Prefácio Que motivos levam jovens estudantes de Psicologia a se interessarem pela educação? O que pode conduzir jovens a se interessarem pela pesquisa, pelas crianças e adolescentes das escolas públicas, das classes populares? Como nós, professores de graduação em Psicologia, podemos contribuir para incentivar a pesquisa no campo da Psicologia Escolar e Educacional na formação de psicólogos? Na condição de professora de disciplinas da área de Psicologia Escolar no curso de Graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo, desde 1988, procuro formular perguntas como essas e ao mesmo tempo construir uma trajetória na área que instigue alunos a se entusiasmarem pelas questões educacionais do nosso país, incentivando a curiosidade, trazendo aspectos da realidade educacional e escolar, apresentando possibilidades e limites do trabalho de atuação profissional no campo da educação, dentre outros aspectos. E foi em um desses momentos que pude prestar mais atenção em uma das alunas dessa disciplina, Ana Karina Amorim, que apresentava, na ocasião, um seminário, na disciplina de Psicologia Escolar e Problemas de Aprendizagem, a respeito da pesquisa intitulada .A representação de escola em crianças da classe trabalhadora. Esta pesquisa, realizada pela colega Silvia Helena Vieira Cruz, mostrava, dentre outros aspectos, a situação precária de escolarização de crianças das classes populares, na cidade de Fortaleza, nos anos 1990, principalmente o preconceito vivido por elas ao ingressarem na escola, em função de sua condição de classe. Ao apresentar esse trabalho, Ana Karina se emocionou, pois havia vivido essa mesma condição de preconceito, não por pertencer à classe popular, mas por ser nordestina, da cidade de Recife, e ter mudado para São Paulo e estudado em uma escola de elite na capital. Sofreu o preconceito dos colegas e de professores pela forma como falava, pelo acento das palavras, por considerarem que deveria trazer defasagens de várias ordens... afinal, como se diz pejorativamente por aqui “veio lá de cima”.
Reviver esses sentimentos, entender o contexto em que tais questões se apresentavam em sua história pessoal a aproximaram da Psicologia Escolar, da Educação e da necessidade de compreender melhor fatos dessa natureza, enfrentando os preconceitos e as representações negativas que tantas crianças e adolescentes vivem por estarem em uma cidade como São Paulo e também por pertencerem às classes populares. Quando Ana Karina se propôs a realizar o curso de Mestrado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, apresentou para mim um projeto de pesquisa a respeito da escolarização de adolescentes. Em princípio, a temática me questionou, pois toda minha experiência como professora, pesquisadora e psicóloga, até aquele momento, centrava-se no ensino fundamental, com crianças e professores das séries iniciais. Portanto, orientar uma pesquisa sobre adolescência significava, dentre outros aspectos, ter que me apropriar de um novo universo conceitual, temático e metodológico. Mas, seus argumentos − em favor da pesquisa e da necessidade de conhecer esses jovens a partir dos referenciais que estávamos utilizando para compreender os estudantes das séries iniciais – foram convincentes e tornaram-se um motivo forte para que eu aceitasse o desafio. E cá estou eu hoje, escrevendo um prefácio para o livro intitulado: Adolescência e Escolarização numa Perspectiva Crítica em Psicologia Escolar, o que é, para mim, uma grande satisfação e que só foi possível graças à generosidade de sua autora que insistiu para que eu adentrasse nesta temática no campo da pesquisa. Este trabalho é fruto de vários meses de pesquisa de campo realizada por Ana Karina Amorim Checchia em uma escola pública do estado de São Paulo com o intuito de ouvir jovens das classes populares sobre suas vivências no âmbito da escolarização. Em um primeiro momento, parece que estudar a adolescência, ouvir os jovens seja algo que tenha sido realizado por outros pesquisadores ou, até mesmo, vastamente pesquisado. Mas, o que mais se destaca nesta pesquisa é que esse ouvir qualificado é fruto de uma longa discussão da área da Psicologia na direção de compreender historicamente a condição em que o jovem se encontra hoje, de construir referenciais teóricos e metodológicos que permitissem estreitar laços com os adolescentes e que pudessem compreender este momento do desenvolvimento humano e
sua escolarização, a partir dos sentidos e significados que os adolescentes atribuem a sua condição social. Nem sempre foi assim na história do conhecimento sobre o adolescente na Psicologia. Ao contrário, como revela o trabalho de pesquisa de Ana Karina, durante muitas décadas, a Psicologia patologizou o jovem, encontrou nesta fase do desenvolvimento uma grande quantidade de mudanças e de dificuldades de várias ordens, constituiu um conhecimento a respeito do adolescente e do jovem que pouco contribuiu para compreender necessidades e contextos em que tais dificuldades se produziram nesta faixa etária. Além disso, desconsiderou sua condição de classe, homogeneizando um pretenso saber a respeito de uma determinada fase do desenvolvimento. De alguma maneira, a Psicologia reforçou ou contribuiu para reforçar certo senso comum social quanto à dificuldade em se lidar com os jovens, reafirmando a adolescência enquanto uma fase de rebeldia, agressividade, destacando a constituição de gangues, o isolamento, dentre outros aspectos negativos mencionados sobre eles. Se a Psicologia durante muitas décadas ocupou esse lugar de explicação da adolescência pela via da psicopatologia, no âmbito das políticas sociais, com destaque para a educação e assistência social, não se deu de forma diferente. As políticas públicas para a adolescência, de maneira geral, refletem o tempo e o momento histórico e social em que estão inseridas. A partir da chamada redemocratização do Estado brasileiro verifica-se um incremento nas discussões quanto às formas de construir tais políticas, aos desafios que devem ser enfrentados e às perspectivas projetadas para o futuro que devem ser consideradas. Boa parte das políticas está alicerçada em dados e indicadores sociais de forma a qualificar o debate e possibilitar o conhe cimento da macroestrutura social e educacional brasileira, iluminando obje tivos, estratégias e metas a serem atingidas com relação a este segmento social. Outro aspecto da constituição de políticas públicas centra-se nas concepções que socialmente se constróem a respeito daqueles que são público alvo destas políticas. Mas qual o referencial interpretativo utilizado para a leitura desses dados? De que jovem ou adolescente estamos falando? A partir de que ponto de vista? Quando se trata de adolescentes observamos que algumas dessas políticas refletem concepções em que apresentam o adolescente ora como
pertinente a uma faixa etária constitucionalmente problemática do ponto de vista psicológico, ora como fruto das mazelas da carência cultural ou ainda como membro de um grupo que ao se organizar ameaça o bem estar social. Assim, concepções a respeito do adolescente, em boa parte dos textos das políticas públicas vigentes, associam-no à violência, à drogadição, ao descontrole social e sexual, enfim a uma série de elementos pouco favoráveis. Portanto, este trabalho ao considerar a visão da Psicologia e da escolarização, busca romper com tais concepções a respeito da adolescência, chamando atenção para a necessidade de compreendê-la a partir de um referencial histórico-cultural no campo da Psicologia. Esta pesquisa, dentre outros aspectos, chama a atenção para a relevância em romper com a naturalização do olhar sobre essa fase da vida, abordando a adolescência enquanto um conceito de constituição social e histórica, visando conhecer os aspectos e a complexidade que envolvem esse fenômeno e que tais aspectos sejam analisados pelos próprios adolescentes, considerando-se os questionamentos e dilemas por eles vividos. O que pensam os adolescentes sobre eles mesmos? Reconhecem ‑se enquanto adolescentes, tal como são nomeados pelos adultos? Como vivem essa condição na escola? Que dilemas estão postos a eles durante a escolarização? Como se traduz nesta faixa etária e na escolarização a condição de classe em que se encontram? Estas e outras questões foram norteadoras dessa pesquisa. É importante destacar o envolvimento desses jovens com a pesquisadora, o interesse sempre presente em participar da pesquisa, em se fazer ouvir, em se sentir acolhidos no espaço do grupo de pesquisa. Finalizo trazendo um trecho da letra de uma das canções da banda Alma D’jem, “Minha voz”, que foi utilizada com os adolescentes durante a pesquisa e que diz, muito... Não pense que vou combater com violência A violência cega que você me traz. Não pense que vou combater com intolerância A ignorância intolerante que eu não quero mais. É pra essa guerra que eu guardei as minhas armas A consciência, o pensamento livre, a expressão.
Marilene Proença São Paulo, 1º de maio de 2010