Prefácio
As Neurociências e as Ciências Cognitivas tornaram-se vedetes em uma nova era que nascia com a pretensão de perscrutar os mais recônditos segredos de nossa vida mental, de nossa consciência, e trazer um novo e definitivo discurso científico sobre um dos mais insistentes problemas para o conhecimento humano: a relação mente-corpo. Vimos a década de 1990 ser batizada como a “década do cérebro” e, nela, emergirem estudos nunca antes imaginados ou passíveis de realização dada a precariedade técnica existente até então. A sofisticação dos equipamentos prometia resultados seguros, objetivos e, para muitos, suficientes para a resolução daquele problema. A atenção dos cientistas, filósofos, religiosos, e mesmo de parte dos “homens e mulheres comuns”, voltou-se para esses estudos no aguardo da profetizada revolução. E a revolução... não chegou! Abateu-se uma profunda frustração assentada na percepção de que as mesmas perguntas feitas anteriormente mantiveram-se sem resposta. O cérebro e a relação mente-corpo continuam a ser território de apostas teóricas as mais diversas, com justificativas empíricas alegadamente plausíveis para cada uma delas.
Diante desse panorama não se pretende que esse campo veja sua importância diminuída no cenário científico. Ainda aguardamos pela revolução que, de fato, pode estar se construindo desde os anos 90. O certo, no entanto, é que a via empírica não precisa, e talvez não deva, prescindir de outros modos de reflexão a respeito do tema. Ao tratar a questão cérebro-mente, a Filosofia da Mente tem demonstrado sua força justamente por apresentar uma forma de produzir conhecimento distinto das hard sciences e sem deixar de levar em conta os resultados das pesquisas experimentais de áreas como a neurobiologia e a neurologia funcional. Atualizar a discussão de Tomás de Aquino acerca da alma, colocando-a numa linguagem atual e destinada aos profissionais da Psicologia parece-me um esforço que se alinha a essa perspectiva por duas razões: primeiro, porque este é o próprio método empregado pelo filósofo e teólogo em questão e, segundo, porque a apresentação dessa atualização, em si, revela uma produção em Filosofia da Mente. Tomás de Aquino constrói sua reflexão filosófica a partir de elementos aparentemente simples como a própria experiência humana e chega a conclusões, ou possibilidades interpretativas, surpreendentes, muitas das quais extremamente atuais e que parecem compatíveis com algumas das mais recentes teorias da Filosofia da Mente. Filósofos da mente como Daniel Denett (1987, 1991, 1995), Francisco Varela e Humberto Maturana (1997, 2004) sustentam que fenômenos complexos, como a consciência, sustentam-se em estruturas biológicas, mas transcendem as propriedades biológicas; emergem delas, mas vão para além delas. O leitor informado notará que Tomás de Aquino parece ser um pioneiro não apenas do “emergenticismo” apontado, como também de idéias que ainda nos parecem tão cientificamente heterodoxas ou pseudocientíficas que costumamos rechaçar de modo apriorístico. Esse parece ser o caso da consideração por parte de Tomás de Aquino da possibilidade de existência de uma faculdade humana de conhecimento direto da realidade, a qual prescindiria do uso dos órgãos dos sentidos. Essa idéia ou hipótese, que contraria a máxima aristotélica de que nada chegaria à mente que não passasse antes
pelos sentidos, tem sido avaliada rigorosamente por pesquisadores isentos no campo da Parapsicologia. Note-se ainda que, mesmo com o emprego de métodos bastante diferentes dos empregados pelo filósofo medieval, estudiosos têm chegado a conclusões praticamente idênticas a que esse chegou, como a forte correlação entre o conteúdo conhecido de modo aparentemente extra-sensorial e a ligação afetiva com o percipiente e a maior freqüência ou chance de ocorrência desse tipo de conhecimento extraordinário com a diminuição ou impossibilidade de uso dos sentidos. Também essa correspondência entre as conclusões advindas de métodos tão distintos reforça o argumento da necessidade de buscarmos complementar os estudos da natureza humana para além das técnicas convencionais consideradas as melhores em dado momento, e para além das ciências que acabam por ocupar um lugar de destaque no imaginário científico de um tempo. Faça-se constar que a discussão científica da possibilidade desse tipo de conhecimento extraordinário atingiu, em tempos recentes, publicações de grande respeitabilidade, oferecendo ao tratamento do tema uma certa legitimidade científica inexistente até então. No campo da Psicologia, dois exemplos podem ser dados: a publicação de um livro que trata de “experiências anômalas” não menos que pela Associação Americana de Psicologia (Cardeña, Lynn & Krippner, 2000) e a inserção de um capítulo que discute esses temas em um dos livros-textos mais adotados dos EUA (Atkinson et al., 2000). No campo das Ciências Cognitivas, a discussão foi levada ao público informado pela publicação de um número especial do Journal of Consciousness Studies (Alcock, Burns & Freeman, 2003). Esses exemplos parecem demonstrar o quanto o pensamento de Tomás de Aquino é atual, mesmo em temas cientificamente polêmicos como o da percepção extra-sensorial. Assim, ao trazer as idéias de Tomás de Aquino à discussão, o Prof. Dr. Mauro Amatuzzi nos brinda com muitos ensinamentos para além do resgate do pensamento do filósofo e teólogo e, sobretudo, nos incita a grandes desafios, pois: reabre a difícil tarefa de pensar o conceito de alma pela Psicologia; coloca o leitor em contato com um método de produção do conhecimento distinto do científico-acadêmico convencional; toca em temas heterodoxos de
grande relevância tanto para a construção de uma teoria psicológica da pessoa quanto para a prática clínica; lida com uma temática difícil, de modo interdisciplinar, em que estão em jogo, por exemplo, saberes e ciências como a Teologia, a Filosofia e a Psicologia. Apesar desses desafios e da aparente dificuldade do tratamento do tema, Amatuzzi facilita a vida dos leitores ao tornar compreensíveis as idéias de Aquino por meio de uma linguagem atual e adequada, pelo uso de quadros explicativos, resumos esclarecedores e contextualizações necessárias. Como psicólogo interessado nos temas que este livro toca, termino sua leitura transformado. Abriu-se para mim uma enorme possibilidade: a de pensar psicologicamente temas aos quais a Psicologia claramente resiste em legitimar ou que, claramente, tem renunciado, deixando-os na esfera exclusiva do tratamento da religião ou do senso-comum. Não tenho dúvida que essa minha transformação interna repercutirá em ações na mesma direção, conquanto tenha me sentido tocado à produção de material congênere no futuro. A inspiração que o livro trouxe a este leitor será, creio, estendida aos seus privilegiados futuros leitores.
Wellington Zangari Laboratório de Estudos em Psicologia Social da Religião Instituto de Psicologia – USP Pesquisador