se podem podem gerar diversos isótopos com meias-vidas curtas, como exemplifica o caso extremo de 214Po (164 µs). As partículas emitidas nos processos de desintegração radioactiva constituem radiação ionizante, atendendo a que ao interagirem com a matéria têm capacidade para deslocar electrões das orbitais atómicas, transformando assim átomos neutros em iões. Para além da radiação α, β e γ, também os raios-X e alguns neutrões apresentam carácter ionizante. 2. Efeitos biológicos da exposição à radiação ionizante A radiação gama, dado o seu carácter electromagnético, é muito penetrativa, podendo viajar centenas de metros no ar; é necessária uma espessa barreira de betão para a deter. A radiação beta tem alcance de vários metros no ar, sendo no entanto detida por alguns centímetros de madeira ou por uma fina placa metálica. A radiação alfa, dada a sua elevada massa, interage facilmente com a matéria, deslocando-se no ar escassos centímetros, e sendo detida por uma simples folha de papel. A capacidade ionizante destas partículas é proporcional à sua massa; assim, o atravessamento de um núcleo celular com 8 µm de diâmetro por um fotão gama gama produz em média ca. 70 ionizações, enquanto uma partícula alfa pode gerar 23000 ionizações. A acção da radiação ionizante pode traduzir-se directamente na quebra das cadeias de ADN do núcleo celular, o que apenas está ao alcance da radiação alfa. É familiar aos geólogos a observação petrográfica dos efeitos da exposição da matéria cristalina à radiação alfa; tal é comum em cristais de zircão, mineral portador de urânio,


Radioactividade natural e ordenamento do território O contributo das Ciências da Terra 105

os quais desenvolvem uma auréola negra característica resultante da destruição da sua estrutura e da do mineral hospedeiro, pela acumulação sucessiva de impactos alfa ao longo do tempo geológico. Podem ainda ocorrer efeitos indirectos a nível celular, decorrentes da formação de radicais livres OH- e H+ por ionização da água (constituinte dominante das células), os quais são altamente reactivos, e podem perturbar a estrutura do ADN.

Considerando o exposto, a fixação de limites de dose em protecção radiológica converte-se num problema de custo-benefício, não surpreendendo assim que diferentes países, face à sua realidade específica, adoptem para o efeito critérios distintos. Adiante voltaremos a esta questão.

Para a sistematização do conhecimento sobre os efeitos da radiação ionizante têm contribuído sobremaneira dois comités científicos permanentes, funcionando um no âmbito das Nações As transformações causadas a nível celular pela Unidas (UNSCEAR – United Nations Scientif exposição à radiação ionizante traduzem-se, para Comitee on the Effects of Atomic Radiation) e doses elevadas, no desenvolvimento de efeitos de- outro no âmbito da Academia de Ciências dos terminísticos resultantes da perda de funções or- Estados Unidos (BEIR – Biological Effects of gânicas, consequência da lesão ou morte celular. Ionizing Radiation); estes comités, onde se inteAs consequências são previsíveis para cada indiví- gram reputados especialistas da área da protecção duo em função da dose de radiação recebida, re- radiológica, têm produzido com regularidade ao gistando-se, nos extremos, alterações sanguíneas longo do tempo extensos relatórios-síntese actupara doses efectivas* da ordem dos 0,5 Sv, e morte alizando o conhecimento científico nesta área, fulminante para doses superiores a 20 Sv (Bet- datando os últimos de 1998 (BEIR-VI) e 2000 tencourt, 1998). A exposição a baixos níveis de (UNSCEAR). radiação ionizante, contudo, não origina efeitos aparentes imediatos; estes são do tipo estocástico, 3. Fontes naturais e antropogénicas de radiação resultando de alterações ao ADN, tendo ocor- ionizante: o caso especial do gás radão rência muito posterior à exposição sob a forma de O Homem recebe um dose média anual de doenças cancerígenas ou da transmissão heredi- radiação ionizante que se estima em ca. 2,7 mSv tária de malformações. Neste caso, é imprevisível (UNSCEAR, 2000). Esta radiação é proveniente para cada indivíduo específico se os efeitos des- de diferentes fontes, como se indica de seguida. critos se irão manifestar; é, no entanto, possível Por acção antropogénica, encontram-se no estimar a taxa de incidência estatística expectável, ambiente diversos radionuclídeos (eg. 3H, face à dose recebida, quando envolvidos um nú- 137 Cs), designadamente resultantes de testes com mero significativo de indivíduos. armas atómicas na atmosfera, do acidente de Na base de estudos experimentais e epidemioló- Chernobyl, da operação de centrais nucleares gicos, tem sido adoptado pelos principais orga- e da emissão de cinzas por centrais térmicas a nismos de protecção radiológica internacionais, carvão. As doses médias anuais devidas aos dois como o ICRP (International Commission on primeiros casos vêm diminuindo desde 1963 e Radiological Protection) e a IAEA (International 1986, respectivamente, não ultrapassando na Atomic Energy Agency), um modelo de dose-res- actualidade 0,005 mSv; ainda mais reduzida é a posta de exposição à radiação ionizante designado dose devida às emissões regulares provenientes das por LNT (Linear No-Thresold); em termos prá- centrais nucleares. Assume proporcionalmente ticos, tal significa que a mínima dose de radiação maior relevância, de entre as fontes referidas, a tem potencial para causar danos biológicos, não emissão de cinzas contendo radionuclídeos naexistindo assim um limiar de segurança passível turais por parte das centrais térmicas a carvão, de ser adoptado, e que os efeitos causados sobre estimando-se que possam originar uma dose méa saúde apresentam uma incidência estatística dia de 0,01 mSv (UNSCEAR, 2000). De difícil que é directamente proporcional à dose recebida. quantificação, mas de valor inexpressivo, é a dose

* A dose efectiva de 1 Sv (Sievert) corresponde à absorção de 1 J de energia por kg-1 do material irradiado, sendo ponderados o tipo de radiação envolvido (atendendo às distintas capacidades de ionização), bem como a diferente sensibilidade dos órgãos do corpo humano.


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de radiação ionizante recebida a partir de alguns materiais correntes que incorporam isótopos radiogénicos, como os detectores de fumo, mostradores fluorescentes, lentes, etc. A soma das contribuições referidas é desprezável face à principal fonte de radiação ionizante de origem antropogénica, a qual consiste nos meios de diagnóstico e de tratamento médico (0,4 mSv a-1). Como consequência da generalização de técnicas como as Tomografias Axiais Computorizadas, nos países mais evoluídos a dose média devida a fontes médicas pode ascender já a perto de 1 mSv a-1.

Th, apesar de se exprimir em concentração muito superior nas rochas.

No organismo humano incorporam-se, por outro lado, isótopos radiogénicos através da cadeia alimentar, de entre os quais se destacam o carbono 14 e o potássio 40 (emissores beta), com actividades totais estimadas para um adulto de 70 kg da ordem dos 15000 e 4400 Bq*, respectivamente. A dose anual produzida é da ordem dos 0,3 mSv. Finalmente, o gás radão e os seus descendentes radiogénicos assumem a responsabilidade por uma dose média Face à dose média anual estimada, as fontes significativamente superior às restantes fontes antropogénicas de radiação ascendem a ca. 15% (1,2 mSv a-1), o que lhes confere um papel de do total, correspondendo, por conseguinte, às destaque no âmbito da radioactividade natural. fontes de origem natural a responsabilidade Por si só, correspondem a 45% da dose de pela parte maioritária da dose (85%). Estas radiação recebida anualmente pelo Homem, e a são diversas, como segue. A radiação cósmica, ca. 50% da dose devida a fontes naturais. O radão proveniente do espaço exterior, é parcialmente é um gás nobre, não reactivo, inodoro e incolor, filtrada pela atmosfera, pelo que a dose varia mais denso que o ar. Apresenta três isótopos com a altitude; estima-se que corresponda, principais, gerados nas cadeias de decaimento 238 235 232 em média, a 0,4 mSv.a-1, podendo atingir 1,8 de U, U e Th, os quais se designam-se, 222 mSv.a-1 a 3600 m de altitude. Os elementos respectivamente, por radão ( Rn), actinão 219 220 radiogénicos presentes nas rochas, solos e ( Rn) e torão ( Rn), com meias-vidas de 3,8 materiais de construção produzem radiação dias, 55s e 4s. O único isótopo com mobilidade ionizante, contribuindo com uma média de 0,45 significativa nos sistemas geológicos, devido à mSv.a-1 para a dose total recebida. Tal resulta sua mais longa meia-vida, é o 222Rn, o qual da presença de elementos radiogénicos como o é designado pelo mesmo nome que o elemento potássio (tendo o único isótopo radiogénico 40K químico. uma abundância relativa de 0,01%), o tório (o A elevada dose de radiação ionizante associada ao isótopo 232Th corresponde a perto de 100%) e radão justifica que sobre este gás se centre alguo urânio (235U e 238U, com abundâncias relativas ma atenção, em especial no que respeita ao isóde 0,7 e 99,3%). As concentrações dos elementos topo com maior mobilidade (222Rn). Na figura 1 químicos nas rochas e solos é muito variável em reproduz-se a cadeia de decaimento de 238U; esta função de factores geológicos, podendo contudo cadeia tem início com um isótopo de meia-vida indicar-se como referência as concentrações muito longa (4.5x109 anos) e termina com a formédias estimadas para a crusta continental ma estável de 206Pb. Nesta cadeia são de assinalar superior (Taylor e McLennan, 1985): 2,8% para dois factos relevantes: a) todos os isótopos geraK, 10,7 ppm para Th e 2,8 ppm para U. No caso dos são sólidos, à excepção de 222Rn; b) a 222Rn dos isótopos de Th e U referidos, são geradas sucedem-se vários isótopos com meia-vida muito extensas cadeias de decaimento, pelo que em curta, designadamente 218Po, 214Pb, 214Bi e 214Po equíbrio secular a radiação emitida corresponde (entre 164 µs e 27 m). Da combinação destes dois não apenas aos isótopos percursores, mas a todos factos resulta que, por ser um gás, parte do radão os radioisótopos da respectiva cadeia; assim, não pode libertar-se dos materiais geológicos e entrar surpreende que a comparticipação de K para a em contacto com o Homem através do ar inaladose total de radiação emitida não exceda a de U e do; o decaimento nos pulmões gera descendentes

* O Becquerel (Bq) é uma unidade de actividade, correspondendo a uma desintegração por segundo.


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Fig. 1 – Cadeia de decaimento de 238U (adaptado de Figueiredo, 1998).

sólidos, os quais ficam ligados em definitivo aos seus tecidos. Desta forma, existe potencial para em curto espaço de tempo um único átomo de radão poder conduzir até 3 emissões alfa e 2 beta, através da desintegração sucessiva dos seus descendentes de meia-vida curta. Por outro lado, os referidos descendentes tendem a ligar-se a poeiras e aerossóis presentes na atmosfera, quando são gerados por decaimento de radão exteriormente ao organismo, podendo de seguida ser inalados e fixarem-se nos tecidos pulmonares. Por esta razão, estimativas efectuadas por entidades internacionais de protecção radiológica apontam para que a exposição ao radão seja a causa de 6 a 15% dos casos de cancro pulmonar, com valor médio estimado de ca. 10%. Acresce ainda aos factos apontados uma acentuada tendência para o radão produzido pelos materiais geológicos se concentrar no ar de espaços confinados. De facto, em condições normais o radão produzido no subsolo ascende em parte à superfície topográfica, fluindo para a atmosfera,

onde se dilui; o ar atmosférico contém alguma actividade de radão, ainda que geralmente reduzida (<10 Bqm-3). Contudo, quando existem habitações, estabelecem-se gradientes de pressão que conduzem o gás para a habitação, como resultado da mais elevada temperatura no interior

Fig. 2 – Vias de penetração do radão em habitações (adaptado de Lao, 1990).


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desta (Fig. 2); poderão também contribuir para o estabelecimento de tal gradiente a exposição diferencial da habitação ao vento ou a presença de sistemas de extracção de ar. O radão concentra-se assim nos pisos inferiores das habitações, por difusão ou aproveitando juntas mal seladas e fissuras; pode aqui atingir concentrações de algumas dezenas a alguns milhares de Bq.m-3. Atendendo a que é mais denso que o ar, as suas concentrações reduzem-se significativamente a partir do segundo piso acima do solo, tendendo a equilibrar com os valores atmosféricos. Em média, estima-se que ca. 95% do radão presente numa habitação seja proveniente do subsolo (onde as concentrações deste gás são em geral muito elevadas), 5% dos materiais de construção e menos de 1% libertado a partir da água consumida (Fig. 2). Em casos especiais, no entanto, a participação das duas últimas fontes pode ser significativamente superior (materiais de construção muito ricos em urânio; utilização de águas subterrâneas ricas em radão a partir de furos de captação próprios). A tendência recente para aumentar o conforto térmico das habitações por via de um melhor isolamento é, no que respeita ao radão, um factor prejudicial, dado as concentrações deste gás serem diminuidas por via de uma mais acentuada ventilação do ar interior. A importância do gás radão para a dose total anual de radiação ionizante recebida pelo ser humano justifica que diversos países tenham adoptado legislação específica. Na inexistência de um limite de dose de segurança, conforme já anteriormente discutido, os valores estabelecidos variam consoante o caso específico de cada país, tendo o limite mais restritivo sido adoptado pelos EUA e Luxemburgo (150 Bq.m-3), e o mais permissivo pelo Canadá (800 Bq.m-3). A maioria dos países que adoptaram legislação fixaram valores-limite entre 200 e 400 Bq.m-3, sendo este o caso da maioria dos países da UE; aliás, a recomendação europeia 90/143/Euratom sugere precisamente a adopção do limite de 400 Bq.m-3 para habitações existentes e de 200 Bq.m-3 em habitações a construir futuramente (o que tem como pressuposto o facto de serem mais elevados os custos de remediação do que os custos de prevenção). Alguns países da UE não têm legislação específica, designadamente Portugal, Espanha,

França, Itália e Holanda. A recomendação europeia 2001/928/Euratom sugere ainda aos países membros a adopção do limite de 1000 Bq.l-1 para a actividade de radão em águas de consumo humano; esta recomendação não foi também até ao momento considerada na legislação nacional. No que respeita à dose total de radiação recebida, uma directiva europeia já transposta para a legislação nacional (96/29/Euratom), aplicável a locais de trabalho susceptíveis de conterem elevados níveis de radiação (instações nucleares, minas, instalações termais, grutas), fixa em 20 mSv por ano a dose máxima de radiação ionizante para trabalhadores e em 1 mSv a dose máxima para membros do público (população em geral). 4. Factores geológicos que condicionam a exposição à radioactividade natural A exposição à radioactividade natural é condicionada por diversos factores geológicos. Desde logo, e conforme já referido, a emissão de radiação ionizante por parte de rochas e solos depende do seu conteúdo em U, Th e K; a produção de radão dependerá apenas da concentração de U. Os conteúdos em elementos radiogénicos são muito variáveis de litologia para litologia, podendo no entanto estabelecer-se para algumas das mais correntes um quadro de comportamento geral (tab. 1). Da tabela 1 verifica-se que as litologias que tendem a apresentar as mais elevadas concentrações de elementos radiogénicos em geral, e de urânio em particular, são os materiais sedimentares silto-argilosos e as rochas graníticas. Algumas litologias menos comuns, como rochas fosfatadas e xistos negros, são conhecidas por apresentarem elevados teores de U. Enriquecimentos locais em Th, geralmente associados à presença de minerais acessórios como monazite e torite, podem também ocorrer em sedimentos detríticos e seus derivados metamórficos. No que respeita especificamente ao gás radão, se a sua produção é condicionada pelo teor de urânio dos materiais geológicos, conforme já referido, na mobilidade do gás são intervenientes outros factores. A distribuição mineralógica do urânio, por exemplo, condiciona sobremaneira e emanação do radão, ou seja, a proporção dos átomos


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U

Th

K

Rochas sedimentares Carbonatos Conglomerados Arenitos Argilitos

≈ +

+ +

≈ +

Rochas metamórficas Xistos Metagrauvaques Quartzitos Gneisses Anfibolitos

≈ ≈ -

≈ ≈ -

≈ ≈ -

das fracturas e a sua abertura influem na permeabilidade. Em meios de permeabilidade reduzida a moderada (até 10-12 m2) o fluxo de radão é efectuado por difusão, sendo a distância máxima de transporte típica de 5 cm em água e 5 m no ar. Para permeabilidades superiores o transporte convectivo torna-se dominante, podendo a distância de migração do radão ascender a algumas dezenas ou mesmo centenas de metros.

Outros factores, de carácter não geológico, condicionam também as concentrações de radão em solos e habitações, manifestando-se através de Rochas Ígneas variações diurnas ou sazonais. Na figura 3 ilusGabros, Dioritos tra-se este facto, através dos resultados da mediTonalitos, Granodioritos ≈ ≈ ≈ ção contínua dos níveis de radão com um detecGranitos + + + tor colocado a 1m de profundidade em substrato Tab. 1 – Concentrações típicas de algumas litologias mais correntes relativamente à média da crusta continental superior; granítico, na região de Canas de Senhorim, duinferior (-), próxima da média (≈) e superior à média (+). No rante 3 semanas, no verão de 2001. Verifica-se que respeita às rochas ígneas, os valores referidos valem para os uma marcada ciclicidade diurna,registando-se os equivalentes vulcânicos das litologias indicadas. valores mais altos quando o sol se encontra sobre o zénite do local, altura em que a turbulência atdeste gás que se libertam da fase sólida onde são mosférica é elevada maximizando a diluição do produzidos. Tal resulta do facto de apenas os áto- radão na atmosfera, e os valores mínimos quando mos gerados na bordadura das fases minerais ou o sol se encontra no nadir, em que a turbolênem microfissuras terem capacidade de se libertar, cia atmosférica é reduzida, o que dificulta o fluxo ficando os produzidos no interior dos minerais litosfera-atmosfera. Outros factores, como a huaprisionados na malha cristalina. Influem ainda midade do solo, variações na pressão atmosférica sobre a emanação o teor de humidade nos poros ou o próprio ciclo lunar podem também introintercristalinos e a granulometria dos materiais. duzir variações nos resultados, observáveis em Uma vez emanado, o gás tenderá a movimentar-se períodos mais longos e com variações nas condipor difusão ou convecção no sentido da superfície ções climatéricas. O mesmo tipo de ciclicidades topográfica, onde a porção que não decaiu no pode ser observado para o radão no ar interior de percurso acaba por se libertar para a atmosfera; habitações, geralmente de forma não tão vincada, o fluxo de radão na interface litosfera-atmosfera atendendo a que a própria actividade dos ocupandesigna-se por exalação, e é medido em Bq.m-2s- tes influi sobre as concentrações do gás, designa1. A exalação é condicionada pela permabilidade damente pelo arejamento resultante da abertura das rochas, ou seja, pela presença de poros interconectados. Em sedimentos a permeabilidade depende da granulometria, textura e estrutura; tendencialmente, como é sabido, os materiais de granulometria fina, como as argilas, tendem a ser impermeáveis, e os grosseiros bastante permeáveis. Por este facto, embora os sedimentos pelíticos sejam relativamente ricos em urânio, o risco que colocam para o radão é em geral reduzido, ao impedirem a mobilidade do gás. Em rochas consolidadas a permebilidade é essencial- Fig. 3 – Resultados da monitorização dos níveis de gás radão a ca. mente conferida pela fracturação que as afecta. O 1 metro de profundidade, durante 3 semanas, em local de subsgrau de fracturação, a configuração geométrica trato granítico situado na região de Canas de Senhorim.


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de portas e janelas. É de salientar, no entanto, mente observados (8 a 10 ppm). No que respeita à que as mais elevadas concentrações de radão ten- produção de radão são conhecidas rochas granítidem a ocorrer durante a noite, período em que a cas de baixo potencial, caso do granito de Figueiventilação é reduzida, e que coincide com a maior ró dos Vinhos, com teor médio de U de 5 ppm, até ocupância das habitações. Outros factores como a outras revelando elevado potencial, como o gratipologia, estado de conservação das habitações e nito porfiróide das Beiras, aflorante na região de grau de isolamento podem originar significativas Tábua-Viseu-Guarda, com teor de 12 ppm; os vadiferenças entre si no que respeita à actividade do lores mais frequentemente observados neste tipo de litologias situam-se entre 7 e 10 ppm (Pereira gás radão. et al., 2003). 5. Alguns dados sobre o território nacional A determinação das concentrações de radão O conhecimento geológico e geoquímico das no ar do solo, a qual constitui um excelente principais litologias que ocorrem no território indicador do potencial de transmissão deste gás nacional permite antever que será essencialmente às habitações, mostra para as diversas litologias com as rochas graníticas que se relacionam os já referidas uma boa correlação com os teores principais problemas associados à radioactividade de U observados (Pereira et al., 2003). Assim, natural (Neves et al., 1996). De facto, carbonatos, os carbonatos apresentam a menor concentração sedimentos detríticos areno-conglomeráticos, média de radão (2 KBq.m-3), seguindo-se os bem como quartzitos, xistos e grauvaques, sedimentos detríticos grosseiros (6 KBq.m-3) e os todas litologias bem representadas no território metassedimentos do complexo xisto-grauváquico português, apresentam teores de U e Th (12 KBq.m-3). Os sedimentos pelíticos mostram inferiores ou próximos da média crustal (Pereira valores dentro do mesmo intervalo de variação et al., 2003); apenas os materiais silto-argilosos e da maioria das rochas graníticas (25 a 30 os granitos excedem, em geral, os valores médios KBq.m-3), destacando-se o granito hercínico da crusta, mas o carácter impermeável dos porfiróide das Beiras, tardi-tectónico, com primeiros impede a mobilidade do radão por eles actividade média de radão nos solos da ordem produzido. dos 52 KBq.m-3 (aflorante na região de TábuaNo que respeita às rochas graníticas, a Viseu-Guarda). É de notar que esta última rocha variabilidade dos teores de U e Th é significativa, apresenta maior concentração de radão do que não podendo ser todas consideradas de igual o expectável a partir do seu teor de urânio, o forma do ponto de vista do grau de risco que se deve provavelmente ao facto de possuir radiológico associado. No que respeita a Th, por emanação acrescida como resultado de o urânio exemplo, os teores tendem a variar as mais das se encontrar em parte localizado na bordadura vezes no intervalo de 5 a 25 ppm, normal para dos minerais e em microfissuras, conforme rochas deste tipo; contudo, alguns granitóides observações petrográficas e por fission-track de podem apresentar significativo enriquecimento Pereira et al. (1999). em Th, do que constitui o caso mais relevante o granito de S. Pedro do Sul, com teor médio de 120 ppm. Tal é devido à presença nesta rocha de quantidades anómalas de minerais acessórios como a monazite e a torite, sendo conhecidos outros casos análogos na Zona Centro-Ibérica. A dose de radiação externa emitida pelo granito de S. Pedro do Sul é tripla do normal em rochas graníticas e seis vezes superior à média crustal; no que respeita ao radão, no entanto, este granito não representa um grau de risco superior ao de outras rochas da mesma natureza, dado o teor médio de urânio se enquadrar nos valores geral-

As características especiais do granito porfiróide das Beiras decorrem do facto de com esta rocha se relacionar um fenómeno mineralizante; de facto, na região das Beiras foram exploradas no passado 61 minas de urânio, a maior das quais situada na Urgeiriça, tendo sido produzidos entre 1951 e 2000 um total de 4000 toneladas de óxido de urânio. É de notar que os locais onde decorreu a exploração são aqueles onde, cumulativamente, se verificaram como pressupostos económicos a presença de minério com teor e com volume que justificassem a sua extracção. É conhecido que muitos processos geológicos apresentam uma re-


Radioactividade natural e ordenamento do território O contributo das Ciências da Terra

lação logarítmica entre o número de ocorrências e a sua intensidade; constitui caso exemplar a sismicidade. Não surpreende, por conseguinte, que seja expectável a presença na região das Beiras de numerosas anomalias radiométricas resultantes de acumulações locais de urânio, sem interesse económico por não serem atingidos teores e/ou volumes de corte, mas podendo contudo apresentar significativo impacte ambiental do ponto de vista radiológico. Esta situação é bem ilustrada pelo elevado número de anomalias radiométricas detectadas pela Junta de Energia Nuclear e Empresa Nacional de Urânio durante a fase de prospecção de jazidas nesta região: as anomalias reconhecidas ascendem a mais de 8000 (Rodrigues, 2003), tratando-se nalguns casos de acumulações suficientemente relevantes para terem justificado o desenvolvimento de trabalhos de reconhecimento mineiro, ainda que não tivessem sido exploradas. O elevado número de ocorrências referido levou, aliás, a que a região ficasse conhecida geologicamente por Província Uranífera das Beiras. Note-se que na maioria dos casos se trata de mineralizações secundárias, suportadas em caixas de falha e filões ou disseminadas, com carácter superficial (raramente ocorrendo a profundidades superiores a 50m); a proximidade da superfície topográfica potencia o fluxo de radão, bem como a emissão de radiação externa, o que maximiza o seu impacte ambiental.

com falhas, em cujas caixas preferencialmente se concentrou o urânio; na região das Beiras são especialmente relevantes neste aspecto as fracturas com movimentação alpina. Tratando-se de estruturas lineares, podem ser muito extensas (por vezes com dezenas de km), no entanto raramente ultrapassando alguns metros de espessura. Desta forma, o risco associado manifesta-se de forma muito localizada, podendo afectar uma dada habitação em detrimento de outra situada a escassa distância. Este facto coloca um significativo desafio no desenvolvimento de mapas de risco utilizáveis no planeamento urbano, quando se verifica a tipologia referida, obrigando a uma escala de trabalho muito fina (idealmente 1: 5000) para que a informação seja consequente para a finalidade em vista.

Parte significativa das anomalias radiométricas referidas, em ambas as regiões, relacionam-se

Dos valores referidos, salientam-se as elevadas concentrações médias de radão reconhecidas nas

No que respeita às concentrações de radão no ar interior de habitações, um estudo nacional por amostragem estatística de Teixeira e Faísca (1992) envolvendo alguns milhares de habitações mostrou que em 9% dos casos os valores são superiores a 200 Bq.m-3, e em 3% dos casos são excedidos 400 Bq.m-3. Os valores mais elevados, expressos sob a forma de média distrital, correspondem aos distritos de Viseu e da Guarda, o que é interpretável à luz dos factores geológicos já referidos para a região das Beiras. Em trabalhos de pormenor realizados em diversas áreas urbanas da região Centro, envolvendo Um fenómeno mineralizante idêntico actuou várias centenas de habitações, e efectuados com também no Alto Alentejo, com especial incidên- estreita ligação entre a localização das edificações cia na região de Nisa. Associado a rochas e o substrato geológico presente, verificaramgraníticas, ocorrem anomalias radiométricas se os seguintes valores médios (cf. Pereira et em elevado número, tendo sido detectado na al., 2003): carbonatos jurássicos da região de proximidade imediata de Nisa um jazigo até hoje Coimbra – 30 Bq.m-3; sedimentos detríticos não explorado por razões económicas, localizado meso-cenozóicos da região de Coimbra e de em rochas metassedimentares de auréola de Seia – 50 Bq.m-3; metassedimentos do complexo metamorfismo de contacto, e onde trabalhos xisto-grauváquico das regiões de Sertã, Figueiró mineiros permitiram estimar reservas de ca. dos Vinhos, Seia, Tondela e Castelo Branco – 70 4000 toneladas de urânio. A mineralização é Bq.m-3; metassedimentos do CXG afectados por superficial (<30m), e tal facto conduz a que aqui metamorfisco de contacto, em especial do granito tenha sido determinado um dos mais elevados porfiróide das Beiras – 240 Bq.m-3; granito de valores de emissão gama (radiação externa) co- Figueiró dos Vinhos – 90 Bq.m-3; Granitos de nhecidos em todo o planeta (Campos, 2002); a Tondela, de Alcains e de Castelo Branco – 120 área afectada por elevados níveis de radiação as- Bq.m-3; granito de Tábua-Viseu-Guarda – 280 cende a 32,5 hectares (Campos, 2002). Bq.m-3.

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habitações situadas no granito biotítico porfiróide de Tábua-Viseu-Guarda, mais do que dupla da observada nos restantes granitos, bem como por vezes nos metassedimentos do complexo xisto-grauváquico que com ele contactam; estas elevadas concentrações de radão ultrapassam o expectável face aos teores de urânio e às concentrações de radão nos solos que foram determinadas. A mais provável explicação para este facto reside na presença, já referida, de numerosas anomalias radiométricas na área aflorante desta rocha granítica, bem como por vezes na periferia do seu exocontacto. De facto, nas caixas de falha e filões que denotam enriquecimento em urânio os teores de U são frequentemente da ordem das centenas de ppm, e as concentrações de radão no subsolo podem ascender a vários milhões de Bq.m-3 (Pereira et al., 2003); a influência destas estruturas é significativa, desta forma, nos valores da concentração de radão registados nas habitações. Esta foi, aliás, a explicação encontrada pelos autores no caso da Escola Secundária da Sé (Guarda), recentemente objecto de atenção mediática; os elevados níveis de radão detectados decorrem da presença no substrato onde a Escola assenta de uma fractura enriquecida em urânio. No que respeita ao granito de Tábua-ViseuGuarda, é ainda de salientar que a avaliação das concentrações de radão em habitações foi até ao momento efectuada em três áreas urbanas distintas: Canas de Senhorim-Urgeiriça, Guarda e Oliveira do Hospital. No primeiro caso, localiza-se no interior do actual perímetro urbano a área mineira da Urgeiriça, onde se encontram depositados alguns milhões de toneladas de resíduos radioactivos provenientes da actividade extractiva, na proximidade imediata dos principais núcleos populacionais; na área urbana da Guarda ocorreram diversas explorações mineiras em torno da cidade, algumas das quais assimiladas pelo crescimento do perímetro urbano entretanto verificado; finalmente, na região de Oliveira do Hospital não foram implementadas explorações mineiras, tendo apenas sido realizados alguns trabalhos de reconhecimento no passado. A confrontação dos dados obtidos para as três áreas referidas permite verificar que as concentrações médias de radão são estatisticamente idênticas, o que afasta a hipótese de ocorrer qualquer influência relacionada com

contaminação induzida pelas antigas actividades mineiras (Neves et al., 2003a). Os valores médios acima referidos para as concentrações de radão em habitações foram determinados em condições de inverno, não sendo por conseguinte representativos da média anual. Observou-se, através da repetição de algumas medições num conjunto de habitações em condições de verão, um decréscimo para ca. 65% do valor medido de inverno. No caso do granito de Tábua-Viseu-Guarda, a média anual estimada é assim de 240 Bq.m-3 (média geométrica), podendo ascender a ca. 1/3 as habitações que ao nível dos pisos em contacto com o solo apresentam valores superiores ao limite de 400 Bq.m-3 recomendado pela UE (Neves et al., 2003b) . 6. As cartas de risco de radioactividade no planeamento do território Foi já referido que, na inexistência de um limiar de segurança para a exposição à radiação ionizante, a fixação de limites de dose em protecção radiológica constitui um problema de custo-benefício. É de salientar, neste aspecto, que os custos de implementação crescem de forma exponencial com a progressiva redução do limiar de dose a cumprir. Considera-se atingida a optimização quando os recursos económicos necessários à fixação de um limiar de dose mais restritivo permitam obter um melhor retorno se aplicados na redução de outros riscos. É precisamente na perspectiva da optimização custo-benefício em protecção radiológica que as cartas de risco de radioactividade natural assumem especial interesse. Assim, no que respeita a habitações existentes, a disponibilidade das cartas de risco permite concentrar os recursos económicos de monitorização e remediação nas habitações localizadas nas áreas de maior risco, onde o retorno na redução das doses é mais relevante face ao investimento; para habitações a construir futuramente, a disponibilidade das cartas de risco permite dimensionar as medidas de protecção a incluir na sua construção, evitando assim o desperdício de recursos económicos. No que respeita a medidas de remediação para habitações com níveis de radão excessivos, basicamente estas consistem no melhoramento da ven-


Radioactividade natural e ordenamento do território O contributo das Ciências da Terra

tilação natural, quando possível, ou na selagem das juntas e fissuras por onde o radão se introduz a partir do subsolo; em geral, estas técnicas apresentam custos moderados mas eficácia reduzida. A ventilação natural, designadamente, tem um efeito que perdura por poucas horas, recuperando rapidamente as concentrações de radão para os níveis pré-existentes; apenas será eficaz quando aplicável a caves não habitadas. As técnicas mais eficazes passam pela instalação de sistemas de ventilação mecânica que renovem continuamente o ar da habitação, substituindo-o por ar atmosférico exterior, ou, em alternativa, pela instalação de sistemas de sucção do ar existente por debaixo da habitação, e o lancem na atmosfera ao nível do telhado. Em ambos os casos os custos de instalação são significativos, acrescendo ainda o custo energético do funcionamento dos sistemas.

máticas. No estudo geológico é de grande importância a detecção de falhas geológicas, em particular das susceptíveis de conter mineralização de urânio, dado o elevado grau de risco associado a estas estruturas. Em fase subsquente, deverá ser avaliado o fundo radiométrico com detectores de radiação gama, em toda a área urbana e periurbana, por forma a definir os valores típicos de cada unidade geológica e a sua eventual heterogeneidade. Na base desta informação, podem de seguida ser seleccionados alguns locais representativos para determinação dos teores de U, Th e K, por espectrometria gama in situ ou através da recolha de amostras para análise laboratorial posterior. Um dos mais fiáveis indicadores do grau de risco consiste na determinação da concentração do gás radão no ar do solo, operação que é efectuada através da execução de um furo a ca. 80 cm de profundidade; tem, de facto, sido As medidas preventivas na construção de novas habitações apenas se justificam em áreas de risco observada boa correlação entre os valores da conmoderado ou elevado. No primeiro caso, a apli- centração de radão em habitações e no ar do solo cação de telas específicas impermeáveis a gases ao (Pereira et al., 2003). No decurso das sondagens nível das fundações (e paredes, quando existam deve ainda ser avaliada a permeabilidade, factor caves) será suficiente para uma adequada preven- que influi na mobilidade do gás radão, conforme ção. No segundo, para além das referidas telas, anteriormente referido. Estudos petrográficos deverá ser prevista uma caixa de ar ventilada ao complementares permitem identificar os supornível da lage de fundação, ou, quando tal não seja tes mineralógicos do urânio, bem como a forma possível, ser instalada uma camada drenante de como este elemento químico se distribui nas romaterial grosseiro, com colectores que permitam chas, por forma a avaliar da influência sobre a caa sucção mecânica do ar. Em princípio, as pacidade de exalação do radão. técnicas de remediação possibilitam a construção Com base nestes princípios, os autores encontramna maioria das situações, sendo raros os casos em se presentemente a elaborar a carta de risco de que se justifica a interdição de construir; esta radioactividade natural do concelho de Oliveira poderá ser a situação quando estejam presentes do Hospital, por solicitação da respectiva Câmara mineralizações em teor e volume relevante, Municipal, para inclusão na revisão do respectivo constituindo recursos geológicos susceptíveis de PDM, que neste momento decorre. aproveitamento económico futuro, onde os níveis de radiação externa e de radão sejam extremos. 7. Considerações finais A elaboração de cartas de risco de radioactividade A radioactividade natural constitui um dos principais natural para uso nos Planos de Desenvolvimento riscos geológicos a que o ser humano se encontra Municipal carece de trabalho em escala adequada, exposto, conforme o comprovam as estimativas idealmente 1:5000. Dada a inexistência de carda EPA para os EUA, as quais apontam para que tografia das áreas urbanas com o nível de detalhe adequado (a série cartográfica mais detalha- 15000 a 20000 das fatalidades anuais por cancro da do Instituto Geológico e Mineiro tem a escala de pulmão sejam devidas à exposição ao gás radão. 1:50000 e não cobre ainda todo o território), é Portugal apresenta um elevado potencial no que desde logo necessário ser efectuado levantamen- respeita a este tipo de risco geológico, atendendo à to geológico de base, o qual poderá ser utilizado presença de rochas graníticas em parte significativa também na elaboração de outro tipo de cartas te- do território, algumas das quais manifestando a

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actuação de processos conducentes à ocorrência de mineralizações secundárias de urânio, em elevado número e situadas a pequena profundidade, maximizando assim a emissão de radiação externa a transmissão do gás radão. Pelo exposto, é de todo o interesse que os Planos Directores Municipais possam contar com informação relativa a cartas de risco de radioactividade natural, em escala adequada (1:5000 a 1:10000), que permita minimizar os riscos da exposição à radiação ionizante para a população em geral. Agradecimentos Os trabalhos de investigação desenvolvidos pelos autores têm beneficiado de apoio financeiro do Centro de Geociências da Universidade de Coimbra. Bibliografia BEIR VI (1998) – Health effects of exposure to radon. National Academy of Sciences, Washington, 516 p. Bettencourt, A.O. (1998) – Radiações ionizantes: a protecção contra radiações e seus fundamentos. Colóquio/Ciências, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 22, 29-42. Campos, A.B.A. (2002) – Impactes radiológicos associados a depósitos minerais de urânio: o acso do jazigo de Nisa (Portugal central). Tese de Mestrado, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 114p. Figueiredo, J.M.S. (1998) – O radão nos materiais geológicos da área urbana de Castelo Branco. Dissertação de mestrado, Universidade de Coimbra, 95 p. Lao, K.Q. (1990) – Controlling indoor radon. Van Nostrand Reinhold, New York, 272 p. Neves, L.J.P.F., Pereira, A.J.S.C., Godinho, M.M. & Dias, J.M. (1996) – A radioactividade das rochas como um factor de risco ambiental no território continental português: uma síntese. Actas da

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Associação portuguesa de geólogos

Geonovas nº 18, pp. 115 a 118, 2004

Isotope Geochemistry In Metallogenesis: New Insights Prof. Dr. Colombo C. G. Tassinari Geochronological Research Center - University of São Paulo, Brazil

Extended Abstract The application of radiogenic isotopes in ore deposits is useful to determine the Conceptual Model or Genetic Model for mineralizations. This modelling include age determinations and characterization of hydrothermal fluid sources, as well as fluid-rock interactions processes. In addition it is also applied in mineral exploration activities, defining isotopic geochemistry anomalies produced by wall rock alteration processes and to establish the relationship between important mines nearby the investigated prospect, with their geological aspects . During the mineral exploration program the definition of conceptual model for the prospect is important, because the modelling, when compared with some economic deposits in the area, allow us to estimate the expected ore-type, tonnage and ore-grade, because if the prospect has the same isotopic composition as an active mine, it may be similar. The general concept in isotope geology applied in mining exploration survey is that a mineral occurrence that has the same isotopic signature as a economic deposit in the same district or province may be economic too. This concept is based on the fact that if the isotopic signature is the same, the prospect’s mineralization has the same source and suffered the same geological processes, with similar geological control than the economic deposit. The conceptual modelling for ore deposits involve the following definitions: · The nature and age of the source; · The timing of fluid migration; · The type and timing of mineralizaton geological control; · The timing and temperature of concentration and precipitation (age of ore-forming); · The timing and erosion rates of preservation processes.

The radiogenic isotopes are powerful tools to help us to answer most of the presented questions. The correct definition of the possible genetic model can led to establish new exploration strategies, which can save much money during the mineral exploration survey. Many authors had reviewed the relationship between plate tectonics and distribution of ore mineralizations, showing that tectonic environment had played important roles as controlling factor for mineralizations, and provides a basis for understanding the distribution and origin of ore deposits. In this regard the radiogenic isotopes are also useful to define tectonic models in mineral districts. In general, isotope geology can be applied to all types of mineralization, but the isotopic studies are more common for hydrothermal systems, like orthomagmatic deposits, stockwork, stratabound and stratiform deposits and the vein association, related with intrusive and volcanic rocks, as well as volcano-sedimentary environments. For dating mineralizations in general are used Rb-Sr, U-Th-Pb, Sm-Nd and Re-Os isotopic systematics, as well as thermochronological techniques like K-Ar and Ar-Ar. Age determinations in ore deposits need to be interpreted with considerable care because the age of many deposits cannot be atributed to only one cycle of ore-forming processes. Due to that the measured ages may reflect not only the primary syngenetic genesis, but also the later epigenetic hydrothermal processes, and, sometimes, the time-period between both episodes can be very long. On the other hand isotopic systems can be reset by metamorphic overprint or by youngest magmatic activities. So, the sampling for isotopic studies in ore deposits must be achieved with strong geological support. Some authors, like Kerrich (1991) and Gulson (1986), had reviewed the application of isotopes in ore deposits and presented several examples


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Colombo C. G. Tassinari

about the use of radiogenic isotopes in exploration program, ore genesis and age determinations. In past, mineralization age determinations were made mainly by application of K-Ar technique in wall rock hydrothermal alteration minerals, like sericite, illite, adularia and others feldspars. RbSr systematic was also applied through isochron fited with samples from the hydrothermal alterated rocks and through the technique established by Ruiz et al. (1984), which consist of Rb-Sr analysis in a couple of samples; the first one was a whole rock from the strong hydrothermal alterated zone, to define the present day Rb-Sr isotopic composition of the wall rock interaction product, and the other from gangue minerals, such as calcite, dolomite, ankerite, barite, fluorites and other minerals with Rb low content, because their 87Sr/86Sr ratios are a measure of the Sr inital ratio of mineralizing fluids. In both cases, the problem is the assumption that during the ore-forming episodes, it occurs a complete isotopic homogeneization between host rocks and hydrothermal fluids, and also, the contemporaneity between wall rock alteration and main mineralization, what sometimes is not true. Pb-Pb model ages on galenas were also initially used to estimated mineralizarion ages. This methodology is based on models of Pb growth curves (Ex. Stacey and Kramers, 1975; Cumming and Richards, 1975), and generally, this approach is not satisfactory, due to the complexity of Pb isotopic evolution on the earth. The 40Ar/39 Ar technique is very useful to determine precise formation ages of hydrothermal alteration minerals, in special that of young ages, where the others radiogenic systematics do not present reliable results. Reynolds et al. (1998) and Marsh et al. (1997) illustrated the applicability of 40 Ar/39 Ar isotope systematics on hydrothermal minerals from Chuquicamata and Potrerillos porphyry coper deposits (north-Chile) respectively, which presented a precise mean ages of 33.4 ± 0.3 Ma for the first and 35.7 ± 0.09 Ma for the last ore deposit. More recently, considering that by the calculated ages on hydrothermal and/or gangue minerals, the timing of mineralization can only be inferred, several authors applied radiogenic isotopes (SmNd, U-Pb, Pb-Pb and Re-Os methodologies)

for directly date the ore minerals, like schellite, fluorite, cassiterite, magnetite, tourmaline, molibdenite and others, using isochronic diagrams. (Eg. Anglin et al. 1996; Lambert et al. 1998; McCandless and Ruiz, 1991; Gulson and Jones, 1992 and Olivo et al. 1996). By reviewing the literature we can enhance important examples like Gulson and Jones (1992), which reported Pb-Pb and U-Pb analysis on cassiterites from Sn Belituna Island ore deposit (Indonesia), with ages of 250 ± 13 Ma and 216 ± 4 Ma respectively, and U-Pb Concordia age on cassiterites from Bushveld Granitoids of 2098± 3 Ma. And Anglin et al. (1996) which presented Sm-Nd isochronic ages for scheelite and tourmaline from the Val d’Or gold deposits (Canada) of 2593 ± 18 Ma. The main problem to dating ore minerals is to obtain good spread in Pb-Pb, Rb-Sr and SmNd isochronic diagrams. Nowadays to solve this problem, it has been developed an age determination by stepwise leaching technique, using Pb-Pb and Rb-Sr systematics, which enable us to direct dating of individual samples. Several authors, like Frei and Kamber (1995), Frei and Petke (1996), Tassinari et al. (2003) Erel et al. (1997), Babinsky et. al (1995 and 1999), showed that step-leaching procedures involving different types and molarities of acids, had been sucessful in dating sulfides, tourmalines, feldspars, magnetites, carbonatic rocks and hydrothermal alteration minerals. As an example, we have date the Salobo polymetallic Cu(Au-Mo-Ag) deposit in Carajás region , northern Brazil, which presented a complex metallogenetic evolution. Stepwise-leaching procedure applied to chalcocite and tourmaline, gave a Pb-Pb isochronic ages of 2760 Ma and 2400 Ma, interpreted as primary syngenetic mineralization age and fluid remobilization timing respectively (Tassinari et al. 2003). In addition Rb-Sr dating of sphalerite by stepwise leaching procedure have been produced by Nakay et al.(1993) and in our laboratory (CPGeo-USP), with success. More than that, it must be emphasized that some authors, like Sheppard et al. (1981) and Darbyshire and Shepherd (1994) and McKee et al. (1992) had apllied Rb-Sr, Sm-Nd and Ar-Ar techniques for dating fluid inclusions in quartz-veins related to different types of ore deposits.


Isotope Geochemistry In Metallogenesis New Insights

In summary, to obtain the age of mineralizations, nowadays several types of methodologies and techniques are being used, but mainly where the ore minerals are directly dating.

sition of sea water at mineralization age (1.7 Ga), while for the epigenetic type the 87Sr/86Sr ratios ranging from 0.7110 to 0.7170, higher than the estimated isotopic composition for sea water at 1.3 (timing of ore-forming process). The 206Pb/ Sr, Pb, Nd and Os isotopic compositions had be- Ga 204 Pb isotopic compositions of galenas from syncome important tools to characterize the probable origins of dominant ore-transporting waters genetic and epigenetic ore-types yielded values of of many systems. In general, it is used the initial respectively 16,15 to 16,50 and 16,60 and 18,60, isotopic compositions of mineralizing fluids, me- showing more radiogenic compositions for epiasured on ore or gangue minerals with negligible genetic type, as is expected. contents of the parent nuclide. The most com- To determine from where the ore lead is derived, mom used parameters are 87Sr/86 Sr initial ratios, the Pb isotopic signature for different types of obtained mainly by direct measurements of Sr ore deposits can be compared with Pb isotopic isotopic compositions in low Rb content minerals, evolution curves, estimated by Zartman and Doe µ1 value or Pb isotopic compositions measured (1981), based on “plumbotectonic model” for mainly on sulfides, εNd and γOs values calculated by four distinct terrestrial reservoirs (upper manthe time of ore-forming process, obtained on ore tle; lower crust, upper crust and average orogenic minerals. It is important to consider that many environment). Moreover, through the plumbotimes the measured initial isotopic compositions tectonic diagrams, it is possible to compare Pb do not correspond to the original reservoir where isotopic compositions of the studied prospect fluid come from, but reflect the composition of with the ones from the host rocks and neughbouthe primary isotopic characteristics modified by ring mineral deposits. fluid-host rock interaction during the fluid miRadiogenic isotopic signatures are used in gration process. In this way, it is possible to inter- mineral exploration activities in two different prete the measured initial isotopic composition ways. The first one is to define, for example, as characteristic of the timing of mineralization, Pb isotopic geochemical anomaly, in view of the and cannot be atributed only to the source reser- sulphide mineralizations, in general, produces voir of the fluids. The Sr isotopic homogeneiza- soils with different Pb isotopic compositon than tion between hydrothermal fluid and host rocks host rocks, and the second one is to establish a was tested (Tassinari et al. 1990a) in the Puchul- set of parameters which may be used to evaluate diza geothermal field, northern Chile, where the potential of geological anomaly, comparing hydrothermal process is active today. The measu- with similar knowed important ore deposit. In red 87Sr/86Sr ratios for: host-rocks, thermal water this way, Kessen et al. (1981) had demonstrated and neoformed minerals are very similar ranging the use of Sr isotopic compositions of gangue from 0.7061 to 0.7077. minerals and host-rocks for Mississippi Valley It is important to note that the use of isotopes as tracing for mineralization sources reflect the reservoir where analysed isotope come from, which not necessary correspond to the metal sources. Sr and Pb isotopic compositions are usefull, for example, to distinguish between syngenetic and epigenetic mineralizations of SedimentHosted Pb-Ag ore deposits. Isotopic studies were carried out on Proterozoic deposits of the Vale do Ribeira District, southeastern Brazil, (Tassinari et al. 1990 b and Misi et al. 1999). The Sr isotopic compositions of syngenetic mineralizations, obtained on calcites and barites, yielded values around 0.7055, very close to Sr isotopic compo-

type mineralizations, where was obtained Sr initial isotopic composition for mineralization more radiogenic than the host carbonate rocks for economic ore deposits, indicating epigenetic ore-type, and similar Sr isotopic composition between ore-minerals and host rocks, for small mineralizations, suggesting syngenetic deposition. The application of isotopic studies in mining exploration survey can be done after the definition of geochemical and/or geophysical anomalies, to evaluate the economic potential of the prospects, after the detailled geological mapping to define isotopic geochemical anomalies (special Pb iso-

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topes) and just before the drilling program to establish the conceptual model of possible future deposit. The sampling of ore deposits or mineral prospects for isotopic analysis can be achivied on fresh rocks or minerals, as well as wethered alterated rocks, gossans and soils. In general, isotopic signature of orebodies is very coherent with their correspondent secundary products, like gossans and soils, Gulson (1986). In the future it is expected that the isotope geochemistry applied to mineral deposits will envolve integrate interpretations with radiogenic isotopes and stable isotopes, but not with light stable isotopes, like C, O and S, will be with heavy stable isotopes, like Fe and Cu, for example. References Anglin, C.D. et al. (1996) – Economic Geology V. 91, p.1372-1388. Babinski, M et al. (1995) – Precambrian research, V.72, p. 235-245. Babinski, M. et al. (1999) – Chemical Geology, in press.

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Darbyshire F. & Shepherd T.J. – 1994 – Abst. of ICOG 8, p.75

Stacey, J.S & Kramers, J.D. (1975) – Earth Plant. Sci. Lett., V.26, p.207-221

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Tassinari, C.C.G. et al. (1990b) – Cong. Bras. de Geol. Anais, V.3, p.1254-1266

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Normas para Publicação Aos autores 1. Os originais devem ser enviados para qualquer um dos editores da publicação, de preferência por e-mail em formato word ou versão compatível. Também poderão ser enviados pelo correio desde que acompanhados de uma cópia em suporte digital. 2. A parte de texto não deve incluir quaisquer figuras, fotos, quadros, gráficos, etc., apenas deve estar assinalado onde devem ser inseridas pelas respectivas legendas a cor azul e corpo 8 pt. 3. O texto em papel deverá ser apresentado em Times New Roman de 11 pt, espaço simples, em páginas A4 com margens laterais de 2 cm. Separar os parágrafos com espaço e meio (não utilizar tabulamento) e os termos a itálico e ou negrito deverão estar devidamente assinalados. 4. As figuras, estampas, fotos, etc. (separados do texto) devem ser enviadas em formatos tiff, jpeg, psd (com resolução de 300 dpi), ppt ou xls. Caso entenda enviar impresso p.f. fazê-lo em papel A4 (80g ou sup.). Todos estes elementos devem estar devidamente numerados de forma a serem identificados no texto. 5. Na primeira página deve figurar: o título do artigo em corpo 16 pt.; o nome do(s) autore(s) em versaletes de 10pt; resumos e palavras-chave, bem como instituição, morada do autor e e-mail em corpo 8 pt. Deve ainda ser apresentado um resumo em português e um resumo numa língua diferente da usada no artigo (inglês de pref.). 6. Deve utilizar o menos possível notas infrapaginais. 7. Os espaços a respeitar, importância dos títulos e subtítulos deverão ser claramente assinalados. 8. As referências bibliográficas, no texto, deverão conter o último nome do autor, seguido da data de edição entre parêntesis. 9. A bibliografia, no final do texto, deve ser disposta por ordem alfabética segundo o último nome do(s) autor(es), seguindo-se a data da edição, título da obra, editor, paginação. Caso se trate de artigo periódico, a seguir ao título mencionar: título do periódico em itálico, editor, local de edição, volume ou tomo (normal), fascículo ou parte (entre parêntesis) e paginação. 10. A Comissão Editorial reserva o direito de aceitar ou rejeitar os trabalhos enviados para publicação.


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índice 5 Património Geológico Português Importância científica, pedagógica e sócio-económica Miguel de Magalhães Ramalho

13 Introdução ao Património Paleontológico Português Definições e critérios de classificação Mário Cachão & Carlos Marques da Silva

21 Resgate científ ico num túnel da Auto-estrada do Cantábrico (Astúrias-Espanha)

Consequências e ensinamentos Juan Carlos Gutiérrez-Marco

35 Os Testemunhos que as Rochas nos Legaram Geodiversidade e Potencialidades do Património do Canhão Fluvial de Penha Garcia Carlos Neto de Carvalho

67 O “Parque Geomorfológico de Monsanto” através do seu percurso pedrestre As Pedras para Além do Sagrado Carlos Neto de Carvalho

77 O Património Geológico e Geomorfológico do concelho de Idanha-a-Nova Contributo para a sua classificação como Geoparque António J. D. Sequeira & J. M. Serejo Proença

93 Linhas gerais do desenvolvimento de um projecto de trabalho no âmbito da musealização de um espaço mineiro abandonado José M. Brandão

99 Sismos e Barragens O caso da Barragem do Baixo Sabor João Carlos C. V. Baptista

103 Radioactividade natural e ordenamento do território O contributo das Ciências da Terra Luís F. Neves & Alcides C. Pereira

115 Isotope Geochemistry In Metallogenesis New Insights Colombo C. G. Tassinari


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