Trabalho didático na universidade: estratégias de formação

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Introdução Visão atual da educação superior e suas instituições

Contexto em que se desenvolve a educação superior O contexto econômico-social em que se desenvolve a educação superior, no início do século XXI, pode caracterizar-se da seguinte maneira: vive-se sob o forte impacto da globalização, que tem integralizado o comércio, as relações econômico-financeiras e a política internacional. Gerou-se a ideia da aldeia global, produziu-se a intercomunicação por meio de satélites e redes eletrônicas, multiplicaram-se os saberes e aumentou-se o papel do conhecimento na produção material e espiritual da sociedade. Por outro lado, cresceram também a expansão descontrolada do próprio saber e sua desigual socialização, os desequilíbrios sociais e econômicos, desataram-se guerras imperialistas, as forças de esquerda aumentaram sua resistência no planeta e o gênero humano passou a viver cada vez mais ameaçado por crises diversas. Estamos vivendo na sociedade do conhecimento. Diariamente, multiplicam-se, de forma exponencial, as realizações científicas e culturais. O volume de informação que, hoje, acumula a humanidade é imensamente superior ao que estava disponível há poucos anos, e seu ritmo de crescimento sofre uma aceleração sem precedentes. Em princípio, toda essa informação é útil para a sobrevivência da espécie humana, seu bem-estar elementar,


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a melhoria da qualidade de vida e seu processo de aprendizagem. Quando a informação relevante é incorporada à atual capacidade de comunicação que possui a sociedade, produz-se um efeito de sinergia no desenvolvimento. Ao mesmo tempo, como alternativa ao modelo neoliberal, aumenta-se a preocupação pelo cultivo dos valores, de uma ideologia de paz e fraternidade, de responsabilidade e justiça, de solidariedade e cooperação. Passa-se a reconhecer o enorme papel social da educação para fazer prevalecer os valores e os ideais de uma cultura que nos permita compreender nossa condição e nos ajude a viver de maneira mais aberta, assertiva e livre. Na ciência e na tecnologia, vem se sentindo um esgotamento do paradigma dominante presidido pela racionalidade técnica e pelas disciplinas científicas tradicionais, que fragmentam, separam, compartimentam, confinam e despedaçam o saber, o ser humano e a realidade, e nos impedem de ver o global e essencial. Em seu lugar, ganha força o conhecimento interdisciplinar e politransdisciplinar, surge um novo paradigma sociocultural, o pós-moderno (emergente e complexo), que busca a apreensão dos objetos em seu contexto, sua complexidade e seu conjunto; a organização do saber e a democratização do conhecimento por meio de uma reforma do pensamento (Morin, 2001, 2003, 2004). Nesse sentido, a educação superior – entendida pela UNESCO como todo tipo de estudos, de formação ou formação para a pesquisa no nível pós-secundário, oferecidos nas universidades ou outros estabelecimentos de ensino que estejam credenciados pelas autoridades competentes do Estado como centros de ensino superior (1998, p. 1) – ganhou um papel de grande relevância.

A sociedade, cada vez mais, tende a sustentar-se no conhecimento, dado o tipo, o alcance e o ritmo das transformações ocorridas. Segundo Cunha (1998), a sociedade contemporânea tem colocado na ciência toda a sua expectativa de melhores condições de vida. Esta é a razão pela qual a educação superior e a pesquisa são parte fundamental do desenvolvimento cultural,


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socioeconômico e ecologicamente sustentável dos indivíduos, das comunidades e das nações. Graças a sua capacidade para preservar, gerar e promover novos conhecimentos, tecnologias e valores, e por contar – na maioria das vezes – com a força qualificada do mais alto nível na escala social, a educação superior constitui uma dimensão fundamental de todo projeto de desenvolvimento econômico-social, cultural e tecnológico. Essa consciência explica as crescentes demandas que a sociedade exige da educação superior – em termos de diversificação, expansão e adaptação às novas circunstâncias –, a fim de que possa cumprir sua missão como agente do progresso sociocultural e econômico. Por sua vez, as instituições de ensino superior já têm explicitado seu compromisso de preservar, reforçar e fomentar ainda mais as missões e valores fundamentais da educação superior, em particular, a missão de contribuir ao desenvolvimento sustentável e ao melhoramento do conjunto da sociedade (UNESCO, 1998, p. 4),

mediante à formação de profissionais com novos modos de atuação, conhecimentos, habilidades, atitudes e valores. Sem instituições de educação superior e de pesquisa capazes de formar um corpo crítico de profissionais, qualificado e culto, a sociedade moderna não poderá garantir um desenvolvimento autêntico e sustentável. As Instituições de Ensino Superior (IES): breve caracterização A Educação Superior concretiza sua missão social por intermédio das Instituições de Ensino Superior (IES). Com esse termo, se faz referência a universidades, centros universitários, faculdades (isoladas ou integradas) e institutos de ensino superior. Da mesma maneira, refere-se às instituições investigativas e culturais associadas a elas, sejam públicas ou privadas, reconhecidas como tais por um sistema de homologação ou pelas autoridades estatais que possuem a competência necessária para fazê-lo (UNESCO, 1997, p. 3). No texto, serão utilizados os termos


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universidade e IES como sinônimos, pois, para os objetivos deste estudo, a diferença de natureza entre esses tipos de instituições não é relevante. Historicamente, a missão social da universidade tem sido a de conservar, promover e gerar a cultura herdada pela humanidade por meio de sua trajetória histórico-social. Como escreveu E. Morin (2004, p. 81): A Universidade conserva, memoriza, integra, ritualiza uma herança cultural de saberes, ideias, valores; regenera essa herança ao reexaminá-la, atualizá-la, transmiti-la; gera saberes, ideias e valores que passam, então, a fazer parte da herança. Assim, “ela é conservadora, regeneradora, geradora”.

A universidade dispõe, ademais, de uma função transecular que vem do passado e vai para o futuro, passando pelo presente e, ao mesmo tempo, conserva uma missão transnacional, como difusora internacional do conhecimento. A relação entre a universidade e a sociedade deve ser complementar, já que uma remete à outra em um círculo produtivo. Nisso se enraíza a missão transecular da primeira. A universidade, segundo o próprio Morin (2004, p. 82), Inocula na sociedade uma cultura que não foi feita para as formas provisórias ou efêmeras do hic et nunc, mas para ajudar os cidadãos a viverem seu destino hic et nunc; ela defende, ilustra e promove, no mundo social e político, valores intrínsecos à cultura universitária – a autonomia da consciência, a problematização (com a conseqüência que a pesquisa deve ser sempre aberta e plural), o primado da verdade sobre a utilidade, a ética do conhecimento; onde essa vocação expressa pela dedicatória no frontispício da Universidade de Heidelberg: “A mente viva”.


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Ao mesmo tempo, a universidade deve adaptar-se e respon­ der às necessidades do desenvolvimento social em cada contexto e realizar sua missão transecular de reprodução, promoção e geração de novos saberes, para o bem da humanidade e do progresso socioeconômico. O que foi exposto anteriormente é útil para uma caracterização preliminar da universidade, mas deixa na superfície o problema da definição das IES como organizações socioculturais, sobretudo, quando se pretende ter uma visão da essência e complexidade desse tipo de instituições. Ainda que existam, de fato, muitas outras organizações socioculturais que se encarregam de gerar nova cultura, conservá-la e divulgá-la, nenhuma outra pode fazê­ ‑lo com o grau de coerência, sistematicidade e rigor com que o realiza a universidade. Para isso, as IES organizam e colocam em prática alguns processos como os de formação de profissionais, pesquisa científico-técnica e cultural, e extensão universitária. No entanto, uma observação, feita atentamente, que pro­ curasse compreender a complexidade da universidade moderna, descobriria que sua essência insere-se em um conjunto de processos que formam uma estrutura em rede. Ou seja, a universidade é uma malha de fios interconectados da qual fazem parte – além dos três processos universitários já mencionados –, o de gestão ou administração universitária – do qual depende o funcionamento eficiente de todos os demais –; o de formação ideológica e de valores – às vezes, explícito, às vezes, subjacente, nos demais processos, especialmente no de ensino-aprendizagem –; o processo de gestão dos recursos humanos – essencial para o progresso da universidade; e o processo de formação do professorado – fundamental para a sustentabilidade, pertinência e qualidade do resto dos processos da instituição. O principal fator de interconexão entre esses processos, que personaliza a universidade como instituição sociocultural, é que os atores implicados neles precisam mobilizar continuamente a cultura adquirida e pôr em jogo conhecimentos, produtividades, criações e valores. A cultura e as destrezas transitam de um processo


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universitário a outro, em fluxo contínuo, para garantirem seu suces­ so pessoal e institucional. As IES garantem a qualidade e a excelência de cada um dos processos que desenvolvem sobre a base da adequada formação de seus recursos humanos, em especial, de seus professores e gestores. Reconhece-se que um elemento essencial para as instituições de ensino superior é uma enérgica política de formação do pessoal. Seria necessário estabelecer diretrizes claras sobre os docentes da educação superior, que deveriam ocupar-se, sobretudo, de ensinar a seus alunos a aprender e a tomar iniciativas, e não a ser, unicamente, poços de conhecimento (UNESCO, 1998, p. 9).

Disso se infere a necessidade de organizar programas de formação do professorado, com vista à melhora das competências pedagógicas, investigativas e de promoção do saber e da cultura. É compreensível que os docentes que trabalham na univer­ sidade tenham uma atuação relevante no desenvolvimento da humanidade e uma função decisiva nos avanços da educação superior. Eles têm, em suas mãos, a formação de profissionais nos níveis da graduação e da pós-graduação e, além disso, a direção de pesquisas que, em alguma medida, interferem no progresso moral e tecnológico da sociedade. Controlam, também, a divulgação cultural e científica, e – como regra – ostentam uma conduta moral que os converte em espelho da sociedade. A imagem pública dos professores universitários, seu reconhecimento ético-profissional, promovem na escala social e institucional, o respeito aos direitos culturais, eco­nômicos, civis e políticos dos indivíduos e dos povos em geral. Tão alta responsabilidade deve vir acompanhada, necessariamente, de uma sólida formação humana, pedagógica, cultural e científica.


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Formação dos professores e qualidade do processo pedagógico: uma proposta com base na ótica do trabalho metodológico No contexto mundial já descrito, submetido a constantes mudanças, um novo paradigma educativo está sendo colocado: procura-se situar o aluno, seu processo de aprendizagem e sua formação integral, no centro das preocupações de docentes e gestores. Busca-se, em suma, formar profissionais com “uma cabeça bem-feita”1, cultos, críticos, com uma participação cidadã ativa, comprometidos com o futuro da humanidade e motivados pela busca de soluções aos problemas que o desenvolvimento propõe. O anterior se concebe dentro de uma política de amplia­ção do acesso à educação superior, sobretudo, dos setores mais desfavorecidos socialmente; a incorporação das tecnologias da informática e as comunicações (NTIC); a modernização dos métodos, práticas, meios de ensino-aprendizagem e sistemas de avaliação. Além disso, é preciso, também, que se remodelem os vínculos com a comunidade e suas instituições; que se incorporem milhares de professores em tempo parcial e integral ao exercício da docência, da pesquisa e da extensão; que se flexibilizem os modelos pedagógicos de tal forma que se ampliem os ciclos de permanência dos alunos na educação superior, suas entradas, saídas e retornos ao sistema, a diversificação das fontes de aproveitamento escolar e um maior número de oportunidades para cumprir as exigências acadêmicas. Ante tais desafios, o docente universitário constitui-se no pilar principal em cujo coração e mente descansa boa parte das mudanças que devem se operar. Ele é o recurso humano mais importante, sem o qual não se pode levar a cabo a reforma de pensamento prevista na educação superior. De suas competências 1. Segundo afirma Morin (2004, p. 21), a primeira grande finalidade do ensino foi formulada por Montaigne: mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia. A expressão significa que, em vez de acumular o saber, é mais importante dispor, ao mesmo tempo, de aptidão geral para colocar e tratar problemas e de princípios organizadores que permitam ligar os saberes e dar sentido a eles.


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profissionais, seus modos de atuação, motivação e compromisso, depende, em boa medida, a manutenção e melhoria dos padrões de qualidade que a universidade atingiu historicamente e a não produção de um empobrecimento de sua função social. Nos últimos tempos, ganharam força diferentes concepções de profissionalização dos professores que levam em consideração a preparação do corpo docente com base na ação, na formação continuada, na escola como centro e no posto que se ocupe na instituição educativa. O trabalho metodológico é uma das vias possíveis para a formação dos professores universitários em serviço, além de um processo dinâmico e complexo, que pode ser utilizado, simultaneamente, com outras finalidades como: a gestão estratégica do processo de ensino-aprendizagem-pesquisa e a elevação da qualidade da formação dos futuros profissionais e dos profissionais em exercício. Os capítulos que seguem referem-se ao papel decisivo que o trabalho metodológico desempenha tanto na formação de professores em serviço, bem como na elevação da qualidade do processo pedagógico. Daí que o trabalho metodológico, posto em função dessas duas prioridades, possa ser conceitualizado, dimensionado, desenhado, implementado e avaliado por meio de indicadores que verificam sua pertinência para a atividade docente nas IES. Consequentemente, o propósito deste estudo é elaborar um modelo teórico-prático que dê resposta à necessidade de planejamento, execução e avaliação de estratégias de desen­ volvimento metodológico nas IES, elevando a qualidade do processo de ensino-aprendizagem-pesquisa e a formação peda­ gógica do professorado universitário em serviço. Para consegui­ ‑lo, realizam-se sínteses teóricas que se fundamentam no enfo­ que histórico-cultural da psicologia pedagógica, da teoria da complexidade aplicada à educação, da didática da educação superior, da observação e da experiência prática dos autores.


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No Capítulo 1, expõe-se o sistema teórico geral que sustenta o modelo elaborado pelos autores. Parte-se do estudo da categoria trabalho docente e se examinam vários conceitos abarcados por tal categoria: processo docente-educativo, processo pedagógico, formação de professores e trabalho metodológico. Esses últimos conceitos são, também, dimensões e processos do trabalho docente e se relacionam com a qualidade educativa na universidade. A apresentação dos conceitos gerais empregados na elaboração do modelo teórico proposto, é redimensionada, sucessivamente, nos Capítulos 2, 3 e 4. No Capítulo 2, examina-se o modelo educativo dominante no pensamento atual e se estabelecem as relações entre este e a formação dos docentes. Leva-se a termo uma caracterização do processo pedagógico ou de ensino-aprendizagem-pesquisa na universidade e se aprofunda seus componentes não pessoais (problema, objetivo, conteúdo, métodos, meios, formas organi­ zativas, avaliação), bem como as relações dinâmicas existentes entre eles; oferece-se, ainda, um sistema de indicadores para a avaliação desse importante processo. No Capítulo 3, discute-se o conceito de trabalho metodo­ lógico, considerado um processo universitário complexo, consciente e ativo. Examinam-se seus componentes pessoais (professores, dire­tivos, coordenadores e estudantes) e seus componentes não pes­soais (problema, objeto, objetivos, conteúdos, métodos, meios, resultados e formas). Estudam-se, detidamente, as formas do traba­ lho metodológico: o trabalho docente-metodológico, o trabalho científico-metodológico e a preparação metodológica, bem como a tipologia das atividades de cada uma dessas formas. Expõe­ ‑se um sistema de indicadores para a avaliação das diferentes atividades do trabalho docente metodológico. Por último, realiza­ ‑se um esboço dos níveis organizativos do trabalho metodológico na universidade. Finalmente, o Capítulo 4 aprofunda as regularidades do trabalho metodológico, sublinhando sua convergência de ações


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com a formação dos professores e a elevação da qualidade do processo pedagógico. Revisa-se o conceito geral de estratégia e se define o conceito de estratégia metodológica. Examinam-se o papel e a missão dos órgãos institucionais responsáveis pela gestão da estratégia de trabalho metodológico. Elabora-se o sistema de princípios que sustenta a estratégia de trabalho metodológico na IES e se expõem as fases ou etapas que podem compreender uma estratégia deste tipo, oferecendo-se uma visão clara de sua instrumentação e avaliação. Chegando a este ponto, estar-se-á em condições de assumir o trabalho metodológico como forma estratégica de direção da atividade docente na IES, como processo complexo, ativo e consciente, que conduz à formação dos professores em serviço e à elevação da qualidade do processo pedagógico na universidade. Não se quer terminar estas palavras introdutórias sem destacar que este livro foi realizado a partir das atividades vinculadas ao projeto de pesquisa titulado Desenvolvimento profissional dos professores do UNITRI: uma estratégia de formação centrada na reflexão, o apoio mútuo e a supervisão. Os autores


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