Educação Matemática: contextos e práticas docentes

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Matemática, Educação Matemática, Cidades e Casacos Vermelhos Um prefácio

Matemática e Educação Matemática Embora a Educação Matemática seja um campo em que nós transitamos e no qual, aparentemente, nos reconhecemos de forma “natural”, um espaço que ao mesmo tempo nós constituímos e que, acolhendo nossos discursos, permite que nele sejamos constituídos como professores-pesquisadores, não são raras as vezes em que a pergunta “o que é, afinal, Educação Matemática?” vem à cena. Para o Grupo de Pesquisa GHOEM (Grupo de História Oral e Educação Matemática) essa questão tem sido usual e, por muitas vezes, feita de forma incisiva. Isso se deve muito ao fato de nosso Grupo ser um conjunto de pesquisadores que nem sempre produz trabalhos focando temas mais diretamente relacionados ao que tem sido chamado de Educação Matemática. Isso nos levou a tentar explicitar, em exercícios contínuos, o que concebíamos como Educação Matemática e como pesquisa em Educação Matemática. Partimos – até onde alcança a memória –, num primeiro momento, de excertos de duas produções do Grupo: [...] desde o primeiro instante em que se decidiu ensinar alguma coisa chamada ´Matemática´, a Educação Matemática começou a se manifestar. A Educação Matemática depende, de modo radical, de como a sociedade institui, a cada época, a matemática como prática social relevante. A educação matemática existe porque, existindo a matemática, as sociedades, ao fazerem dela parte de sua cultura criaram necessidades ESPECÍFICAS de comunicação e, a par destas necessidades, encontram dificuldades no exercício desta comunicação. É em função dessas necessidades e dificuldades que se constituiu uma educação matemática.


Ambas as citações permitem situar a Educação Matemática em diálogo com a Matemática, embora essa implicação não seja nem direta, nem linear, nem em um único sentido. É natural que a Educação Matemática tenha surgido por existir, a priori, uma prática social chamada Matemática e, assim, é também natural que haja, na pesquisa em Educação Matemática uma preocupação em tratar a Matemática em situações que envolvam seu ensino e sua aprendizagem. É importante reconhecermos uma diferenciação entre a Educação Matemática como prática pedagógica e a Educação Matemática como prática científica. Ainda que essas frentes interajam (não há prática pedagógica legítima que não mobilize estudos teóricos, nem teoria legítima desatrelada de uma prática que a sustente e a motive), essa diferenciação, ainda que artificial sob esse aspecto, é operacional para compreendermos o que falamos quando dizemos “Educação Matemática” e “Pesquisa em Educação Matemática”. No domínio de uma prática científica em Educação Matemática estão inscritos, por exemplo, aqueles esforços de compreender como a Matemática é articulada em situações comunicativas nos diversos contextos culturais onde ocorrem o ensino e a aprendizagem em Matemática (de modo “formal” – como nas instituições escolares – ou não). Assim, tratar de objetos matemáticos específicos, das estratégias para esse tratamento e dos fundamentos dessas estratégias são, claramente, faces da pesquisa em Educação Matemática. A essa linha vincula-se a afirmação de vários educadores matemáticos, como, por exemplo, Kilpatrick, de que o principal papel da Educação Matemática (e da pesquisa em Educação Matemática) é cuidar da formação de professores de Matemática. Esse é um exemplo nítido de como as fronteiras de uma área vão se flexibilizando para atender a várias perspectivas. Tratar da formação do professor de Matemática não é tratar apenas dos objetos matemáticos em situações de ensino e aprendizagem. Ou seja, começam a entrar em cena outros fatores, outras disposições, outras questões: o que é ser professor e o que é ser professor de Matemática? Quais parâmetros – fundamentados – de ação susten­tam as práticas de formação? O que dá legitimidade aos que tratam de formar professores e professores de Matemática? Quais limitantes são impostos pelas políticas educacionais ou práticas de gestão? Essas políticas e práticas são específicas para a formação do professor de Matemática? Ou, em quais pontos há especificidades para diferenciá­


‑la da formação do professor de outras áreas? De qual ‘Matemática’ falamos quando afirmamos querer trabalhar questões sobre a formação de professores ‘de Matemática’? etc. Abre-se, portanto, um leque de temas que devem ser tratados pela Educação Matemática e pelos agentes que se responsabilizam pela pesquisa em Educação Matemática e, assim argumentando, dissociar essas práticas sociais (a Educação Matemática e a produção de pesquisa em Educação Matemática) da Matemática (também vista como prática social) seria tão equivocado quanto tornar essa associação obrigatória ou forma única de caracterizar a Educação Matemática e a pesquisa em Educação Matemática. A ausência de reflexão sobre a vinculação entre Matemática e Educação Matemática é uma postura anacrônica e totalmente sem sentido. Atualmente, mais do que num passado bastante recente, falar de Educação Matemática e de pesquisa em Educação Matemática exige percebermos quão visceral é o diálogo entre diversos campos do saber, entre diversas práticas sociais (acadêmicas ou não). Embora essa perspectiva seja constantemente mencionada quando surge uma discussão sobre Educação Matemática, percebe-se, no dia a dia das instituições e de seus agentes, que ela é, via de regra, meramente declaratória. Certamente, há questões em nosso campo de inquérito que dizem respeito explicitamente à Matemática, mas há outras questões, postas por outros domínios do conhecimento, que não podemos mais negligenciar (questões essas que não necessariamente trabalham de modo próximo e explícito com a Matemática). Há questões internas, próprias à área, e há questões de fundo que não podem ser encaminhadas apenas no diálogo interno e/ou no diálogo com a Matemática. Assumimos a Educação Matemática como uma zona de fronteira, e que sua constituição ocorre nessa zona de fronteira e deve ser parametrizada por regulações que assim a considerem. Para isso é essencial ultrapassarmos os discursos meramente declaratórios de que temos nos valido; é essencial colocarmos à prova, constantemente, os limites de nossas teorias e métodos; é necessário, cada vez mais, estarmos abertos ao diálogo com outras práticas sociais e questionarmos, a todo momento, nossa legitimidade para afirmar o que afirmamos. O tema “Pesquisa em Educação Matemática”, portanto, exige uma atualização: não se trata mais de analisar os trabalhos em Educação


Matemática apenas do ponto de vista de como eles valem-se do (ou analisam o) objeto matemático em situações de ensino e aprendizagem, mas de exercitar diálogos efetivos com outras áreas do conhecimento, mesmo que o objeto matemático, nessas interlocuções, pareça diluir-se. Essa diluição, entretanto, não é uma declaração de morte ao tema “Matemática” como prática social em nossas investigações em Educação Matemática. A intenção é defender que essa diluição seja como uma morte em moratória: a suspensão da Matemática propriamente dita, nos trabalhos de Educação Matemática é uma tática para um diálogo inter-áreas realmente efetivo, um diálogo ao qual sempre a Educação Matemática chamou de imprescindível para sua própria caracterização como área cujo objeto é interdisciplinar. Esse é o ponto: à primeira vista parece que ainda patinamos para entender aquilo de que Marc Bloch já nos alertava: “o mesmo erro sempre espreita o intérprete: confundir uma filiação com uma explicação”. Para ultrapassar essa concepção linear de pesquisa em Educação Matemática – que caracteriza, sempre, as pesquisas nessa área a partir da Matemática presente nas investigações – e reafirmar nossas perspectivas, nos valemos do conceito de prática social como apresentado por Antonio Miguel1: Uma ‘prática social’ é um conjunto de conjuntos composto por quatro elementos: 1) por uma comunidade humana ou conjunto de pessoas; 2) por um conjunto de ações realizadas por essas pessoas em um espaço e tempo determinados; 3) por um conjunto de finalidades orientadoras de tais ações; 4) por um conjunto de conhecimentos produzidos por tal comunidade.

Nosso objetivo ao chamar esse “conceito” à cena não é apenas caracterizar a Educação Matemática como uma prática social (do mesmo modo como, no correr do texto, ressaltamos ser, obviamente, a própria Matemática), mas também realçar algumas implicações disso decorrentes: a) uma prática social é constituída a partir de um perfil coletivo, no qual interagem várias e diversificadas perspectivas; 1. MIGUEL, A.; GARNICA, A. V. M.; IGLIORI, S. B. C.; D´AMBROSIO, U. A educação matemática: breve histórico, ações implementadas e questões sobre sua disciplinarização. Revista Brasileira de Educação. ANPED. n. 27, Campinas, Autores Associados, pp. 70-93, set./dez. 2004.


b) a prática científica não abarca o todo de uma prática social (isto é, não caracteriza nem a Matemática nem a Educação Matemática); c) a comunidade acadêmica não é portadora de critérios epistemológicos fixos, justos e bem definidos de modo a “decidir os destinos” de uma prática social; d) práticas sociais podem, devem – e certamente o tem feito – compartilhar objetivos e/ou práticas e e) toda prática social comporta uma atividade educativa em seu interior e abarca mais temas – uma húbris – que aqueles que constituem, em princípio, seu núcleo.

A comunidade que constitui a prática social da Educação Matemática é, também, dificilmente apreendida a partir de carac­terísticas padrão. Miguel descreve alguns dos componentes dessa comunidade eclética e heterogeneamente composta: [...] professores de matemática que não pesquisam suas práticas e que não vêem com bons olhos os pesquisadores acadêmicos em educação matemática; pesquisadores acadêmicos em matemática e em educação que participam da formação desses professores, mas que não gostam muito de fazer isso e, se pudessem, não o fariam; de matemáticos que não pesquisam nem matemática e nem educação, mas que formam, a gosto ou a contragosto, professores de matemática; pesquisadores matemáticos que gostariam de fazer educação matemática, mas que se acham impedidos de fazer o que desejariam fazer; pedagogos e psicólogos, por alguns conside­ rados matematicamente incultos, mas que realizam pesquisas em educação matemática; matemáticos conteudistas de última hora, moralizadores, arrogantes e inflexíveis, que se imaginam salvadores da pátria e legítimos proprietários e defensores do nível e do rigor da educação matemática da população; mas também por professores de matemática, pesquisadores em matemática, pesquisadores em educação matemática e outros profissionais que fazem e acreditam na educação matemática e tentam, de fato, levar a sério o que fazem.

Essas disposições reforçam – ainda que não tornem tranquilas e facilmente palatáveis – nossas compreensões de que os trabalhos realizados num grupo de educadores matemáticos, interessados e dedicados a compreender os mecanismos em vigência e os mecanismos possíveis de


serem implementados quando o tema é a Matemática em situações de ensino e aprendizagem (uma caracterização tênue, mas operativa, da nossa região de inquérito), ainda que, para isso, seja necessário trafegarmos por searas nas quais o objeto matemático ou a Matemática como prática social apenas – ou quase não – se insinua, são, sim, trabalhos em Educação Matemática. São, esses, esforços que visam constituir um núcleo de interlocutores a partir do qual objetos e abordagens são tematizados, e cada apropriação do que ocorre em áreas que não são a nossa área específica pode – e é – feita de modo criativo e analisada pela comunidade onde nos inscrevemos de modo particular – nunca negligenciando a postura das interlocuções possíveis. Sempre somos, portanto, mais do que podemos ser – pois somos possibilidades de ser – e menos do que podemos ser – pois ao sermos, optamos – ou somos levados a optar – por efetivar algumas dentre as possibilidades. Abandonar uma concepção limitada de Educação Matemática – aquela que vislumbra a região de inquérito sempre a partir do modo de enfrentamento direto com o objeto matemático – não é apenas possível, é visceralmente necessária se desejamos constituir uma área de investigação e ação que defenda, realmente, princípios que, muitas das vezes, apenas são apregoados de modo vazio, sem nenhum significado em nossa prática cotidiana de professores-pesquisadores.

A Educação Matemática é uma cidade. Este livro, um convite Na apresentação de um recente livro do Grupo de Pesquisa2, o professor Carlos Vianna usa uma metáfora que julgo poderosa para uma aproximação com a Educação Matemática. Trata-se da metáfora da cidade. Uma cidade é uma série articulada de relações, de artérias comu­ nicantes, de lugares de memória, de pontos que permitem a cada um de seus habitantes se reconhecerem como parte daquela cidade e não de outra; como responsáveis pela manutenção e transmissão de uma herança comum que é dada pela proximidade, o tecido conjuntivo que permite que identidades se criem, que tradições sejam mantidas, que novas relações, 2. GARNICA, A. V. M.; SILVA, S. R. V. da. (Orgs.). GHOEM: exercícios de pesquisa. Campo Grande/Bauru: UFMS/GHOEM, 2010.


identidades e tradições sejam criadas. Há diferenças visíveis nos habitantes que constituem as cidades, seja em relação aos seus interesses, aos seus modos de ver o mundo, às suas práticas, ainda que todo esse tecido diverso, dificilmente homogêneo, seja tramado num mesmo espaço o que nos permite ver a cidade como constituidora de uma comunidade que, ao mesmo tempo, a constitui, pois é a atribuição de significados a esse espaço, a cidade, que faz dele o espaço em que vivemos, ainda que uma série de determinações seja dada aos que decidem, passado um certo tempo, vindos de outras searas, participar desse campo de relações. O acaso e a determinação participam desse jogo de constituição de uma cidade, e abrem a possibilidade de outros jogos, numa sempre mesma e distinta cidade. O espaço da cidade é assim: ao mesmo tempo uno, reconhecível; e diverso, caótico; constituído e constituinte. A Educação Matemática é a nossa cidade, e é a cidade que todos os autores de todos os capítulos deste livro frequentam e na qual/pela qual se reconhecem a si próprios e uns aos outros. Esses autores constituem, com seus discursos, um núcleo de identificações possíveis, ao mesmo tempo em que são constituídos nessa trama complexa em que nós, educadores matemáticos, nos vemos enre­dados, uma tessitura que permite e acolhe discursos nem sempre em uníssono, nem sempre unificados, mas plurais, que se dão ao confronto, constituindo a polifonia que a cidade emite e ouve. É dessa cidade que falamos, é a essa cidade que nossas práticas de pesquisa tentam significar, compreender, situar, mesmo sendo vários nossos percursos, nossos métodos, nossos objetos, nossos olhares para atingir essa significação e compartilhá-la, convidando o outro a atribuir os seus significados valendo-se, se quiserem, de nossos esforços. Este livro é um esforço de comunicar significados e compartilhar experiências de pesquisa, é um passaporte para uma cidade que os autores conhecem bem, mas sabem que não são os únicos a frequentar, nem único o modo de com ela se identificar. Penso que este livro é, portanto, um convite. É, em síntese, um conjunto de enunciados a partir dos quais seus autores têm norteado suas experiências como professores e pesquisadores (professorespesquisadores que são), uma explicitação de suas motivações e seus encantamentos. Transitam esses autores por temas diversos, vários: vão desde a apresentação de alguma demandas e desafios atuais da Educação Matemática até discussões sobre projetos de formação iniciais que vinculam pesquisa e ensino, passando pela Etnomatemática, pela Modelagem Matemática, pelo


uso da Informática e outras mídias na Educação Matemática, pela História da Educação Matemática, pelas possibilidades de, nas práticas educativas, mobilizar formas artísticas que pouco frequentam nosso cotidiano escolar. Muitos dos terrenos que os autores esquadrinham em cada um de seus capítulos podem causar estranhamento aos que não estão familiarizados com nossa cidade. Todos os autores são professores de Matemática e usualmente não se espera que um professor de Matemática transite além da linha imaginária que separa sua linguagem simbólica, cifrada, das linguagens e domínios humanos mais usuais, menos sinistros e – por que não dizer – menos problemáticos do ponto de vista escolar. O professor de Matemática estereotipado – aquele que até Clarice Lispector aventura-se em descrever em seu conto O crime do professor de Matemática – tem óculos espessos por conta de sua miopia para ver o mundo “real”, carrega – confortavelmente – às costas o fardo de não ter a realidade como seu lugar e embebeda-se com o poder que esse estereótipo lhe garante: refugia-se na pretensa neutralidade de suas fórmulas, seus cálculos, suas equações. Uma das aventuras que este livro propõe é romper esse modelo, e o rompimento requererá o apoio que vem de distintos terrenos do saber, sejam eles “científicos” ou não.

Uma reflexão, um casaco Atentemos para um poema de Alberto Caeiro, um heterô­nimo do genial Fernando Pessoa, publicado na coletânea Poemas Inconjuntos: Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse. Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Caeiro nasceu na cidade de Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem muita educação: só instrução primária; morreram cedo seus pai e mãe, e ele deixou­‑se ficar em


casa, vivendo de pequenos rendimentos, com uma tia velha. Morreu tuberculoso. Caeiro é uma das pessoas de Pessoa. É a ele que o escritor português recorre quando quer falar do amor incondicional à natureza, por exemplo. Para Caeiro, a filosofia nada mais é do que um óculos, uma lente que se interpõe entre as pessoas e a natureza, uma lente da razão, e que, como tal, empobrece, limita, deixa opacas as características essenciais dessa natureza, impede a fruição, a verdade da natureza, torna homogêneos – e portanto desfigura – os diferentes matizes da natureza. Para Caeiro, a filosofia limita, não potencializa. Deixemos Caeiro. Numa cena do filme A lista de Schindler, de Spielberg, o casal Schindler, passeando a cavalo, vê, do alto de uma colina, a violência no gueto. Esse ritual violento irrompe em vários momentos do filme cujo tema é a perseguição dos nazistas aos judeus. Na tela, as imagens são todas em preto e branco, mas no momento em que o casal Schindler está testemunhando as misérias do gueto e o ataque dos soldados nazistas, uma menina, a única a usar um casaco vermelho, destaca-se da paisagem cinzenta. Com esse recurso simples Spielberg nos prende à trama, nos leva diretamente ao gueto, e – assim como ocorreu a Oskar Schindler – nos força a atentar para aquelas vidas que desde o começo da película desfilaram à nossa frente. São tantos os momentos de violência, são tantos os exemplos de intolerância, que aquela procissão de misérias se banaliza e já não vemos a violência e a intolerância. É exatamente o casaco vermelho, em meio à profusão dos tons pretos e brancos da névoa acinzentada que nos chama à “realidade” e ressalta o que nossos olhos, por estarem habituados e cansados, já não veem. O casaco vermelho nos chama à vida, nos exige a crítica, não nos permite assistir ao festival de golpes e mortes impunemente; o vermelho do casaco nos coloca em cena e exige de nós uma tomada de posição: é preciso atribuir um significado ao que ocorre aos pés da colina. A cena do casaco vermelho de Spielberg é uma metáfora do modo como vejo a ciência e as artes, afastando-me um pouco do pensar de Alberto Caeiro. A filosofia não deve ser vista como um óculos que impede a intervenção; ao contrário. A filosofia – pensada como um exercício de pensamento reflexivo – é um chamamento, e ainda que seja um chamamento mediado pela razão (a mesma razão que Caeiro parece desprezar) é uma estratégia de luta, um exercício de poder, uma organizadora de estratégias para a ação. Ela pode nos mostrar, sim, a


beleza que há nas cores; a partir dela posso, sim, enfrentar a realidade e ver, nela, matizes diferenciados e significativos que provavelmente o olho sem a razão não procuraria ver ou descortinar. Nossas experiências cotidianas – assim eu penso – frequen­temente nos chegam envolvidas por uma névoa de familiaridade – uma perigosa névoa de familiaridade – que impede a crítica, o exame. A filosofia é uma das estratégias de imersão no mundo que nos exige colocar a vida sob suspeição, que exige que abandonemos a confortável posição de meros expectadores. Walter Benjamin já nos alertava disso: as experiências não têm sido experienciadas, não têm sido vividas. O mundo contemporâneo nos tem impelido a meramente “passar” pelas coisas, sem que as façamos significativas ao nosso olhar. Resultado disso é que, cada vez mais, nossas experiências estão se tornando incomunicáveis pois estão dissociadas de nós, e não podemos relatar aquilo que, por não termos julgado significativo a nós próprios, talvez possa vir a ser significativo a outros. Temos abandonado a arte de narrar, temos nos afastado da sabedoria. O narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se ‘dar conselhos’ parece hoje algo antiquado é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em consequência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história. O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção. Este livro nos sugere vestir com casacos vermelhos algumas de nossas práticas cotidianas (às vezes acinzentadas). É, pois, uma reflexão que convida à reflexão sobre as práticas que realizamos em Educação Matemática, sobre os contextos em que essas práticas se situam, sobre experiências, colocando em cena uma série de temas, analisando uma diversidade de estratégias. Este livro é um casaco, uma cidade, um conselho tecidos na substância viva da existência de professores e professoras de Matemática.

Antonio Vicente Marafioti Garnica


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