ESPIRAL edição
QUAL É A SUA FÉ? AFETO A relação entre uma médium e sua pomba gira
REVOLUÇÃO Os millennials e uma nova formatação das crenças
ANGÚSTIA A pressão religiosa e sua interferência na vida dos fiéis
#1
EXPEDIENTE Caro leitor, A revista Espiral, assim como o significado da palavra, trata de linhas curvas que se desenrolam em um plano, afastando-se gradualmente de seu ponto de partida. Com este pensamento falaremos mensalmente de temas que, sem perder a essência inicial, se desenvolvem, abrindo espaço para o novo e para uma crescente de possibilidades. Assim, na nossa primeira edição, trataremos de religião, uma expressão tão antiga, mas que, em meio a tantas crises, se reinventa e se molda a diferentes períodos da história. Esta edição apresenta a expansão da religião no século XXI, caracterizada por uma onda de pensamentos políticos e pela nova formatação dos credos, ressignificando crenças, dando poder a velhos líderes e criando uma nova forma de pensar e fazer a fé.
Colaboradores desta edição Supervisora MÁRCIA DETONI Repórteres e produtores
HUGO DUARTE LUANA SUDRÉ MARINA MANCO STEFANI SOUSA
Editora de arte e fotografia
THAIS LOPES
Espirais Esféricas (1958), M. C. Escher
EDITORIAL
“Venceu a ideologia, perdeu a pedagogia”
A crescente onda evangélica que influencia decisões políticas e se desenvolve rumo a novos espaços
Eles estão por toda parte e segundo Nathalia Araujo Lima, líder do grupo Dunamis Pockets da Universidade Anhembi Morumbi (você confere na página x), vão conquistar o Brasil. Enganase quem acredita na ideia de laicidade. Apesar do que consta no artigo 19 da constituição, o Estado assume um lado com representações majoritariamente evangélicas. Esta representação é vista na população como um todo, como mostram as eleições de 2018, em que 82 parlamentares evangélicos foram eleitos. A partir de 2019, 180 dos 513 deputados serão de uma mesma ideologia, 30 a mais que nos últimos quatro anos. Isso reforça a crescente conservadora em vários campos da sociedade. A bancada evangélica está lá para representar e apresentar suas propostas, mas e quanto as outras doutrinas? Foi a ideologia de um Brasil acima de tudo e um Deus acima de todos que elegeu o futuro presidente Jair Bolsonaro. Esta ideia reprime, todos os dias, pensamentos (veja na página 20) e elimina a individualidade do ser. Sem liberdade, estamos fadados a projetos pré-moldados e vazios de discussão crítica, sem representatividade consciente. Limitados ao que Deus quer, seguimos sem saber o que queremos.
Quando é falado de um projeto de “Escola sem Partido”,por exemplo, o que querem dizer? A proposta não possui limitações ou exemplos do que seria “a doutrina”, mas diz que sempre devem ser apresentados os dois lados. A explicação é vaga. O que é observado nas salas de aula são alunos obrigados a ler a bíblia ou rezar o pai nosso sem ao menos crer nas palavras. Isso pode ser taxado como doutrinação. Se o futuro está nas escolas e os dogmas da Igreja espalharem suas raízes sobre a educação, a tendência é que o conservadorismo nos engula. A possibilidade do criacionismo ser lecionado em aulas de ciência demonstra despreparo e vai contra qualquer preceito da comunidade científica. As campanhas de denúncia de professores doutrinadores pedem que as acusações partam dos próprios alunos, mas será que darão atenção para quem denunciar uma curva acentuada à direita ou somente aos “comunistas”? Toda e qualquer decisão é muito tendenciosa. Por ora aceitamos sem nos contentar. As propostas vindas da bancada evangélica, validadas pelo presidente eleito, Bolsonaro, e seus 57.797.847 apoiadores, não nos representam e a nós cabe a missão de resistir.
ÍNDICE
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Semeando pressão
Como as imposições e intimidações religiosas influenciam a vida dos fiéis
Teocracia à brasileira
A crescente da bancada evangélica no congresso como um peso morto que atrasa e limita o país
Compreender para crer
Um compilado de notícias e livros para se aprofundar
O fio da mediunidade com a vida terrena
Até que ponto é possível separar o medium de sua pomba gira? Sabrina Kaori Tanaka conta sua história
Mortos e flores
A morte resinificando o sentido da vida na relação humano animal
Religião é regra para ser feliz?
Um bate papo com a banda Big Up, que tem revolucionado o mundo da música pregando amor e energia
A religião na época dos Millennials
A prática da fé pela geração Y na busca de moldar costumes e conquistar cada vez mais fiéis A Alma Imoral Monólogo atemporal em cartaz há 12 anos, peça discute contradições entre dogmas e crenças enraizadas na sociedade
O PRE D N A SS E Ã M E
O
S
REPORTAGEM
Um ditado popular diz que escolher um caminho é abrir mão de vários outros. Assim pensam alguns fiéis que usam da fé para praticar pressão religiosa sobre os demais, impondo cobranças e até perseguições. Essas histórias, das quais quase ninguém fala, mas muitos têm, causam tristeza e sofrimento. Por Stefani Sousa
Alex Tomaz, 20, é estudante de Publicidade e Propaganda na Universidade Paulista (UNIP). Quatro anos atrás, ele foi convidado por um amigo para participar de um culto na igreja Universal do Reino de Deus, em Embu das Artes. Gostou do apoio recebido, mas, depois de algum tempo, percebeu que não concordava com algumas condutas e se afastou. Decidiu não mais frequentar o culto, mas a comunidade insistiu em sua presença. “Quando parei de ir ele (o amigo) ficou me ligando e insistindo para que eu fosse. Não fui. Um tempo depois ele bateu na porta da minha casa e refez o convite. Na semana seguinte, voltou com uma amiga. Dadas as minhas negativas, todos os jovens da comunidade, cerca de 30, foram no meu portão cantar um louvor e me pedir pra voltar. Hoje dou risada, mas na época fiquei assustado. Aquilo foi o ápice para me afastar de vez da igreja”, conta Tomaz. Quem não tem muito contato com religião pode até achar que a pressão religiosa é um problema dos tempos antigos, mas ela tem crescido com a expansão de igrejas evangélicas conservadoras. Religiosos tentam impor seus valores e crenças morais sobre os demais para que sejam universais. Dados do IBGE apontam que, no Brasil, 86,8% da população é cristã. Deste total, 64% são católicos e 22% evangélicos. Uma enquete online realizada por nossa reportagem no início de outubro com 200 entrevistados de todas as idades mostrou que 67,5% já haviam sofrido alguma pressão religiosa e 30% disseram ter se afastado e deixado de seguir uma crença por tal motivo. Para o teólogo Railson Araújo, 26, a pressão religiosa surge dentro das comunidades a partir de questões morais. “Essa não é uma coisa que nasce com a religião, mas que se constrói. Historicamente a adesão à igreja era livre mediante pregação dos apóstolos. O cristianismo que nasce como seita deriva do judaísmo que, por tradição, tem muitas condutas morais e, com o tempo, isso vai se intensificando. A igreja se estrutura, é hierarquizada e adere a livros e formações, estabelecendo doutrinas e um corpo estruturado. Com a estruturação, aparecem as proibições”, explica.
religião. Resignada, privou-se do sonho de se casar na igreja e fez a cerimônia somente no civil. A mesma história voltou a se repetir quando a manicure Sandra Costa, 40, começou a namorar cinco anos atrás. Integrante da Igreja Batista, ela precisou casar-se com poucos meses de relação por imposição da igreja. Mas, por ser desquitada e o marido sem religião, a cerimônia também não pode ser na igreja. Em nossa enquete, jovens foram os que mais relataram pressão religiosa. Os problemas, segundo eles, começavam dentro de casa. Uma jovem que preferiu não ser identificada assumiu sofrer com os pais. “Durante 20 anos eles me obrigaram a seguir algo que nem sei se acredito. Quando eu me recusava a ir aos encontros, recebia castigos ou era ameaçada. Fui muito censurada e hoje ainda não consegui me desvincular totalmente. É aceitar ou sair de casa”, contou. Um outro jovem, também em depoimento
A idade medieval é considerada marco na história pelo surgimento de muitas normas de conduta. Naquele tempo, preocupações pastorais foram deixadas de lado e atributos comportamentais foram sendo analisados entre os fiéis. Valorizando as virtudes, Santo Agostinho foi um dos pensadores que reforçou esse pensamento. “Como, antes de se converter, Agostinho era do mundo e vivia uma vida repleta de prazeres terrenos, como sexo e ostentação, depois de convertido ele pegou para si a responsabilidade de pregar sobre isso. Em seu discurso falava da salvação para aqueles que se doam totalmente a Deus e a seus princípios. Além disso, foi ele quem sistematizou os 10 mandamentos da forma que conhecemos hoje”, diz Araújo. Se, na antiguidade, questões morais eram levadas à risca, hoje, com os avanços sociais, a informação deu às pessoas conhecimento suficiente para que possam se empoderar. Apesar disso, doutrinas religiosas ainda são impostas. Há 18 anos a confeiteira Zilda David, 48, sofreu uma série de coerções por parte de sua comunidade para não se casar com noivo desquitado e de outra
Fotos por Thais Lopes e colagem por Stefani Sousa
anônimo, afirma ter sido vítima de opressão quando confessou à família nunca ter lido a bíblia. “Eles ficaram chocados e me disseram que isso era um grande pecado.” Questionado sobre o posicionamento da igreja, o líder e coordenador de jovens católicos João Ricardo Arcênio, 29, afirma que a igreja realmente tem maior preocupação com a juventude. “A partir dos 18 anos o adolescente começa a ter contato com coisas que antes não tinha. Ele passa a questionar tudo aquilo que aprendeu com os pais na igreja e, nesse momento, precisamos realmente ser mais firmes. Cabe à comunidade e aos líderes saberem explicar da forma correta o porquê de algumas proibições e normas. Muitos se excedem na hora de conversar, porque já tiveram experiências ruins e acham que reprimindo o jovem vão evitar que ele sofra com as mesmas coisas. Conversas ruins afastam as pessoas. A orientação que nós líderes recebemos e passamos em diante é que devemos explicar, aconselhar e não impor regras”. Ainda sobre a igreja católica, o teólogo Araújo afirma que muitos posicionamentos têm sofrido transformações pela gestão do atual Papa Francisco: “Em todas as suas pregações o líder conduz suas falas numa linha de acolhida e misericórdia, pedindo para que a igreja não seja alfândega e repense suas normas, inclusive a sagrada eucaristia. Ele incentiva os padres e bispos a fazerem uso de uma doutrina pensada para a sociedade atual, não sendo mais tão dura e rígida como em tempos anteriores”. Vale ressaltar que, apesar das intensas críticas à pressão exercida por religiosos católicos e evangélicos, muitas outras crenças podem ser nocivas aos fiéis. A jornalista Mariana Nogueira, 23, é espírita e afirma já ter sido repreendida por ser a favor do aborto. “No espiritismo pregamos o amor, porém, isso não evitou que eu passasse por situações desagradáveis. A minha religião proíbe e sempre que falo do tema com algum membro me sinto oprimida.” O mesmo acontece com outro jovem, de 25 anos, que prefere não ser identificado: “Minha família é do candomblé e, mesmo não acreditando no que eles praticam, finjo aceitar para não ser discriminado.” Nossa enquete mostrou que também sofrem fortes repressões aqueles que se dizem ateus. Jovens religiosos, ardentes na fé, reclamam, por sua vez, de não serem respeitados por suas crenças. O técnico em radiologia Gustavo Martins, 20, é testemunha de Jeová e desabafa: “Se escolhi ser de uma religião é porque quero seguir determinadas condutas. Como testemunha de Jeová não comemoro aniversário nem Natal, mas, para alguns amigos e familiares, isso é um grande descaso. Quando me chamam para festas e nego, as pessoas insistem, ficam com raiva e cortam relações”. Para os jovens fieis, a religião nos os oprime e não é opressora. Para eles, o problema é a pressão da sociedade laica.
30%
DOS ENTREVISTADOS QUE DIZEM JÁ TER SOFRIDO PRESSÃO RELIGIOSA, SE AFASTARAM DA CRENÇA E DEIXARAM DE SEGUI-LA
Foto por Hugo Duarte
ARTIGO
Teocracia à brasileira
Bancada evangélica surgiu para representar uma parcela da população, mas se tornou um suprassumo de atraso para o país Por Hugo Duarte
Os primeiros relatos de uma sociedade organizada datam de 4.000 anos antes de cristo. Em uma terra entre rios, o homem, até então pré-histórico, percebeu a possibilidade de se estabelecer, plantar a sua própria comida e se relacionar como uma civilização, além de criar um sistema político para gerir tudo isso. A Mesopotâmia era uma região com povos bélicos, artesãos e burocratas, mas todos viviam em regimes teocráticos. Líderes mandavam e desmandavam a bel prazer, tudo justificado pela suposta ordem divina. A teocracia é um sistema em que a religião e a política se misturam. A figura divina envia para o seu povo o líder que vai representá-lo. No Brasil o Deus protestante nunca se pronunciou publicamente, mas existe uma frente parlamentar maciça e ativa para o representar. Nas eleições de 2018, elegemos 82 parlamentares evangélicos. A frente de apoio às propostas evangélicas hoje conta com 150 congressistas, a partir de 2019, serão 180 dos 513 deputados. No Senado, os números são ainda mais positivos para a bancada, mais que dobrou. Hoje são três e, em 2019, serão oito. Esse movimento não começou por ordens divinas, o descaso do
Estado com a população periférica criou para eles um lar acolhedor, as igrejas. A população evangélica que, em meados dos anos 80, representava apenas 6,6% da população brasileira, transformouse de maneira vertiginosa em gigantescos 22,2%. Percebendo o agir de seus fiéis, que votam e seguem pessoas semelhantes religiosa e economicamente, muitos políticos evangélicos viram aí a oportunidade de se infiltrar no congresso brasileiro. O Estado, que nunca foi laico na prática, agora é guiado por uma bancada que se apresenta mais conservadora que os próprios evangélicos. Na tentativa de chamar a atenção e atrair eleitores, o congresso é um palco para atitudes arcaicas. A defesa da moral e dos bons costumes contraria a lógica, os estudos e os avanços científicos, nos colocando no que há de mais atrasado no campo social em países ocidentais. Um bloco de poder que teve origem na omissão do Estado com a sua própria população periférica, agora vota a favor de temas que oprimem ainda mais esse mesmo povo originário. Esse ciclo não é culpa de religiões e seus fiéis, pode colocar na conta de um sistema falho desde sua base até o seu topo.
NOTAS
Compreender para dialogar
Livros e notĂcias para se atualizar sobre as discussĂľes religiosas ao redor do globo Por Stefani Sousa
VAMOS JUNTOS
FILOSOFIA DA RELIGIÃO
A BRUXA ESTÁ SOLTA!
O LIVRO DAS RELIGIÕES
No último primeiro de novembro, as ruas centrais de Recife, capital do Pernambuco, foram tomadas por religiosos protestando pelo fim da intolerância. A marcha, chamada de “Caminhada dos terreiros”, reuniu praticantes da umbanda, jurema e candomblé. Com concentração às 14h, os manifestantes pediam mais respeito ao culto das entidades veneradas, como orixás e caboclos. Com danças e cânticos, esta foi a 12º edição do evento, organizado pela Associação Caminhada dos Terreiros de Pernambuco.
Com altos índices de intolerância religiosa, o Rio de Janeiro foi constatado como o estado com mais bruxos no Brasil, segundo dados de uma estimativa feita pela União Wicca, em outubro deste ano. A religião Wicca, que se baseia em celebrar os ciclos da vida e em cultivar rituais pagãos antigos, tem 40 mil cariocas praticantes de bruxaria no estado. Ainda segundo levantamento, o país conta com 300 mil bruxos e depois do Rio, a grande maioria, cerca de 20 mil, está no estado de São Paulo.
IGREJA OU ESTADO?
Em setembro, o escritor britânico Neil MacGregor, 72, acha ser impossível separar religião e política. Em entrevista à BBC, ele explicou a passagens de seu livro “Living with the Gods”, lançado em 2017, afirmando que não podemos entender o mundo atual sem pensar em como a religião tem uma participação importante em nossa identidade. Para MacGregor, tanto política quanto religião fazem perguntas iguais: Quem somos? O que somos como grupo? Aonde queremos chegar e em que queremos nos converter?
PARA UMA SAÚDE MELHOR
A espiritualidade pode melhorar a saúde de seus praticantes, segundo coordenador e fundador do Núcleo de Pesquisa e Espiritualidade e Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, Alexander Moreira Almeida . Em entrevista à Tribuna Online, Almeida afirmou que a religião é um fator relevante para tratar doenças, podendo evitar depressões e suicídios. Para ele, a religião deve ser considerada em todos os casos de avaliação de pacientes.
VALE SACRIFICAR ANIMAIS?
Em nove de Agosto, Eduardo Suplicy se revelou a favor do sacrifício de animais em cultos religiosos. A opinião controversa tem base na Constituição Federal que salienta a laicidade do Estado. Neste mesmo dia houve a votação para decidir a proibição deste tipo de prática religiosa e, após apenas dois ministros votarem, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu o julgamento. No Twitter, o senador se manifestou a respeito: “o sacrifício é entendido como o momento de congregação entre deuses e homens e está no candomblé, no xangô pernambucano, no batuque gaúcho, na santeria cubana.”
Abordando a essência da religião na formação humana, “Filosofia da Religião” discute a fé segundo pensamento de diversos filósofos. De Descartes a Hegel, passando pelo ateísmo e pelos extremos Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, a obra é uma compreensão dos religiosos ou descrentes ao longo da história. (Editora Paulus, R$39)
Didático, com crenças primitivas e milenares, o livro narra, minuciosamente, as características de todas as religiões existentes e de suas transformações ao longo das décadas. Lançado em 2016, explica rituais, crenças e mitos. (Editora Globo, R$42)
MAGIA E RELIGIÃO
Explicando a relação entre religião e magia na idade média, a obra de Catherine Rider retrata crenças perdidas com o tempo, ensinamentos esquecidos e uma relação de proximidade com algumas doutrinas católicas. Apesar de crucificar os bruxos, a história da religião tem lados obscuros e comprovados, que são revelados pela autora. (Editora Madras, R$25)
TAO TE CHING: O LIVRO QUE REVELA DEUS
Escritos chineses antigos, usados como base para vários pensamentos teológicos, há cerca de 600 anos a.c, são traduzidos pelo autor Lao-Tsé, que explica o princípio de toda a teoria a respeito da existência de Deus. Há ainda conceitos definindo o porquê do criador só poder ser sentido e nunca visto (Editora Martin Clare, R$13)
INICIAÇÃO À UMBANDA
Instruções para os recém chegados a um templo umbanda compõem a obra de Norberto Peixoto. Explicando por dentro dos costumes, o autor fala da teologia, dos métodos e crenças da religião, respondendo desde perguntas básicas sobre o que ela é, até as mais complexas, que falam de elementos espirituais e psicologia. (Editora Polobooks, R$21)
PERFIL
O fio da mediunidade com a vida terrena
Sabrina Kaori Tanaka e sua pomba-gira, uma ligação de corpo e alma que transitam juntas pelo caminho do meio Por Luana Sudré
Sabrina Kaori Tanaka, enquanto me explica os detalhes, fuma um cigarro na varanda de sua casa. Ela tem 20 anos e é estudante de direito. A relação entre ela e a umbanda vem desde muito cedo e surgiu de forma natural através de um sexto sentido aflorado e fortes sensações de entidades ao seu redor. Sim, Sabrina é médium. Usa de uma doçura descomunal ao me explicar o que essa ligação significa para ela. De acordo com seus ensinamentos e crenças, antes de nascermos, escolhemos. “Nem todos nós somos médiuns, mas todos temos os guias e a proteção de todos eles. Nem todos tem a habilidade de incorporação”. Ela define como um dom, que precisa ser cuidado e doutrinado, afinal, como qualquer outra habilidade, ninguém nasce sabendo. Pequena no tamanho e grande nas ideias, Sabrina demonstra
estar muito à vontade ao falar do assunto, explicar didaticamente e quebrar os preconceitos que muitos carregam sobre sua religião. O terreiro é um local de desenvolvimento e ensinamento para aprender a caminhar em conjunto com esse dom. Os médiuns nascem com o dom que deve ser desenvolvido ao longo da vida, logo, o terreiro está lá como suporte para quem busca este conhecimento. Por isso, é essencial para as pessoas que possuem essa capacidade. A médium diz entender essa conexão como algo positivo. Não de forma maniqueísta - só o lado bom ou só o lado ruim -, ela compreende sua personalidade e quais são seus limites. A personalidade de sua gira é similar a sua, um guia risonho, que
gosta de conversar, que gosta da rua. “Uma mulher que gosta muito do nosso meio carnal. De gente, de conversar. Ao mesmo tempo, é um guia sarcástico, muito dura ao falar com as pessoas”. A pomba-gira é uma entidade das religiões de matriz africana que é incorporada por médiuns da Umbanda. Essas entidades possuem uma individualidade muito ligada a prazeres terrenos e carnais, com características fortes, especializadas em amor e relacionamentos. Ela se manifesta entre o mundo dos orixás e a terra, muita vezes, em giras da religião que são coordenadas por pais e mães de santo. Entretanto, algumas vezes a aparição acontece nos momentos em que o médium está com a energia baixa e próximo aos hábitos terrenos. Por exemplo, quando a pessoa está bebendo, fora de si, com uso de entorpecentes. Quando o médium incorpora, ele se propõe a usar suas energias para criar essa ponte de comunicação. Mas o que acontece com aqueles que aceitam a manifestação quando estão fora de si? O quão eles conhecem a entidade? No terreiro, existe um ritual para chamar as entidades a mantê-las em nosso plano, para que o trabalho seja cumprido. Eles cantam os pontos (músicas das religião), dançam, fumam e defumam o ambiente, pois a fumaça atrai e segura as entidades aqui. Contudo, o terreiro não é o único local em que a gira pode acontecer. A ponte entre o espiritual e o carnal é onde as entidades caminham. Sabrina tem esse contato mais especial com a pombagira, é a pessoa certa para esclarecer as questões que pairam entre os dois mundos. Contudo, a infinidade de guias que existem é imensurável. É preciso um grande estudo para se imergir na religião e dominar o assunto. Sabrina procura entender mais de sua gira e de sua religião, para ela todo o aprendizado é válido. Além disso, ela afirma que a entidade está com ela a todo momento, mesmo que não perceba. Desde sempre sua pomba-gira esteve presente. Maria Quitéria é uma das mais conhecidas dentro do universo da religião. Nascida em Portugal, durante o século XIX, sofreu com assassinato de seus pais durante uma revolução. Ao assistir o sofrimento da menina, um dos serviçais de sua casa a entrega para os ciganos, que a abrigam e criam. Um dia, seu povo decide se mudar para o Brasil. Maria vem junto porém se torna uma nômade solitária no momento em que eles retornam ao país de origem. Uma noite, ao ajudar uma prostituta que era perseguida por um grupo de homens e em um momento de desespero, Maria golpeia um deles com um punhal, imediatamente ele morre. Maria foge com a prostituta mas escuta o irmão do homem lamentando sobre o corpo. Arrependida de machucá-lo, ela retorna e entrega ao irmão uma poção cigana que trará o homem de volta à vida. Sete dias após regressar, o homem a encontra em um beco e decide se vingar, e assim Maria Quitéria desencarna. Essa é a entidade que acompanha Sabrina desde que nasceu.
Uma mulher de 20 anos, estudante de direito, determinada e livre. Essa é Sabrina. Por complicações em uma cirurgia plástica, perdeu a mãe muito nova, aos 13 anos. Isso fez com que ela caminhasse para uma ínicio na vida noturno, regada a álcool e entorpecentes. Em nenhum momento ela se mostra arrependida de suas escolhas, e muito pelo contrário, manifesta grande vivência ao falar sobre tudo que viveu e viu. Depois da morte da sua mãe, seu pai passou a cuidar de suas duas filhas. Para ela, essa liberdade que ganhou desde cedo a fez crescer muito. Sabrina afirma que o impacto da incorporação é tão grande a ponto de não lembrar como foi a primeira vez. “Aconteceu em uma festa, eu tinha 12 anos. Bebi bastante. Minha amiga ficou super assustada e ligou para minha irmã me buscar, mas assim, detalhes desse dia são difíceis de puxar na memória”. Ela diz que a incorporação sob efeito de álcool, ambientes noturnos e efeito de entorpecentes acontece porque nosso corpo funciona como um portal. Ao ingerir tudo isso, é como se seu corpo vibrasse em uma frequência mais baixa e se abrisse mais para esse acontecimento. Contudo, não são apenas nessas circunstâncias que dá-se. Já aconteceu na escola, em casas de amigas, no terreiro, entre outros locais. Tive a oportunidade de presenciar materialização da entidade ao realizar a entrevista. Sabrina é uma menina meiga, doce, discreta e cuidadosa. Minha amiga a muitos anos, conheço-a pelo olhar. Realizamos a entrevista em um bar de esquina, que de acordo com ela, é uma encruzilhada onde espíritos “zombeteiros” ficam a procura de um cavalo (corpo) que disponibilizam o canal para o mundo corpóreo.
A escolha do lugar aconteceu sem nenhuma intenção de buscar uma incorporação, mas aconteceu. Em dado momento, o olhar dela mudou. Agi “normalmente”, ou pelo menos, o mais normal que é possível em uma situação dessa. Conversei com quem eu pensava ser Maria Quitéria, e embora diferente, estava acolhedora como sempre. Pensei então, que era ela. Muitas pessoas não acreditam que isso pode acontecer, se dizem céticas. Não estou aqui para afirmar e provar que acontece, mas ao assistir acontecer e ouvir o que eles tem pra dizer é difícil não ficar de boca aberta. O único problema é que não era ela.
Um espírito zombeteiro se aproveitou da situação, usou Sabrina como cavalo e nos enganou por parte da noite, fingindo ser outra entidade. Tudo isso para permanecer mais tempo em terra, bebendo e fumando, que é o que o atrai. Por fim, depois de muito esforço, conseguimos descobrir que não era quem pensávamos e a levamos para casa. Sabrina é comunicativa, confiante, ouve o próximo, puxa assunto e se envolve. Maria Quitéria é misteriosa, quer te aconselhar, sabe do mundo e da vida, sempre poderá te ajudar. O zombeteiro é prepotente, arrogante, te amedronta e busca o que ele quer. Esse é o perfil de cada um deles. Uma alma e uma entidade que habitam o mesmo corpo e um externo que um dia veio. Depois de horas, com um banho de ervas, muita paciência e conversa com a entidade, Sabrina volta. Assim como voltou todas as vezes e sempre irá voltar.
Fotos por Luana Sudré e Thais Lopes
Começamos à noite com alguns drinks, cervejas, cachaça e por aí vai. Dado momento, o olhar dela mudou. Eu já tinha participado desse contexto antes e já conhecia a pomba-gira que a acompanha, Maria Quitéria.
CRÔNICA Ilustração por Thais Lopes
Mortos e Flores Por Thais Lopes
O celular já tinha despertado. Ou seja, já tinha passado das 7:30. Deveria ter levantado, mas enrolei um pouco. Naquele meio termo, entre acordada e cochilando, despertei por outro motivo que não o plim plom do alarme. Alguém correu da área de serviço para o banheiro, mal fechou a porta, começou um choro. “Eu falei, você não prestou atenção. Ela estava aqui no meio da cozinha e, nesse seu corre corre, você matou a coitada”, disse a pessoa que tentou evitar a tragédia. Nina é a hamster que fica solta pela casa. Na verdade era, até a fatídica manhã. Comecei criando ela dentro de uma gaiola, mas um dia ela fugiu e sentiu o vento soprando seus pelinhos fofos e acinzentados. Insistia em prendê-la, ela fugia. A liberdade venceu. Alma de cachorro em corpo de hamster anão russo. Nina andava pela casa, tinha seu potinho de ração e bebedouro no cantinho da sala. No café da manhã, almoço e jantar chamávamos a pequena pelo nome para dar um pedacinho de alguma coisa para ela se deliciar. Ficava apoiada nas duas patas traseiras, de pé e cara de “o que temos pra hoje?”. Assim foi por quase dois anos. A dor da perda comoveu a casa. Rostos inchados pela manhã não por acabar de acordar, mas pelas lágrimas. O olhar perdido no almoço por ter algo na mesa que a Nina adoraria comer. O pote de ração e o bebedouro ainda estavam na sala.
Na hora de retirar o cadáver do local do acidente peguei um papel toalha. A cena era dramática, digna de filme do Quentin Tarantino. O papel ficou úmido com a mistura de sangue e tripas. Enrolei, peguei mais uma folha e enrolei novamente. Lembrei da caixa do mouse que comprei semana passada, coloquei o embrulho dentro. Ninguém mais quis olhar pela última vez para o que restou de Nina. Joguei no lixo. Sem velas, só choro. Sem caixão, coroa de flores ou oração para o menor membro da família. Lembrei da minha chefe, que na infância teve uma cachorrinha. Após nove anos, o animal morreu naturalmente. Houve cerimônia, seguindo os ritos da fé judaica como se o bichinho fosse humano. Banho de água pura, oração, tecido branco. E como será a cerimônia do fim de uma vida animal em outras religiões? Todos velam o corpo? Preza-se o espírito animal? Preza-se o espírito humano? Preza-se o humano? De que adianta um belo funeral para alguém que não teve seu verdadeiro valor reconhecido em vida? Optei por dar bons petiscos à Nina em vida que flores na morte.
ENTREVISTA Religião é regra para ser feliz? A banda Big Up espalha a mensagem da busca pela espiritualidade sem dogmas Por Luana Sudré e Thais Lopes
A busca pela espiritualidade sem necessariamente abraçar uma religião é algo que tem crescido entre os jovens, embora, segundo o Censo Demográfico de 2010, 86,8% do Brasil se declare cristão. Palavras como ‘positividade’, ‘fé’, ‘universo‘ e ‘energia’ estão muito mais presentes nas declarações do dia a dia. Caracterizamos isso como um “movimento do bem”. A banda Big Up surgiu como um estúdio no bairro de Interlagos, Zona Sul de São Paulo, e lançou seu primeiro e único álbum em 2017, o “Uni-Versos”. As letras de suas canções se enquadram como parte do “movimento” e, apesar de entidades da umbanda serem citadas ao longo dos versos, a fé no amor se mostra muito mais forte. Essa mesma fé foi o que moveu o trio, mas o trabalho foi que trouxe reconhecimento suficiente para chegarem aos palcos da Rede Globo no programa “Só Toca Top”. Suas músicas remeterem a uma mistura de rap e reggae, eles não limitam aos gêneros. As letras trazem mensagens cheias de positividade, amor, luz e fé. Mesmo assim também não se definem como banda gospel. Referenciando orixás e outras ideologias em suas letras, a banda se apresenta como guia para o caminho da positividade sem a necessidade de dogmas religiosos. Big Up é composta por Gabriel Geraissati (baixista, guitarrista e baixista), Lucas Pierro (vocalista e letrista) e Victor Burbach, também conhecido como Ras Grilo (vocalista e letrista). O que caracteriza o movimento do bem e desperta nos jovens a busca por um caminho pacífico? Entrevistamos dois dos integrantes da banda para entender como este fluxo chega até eles.
Foto: divulgação/Facebook
O nome da banda, Big Up, vem de uma expressão jamaicana de incentivo e força, do “botar pra cima”. Vocês acreditam que os temas de espiritualidade e fé são uma forma de incentivo? Como sentem essa mensagem passada e a troca com o público?
Geraissati: Mano, acreditamos sim que a espiritualidade e a fé são formas de incentivo. A espiritualidade não necessariamente, mas a fé sim, porque ela não tem a ver com a espiritualidade. Você pode ter fé em outras coisas, tá ligado? Como diria o mano do Braza “tem fé o ateu, tem fé o cientista”. Acreditamos que a fé de uma forma ecumênica incentiva. E a gente sente que essa troca é a mais sólida que temos com o nosso público. Vemos que é o tema mais abordado, por exemplo, quando a gente desce do palco, é o que mais se fala. A galera vem trocar ideia disso assim: “pô, vocês passaram uma mensagem muito positiva, eu saí de uma depressão, me auxiliou em um momento difícil”. Então essa realmente é a nossa maior sustentação e o ponto mais em comum com o nosso público.
Qual a fé e/ou religião dos membros da banda? Ras Grilo: Os três têm fé no amor. A fé que a gente tem é no amor, na vida, no acreditar e se entregar para a força da vida. Nenhum dos três tem uma religião específica mas a gente flerta com todas elas, em especial com o candomblé. Eu, particularmente, com o rastafári que fez parte da minha caminhada. Seguimos muito o passo e acreditamos nas palavras de Cristo também, que é o maior exemplo como ser que já passou pela Terra. A banda se define como uma mistura de reggae e rap, correto? Por que não se enquadram em música gospel? O que acham da música gospel no Brasil? Geraissati: Então, a banda, na verdade, não se define só como reggae e rap. Temos a Xangô, por exemplo, que é a primeira música de trabalho, a levada é bem de afoxé, de capoeira tradicional, se você notar a guitarra, o ta-dan tchan-tchan tan, saca? Que é uma referência dada pelo Gilberto Gil. Tem a Ogum, que é uma outra faixa do álbum que é um ijexá. Então tem o reggae, o rap, o rock também em canções como Eleva. Da mesma forma que a gente trata as religiões e as crenças de uma forma ecumênica, nossa música também é, do ponto de vista de flertar com diversos ritmos. A gente não se enquadra na música gospel porque é segmentada, não é ecumênica, trata de uma forma de se espiritualizar e de louvar. A música gospel no Brasil é um segmento gigantesco que se auto-sustenta e gira ali. As pessoas consomem, não existe pirataria mas na verdade, conhecemos bem pouco. Temos uma admiração pelo Rodolfo Abrantes, que era do Raimundos e foi pra lá. Durante a composição das músicas e na produção dos álbuns, existe algum ritual? Ras Grilo: Em relação às composições varia bastante a fórmula ou o ritual em si, porque a inspiração varia. Os três compõem, então não tem como ter uma fórmula exata. Às vezes a gente está junto, muitas vezes cada um está na sua casinha, no seu espaço, mas não tem nenhum padrão estabelecido. Nas produções das EPs e do álbum, falando por mim, sinto que rola muito de momento e esses momentos batem no coração dos três ao mesmo tempo. É uma coisa bem maluca que quando vem, vem para os três essa sensação de estar juntos para produzir. Geraissati: O nosso estúdio é itinerante, então a gente nunca ficou fixo mais de seis meses num lugar. Gravamos um pouco num lugar, depois pega tudo e vai para outro. Já tivemos a experiência de montar nosso estúdio na praia, em uma casinha de pescador que a gente alugou. Tem uma base fixa, que é nos fundos da Big Up, casa onde mora o Grilo. Foi onde tudo aconteceu. A gente já passou por algumas reformas neste estúdio. Então a gente não aguenta ficar mais de seis meses olhando para a parede da mesma cor, vendo as coisas do mesmo lugar. A gente sempre tá renovando, porque acreditamos que o espaço de criação é tudo e ele sempre tem que estar mudando para aflorar a criatividade e dar uma nova percepção das coisas.
Em “O que eu nasci pra ser”, do álbum Uni-versos, vocês cantam “Eu vim pra eternizar e ser o que eu nasci pra ser”. Vocês acreditam que o destino já está traçado? Geraissati: Todo mundo tem aptidão para uma certa coisa, saca? Às vezes você nasce sabendo ou com 4 anos de idade descobre o que quer fazer. Eu tenho o privilégio de ter acontecido isso comigo, não sei se por meu pai também ser músico. Eu tive a sorte de, desde os 4 ou 5 anos de idade, ter interesse por música, mais do que pelos meus amigos ou por qualquer outra coisa. Outras pessoas descobrem do que gostam com 40 anos de idade. Mas todo mundo tem alguma coisa que nasceu para ser, todo mundo tem um dom, uma aptidão, um interesse. Acho que essa letra, particularmente por eu ter escrito, foi uma coisa mais de afirmação em si. Dizer que quando você descobrir qual é sua parada que você vá até o fim. Como diz o Clóvis de Barros Filho, filósofo e professor de ética da USP, “demore o tempo que for para descobrir qual é sua onda e não desista disso ante pretexto nenhum”. Então é nisso que acreditamos, agora, nas nossas palavras, leve o tempo que for para descobrir qual é seu bagulho e aí, quando descobrir qual é, vá até o fim e faça aquilo todos os dias e seja o que nasceu pra ser. Todos nós temos uma função nesse grande organismo que é o planeta.
DA MESMA FORMA QUE A GENTE TRATA AS RELIGIÕES E AS CRENÇAS DE UMA FORMA ECUMÊNICA, NOSSA MÚSICA TAMBÉM É, DO PONTO DE VISTA DE FLERTAR COM DIVERSOS RITMOS.
Como a Umbanda e o Candomblé entraram no repertório da banda e na vida de cada um dos três? Geraissati: Por mim, a primeira coisa que surgiu na Big Up falando de qualquer entidade foi a música Xangô. Acho que eu trouxe essa referência não só por achar que no reggae as pessoas cultuam muito a religião rastafári e a gente tá no Brasil, então quis dar essa conotação brasileira. Nós três sempre ouvimos muito samba, que é muito ligado ao candomblé e a umbanda, mais ao candomblé, então acho que isso foi fácil pela familiaridade, por a gente ter ouvido muito samba na vida. Ras Grilo: Eu acho que o candomblé faz parte da cultura brasileira, bem enraizada. Então foi meio natural ter aparecido nas composições e isso também acabou mostrando a infinidade de fé que existe. A gente gosta de exaltar todas, principalmente o candomblé para quebrar essa separação, então é bem importante o Candomblé na nossa caminhada. Geraissati: Também pelo candomblé ser muito discriminado a gente faz questão de levantar, tudo o que for minoria, tudo o que tiver sendo oprimido fazemos questão de apoiar.
Acreditam que é necessário ter uma religião para ser feliz? Ou acreditam em algo que deve estar acima de tudo para alcançarmos a felicidade? Ras Grilo: A gente acredita que não precisa de religião para ser feliz e sim, realmente ter fé em alguma coisa. Mas a fé não precisa estar ligada à religião, ela pode estar em muitas coisas. Se a pessoa acredita em algo ela está firmada, tem uma base de sustentação, porque a fé é isso. Acreditamos que a fé é importante para ser feliz mas a religião não é obrigatória. A mensagem de positividade transmitida através da música é clara. Como é passar essa energia neste tempo tão conturbado em que vivemos? Geraissati: É difícil pra caramba, porque nem sempre estamos na positiva, saca? Tem momentos que a gente vive revolta, com tudo o que está acontecendo, principalmente no cenário político. Então é muito difícil, mas é o que a gente realmente acredita que vai transformar. A gente faz o que está sentindo mesmo, nos momentos de revolta a gente escreve e até transmuta mesmo. Falando por mim agora, a ‘Eleva’ não foi escrita num momento em que eu estava feliz ou bem, apesar de levar muita esperança e muita fé. Talvez seja a música mais forte que a gente tenha, ela foi escrita em um momento de dificuldade. Foi um remédio pra mim mesmo, para transmutar e sair daquela energia que eu estava. A gente nem sempre está positivo mas procuramos escrever e imprimir os momento em que estamos positivos. Vocês enxergam esse movimento também? Tanto em manifestações em redes sociais quanto em atitudes, afinal, a todo momento as pessoas transparecem o que pensam e o que são. Ras Grilo: Acho que é fácil de enxergar realmente esse momento de resistência que está girando nosso país. As redes sociais deixam o sentimento da galera muito mais aberto porque não tem filtros. Podemos ver claramente o que as pessoas estão sentindo. Como uma banda que carrega muito essa bandeira do amor universal, de acreditar no amor, que amor cura, tendo essa mensagem vemos que tocam muitas pessoas neste tempo porque elas estão precisando de palavras de alta frequência, palavras positivas. A gente consegue enxergar o efeito que uma palavra de amor faz nas pessoas. Ainda mais nesse tempo conturbado que todos estamos passando, a importância das redes sociais é bem grande pelas pessoas poderem se expressar e mostrar o que estão sentindo.
Arte de divulgação do álbum Uni-Versos Foto: divulgação/Facebook
Vocês conseguem sentir e imaginar a influência das letras positivas nas pessoas? Geraissati: Não. Sinceramente, falando por mim, não consigo. Consigo sentir às vezes coisas mais explícitas, pessoas chorando, aí dá pra ver que deu um efeito pancada. Pelas redes sociais, por exemplo, a gente recebe inúmeras mensagens diariamente. Mas a rede social é fria, né?! Tem vários caracteres ali, não tem entonação, não tem feição. Isso faz com que eu não sinta tanto. Mas conseguimos imaginar o impacto pelo que a gente sente,
sentimos um impacto forte dessas músicas. Imaginamos que o mesmo tanto que a gente sente as pessoas sentem também. Ás vezes vemos, mas não é como as pessoas que estão em volta e falam “olha o que está acontecendo, quantas pessoas estão indo falar com vocês, a galera está emocionada˜. Ou pessoas que trabalham na estrada falam “já trabalhei com vários outros artistas e a galera não é assim como é com vocês, eles vêm chorando falar com vocês, tremendo”, então a gente pode imaginar. Notamos que vocês não possuem uma música que remeta a um sentimento triste e até mesmo quanto falam sobre sofrimento, por exemplo em “Eleva”, trazem um tom de incentivo e positividade. Isso é proposital? Ras Grilo: Todas as músicas que a gente fez até o momento refletem e manifestam o sentimento da época em que escrevemos. Acredito que é muito do fato de estar sentindo
aquilo mas também de querer transpor coisas boas, sabe?! Nós carregamos isso na nossa personalidade, falar de coisas boas, não somos quem fala de coisas ruins no dia a dia, a gente prefere exaltar o que é bom. Acho que isso acaba sendo realidade nas nossas letras por sermos assim, né? Mas em algumas letras e composições que eu escrevi, tem coisas propositais e tem coisas que saem naturalmente. Geraissati: A Eleva foi feita num momento conturbado, então naturalmente transparece isso, só que de uma forma positiva. Eu acredito que tudo tem dois lados, um positivo e outro negativo, tudo mesmo. Mesmo no momento negativo prefere frisar o positivo por saber que aquilo vai fazer bem para a gente e para todo mundo, para nós é algo claro. Se temos a oportunidade de falar coisas boas, já que tudo tem dois lados, porque frisar o negativo? É natural, proposital mas orgânico ao mesmo tempo. A gente é feliz em ser desta forma.
Ras Grilo, Gabriel Geraissati e Lucas Pierro - a banda Big Up
REPORTAGEM
A religião na época dos Millennials Como o Movimento Pax e o Dunamis influenciam adolescentes na crença da igreja a partir de encontros e músicas religiosas Por Hugo Duarte e Marina Manco
Logo na adolescência as crianças do Colégio Santo Américo são apresentadas à religião como uma forma de aproximação da fé. É o caso de Maria Monteiro, de 17 anos, que teve contato com a religião bem cedo: “Meus pais sempre foram católicos e vão à Igreja todo domingo, por isso eu frequentava a missa “por obrigação” até conhecer o Movimento Pax. Através do meu irmão que havia participado do Encontro de Jovens com Cristo há dois anos, a boa referência e curiosidade me levaram até o Pax, onde eu pretendo continuar contribuindo. Hoje a religião é uma parte essencial na minha vida, nao sei como seria passar por alguns momentos sem ter fé e frequentar a Igreja”. No Brasil, menos da metade da população jovem entre 16 e 24 anos é católica, um número menor quando comparado com a quantidade de católicos acima de 50 anos, que correspondem a 57,9% da população. Segundo pesquisa feita pela Data Popular, o catolicismo não é o único afetado pela população mais jovem,
11,5% da população nessa faixa etária não segue nenhuma religião, entre as pessoas acima de 50 anos o número é muito menor, apenas 4%. Mas ainda existem muitos grupos de jovens religiosos no Brasil, o Movimento Pax e o Dunamis Pockets são alguns deles. O Movimento Pax foi criado em 1990, com a premissa “Ele é nossa paz”, que inspirou seu fundador, D. Veremundo Tóth. Entretanto, o Movimento já existia desde aproximadamente 1975, sob a forma dos Encontros de Jovens com Cristo do Colégio Santo Américo. Eram reuniões para discussões de temas formativos a respeito da Fé católica, ensaios de canto, preparação de monitores e coordenadores de grupo. Até meados dos anos 80, o próprio D. Emilio decidiu encerrar as atividades. Após uma pausa de dois anos, alguns antigos “encontreiros” reiniciaram os Encontros, passando a incluir eventos de pós-
encontro, pastorais e grupos de formação espiritual continuada, transformando-se em Movimento Pax. No início, os Encontros eram destinados apenas a jovens adolescentes, na faixa dos 15 a 17 anos, provenientes de quaisquer colégios de São Paulo, desde que indicados por outro antigo “encontrista”. No fim da década de 90 mais um grupo foi abraçado pelos Encontros: o dos adultos, que mesmo já tendo até constituído família e carreira profissional, desejavam conhecer e se aproximar de Deus. No caso da Maria, seus pais se assustaram no início com tamanho empenho que ela demonstrava ao participar do Movimento, mas isso mudou quando eles deram uma chance: “No começo, muitos dos meus amigos e principalmente minha família tiveram um certo preconceito, alguns inclusive acharam que eu “estava virando crente”. Quando meus pais foram a um dos encontros, mudaram completamente de opinião. Hoje em dia eles me acompanham em tudo e se dedicam tanto quanto eu e me apoiam incondicionalmente por saberem o quanto isso agrega na minha vida e me faz bem.” Posteriormente, a demanda de participação de jovens já ingressos na faculdade fez com que a adição dos Encontros de Universitários com Cristo ao calendário do Movimento fosse necessária. “A realidade da vida universitária se mostrou um excelente campo e momento para a evangelização dos jovens ainda não iniciados na fé em Cristo.” Além dos Encontros, o Movimento realiza campanhas de arrecadação de brinquedos, agasalhos e cestas básicas para as comunidades de Paraisópolis e Jardim Colombo, distribuição de “sopão” pelas ruas da cidade, serenatas de Natal, estudos bíblicos, preparação para o Sacramento da Crisma do Colégio e dos jovens de Paraisópolis, retiros e peregrinações a Santuários: “São semanas muito intensas com muitas atividades e arrecadações. Essas cestas são distribuídas em parte no Natal e durante o ano seguinte inteiro para famílias previamente cadastradas pela equipe da pastoral do Movimento”, afirma Maria. A grande maioria dos Encontros é realizada de maneira divertida ao som de músicas criadas pelos colaboradores, transformando os eventos em algo dinâmico e acolhedor. Outra característica marcante é a hierarquia diversificada dentro do Pax, Maria explica que faz parte da comissão de eventos e existem níveis hierárquicos para a organização e tudo que acontece em nome do Movimento. Os mais importantes são: Secretários Gerais (são dois) e os coordenadores de cada área específica. O PAX se baseia em uma característica que denominam especial: A VIDA EM COMUNIDADE - “Pautada num exercício alegre e fraterno do que é ser Cristão”, reafirmada por Renato Gaetano, Conser de Palestras do Movimento PAX, que explica que “o que nos define é a cooperação mútua entre casais, adultos, adolescentes e jovens universitários, que, através do exemplo de Jesus Cristo, apresentam o Caminho, a Verdade e a Vida aos quais os indivíduos devem almejar.” O objetivo é claro: repassar amor, respeito, empatia e valores ao próximo para contribuir com um mundo melhor e aplicar esses ensinamentos diariamente.
“
QUEREMOS CONQUISTAR AS PESSOAS DA FACULDADE, DESDE OS ALUNOS ATÉ OS PROFESSORES, PAIS DOS ALUNOS, FUTUROS CHEFES, AMIGOS E, QUEM SABE UM DIA, O BRASIL
Segundo Nathalia, irmã de Matheus e atual líder do movimento, o maior número de colaboradores desta unidade da Dunamis foi 25. “Hoje estamos com 12. A pessoa fica 2 anos na liderança, nesse período ela treina uma pessoa para ser o próximo líder. Então o meu irmão me treinou, passou a liderança para mim, agora estou finalizando a minha faculdade e já estou treinando uma pessoa, pois acreditamos muito no legado. Acreditamos que você primeiro é liderado, lidera e depois treina pessoas para continuar o trabalho”, explica Nathalia Araujo Lima. O significado do nome pode ser dividido em duas partes. Dunamis vem de Dínamo, da própria bíblia, e traduz o “poder explosivo” que os apóstolos usavam para falar da ressurreição de Jesus. Já Pockets é ”bolso” em inglês. Em suma, são lugares pequenos, mas que contém grande energia e entusiasmo. Nathalia também nos explicou um pouco sobre os objetivos do Dunamis. “Nós acreditamos nesses pequenos “bolsos explosivos” dentro das universidades. Estamos nelas [universidades] pois cremos nas 7 esferas de atuação como: economia, saúde, artes entre outras. Acreditamos que os futuros líderes da nação irão sair das universidades, o caráter exemplo é o caráter de Jesus e isso pode fazer a diferença no trabalho da pessoa, independente da área. É assim que podemos fazer a diferença no país. Não adianta a gente tirar um político e não colocar uma pessoa com caráter formado para fazer a diferença. Então botamos a nossa confiança nos valores de Deus, nos valores do Reino, eles podem fazer uma diferença. Esse movimento surgiu na necessidade de trazer uma revolução nesse aspecto”. Como foi explicado, o movimento tem a intenção de entrar em partes da sociedade e influenciar, com os ensinamento bíblicos a sociedade como um todo. O Dunamis está espalhado por mais de duzentas faculdades pelo Brasil, a grande capilaridade do movimento permite que eles se organizem, façam grupos de estudos, comemorações, cúpula de líderes e reuniões de treinamento fora da cidade. Nathalia, que hoje é líder da Dunamis Pockets da Anhembi, se tornará líder de 3 unidades futuramente, já que o período limite para ficar em uma unidade é de 2 anos. Com uma organização de nível profissional, o grupo religioso não limita suas ambições no ambiente universitário, “queremos conquistar as pessoas da faculdade, desde os alunos até os professores, pais dos alunos, futuros chefes, amigos e, quem sabe um dia, o Brasil”.
Fotos por Thais Lopes
O outro movimento é o Dunamis Pockets. Com uma abordagem protestante e pentecostal da fé cristã, o Dunamis pretende levar para o ambiente jovem ensinamentos de Jesus Cristo. O movimento começou em 2015 aqui na Anhembi Morumbi, com o Matheus Araujo Lima. Para ser líder do Pockets é necessário passar por um processo seletivo e um treinamento para, depois, abrir um Pocket. Após isso começa o recrutamento de pessoas da faculdade.
Foto por Thais Lopes
RESENHA
A Alma Imoral
Quebra de conceitos e dogmas através do autoconhecimento Por Marina Manco
O monólogo interpretado por Clarice Niskier, atriz e dramaturga, é inspirado no livro “A Alma Imoral” escrito pelo rabino Nilton Bonder. A peça, que teve início em 2006, está em cartaz há 12 anos com apresentações entre São Paulo e Rio de Janeiro. Quando convidada para um programa de televisão alguns anos antes da possível ideia de transformar o livro em peça, Clarice se autodenominou como judia-budista. Muito criticada, justificouse ao relatar que os princípios do budismo a ajudariam a compreender o judaísmo. Um marco bastante importante do espetáculo é Clarice atuar nua em cena, explorando o conceito de nudez como algo proibido e explicando que a alma não precisa de vestimenta, causando reflexão em quem assiste e pensa a respeito da união de palavras fortes com o corpo nu no palco. A atriz explora um pensamento sobre humanos darem prioridade a alma moral com seu corpo imoral, relembrando o quão perverso é o uso do outro para falar de si. A peça conta com citações filosóficas e religiosas milenares, transformadas em analogia com o “eu interior” de cada espectador por meio de frases de impacto e grande autoconhecimento. A abordagem de conceitos como traição e tradição, raciocínio e ponderação, certeza e razão e, principalmente, certo e correto é algo que faz quem está sentado observando as comparações se perder - no bom sentido - em meio a um universo de conceitos
enraizados presentes no dia a dia de cada um. Ao externar que Deus não é moral e a alma é imoral, pensamentos sobre religião, conceitos e tudo que sempre nos foi apresentado vão ao chão em um piscar de olhos. A forma com que Clarice desperta o interesse em conhecer mais sobre como convivemos com esses dogmas diariamente é deliberadamente surpreendente e bastante perturbadora. A Alma Imoral é uma lição sobre (auto)conhecimento e apreciação, trazendo reflexão sobre seu raciocínio e absorvendo o que se encaixa especificamente em suas necessidades ao longo da vida. Uma dramaturgia atemporal, com conceitos humanos muitas vezes deixados de lado para dar espaço ao automático, e não mais ao sentimental. A peça sem dúvidas é recebida pelo espectador de maneiras diferentes de acordo com seu momento vivido, as palavras têm entonação única para quem se identifica com citações específicas do texto que toca o coração de todos de qualquer maneira com seu tom de questionamento emocional. Ressaltando a importância de sempre olhar para dentro de si e indagar-se sobre suas atitudes diárias em relação à crenças, valores e conceitos pragmáticos, Clarice transforma um pequeno palco, uma cadeira, luzes baixas e um pano preto que se reverte em muitos figurinos em um espetáculo fundamental para seu crescimento como ser humano.