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Editores: Leonardo Bomfim, Pedro Henrique Gomes Grupo de pesquisa de cinema: Nathalia Rech, Leonardo Bomfim, Pedro Henrique Gomes, Daniel De Bem, Jamer Mello, Gabriela Almeida.

Revisão gráfica: Anelise De Carli

Capa e projeto gráfico: Luisa Pedrosa

Edição de imagens: Leonardo Bomfim

Editoração: Luisa Pedrosa e Leonardo Bomfim

Colaboradores nesta edição: Gabriela Wondracek Linck, Francis Vogner dos Reis, Pedro Henrique Ferreira, Juliana Pinheiro Maués, Marcio Telles.

Revisão: Pedro Henrique Gomes, Leonardo Bomfim

Agradecimento especial: Profa. Dra. Cristiane Freitas Gutfreind Contato: contato@grupodecinema.com www.grupodecinema.com

equipe


Editorial

Por que mise en scène? Por que estudar algo que, logo de cara, já apresenta uma dificuldade considerável devido à imensidão de suas possibilidades? Parece-nos que bagunçar um tanto mais essa questão é uma das funções dessa publicação. As muitas sessões e as discussões que as sucederam, bem como as divergências e os pontos de toque que mantivemos ao longo dos últimos cinco meses, estão lançadas e distribuídas ao longo da revista na forma de conteúdo mais que acadêmico, mas sobretudo cinéfilo. A relevância dos textos é reflexo do empreendimento de busca e descoberta, mas também de satisfação. Desejamos que os textos construam seus significados quando da leitura e releitura detalhada. São artigos dispostos a trazer envergadura a um tema não muito explorado pela literatura especializada em língua portuguesa (o que já se faz sentir no próprio nome da revista), focados mesmo naquilo que se faz existir e nos é

tão caro. Sem presunção, mas sim imbuídos de toda a pretensão que nos cabe, é possível exprimir, através de cada texto, essa que é afinal uma aventura a qual nos dedicamos tão seriamente. Assim, as primeiras páginas não poderiam ser menos rigorosas nessa relação entre a arte e o pensamento teórico e reflexivo, como fica evidente nas palavras de Luiz Carlos Oliveira Jr., pesquisador, crítico e ex-editor da Revista Contracampo, que concedeu não somente uma entrevista, mas uma aula de cinema. Em uma segunda entrevista, Milton Do Prado, que é montador, professor, crítico e pesquisador, fala sobre o mistério da mise en scène que, a partir de Jacques Rivette, norteou sua pesquisa de mestrado. As duas entrevistas exploram com firmeza o tema em questão. Entenderá o leitor que não é feito nenhum exagero aqui. Além desse impulso, o que se segue são sete artigos, distribuídos sem lei, tateando cada um


aquele espaço de unidade, no sentido do olhar, e de potência, no que tange a experienciação tão buscada por cada um nós. Não abrimos mão do discurso, não deixamos de lado outras questões. A narrativa não tem a pressão para ser definitiva, mas sim deseja costurar esses discursos. É assim que o leitor tomará contato com um artigo sobre a mise en scène a partir de Kafka, de autoria de Gabriela Wondracek Linck, e com uma reflexão contemporânea sobre Kenji Mizoguchi de Francis Vogner dos Reis. Da pintura ao cinema, Leonardo Bomfim sai em busca da mise en scène pictórica, tendo como ponto de partida Raul Ruiz. Exilados, filme de Johnnie To, é analisado minuciosamente por Juliana Pinheiro Maués, enquanto eu, Pedro Henrique Gomes, resolvi destrinchar o classicismo no cinema de Otto Preminger. A variedade das ideias é salientada no texto de Pedro Henrique Ferreira, um extrato sensível de algumas das belas imagens

de Les savates du bon dieu, de JeanClaude Brisseau, e também nas palavras de Nathália Rech, que vai de Mallarmé a Tarkovski no elogio da mise en scène espiritual. E se essa multiplicidade de olhares marca espaço, assim é que contamos com um texto investigando a mise en scène do futebol televisivo, assinado por Marcio Telles. Toda a interlocução que realizamos ao longo desse período com cada um dos autores supracitados não foi em vão. Leituras, filmes, reuniões, troca de materiais e experiências fizeram parte da nossa pauta. Os artigos estão aí, as ideias fervendo e, principalmente, mexendo nas coisas. Para uma primeira edição, esse breve panorama deve servir. Também pretendemos seguir com outras edições. O entusiasmo é assumidamente nossa força, e esperamos que os textos a façam sentir. Pedro Henrique Gomes


sumário

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O que é a mise en scéne, onde está a mise en scène? Entrevista com Luiz Carlos Oliveira Jr.

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O classicismo em Otto Preminger Pedro Henrique Gomes

Mise en scène a partir de Kafka Gabriela Wondracek Linck

Mizoguchi e o problema da mise en scène Francis Vogner dos Reis

De Mallarmé a Tarkovski: mise en scène espiritual Nathália Rech

O ecletismo de Brisseau Pedro Henrique Ferreira

Em busca de uma mise en scène pictórica Leonardo Bomfim

Exilados, de Johnnie To: a mise en scène e o cinema de ação Juliana Pinheiro Maués

A mise en scène do futebol televisivo Márcio Telles

Jacques Rivette e o mistério da mise en scène Entrevista com Milton Do Prado


Aurora


A u rora

O que é a mise en scène, Onde está a mise en scène? A mise en scène: em determinado período, praticamente um santo graal cinematográfico; em outro, um fantasma conceitual – que incomoda justamente por parecer ausente. Mas o que, de fato, significa mise en scène? E onde ela está – tanto no presente, no cinema contemporâneo, quanto nos filmes celebrados da década de 1950, aqueles que serviram de molde para as reflexões originais a respeito do tema? São as questões que guiaram nossa entrevista com Luiz Carlos Oliveira Jr., autor da dissertação de mestrado “O cinema de fluxo e a mise en scène”, defendida na ECA-USP, em 2010, provavelmente a pesquisa mais completa e cuidadosa sobre o tema no Brasil.

Nas investigações sobre a mise en scène, uma palavra recorrente era “fascinação”. Hoje se fala muito em “experiência sensorial” diante de filmes de Apichatpong Weerasethakul, Gus Van Sant, Claire Denis, etc. Nos dois momentos, a ideia de uma experiência intelectual com a obra é vista com certo desdém. Há a famosa frase de Éric Rohmer: “ao aprender a compreender, o espectador moderno desaprendeu a ver”. É possível estabelecer alguma relação entre o cinema dos anos 1950 que gerou os diversos conceitos de mise en scène e o cinema |8|

contemporâneo observado como um cinema de fluxo? Há, por exemplo, um trecho do manifesto de Michel Mourlet – “Despir o espectador de toda a distância consciente para precipitá-lo em um estado de hipnose mantido por um encantamento de gestos, de olhares, de ínfimos movimentos do rosto e do corpo, de inflexões vocais, no seio de um universo de objetos radiantes, injuriantes ou benéficos, onde alguém se perde para se reencontrar engrandecido, lúcido ou apaziguado” – que não pareceria tão estranho lido num texto sobre um filme de Apichatpong.


É preciso tomar cuidado com esse tipo de aproximação. Em primeiro lugar, precisamos entender que o texto de Michel Mourlet, “Sobre uma arte ignorada”, é uma poética normativa, a exemplo das poéticas normativas do Renascimento e do Barroco (Vasari, Lomazzo...), que, assim como o texto de Mourlet, traziam enorme influência da Poética de Aristóteles. Se Vachel Lindsay foi o primeiro a estabelecer uma taxonomia das formas cinematográficas, isso em 1920 (seis décadas antes de Deleuze, portan-

to), Mourlet foi o primeiro a construir para o cinema um sistema estético de tipo normativo, historicizando o cinema e elegendo o momento de sua manifestação adequada. Podemos ver, no texto, as três fases da estética hegeliana, devidamente adaptadas ao quadro histórico e teórico do cinema: arte simbólica (o cinema mudo e suas deformações expressionistas, colagens vanguardistas, arroubos plasticistas etc), arte clássica (matéria e forma harmonizadas nos filmes sonoros de Mizoguchi, Walsh, Pre-

O Tigre de Bengala (Fritz Lang, 1959)

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minger, Lang e outros poucos) e arte romântica (o “cinema de autor” e da expressão individual exacerbada, na linha iniciada por Orson Welles em Cidadão Kane e continuada pelos cineastas modernos que então se preparavam para o grande triunfo dos anos 1960). Com isso, ele cobre toda a história do cinema até então (1959) e, partindo da perspectiva idealista-evolucionista baziniana, separa os cineastas entre aqueles que traem a vocação original do cinema (revelar ontologicamente a verdade que existe em estado latente no mundo fenomênico, e que o cinema tem o poder de catalisar ou trazer à tona) e aqueles que não só a respeitam como ainda a enriquecem pela arte da mise en scène, isto é, da organização do mundo sensível numa forma significante. É a premissa classicista (talvez devêssemos dizer neoclássica) por excelência: o intuito da arte não é só copiar o real, mas, respeitando a qualidade intrínseca da matéria, enobrecê-lo pela depuração estética, o que abrange desde a escolha dos aspectos do mundo que se pretende representar até a maneira mesma da representação. Assim, o realismo bruto de Rossellini é visto como insuficiente, pois abdica de

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ordenar o real e se entrega a apenas uma das dimensões do cinema – o documentário – esquecendo-se da outra – a “féerie” (Mourlet afirma que ambas devem se interpenetrar). Hitchcock, que faz o caminho contrário (impõe sua mão de diretor sobre cada mínimo detalhe, sufocando a realidade pela significação), também é rejeitado. A esses dois componentes do time titular da “política dos autores”, Mourlet prefere Cecil B. DeMille, Vittorio Cottafavi e Don Weis, cineastas que a redação dos Cahiers ignorava ou mesmo desdenhava. Grosso modo, podemos dizer que as linhas mestras do texto de Mourlet, no que tange a parte mais especificamente focada na mise en scène, são as seguintes: 1) achar o equilíbrio entre o documental e o feérico, o que implica rechaçar tanto a sobrecarga barroca e a estilização expressionista (e seus avatares) quanto o simples registro do real: é preciso captar o mundo de forma imediata,“sem outros meios que não os mais naturais”, porém estruturá-lo dentro de uma construção cênica e dramática; 2) a preeminência do ator e a presença irrefutável do mundo: o que deve ocupar o centro do pla-


Aurora no é o corpo do ator (corpo heroico, eixo central da decupagem) imerso num mundo cuja presença concreta é assegurada pela verdade analógica da câmera de cinema quando usada sem trucagem; 3) a fascinação: o espectador é convidado a embarcar num universo em que ele “se perde para se reencontrar engrandecido, lúcido ou apaziguado”, ou seja, estamos no paradigma não do distanciamento, mas da absorção diegética e da catarse (perder-se e reencontrar-se apaziguado e lúcido = livrar-se ao espetáculo, de espírito aberto, e assim purgar as mazelas, vivenciar as paixões e assimilar os ensinamentos). Reforço então que é preciso ter cuidado ao aplicar um trecho do texto do Mourlet a um filme do Apichatpong. Quando eu digo que “Sobre uma arte ignorada” é uma poética normativa (e uma cosmologia estética), automaticamente afirmo que Michel Mourlet estabeleceu leis universais para dar conta de obras individuais (o que cria o aspecto polêmico do texto, mas também sua imensa ambição e contribuição – ele permanece uma empreitada única na história das ideias sobre o cinema). Esse aspecto to-

talizante do sistema mourletiano explica o porquê de, ao destacar um pedaço do texto, você conseguir de repente endereçá-lo a um filme do Apichatpong Weerasethakul. Como Mourlet escreveu sobre o “sentimento cósmico” despertado pelo cinema, suas palavras, uma vez deslocadas do contexto, podem se aplicar a diversos filmes (contemporâneos ou não) que a princípio não estão incluídos nesse sistema. Os termos empregados acabam parecendo polivalentes. Mas não podemos nos iludir: Mourlet está falando de outro cinema que nada tem a ver com Apichatpong. As cintilações e os encantamentos que ele vê nos filmes de Mizoguchi ou Walsh só têm alguma força porque estão brilhando na superfície de um mundo sustentado internamente por um drama, por uma substância trágica ausente dos filmes de Apichatpong. Há realmente algo de uma fenomenologia sensualista na maneira como Mourlet descreve a presença dos corpos, da luz, do espaço etc., mas a mise en scène, para ele, decorre de uma rígida seleção e organização das aparências sensíveis, não podendo se confundir com a contemplação não-significante, com a rarefação narrativa ou com as experiências

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A u rora

Eternamente Sua (Apichatpong Weerasethakul, 2002)

instalativas (a meia-hora final de Blissfully yours teria certas características mais ou menos aproximáveis do texto de Mourlet – uma presença quase palpável do mundo, uma cintilação da natureza na pele dos atores, um registro solar e corpóreo da passagem da vida – mas está destituída de esqueleto dramático e de motivação cênica; os corpos estão em repouso quase absoluto, sem eventos significativos tencionando a narrati-

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va e justificando dialeticamente aquele momento de repouso e distensão; são corpos entregues à duração sensível, à instalação de uma ambiência; o filme é um agenciamento de formas temporais puras, o mais “literal” de Apichatpong – e, diga-se de passagem, seu melhor). Não sei se fui claro o suficiente. Acho que podemos esclarecer voltando à noção de fascinação. O termo que subs-


tituiu “fascinação” no léxico da crítica contemporânea foi “sideração”. É só fazer um levantamento de quantas vezes a palavra apareceu em textos escritos de 2003 para cá. E aí, conforme já coloquei na conclusão da dissertação, temos de observar a diferença básica: “fascinação” pressupõe uma tensão inicial do espectador rumo à tela; é uma relação tensa, que depois se converte por meio da catarse. Já “sideração” pressupõe uma flutuação num espaço sem gravidade, que é a tal viagem sensorial de que tanto se fala hoje em dia. O fundo dramático da experiência, seu peso, sua gravidade, sua violência, é trocado por uma nova fenomenologia liberada das partes que podiam causar atrito. Tudo desliza, tudo é fluido e leve. A tensão desaparece quase por completo, ou melhor, é substituída por microtensões de superfície que forjam um drama minimalista. O fluxo (seja na lógica da instalação, da imersão ou do dispositivo) mergulha você nas imagens. Não há imersão sensorial também nos filmes de mise en scène? É claro que há. Mas ela é negociada com a centralidade do drama, o que implica um diferente “estado de consciência”. A fascinação opera na lógica do deslocamento imaginário do espectador: em-

bora o excesso de razão afugente essa experiência, a pura sensorialidade também não basta. A balança precisa estar em equilíbrio. Já a sideração consiste numa experiência mais infra-intelectual, e num deslocamento mais da ordem da “apreensão sensível”: o espectador deve experimentar a obra mais pela materialidade dos significantes do que pela ordenação intelectual dos significados. O olhar é englobado na esfera das imagens. Minha dissertação foi estruturada de modo a se ter constantemente uma dualidade entre mise en scène e fluxo. Uma das questões que desenvolvo é que essa dualidade nada faz senão recolocar a eterna oposição clássico-barroco. A relação que vejo entre o cinema dos anos 1940 e 1950, sobre o qual se basearam as teorias da mise en scène que analiso, e o cinema de fluxo dos anos 1990/2000, portanto, é uma relação de oposição. Esse, aliás, foi meu ponto de partida. O crítico francês Jean-Marc Lalanne, num texto de 2002, havia dito: os estetas do fluxo se colocam num ponto cego da definição clássica de mise en scène, virando as costas para todas as ferramentas que permitiram criá-la (o arranjo pictórico do plano, a base tea-

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tral do jogo cênico, a montagem como sistema retórico etc.). Essa frase praticamente resume a estrutura dualística do meu trabalho. De um lado, mise en scène; do outro, fluxo. E aí, logicamente, surgem os problemas, no bom sentido da palavra. Hou Hsiao-hsien é, sem dúvida, um cineasta do fluxo. Mas dá para dizer que ele não é um grande mestre da mise en scène? Não é verdade que, em Hou, tudo está na mise en scène? Idem para o Tsai Ming-liang, outro contemporâneo que não trabalha só na lógica da sensação, mas também – e sobretudo – da cena (e que não é um esteta do fluxo, que fique bem claro). Já Claire Denis, Philippe Grandrieux e David Lynch representam realmente uma outra coisa – não há como separar seus filmes em sequências, cenas, planos, não há “exatidão no papel atribuído às partes”: tudo está embolado num continuum, num fluxo turbilhonante de imagens; a matéria transborda os moldes do plano, o sentido importa menos do que a atmosfera. Em suma, existe o conceito clássico de mise en scène, mas existe também a mise en scène que escapa ao domínio do clássico. E existe a ideia de instalação (que invadiu com tudo o cinema nas últimas duas décadas), o dispositivo... O

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entusiasmo geral com os filmes de dispositivo desde o começo da década passada é um caso ainda a estudar melhor, e que tem tudo a ver com a especulação de Jacques Aumont sobre o “retorno da imagem” e a “morte da mise en scène”. Nos anos 1950 a impressão é a de que há dois caminhos fortes da crítica francesa: o de olhar para a obra do cineasta como um universo; e o de olhar para um filme a partir de sua mise en scène, ressaltando o que há de realmente cinematográfico nele. Não se trata de uma dualidade, já que os dois olhares se encontram, como fica bem evidente no especial Hitchcock dos Cahiers, de 1954. Encontrar o autor no conjunto da obra é uma busca antiga, precede o próprio cinema. No entanto, encontrar o autor de cinema na obra singular já parece um ponto mais delicado. Além dessa busca pelo autor do filme (não só o autor no cinema – o dono de um universo, de recorrências, de obsessões), os conceitos de mise en scène parecem representar, também, um momento em que o crítico estava tateando uma forma de encontrar o cinema no filme ou até mesmo de aprender a ver um filme.


Aurora Há, de fato, um sentimento de que uma parte da crítica francesa dos anos 1950 (concentrada em revistas como Cahiers du Cinéma, Arts, Positif etc) estava (re) aprendendo a ver os filmes. A velha guarda da crítica tinha uma premissa literária que a impedia de enxergar o valor de um filme que possuísse um tema ordinário, mas que o transcendesse na forma. Precisou que viesse a geração pós-Bazin (igualmente versada na literatura, mas acrescida de uma bagagem cinéfila até então inédita) para tentar juntar a noção de escritura ou de estilo com a de profundidade temática. A “política dos autores” dos Cahiers du Cinéma era isso, política esta que tinha Hitchcock (ao lado de Hawks, Renoir, Rossellini e Lang) como principal cavalo de batalha. O postulado estético central da “política dos autores” era que o universo do autor (seus temas recorrentes, suas obsessões) estava expresso na forma, sem separação possível. Os “jovens turcos” dos Cahiers (Godard, Truffaut, Rivette, Rohmer, Chabrol, Domarchi) buscaram desfazer a velha dicotomia entre fundo e forma afirmando que a significação e a riqueza temática dos filmes dos autores que admiravam eram inseparáveis do estilo de mise en scène empregado

em sua realização. Se um cineasta X é um autor, é porque seus filmes só fazem sentido no e pelo movimento interno da mise en scène. Dentro dessa perspectiva, o cinema de Hitchcock se prova exemplar, pois pega os temas mais banais, mais desprezíveis, e os transfaz, tão somente pela forma cinematográfica aí elaborada (enquadramentos, movimentos de câmera, iluminação, modulação das relações espaciais), num meio de acesso privilegiado às grandes categorias morais e existenciais do homem. A densidade do filme se torna indissociável da técnica e da forma. O significado da fábula não vem por nenhum discurso ou tese, mas pelo próprio efeito sensível do espetáculo. Quando Godard diz, a propósito de As Estranhas Coisas de Paris (Jean Renoir), que se trata de um filme em que “a arte é já a teoria da arte, a beleza é já a explicação da beleza”, e depois repete praticamente os mesmos argumentos num texto sobre O Homem do Oeste (Anthony Mann), ele nada mais faz além de “encontrar o cinema no filme”, como você afirmou. Compreender um filme em particular era compreender melhor o cinema como um todo. Num dos documentários que Éric Rohmer fez para a

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A u rora televisão, L’homme et les images (1967), Godard é um dos entrevistados e fala uma coisa engraçada: “Antes de realizar meu primeiro filme, eu sabia um monte de coisas sobre o cinema. Agora que realizei uma dezena de filmes, não sei quase nada.” Isso mostra que, na época da crítica nos anos 1950, Godard (e acredito que a frase dele se aplique também aos seus companheiros de Nouvelle Vague) estava com a certeza de que cada novo filme do Fritz Lang ou do Nicholas Ray ou do Otto Preminger trazia-lhe uma nova definição do que era o cine-

Quando se destaca a crise da mise en scène nos anos 1960, era uma situação em que não se sabia ver aqueles novos filmes? Pode parecer contraditório, mas a dificuldade de críticos defensores do classicismo (Rohmer, Mourlet, aqueles que mais dissertaram sobre a percepção imediata da obra) diante dos novos cinemas não aconteceu justamente porque eles não estavam vendo tais filmes, mas tentando compreendê-los a partir de um plano crítico rigoroso e quase dogmático?

ma, ensinava-lhe alguma coisa de essen-

Mourlet foi mais generoso e Rohmer foi mais moderno do que se costuma dizer. Aliás, a afirmação de que Hiroshima, Mon Amour era o primeiro filme cubista da história do cinema e Resnais o primeiro cineasta moderno do cinema sonoro foi de Rohmer, e isso num contexto (o daquela famosa mesa redonda “Hiroshima, notre amour”, feita nos Cahiers em julho de 1959) em que as palavras rateavam, havia um claro déficit de vocabulário crítico em relação às novidades trazidas pelo filme; foi Rohmer quem clareou a conversa e indicou como se deveria situar o filme numa história das formas. Assim como é dele a ideia de que Rossellini, ao perscrutar a vida interior dos

cial sobre essa arte (alguma coisa que a prática de fazer filmes iria redimensionar). E acredito que seja por aí mesmo. Tomo a liberdade da autocitação e reproduzo uma frase que escrevi num texto sobre A Outra Face da Violência, de John Flynn (cf. Foco nº 2): “Uma grande obra de arte nos obriga a falar da arte e não só da obra”. É isso. Os grandes filmes nos impelem a falar do cinema. No limite, eles nos convidam a responder à pergunta “O que é o cinema?”. E naquele momento ali dos anos 1950 os críticos estavam constantemente falando de grandes filmes...

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seres, descobriu, em contrapartida, uma dramaturgia da pura exposição corporal. Rohmer, portanto, forneceu o vocabulário básico do cinema moderno (ao menos num primeiro momento, antes das elucubrações de Luc Moullet e André S. Labarthe). Por conta de sua querela com Rivette, no começo dos anos 1960, ele acabou ficando com a pecha de anti-moderno, mas isso não é verda-

de. Não dá para dizer que Rohmer não via os filmes, pois ele não só viu como apontou para o restante da crítica qual era o caminho para compreendê-los. Acho que se houve dogmatismo nessa história, ele veio dos dois lados. Quando o Labarthe chega dizendo que a mise en scène não tem mais lugar no repertório crítico dos anos 1960, ele está limitan-

Masculino-Feminino (Jean-Luc Godard, 1966)

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do o conceito a uma dada aplicação e está sendo tão dogmático quanto, digamos, os mac-mahonistas (cujo “dogmatismo” também precisa ser revisto...), só que pelo lado inverso. Ele deixa de perceber, com isso, momentos do Godard que são de pura mise en scène, mas que estão isolados, como ilhas, num oceano de improvisação, disjunção e anarquia estética. Masculin Feminin, por exemplo: Godard oscila entre momentos de coreografia rigorosa e outros de mera

captação bruta de fatos documentais dilapidados. Labarthe ignorou esse primeiro aspecto, claramente encenado (quiçá supra-encenado), em detrimento do segundo. Mas entendo essas posições radicais: elas fazem parte da batalha do pensamento. O pensamento é um campo de batalha: talvez seja essa a grande lição dos anos selvagens da crítica (1954-1967, se eu tivesse de escolher a época mais rica e turbulenta). Rivette, Rohmer, Mourlet,

Crônica de Anna Magdalena Bach (Jean-Marie Straub & Danièle Huillet, 1968)

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Aurora Labarthe, cada um com seu ponto de vista, foram todos grandes críticos, em larga medida porque souberam ser radicais quando o momento assim exigia. Ao lado da mise en scène, a outra palavra-fetiche da crítica francesa na década de 1950 era “moderno”. Foi o momento de descobrir o cinema moderno, ou melhor, os vários cinemas modernos, inclusive a partir de Hollywood. Há um ponto de encontro entre a descoberta do moderno e a descoberta da mise en scène? Existe, já nos anos 1950, uma mise en scène moderna e outra clássica? De fato, nos Cahiers dos anos 1950, usou-se muito o termo “moderno”. Hawks era moderno, Rossellini era moderno, Hitchcock era moderno, Renoir era moderno, Fuller era moderno... Há, sim, uma coincidência entre a emergência da mise en scène como principal ferramenta conceitual da crítica e o elogio da modernidade dos autores admirados. Há um esforço de dizer que Hitchcock, embora seja um cineasta da psicologia profunda e da estilização com tintas expressionistas, é também um cronista da vida moderna, um catalogador dos objetos e dos comportamentos que cons-

tituem o mobiliário da nossa existência cotidiana. Essa necessidade de, ao elogiar um diretor, passar sempre pelo aspecto “moderno” de sua obra dá os primeiros sinais do que alguns anos depois desaguaria no cinema moderno tal como o conhecemos hoje (a Nouvelle Vague na França, Bellocchio, Pasolini, Antonioni e outros mais na Itália, os Straub, os cinemas novos na Alemanha, na Polônia etc). Basta ver o texto “A era dos metteurs en scène”, do Rivette, publicado num dossiê sobre o Cinemascope na Cahiers nº 31, em janeiro de 1954. Nesse texto, que consolida o conceito de mise en scène na revista, Rivette termina dizendo: “Sim, nossa geração será a do Cinemascope, a dos metteurs en scène, enfim dignos desse título”. Ele fala em nome de uma “geração”. Que geração é essa? Ora, a da nouvelle vague. Rivette entrega assim o contexto específico de sua defesa da mise en scène enquanto arte maior do cinema: por trás dos escritos teóricos, há um grupo de jovens querendo passar para a realização de filmes. Nessa mesma edição 31 dos Cahiers du Cinéma, um dos números mais importantes da história da revista, Truffaut publicou o famoso manifesto “Uma certa tendência do cinema francês”, detonando o “cine-

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A u rora ma de qualidade”, o cinema de roteiristas, e afirmando a “política dos autores”, o cinema de metteurs en scène. Ficavam sacramentadas, assim, as duas principais ferramentas conceituais dos Cahiers nos anos 1950: o cineasta como “autor” e a mise en scène como critério absoluto de juízo estético dos filmes. A geração de Rivette e Truffaut iniciava o “golpe de estado” da nouvelle vague. Hoje, podemos dizer que a nouvelle vague começou ali, nos Cahiers du Cinéma nº 31. Embora a definição de mise en scène cunhada nos Cahiers se direcionasse, em parte, ao cinema clássico, ou ao que hoje conhecemos como cinema clássico, e utilizasse muitos termos de extração classicista (Hegel, Goethe e Schiller rondavam os textos), havia uma modernidade no horizonte – nem que fosse a modernidade que os próprios críticos pretendiam liderar num futuro próximo. Por ser a mise en scène, segundo eles, a única arma efetiva do diretor (quiçá sua arma secreta, que ele acionava no set sem que ninguém – produtores, atores, técnicos – soubesse exatamente qual seu poder de alcance), por ser ela a garantia de que um realizador de filmes podia imprimir sua marca pessoal

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na obra, sua visão do mundo, seu estilo, enfim, por ser a mise en scène uma etapa tão central na feitura de um filme, e por depender, em última instância, de apenas uma pessoa, que é o diretor, automaticamente ela adquiria um valor de modernidade. Se o que importa é a mise en scène, e se a mise en scène é a expressão de um indivíduo (“o autor, mal necessário”, diria Rivette), então há um cinema a ser construído em cima dessa figura – o cinema de autor. O modelo, mais que qualquer outro, será o Rossellini da fase Ingrid Bergman: uma obra-prima (pensemos em Stromboli ou Europa 51) pode ser feita tão somente ao registrar o encontro de uma atriz, de um corpo, com um espaço ou com um evento que geram alteridade em relação a esse corpo. Para extrair a verdade desse encontro, não é preciso muito, ou melhor, é preciso tudo: um metteur en scène. Rossellini tinha passado do realismo à verdade. Um cinema da verdade revelada, encarnada no mundo sensível. Isso mexeu muito com os “jovens turcos”. Os primeiros filmes do Godard (até 1965-66), a obra inteira do Rivette, do Rohmer, mostram essa influência.


E aí, nos anos 1960, quando o cinema moderno realmente ganha corpo e ganha as capas da Cahiers, qual é a primeira coisa que os novos críticos (pois há uma nova geração também na crítica – Labarthe, Comolli, Narboni, Fieschi...) combatem? A mise en scène e a política dos autores. Há então uma ironia na história: a mise en scène, nos anos 1950, esteve associada à consolidação do autor e à promessa de um cinema moderno no horizonte próximo. Quando esse cinema chegou, os críticos afirmaram: não existem mais autores, e sim filmes; não existe mais mise en scène, e sim a urgência de captar um plano desse mundo em transição e crise. Os textos do André S. Labarthe são os mais representativos desse momento. Nas críticas de Uma mulher é uma mulher (Godard) e O ano passado em Marienbad (Resnais), ele planta as bases de toda uma teoria do cinema moderno. Sobre o primeiro, ele diz: Godard só quer filmar no presente, que não é o tempo do saber, mas do olhar e da evidência. O cinema do Godard, para Labarthe, se caracteriza por uma valorização radical do presente. O texto recorre a um exemplo que ilustra bem essa visão: Godard se interessa pouco em saber a que horas

fulana saiu de casa; ele se contenta em vê-la sair. Uma mulher é uma mulher aparece assim como uma sucessão de planos privilegiados e autônomos. “Ser fiel ao cinema”, diz Labarthe, “é destruir o mito da linguagem pudovkiana”, é sair da montagem sintática para reencontrar a potência do plano individual. Também a regra da boa interpretação é chutada para longe: Godard retém, sobretudo, os momentos débeis da interpretação dos atores, pois estes são os momentos mais reveladores. “Todo o esforço de Godard consiste em multiplicar os obstáculos para conseguir, em todos os casos, um gesto imprevisto, uma mímica incontrolada, uma entonação involuntária; tudo isso que resulta em minutos extraordinários de verdade” (Labarthe, Cahiers du Cinéma nº 125, nov. 1961). O moderno se confunde aí com um retorno ao primitivo. O que pode ser mais moderno do que, logo após ter testemunhado o apogeu do classicismo em Preminger, Ford e Mizoguchi, descartar toda a “evolução da linguagem cinematográfica” e filmar como Lumière? Godard vai falar de um retorno a Lumière; Straub, a propósito de Os Não-reconciliados e Crônica de Anna Magdalena Bach, vai dizer que quis fazer filmes que

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fossem apenas uma sucessão de “planos de bioscópio”... O registro automático do real retoma sua primazia sobre a narração ou a organização dramática dos eventos. O cineasta quer reencontrar, em sua pureza original, a capacidade ontológica do cinema de revelar a verdade das coisas. Sobre O ano passado em Marienbad, Labarthe diz que se trata da etapa final de algo que começou com o neorrealismo italiano. As lacunas do roteiro e a ambiguidade dos acontecimentos resultam num esforço exigido ao espectador. A narrativa lacunar e obscura exige um espectador ativo, que converte a trama descontínua do relato numa continuidade coerente – “exatamente como ocorre na vida cotidiana”. Daí o filme de Resnais ser o suprassumo da estética neorrealista na ótica de Labarthe (uma interpretação ousada, sem dúvida). “O primeiro homem que descobriu o mundo deve ter experimentado a mesma dificuldade para compreendê-lo, isto é, para ordená-lo”, ele diz a respeito do filme, salientando que o grande mérito de Resnais foi não ter organizado a experiência para o espectador, entregando-a em fragmentos abstratos que cabe ao espectador descobrir para que servem | 22 |

ou o que significam (cf. Cahiers nº 123, setembro de 1961). Anos depois, para coroar sua batalha pelo moderno, Labarthe escreve um bilhete intitulado “Morte de uma palavra: mise en scène” (cf. Cahiers n. 195, novembro de 1967). Lá ele afirma que, à medida que os filmes modernos falam cada vez menos a linguagem da mise en scène, a expressão teria se tornado obsoleta, e “seria saudável nos desvencilharmos dela como fez a pintura com a palavra ‘figurativo’”. Para Labarthe, o conceito de mise en scène está atrelado à análise do cinema clássico, mostrandose inadequado aos filmes modernos dos anos 1960. Mise en scène e modernidade, que nasceram juntas nas páginas da revista, finalmente se separam e se despedem uma da outra. Voltando um pouco: tentemos entender o substrato da crítica hitchcocko-hawksiana, como era chamada a turma dos jovens redatores da Cahiers na década de 1950. As duas balizas escolhidas por eles não podiam ser mais opostas. De um lado, Hawks, o cinema da evidência do olhar, cinema da ação, do combate corporal, do conflito visível no plano. Esse cinema exigia uma mise en scène


Aurora

O Inventor da Mocidade (Howard Hawks, 1953)

direta, retilínea, capaz de representar imediatamente, sem entraves simbólicos, o mundo físico da ação. “O que é, é”, como disse Rivette em seu artigo sobre Hawks. Do outro lado, Hitchcock, cineasta da Ideia, da dramaturgia do profundo, dos universos psíquicos secretos, da intriga dissimulada sob a aparência. O que é nem sempre é. Em Hawks, a substância moral da vida se deixa ver na própria parcela física do drama, no re-

gistro objetivo da luta do homem com a natureza e com os outros homens, nos encontros e afrontamentos dos corpos. Em Hitchcock, ela é significada e não apenas mostrada: a linguagem rasa do cotidiano é o disfarce de uma realidade essencialmente psicológica. Na época, as coisas não eram esquematizadas desse jeito, como fiz agora. Essa é uma leitura retrospectiva do “hitchco| 23 |


A u rora cko-hawksismo”. Mas nossa questão aqui é: estariam implicadas, nessa fórmula hitchcocko-hawksiana, uma mise en scène moderna e outra clássica? Caso sim, onde está a modernidade? A princípio, Hawks parece o moderno – cinema do corpo, olhar que só capta o que é evidente; o que há para ver é o que está mostrado – e Hitchcock, o clássico (há algo para ver “atrás” das imagens, há um segredo atrás da porta). Mas há pelo menos duas dimensões modernas também em Hitchcock: 1) ele questiona o lugar do espectador no cinema, interpela o espectador, do que Janela Indiscreta é o melhor exemplo (todo o cinema moderno se funda nessa interpelação, cristalizada numa das figuras recorrentes em Godard, o “olhar-câmera”); 2) ele coloca o olhar em dúvida. O que James Stewart vê no apartamento da frente é mesmo um crime ou é pura invenção da sua cabeça? Mais um passo, um micropasso, e estamos em Antonioni, Blowup: frustração do voyeurismo, mistério que não se desvela, fracasso na tentativa de descobrir o que há por trás da camada mais aparente da realidade (uma imagem é só uma imagem, contente-se com isso). Hitchcock prenuncia a passagem da dramaturgia da profundidade simu-

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lada à opacidade assumida (moderna), evidenciando o caráter enganoso das aparências e sugerindo, por conseguinte, que o equívoco fatal do olhar só pode ser evitado se ele se ativer às evidências, à superfície dos fenômenos. O clássico dos hitchcocko-hawksianos já era moderno. Há ainda outra coisa a destacar a partir dessa pergunta, que é a existência, dentro de uma segunda (ou terceira) geração do cinema clássico americano, de cineastas claramente atravessados por forças desestabilizantes, por impulsos modernos: Robert Aldrich, Nicholas Ray, Elia Kazan. Há neles uma violência, uma descarga pulsional para a qual a retórica tradicional da mise en scène e do roteiro funciona como um entrave. Eles precisavam, mesmo respeitando as regras gerais do jogo, desfazer algumas amarras e experimentar com o ator, com o cinemascope, com a narrativa etc, para chegar a uma expressão mais imediata da emoção e da energia que buscavam. Eles não tinham um “projeto” moderno em mente, mas claramente já estavam afetados por um espírito moderno. É mais um embaralhamento da questão clássico-moderno...


A mise en scène parecia ser a única arma eficiente para se defender o cinema clássico no final dos anos 1950, talvez até um último esforço. A “morte da mise en scène” não representa, também, o fim do cinema clássico? Mesmo se pensarmos na renovação de Hollywood a partir do final dos anos 1960, que retoma também alguns preceitos classicistas, onde está a mise en scène? Ao decretar a “morte da mise en scène”, em 1967, Labarthe tem em mente justamente isso: acabou o cinema clássico, estamos na era do cinema moderno. Nessa lógica, sim: a morte da mise en scène (no plano da teoria) representa o fim do cinema clássico (no plano da prática). Segundo Hegel, nos períodos em que uma forma artística vive seu apogeu, ela é menos teorizada do que praticada. Os períodos que abundam em teorias da arte são períodos de baixa. Nos séculos XVIII e XIX, assim sendo, a enorme quantidade de reflexões estéticas corresponderia a uma pobre realidade da produção artística, obrigando a arte a se refugiar em sua teoria. Se aplicarmos isso à intensa produção de ideias na crítica cinematográfica no período 1951-

60, e mais especificamente à recorrente tentativa de definir o que seria a mise en scène clássica nesse período, então teremos de admitir que, de fato, o conceito de mise en scène surge no momento em que o cinema clássico se aproxima do fim. Mas a questão, na prática, é um pouco mais complexa. Não seria a década de 1950 justamente o apogeu da forma clássica (pensemos nos filmes que John Ford, Mizoguchi, Preminger, Cottafavi e Lang, para não falar em Hitchcock e Hawks, estavam fazendo naquele momento)? Não estaria o cinema invertendo a máxima hegeliana e fazendo coincidir o apogeu da mise en scène clássica com o apogeu do pensamento sobre essa arte? Vale lembrar que o Rohmer dizia que o classicismo, no cinema, não é o passado, mas o porvir. O cinema, para ele, tinha o classicismo diante de si, como um horizonte, e não como uma fase a ser superada pelo desdobramento moderno. Quando escrevia sua série de artigos “Le celluloïd et le marbre”, Rohmer apontava como o cinema, após se livrar de alguns equívocos, poderia ascender à sua verdadeira era clássica. Para ele, então, a teorização da mise en scène estava ligada à possibilidade do clássico, e não à sua extinção.

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Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976)

No lado do mac-mahonismo, onde a definição de cinema clássico tinha um peso maior, Jacques Lourcelles percebe algo interessante em seu acachapante texto publicado na última edição da Présence du Cinéma, em 1967. Ele prefigura, no final, o que seria uma das grandes respostas à “morte da mise en scène” e à tendência barroca: a busca de um registro brutal da vida que deve mais ao cinema das atualidades do que a qualquer outra

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coisa. Jean Eustache e Maurice Pialat não estão implícitos nessa definição? Vocês têm razão em questionar o lugar da mise en scène na Nova Hollywood. Apesar de serem diretores que conhecem e cultuam o classicismo, Scorsese, De Palma, Bogdanovich, Coppola, Spielberg etc. trabalham em outra chave, escancarando o delay que existe entre a chegada deles e o fim da Hollywood


Aurora clássica. A nostalgia retrô e a hipérbole maneirista são alguns dos sintomas. Em Taxi Driver, por exemplo, a câmera está “insone” como o personagem. Uma mise en scène anfetaminada. Num momento ainda no início, naquela sede de campanha política, o ator está parado, mas a câmera caminha em volta dele, muda a angulação, reenquadra. Para quê? Para nada. É um desperdício de energia, e é isso que dá a força singular do filme. Aqueles inserts hiper-realistas no bar frequentado pelos taxistas (como o do copo d’água com uma pílula efervescente) ilustram bem o que está em jogo: o estilo adquire independência em relação à significação, cresce monstruosamente e devora o filme por dentro. O equilíbrio clássico se perdeu. Não custa lembrar que a Nova Hollywood é o cinema dos superautores, é aquela fenda na história do cinema americano onde se decretou todo o poder aos diretores. Ocorre, naturalmente, uma fermentação do estilo. Uma cena pode ser decupada e filmada tão somente em função do efeito buscado, sem necessariamente ancorar esse efeito numa demanda do relato. Todavia, a decadência estética e econômica dos grandes estúdios hollywoodianos nos anos 1960 não significou o fim

da possibilidade do classicismo para as décadas seguintes. Michael Cimino que o diga. E hoje, não é possível falar de mise en scène clássica a propósito de James Gray? Diversas teorias da mise en scène esbarram em premissas realistas que caracterizam o pensamento de André Bazin. Quando, sobre o neorrealismo, ele escreve “a câmera deles possui um tato cinematográfico bem perspicaz, antenas maravilhosamente sensíveis, que lhe permite apreender num repente o que é preciso, como é preciso”, encontramos certa ressonância nas idéias tanto daqueles que defenderam uma mise en scène classicista como daqueles que defenderam uma mise en scène em termos de ruptura moderna. Existe algum ponto em que as ideias a respeito da mise en scène se distanciam radicalmente do pensamento de Bazin? Os principais textos sobre a mise en scène escritos ali no calor do momento – e quando digo os principais digo os mais frontais, diretos – estão todos plantados em premissas bazinianas. Rohmer, Mourlet e Astruc, que, respectivamente, em “Le goût de la beauté” (Cahiers

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A u rora n. 121), “Sur un art ignoré” (Cahiers n. 98) e “Qu’est-ce que la mise en scène?” (Cahiers n. 100), tentaram definir da maneira mais completa o que seria a especificidade da mise en scène, foram mais bazinianos que o próprio Bazin. O cinema é um “modo de apreensão do real”, e o grande metteur en scène é aquele que consegue dar forma e sentido ao mundo sem trapacear com a verdade fotográfica da câmera. Pôr em cena é organizar os blocos de espaço-tempo (pois é disso que se trata um plano de cinema) em função da emoção e do sentido buscados. A dimensão ontológicofenomenológica do registro cinematográfico está na base das teorias da mise en scène de que estamos falando. Godard foi quem, nos anos 1950, apresentou um contraponto a algumas ideias bazinianas. Seu elogio da montagem (“Montage, mon beau souci”) batia de frente com a famosa “montagem proibida” de Bazin; seu elogio da decupagem clássica e da fragmentação em planos contrariava a ode baziniana ao plano-sequência e à continuidade permitida pela profundidade de campo. Depois, nos anos 1960, sobretudo no final, vêm os textos combatendo to-

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dos os fundamentos do pensamento do Bazin: o realismo objetivo do cinema, o evolucionismo, o ecletismo como atitude crítica primordial etc. Jean-Louis Comolli, na série “Technique et idéologie”, foi o grande porta-voz desse revisionismo anti-baziniano. Era o momento de matar o pai... No senso comum (e nem tão comum assim), a mise en scène de um filme muitas vezes é citada quando é aparente, quando há uma tensão forte entre câmera/ personagem, ou quando há uma teatralidade excessiva por parte dos atores (ou da própria câmera). É mais fácil, hoje, um espectador pensar em mise en scène a partir de um filme de Cassavetes, de Rivette, de Fassbinder, do que a partir de um filme de Preminger ou Walsh. É possível pensar numa ruptura no próprio conceito de mise en scène – da mise en scène invisível destacada a partir dos cineastas clássicos norte-americanos para uma mise en scène aparente, em que as questões teorizadas nos anos 1950 se tornam até mesmo questões primeiras das próprias obras? Com certeza, fala-se mais da mise en scène, e com mais facilidade, quando ela


é aparente, explícita, reivindicada pelo próprio filme, colocada em primeiro plano, seja pela teatralidade excessiva, seja pela presença marcada e sublinhada da câmera, seja por qualquer outro motivo. Os três cineastas (Fassbinder, Cassavetes e Rivette) que você citou representam, a meu ver, três vertentes distintas que se delinearam na passagem dos anos 1960 para os 1970, em resposta à “crise” da mise en scène deflagrada pelo cinema

moderno: de um lado, havia aqueles que se situavam acima da “linha” da mise en scène, como Ruiz, De Palma, Syberberg, Fassbinder, cineastas de tendência maneirista e/ou adeptos da construção de dispositivos cênicos intrincados e complexos; do outro lado, os cineastas que se colocaram abaixo da linha da mise en scène, recuperando o olhar imediato para as coisas e implodindo os moldes teatrais e pictóricos da representação

Faces (Joun Cassavetes 1968)

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cinematográfica de modo a guardar da cena um aspecto cru, inaudito, imprevisível (Cassavetes, Pialat, Eustache). E há também os que combinaram, quase magicamente, a ultra-encenação e a captação da linguagem inalterada do mundo (Rohmer, Rivette, Straub/Huillet); esses últimos conciliaram o rigor da decupagem (a inteligência da composição do quadro e da escolha do ângulo, a administração precisa da duração e dos movimentos etc.) com a liberdade de aparição do mundo empírico no interior dos planos; a organização rigorosa do espaço e do quadro surge aí como a condição mesma para a circulação do vento, do imprevisto, da borboleta que cruza o campo e ilumina o drama. Todos esses cineastas, me parece, disponibilizam questões para os críticos; permitem que eles consigam enxergar pelo menos uma parte das manobras em jogo. O problema surge quando a mise en scène de um filme consiste em manter o equilíbrio (invisível) entre a significação e sua forma sensória. Por isso é difícil hoje falar de um filme clássico do ponto de vista do estilo. Críticos que conseguem produzir páginas e páginas sobre Pedro Costa ou Chantal Akerman

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podem muito bem travar diante de uma comédia do Capra ou de um western do Budd Boetticher, para citar dois cineastas que não explicitam os efeitos de mise en scène. Quando as assinaturas estilísticas de um cineasta não são reivindicadas pelo filme (embora sejam evidentes mesmo assim), o que fazer? Onde está a mise en scène em Henry King? Tenho a impressão de que a maioria das pessoas entendidas em cinema se sente muito mais à vontade para falar de um cineasta quando ele monta um sistema ou possui, mais que um estilo, uma estilística (um conjunto de procedimentos respaldado em escritos teóricos e conceituais – é o caso de um Bresson ou de um Tarkovski, e seus respectivos discípulos). Outro fator é o seguinte: o que ficou da mise en scène foi mais a “mise” do que a “scène”. Ou seja: com o tempo, passouse a entender por mise en scène não uma colocação em cena propriamente dita, mas uma colocação qualquer, uma operação de estilo, uma construção formal. Eis porque se fala em mise en scène mesmo a respeito de filmes que sequer possuem cenas. Aliás, os filmes de autor cada vez menos possuem cenas, e cada vez mais se articulam a partir de um conceito ou de um princípio constru-


Aurora tor que explica suas decisões estéticas, o que também favorece essa tendência da crítica atual a não saber falar senão dos filmes “desencenados” ou, inversamente, ultra-encenados, sem ter muitas ferramentas para abordar as construções cênicas propriamente ditas, quando estas enfim surgem. A maior parte dos espectadores e dos críticos de hoje foi talhada na era do maneirismo (anos 1980/90) e da sua reação posterior, o “cinema sutil” (anos 2000). A dificuldade reside em falar ou escrever sobre a mise en scène que escapa a essas formas extremadas de sobre- ou sub-dramatização. Agora uma provocação. A grande celebração em torno da mise en scène de Otto Preminger – cineasta que você coloca como um sinônimo da expressão – é o seu aspecto invisível, como diz o Jacques Lourcelles (“a melhor mise en scène possível é evidentemente aquela que é a mais desprovida de idéias de mise en scène”). Mas historicamente, para a crítica, pode-se dizer que a mise en scène virou o tema de Preminger, quase no mesmo sentido em que se coloca “o destino inevitável” como um tema de Fritz Lang. Para ficarmos em

termos rohmerianos, hoje é possível ver o cinema de Otto Preminger sem compreender sua mise en scène? Sinceramente, não vejo a mise en scène como um “tema” na obra de Otto Preminger. Se o seu cinema se tornou sinônimo de mise en scène foi porque traduziu, em termos estilísticos, o ideal de transparência, limpidez e continuidade que então se entendia como quintessência da mise en scène. Não é que a mise en scène se tornasse um assunto para ele, mas sim que tudo se tornava assunto para a mise en scène; tudo passava pela mise en scène de Preminger. Os movimentos de câmera coincidiam com os movimentos do mundo e viceversa. Era como se Preminger conseguisse enxergar a linguagem intrínseca dos espaços, dos corpos e das coisas e a respeitasse, acompanhando-a passo a passo. A elegância, a mestria, o equilíbrio, a fluidez que daí advinha fascinava qualquer um. A verdade surgia espontaneamente, do interior do relato. Vejo a mise en scène aparecer como um tema, aí sim, em Hitchcock e Lang. Festim Diabólico, Disque M para Matar, Janela Indiscreta e Um Corpo que Cai são filmes sobre a mise en scène. Um

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A u rora

Festim Diabólico (Alfred Hitchcock, 1948)

rapaz assassino arma todo um jantar-teatro no qual tenta orquestrar as aparências e determinar o lugar dos objetos e dos corpos no espaço (Festim Diabólico); um fotojornalista, de sua cadeira de rodas (sua cadeira de diretor), dirige à distância o filme que ele vê se projetar no apartamento do vizinho (Janela Indiscreta); um homem monta um plano “perfeito” e chantageia um antigo conhecido para executá-lo (Dique M para Matar); para não falar na grande obra de

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Hitchcock, Vertigo, onde Scottie é enredado numa mise en scène de que ele é, ao mesmo tempo, ator e espectador, e cujo diretor está tão presente quanto ausente. Interessante notar que em todos esses filmes há uma dialética entre o plano matematicamente arquitetado e a interferência do acaso e do fator humano. Em Lang, a coisa vai ainda mais longe. Os Mil Olhos do Dr. Mabuse tem por assunto justamente o controle e a ma-


nipulação da realidade, assim como o efeito hipnótico que as imagens exercem sobre as pessoas (à semelhança de Hitchcock, Lang gostava de evidenciar o caráter enganoso das aparências). Entra em jogo uma reflexão sobre o poder do diretor de determinar para o espectador o que ele deve ver e o que não deve. Mabuse é ao mesmo tempo psicanalista, astrólogo e médium, um mestre do disfarce que domina diferentes “ciências” de apreensão do universo e da mente humana. Ele detém os meios – microcâmeras de vigilância espalhadas pelo hotel onde se desenvolve a maior parte da narrativa, por exemplo – que lhe permitem monitorar, antecipar e, em última análise, dirigir os deslocamentos dos corpos no interior dos cenários. Ele se finge de cego, quando na verdade enxerga mais que todos os outros. É um cego que possui mil olhos – jogo de extremos que expõe a função da mise en scène clássica: disfarçar a presciência do realizador ao apresentar cada acontecimento como surgimento e descoberta; fingir que as coisas não foram planejadas e ordenadas, mas se lançam no desenrolar “cego” do presente empírico. Fúria, por sua vez, mostra o ódio de um homem condenado injustamente, que

quase teve sua vida brutalmente interrompida por um bando de linchadores. Dado como morto após um incêndio na delegacia em que estava preso, ele agora executa friamente um elaborado plano de vingança, utilizando a namorada e os irmãos como atores de sua encenação. Ele nunca aparece em público, fica trancado e recluso, pois não pode revelar que ainda está vivo – seu plano só funciona se ele continuar sendo considerado morto. De dentro do quarto onde se esconde, ele maquina passo a passo o roteiro da vingança. Ele se torna a instância invisível que organiza o espetáculo para a plateia que comparece às sessões do tribunal (que é em si uma espécie de teatro). Dito de outro modo, ele se torna um metteur en scène. Em Os Carrascos Também Morrem, a principal arma da resistência tcheca durante a ocupação nazista na Segunda Guerra são maquinações teatrais elaboradas para despistar os investigadores alemães. Aciona-se então uma verdadeira mise en scène coletiva que tem como elenco praticamente toda a população local. E os exemplos poderiam prosseguir...

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Para finalizar. Há algum cineasta que você considera injustamente esquecido pela parte da crítica que se preocupou com a questão da mise en scène nos anos 1950? E a pergunta oposta, há algum cineasta daquele período que você considera superestimado no sentido da mise en scène?

ciados ou não devidamente contempla-

Mais cedo ou mais tarde, a crítica acabava cobrindo a maioria do que realmente interessava. Muitos cineastas negligen-

já tinha sido também uma forma de olhar

dos nos anos 1950 foram reabilitados na década seguinte (é o caso do próprio John Ford, de Jacques Tourneur, de Douglas Sirk). Havia também alguns cineastas indianos ou japoneses que eles só descobririam mais tarde, quando os filmes chegassem à Europa. O mac-mahonismo para os cineastas negligenciados pela Cahiers (Allan Dwan, Riccardo Freda,

Paixão sem Freios (Vincente Minnelli, 1955)

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Aurora Ida Lupino, DeMille...). Deve haver, sem dúvida, alguma grande negligência devida

dendo a visão. Ele resolve esconder isso

à falta de conhecimento ou de contato

la, para que ela pare de gostar dele e o

com alguma obra, mas agora não con-

abandone. O artista teme que ela fique

sigo me lembrar de nenhum exemplo

com ele por pena. Na melhor cena do

assim. Tampouco consigo apontar algum

filme, a moça vai à casa dele tentar co-

cineasta que tenha sido realmente supe-

locar as coisas às claras (cito de memó-

restimado.

ria, peço perdão pelas eventuais impre-

Na linha oposta, entretanto, de diretores que eles conheciam e viam, mas que foram injustiçados ou menos evidenciados do que mereciam, dois nomes me vêm à cabeça. O primeiro é Vincente Minnelli, que era alvo de controvérsia (uns gostavam, outros não), quando devia ser unanimidade! O segundo é Sacha Guitry. Acho incrível que as apologias da arte da mise en scène nos anos 1950 não tenham passado por Guitry. Donne-moi tes yeux, um filme dele de 1943, que considero uma obra-prima, tem uma cena extraordinária e perfeitamente ilustrativa do que é a mise en scène defendida nos textos que citamos,

de sua namorada, e começa a maltratá-

cisões). Para não entregar sua cegueira, ele precisa circular pelo espaço tomando cuidado para não esbarrar nos objetos nem vacilar nos movimentos. O que se segue é indescritivelmente belo. Um corpo tentando se movimentar às cegas num espaço alheio às suas deficiências, tentando se guiar na realidade exterior por meio da visão interior. Guitry filma esse momento de maneira simples porém esplêndida. E eu me pergunto: qual a finalidade da mise en scène senão expandir os movimentos interiores nos gestos exteriores, relacionar os humores instáveis e os sentimentos variados dos homens com os espaços, as ações e

embora nunca tenha sido usada como

os objetos que dão consistência e sen-

exemplo. O personagem principal (in-

sação de realidade à sua vida? Uma das

terpretado pelo próprio Sacha Guitry)

formas de responder à pergunta “O que

é um respeitado escultor que está per-

é a mise en scène?” é exibir essa cena.

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A urora

O classicismo em Otto Preminger Pedro Henrique Gomes1 1 Crítico de cinema, estudante de jornalismo. Editor do site www.tudoecritica.com.br

Na metafísica, existe uma

tese que, muito basicamente, declara a seguinte proposição: tudo o que existe é físico (ou necessita do que é físico para existir, ou seja, fazer parte da realidade). A essa tese chamamos fisicismo. Voltaremos a ela logo adiante. As questões concernentes à metafísica se espalham pelo espectro do conhecimento na tentativa mesma de reconhecer as estruturas sistêmicas da natureza, da realidade e concretude das coisas naturais, mas também objeta o pensamento em relação às alegações de coisas que estão além do campo físico – aliás, consiste num erro comum creditar à metafísica necessariamente aquilo que não é físico, ao sobrenatural (talvez o meta antes do físico contribua para a disse-

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minação deste falso-problema), embora não seja esta uma forma de conhecimento empírico (que possamos conhecer através dos sentidos). Mas não é o caso de aprofundarmos esse tema aqui, já que nosso ponto não é simplesmente epistêmico. Falamos brevemente desta disciplina de investigação filosófica antes para situar uma noção de mundo do que para empreender em uma tentativa ilusória de afirmar conceitos. Sobretudo quando nos aproximamos de um cinema tão rigoroso esteticamente como o de Otto Preminger, definidor do classicismo em sua potência mais evidente como algo que, sem vulgarização, sustenta os alicerces de imagens processadas com rara consciência espaço-temporal, a


maneira de uma fruição paulatina dessas imagens-consciência. Para além de filmar o real, Preminger não intencionalmente se amparava na metafísica e no fisicismo, mas a analogia parece apropriada quando observamos como ele filmava esses corpos, objetos e o movimento destes na atmosfera fílmica. Filmar era, para Preminger, mais do que erguer cenários e enchê-los de pessoas fazendo ruídos. A mise en scène está para o cinema assim como a metafísica está para a filosofia. Antes de analisar alguns filmes de Preminger, tentaremos nos aproximar do que representa o conceito de classicismo em si, amparado em David Bordwell. O que nos interessa, nesse caso, é perceber sua(s) estrutura(s). O cinema clássico hollywoodiano é esmiuçado por Bordwell em suas normas e princípios narrativos: “A montagem clássica tem como objetivos fazer com que cada plano seja o resultado lógico de seu antecessor, e reorientar o espectador por meio de posicionamentos repetidos de câmera. A desorientação temporária é aceitável somente quando realisticamente motivada.” (BORDWELL, 2005, p. 292). Isso nos auxilia a, antes de olhar para a obra de Preminger, per-

ceber as regras de sutilezas as quais ela se enquadra, perpetuando seu discurso. Assim como nos filmes de Joseph Losey (O Criado e Cidadão Klein são bons exemplos) e John Ford (Depois do Vendaval e muitos outros sintonizam com isso que estamos falando, já que Ford é o cinema), em Preminger, seja em Laura, Alma em Pânico ou A Ladra, não há outra forma de olhar, o filme é um construto inabalável de coisas inabaláveis que se interpelam (agora intencionalmente) de acordo com uma necessidade de encenar aquelas coisas mais íntimas com uma harmonia rítmica inquebrantável. A composição do quadro, o rigor dos movimentos de câmera parece que são pedras fundamentais para a compreensão do universo filmado. Êxtase de Amor talvez seja um bom exemplo a citar nessa ocasião. Ora, logo esse filme, em que Henry Fonda e Dana Andrews disputam amigavelmente a beleza e a carne de Joan Crawford. A câmera seguidamente desliza sob o assoalho da casa de Daisy Kenyon acompanhando os passos dos atores, se aproxima deles o quanto pode não para reforçar psicologismos (não são geralmente os personagens que emocionam em Preminger,

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Êxtase de Amor (Otto Preminger, 1947)

mas as situações das quais eles participam interagindo mutuamente), e sim para filmar as coisas, filmar o todo (e filmar tudo), vivenciar a ação mesma das coisas. Êxtase de Amor é esse filme que não esconde nada e ainda assim carrega extrínseco um clima de mistério revigorante. Muito dessa força catártica age sob o espectador não por acaso. É oportuno dizer que as coisas se mostram para câmera quase sempre motivadas por uma necessidade de construir

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um espaço totalizante, que abarque os corpos e os objetos, mas porque o metteur en scène as coloca lá. A mise en scène em Preminger nunca é contingente. Mas, afinal, “o que é a mise en scène”? 1 Falar dessas imagens é regressar potencialmente a um espaço de registro seguro, onde, embora não apareçam, 1

Essa pergunta foi feita por Jacques Rivette nos Cahiers du Cinéma, por ocasião de sua crítica à Alma em Pânico (Preminger, 1952) e é também título do célebre artigo de Alexandre Astruc “Qu’est-ce que la mise en scène”, Cahiers du Cinema 100, outubro de 1959.Ver Cahiers du cinema: The 1950s, ed. Jim Hillier (Harvard, 1985).


A ur o r a enredam-se as técnicas do classicismo em sentido puro. Em Preminger, se não há uma necessidade de representar uma estrutura (e de fato parece não haver), não raro verifica-se uma urgência que é quase como um atestado de controle: arejar o plano, articular a câmera como se fosse (e é) um desbravador de sensibilidades de corpos devastados, incutir nos atores uma ideia de presença da câmera. Como fazer isso, no entanto, sem ser intrusivo? Como não suplantar a movimentação dos personagens nos ambientes? Ora, estas não parecem ser questões que tenham tirado o sono de Preminger. Para se romper com esses obstáculos, imprescindível é mesmo a antevisão não dogmática, que define a cena sem pormenorizar possíveis aberturas, mantendo o lastro perceptível de uma sequência que, como aquela de Bunny Lake Desapareceu, em que uma mãe desesperada sobe as escadas da escola onde sua filha está, na contramão de dezenas de crianças que só querem ir embora ganhar o abraço de seus pais. Facilmente se percebe a dificuldade de alguns movimentos e o que eles representam para as cenas e, principalmente, a necessidade de suas origens e funções primordiais. Na cena citada, não é difí-

cil perceber a interação da câmera com os personagens (crianças não resistem e olham para a câmera, para a grua que se agiganta sobre seus corpos), para além do plano sequência e de seus movimentos. Compreender e mostrar isso, ferindo a lógica da mentira que se quer esconder, é tomar posse do brinquedo e concretizar uma ideia de cinema autoafirmativa. A bem dizer, estamos discutindo a tese de que é justamente o ato de mostrar que torna a mise en scène clássica de Preminger nisso mesmo que ela é. Em uma sequência como essa, como fica claro, o cinema pede que as coisas reais invadam a tela e tomem conta dela. É mesmo uma relação de confluência, não de conflito, já que este reside antes na própria sensibilidade do espectador e sua maneira de experenciar o que vê. É notável a função da câmera, mas o que importa mais são as coisas filmadas e como elas são filmadas. A mise en scène se constroi aí, quase como uma consequência lógica do apego a uma harmonia dos objetos captados, a cronologia e o apego a uma narratividade límpida e simplista. Essa mise en scène clássica, porém complexificada pela força motora de sua estrutura, que é também uma força de

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A u rora retórica da própria mise en scène, observa o cinema antes como um fim do que como um meio. Nesse fluxo, ainda a cronologia é simpática à ordenação do pensamento e da ação, pois se um relógio mostra as horas, ele é um relógio funcional, e o que Preminger faz ao focar o tempo é simplesmente nos dizer que ele passa ou que já passou ou que passará, e que, como isso, a narrativa se transforma. Resta-nos dela sorver. Em Laura, é justamente um relógio (ou dois) a chave de todo o mistério que circunda o filme. A gênese dos filmes, para Preminger, está em controlar o tempo e as interações dos personagens com o espaço e imiscuir-se com eles, fazem parte com eles da história, afinal. Em Bunny Lake a câmera constroi os rostos, escondendo e revelando mistérios na medida em que se sucedem, tentando dar uma identidade aos personagens que nos parecem anônimos. Conhecemos o jogo, mas não os jogadores. Assim, percebemos que se trata de um filme sobre a encenação. A mise en scène aparece quando a sistematização do pensamento lhe confere autenticidade e autonomia, e isso acontece tão somente quando as formas (objetos,

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cenários) e os modelos (personagens) interagem dando vida uns aos outros. E não é possível, em tal análise, deslocar a importância da forma, dos objetos em si, mesmo que a maioria desses objetos não tenham, de fato, significância a priori, pois eles necessitam da intervenção humana para ganhar presença e vida. Eles precisam ser contaminados. Em Laura, um relógio; em Bunny Lake, uma boneca; em A Ladra, a cleptomania da personagem de Gene Tierney que não resiste em tomar para si coisas que não são suas. As pessoas materializam as coisas e estas apreendem o espectador à experiência. Essa conexão é a um só tempo funcional e óbvia; é concebível a ideia do que vai acontecer, mas o mistério não se anula. A máxima de Berkeley se encaixa no contexto da análise: ser é ser percebido. (Notem que, se fôssemos analisar a estética e a mise en scène de Preminger somente do ponto vista filosófico, provavelmente ficaríamos com a corrente empirista, com Berkeley, Hume e Locke). O mundo é encenado de forma crua, sem signos. A semiótica aparece aqui em nível lógico: as coisas são assim, vejam. É também por isso que seus filmes são ontológicos, e nesse nível con-


Bunny Lake Desapareceu (Otto Preminger, 1966)

ceitual transam essencialmente com a política (e, politizados que são, se fortalecem). Notadamente, a política se reveste no extrato social ao longo de vários de seus filmes (qual filme de Preminger, sem necessariamente ser sobre política, poderia ser mais político que Laura?), ou, como no caso de Tempestade Sobre Washington, é essencialmente destrinchado o meio e os processos políticos por dentro. Neste filme em particular, a câmera, ao aproximar (travelling in) ou afastar (travelling out) o rosto de um personagem (políti-

co) da tela (do espectador), não reveste a lógica das tensões parlamentares, mas a expõe consequencialmente. A câmera é política; constroi personagens ativos. Parece ser esse também o caso de Alma em Pânico, um filme em que a unidade de representação, diálogos, planos, movimentos de câmera e dos personagens, enquadramentos, tempo e espaço precisam responder a uma estrutura determinada pela precisão da montagem clássica sem se renderem à ela como temática em si. Algo como uma exigência intrínseca do modo de filmar, de apre-

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ender o espectador, que por sua vez está atrelada a textualização das ambuiguidades da política (Tempestade Sobre Washington), do romance (Êxtase de Amor), da guerra (A Primeira Vitória), do suspense (Bunny Lake), da ilusão (A Ladra), da justiça (Anatomia de um Crime). Cinema sem licença poética fundamental, mas que faz uso usurpador das possibilidades da linguagem. Não é necessário ir muito além do olhar, do foro mais íntimo e do entorpecimento mais direto para submergir na esfera de um Preminger. Entretanto, a sintática dos planos é legitimamente forjada antes para representar o real que para ser real em si. O classicismo ganha corpo nessa quase necessidade da representação retilínea, harmônica, da encenação. Não surpreende, no entanto, que mesmo no sufoco da elaboração da mise en scène, diante de cada plano, não pareça faltar imagem, é como se coubesse qualquer coisa numa imagem, no espaço na tela. O Rio das Almas Perdidas permitiu a Preminger extrapolar o limite do “quadrado da tela” (antes de 1953, que foi o apogeu da tela larga) e mergulhar no Cinemascope, dando fôlego a essas imagens. Apesar da história prosaica, um western falando de família (ou da dificuldade em cons-

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tituir e fazer parte de uma), o filme estrelado por Robert Mitchum e Marilyn Monroe sustenta-se tecnicamente em toda sua deficiência. Preminger abusa da profundidade de campo e visivelmente estica a duração dos planos nas cenas com paisagens ao fundo, no que a imagem ganha corpo. Todavia, nada é hiperbólico em Preminger. A decupagem clássica, não raro, é pura medida de dobra: supor o cinema clássico como o alcance maior do belo, do sublime, é submetê-lo a um ônus que dificilmente ele conseguiria suportar. É portanto plausível que, dadas as circunstâncias de um filme como Bunny Lake ou Êxtase de Amor, o limite entre o clássico e o moderno fique evidente, embora não oponha um cinema velho em relação a um novo de maneira estridente. Preminger enquanto metteur en scène é o organizador de certos processos intencionais que canalizam o comportamento do mundo. No cinema clássico que assim se pretende, a ideia de a toda mise en scène deve prescindir a filmagem. Isso posto, de forma alguma poderíamos postular o cinema clássico (principal e especificamente quando estamos nos referindo a Preminger, Losey, Ford, Hawks, Ray) como um corpo fechado. Os grandes filmes de Preminger,


Aurora como alguns já citados ao longo do texto, possuem mais do que um espírito esteta. Evidenciando isso, não é difícil rastrear as inúmeras potencialidades que o metteur en scène se propõe a realizar e a partir daí verificar que o clássico não é sinônimo de conservadorismo – palavra que parece se confundir com convencionalismo. A defesa do clássico tem os seus limites, assim como também os têm os argumentos em favor do moderno e mesmo do “cinema de vanguarda”. A questão reside mais em espraiar as possibilidades da retórica clássica em si e além, livrar o clássico do

confinamento das ideias duras e secas. Por exemplo. O fato de um filme como Bom Dia, Tristeza mostrar o flashback a cores e o tempo presente em preto e branco dá o tom da significação de valores da personagem vivida por Jean Seberg, mas também coloca sobre filme uma primazia indiscutível, onde personagens são erigidos sem julgamentos a priori, como também é o caso de Carmen Jones (um grande musical) e da esmagadora maioria dos filmes de Preminger. A teoria da forma clássica é isso, grosso modo, é conjugar o verbo à imagem sem sobrepujar

O Rio das Almas Perdidas (Otto Preminger, 1953)

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A urora a ordem natural das coisas. Isso logicamente faz sentir no espectador na medida em que se afirma inseparável da própria mise en scène. A mise en scène, não raro, se estrutura nesse ínterim em que o cinema se propõe a dar movimento e vida àquilo que registra - isso explica a ausência das narrativas em off. Não é, portanto, simplesmente tirar e por a tarefa do metteur, mas construir uma relação de fruição entre todas as coisas (matérias) dispostas em cena, o que não é nada menos que torná-las reais, mas enfim realizá-las. Assim, nas palavras de Preminger, o conceito de mise en scène se estabelece antes como uma função do realizador: “Existem metteurs en scène que se limitam a dizer aos atores: ‘Sentese aqui, sente-se lá, levante-se’, e que deixam o ator fazer as indicações contidas no roteiro. Mas isso não é mise en scène. Não é direção de atores. A direção de atores, na verdade, são coisas físicas, aparentemente sem importância, porque é unicamente uma questão de dinâmica. Tanto faz falar alto ou falar baixo, se sentar ou se levantar, se mexer ou permanecer imóvel. O que importa é o modo como você distribui

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essa dinâmica. Mas o que importa, sobretudo, é a maneira de criar relações entre as pessoas para que elas possam tranquilamente se instalar em conjunto. E o metteur en scène tem esse poder às vezes sem que os atores o saibam, às vezes sem que ele mesmo o saiba”.

Referências bibliográficas: BERKELEY, the

G.

A

Treatise

Concerning

Principles

of

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Oxford: Oxford University Press, 1998. BORDWELL, David. Figuras Traçadas na Luz - A Encenação no Cinema. Campinas: Papirus, 2009. BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos. In: RAMOS, Fernão (org.), Teoria contemporânea do cinema: documentário e narrativa ficcional, vol 2. São Paulo: Senac, 2005. HILLIER, ma:

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JUNIOR, Luiz Carlos de Oliveira. Otto Preminger ou “O que é a mise en scène?”.

Contracampo.

Disponível

em:

<http://www.contracampo.com.br/92/ pgpreminger.htm>.

Acesso:

17/01/2012.


Mise en scène a partir de Kafka Gabriela Wondracek Linck1 1 Mestranda em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP, pesquisadora de cinema alemão, tradutora de alemão e inglês nas áreas de Artes, Psicologia e Veterinária etc

Para

Jacques Aumont,

a cena cinematográfica é uma unidade de ação contínua. A mise en scène (ou colocação em cena) seria a organização do pensamento em ação (Rivette) dessa unidade, um núcleo de verdade (racional ou emocional) organizado em realidade (ficcional). A verdade, afinal, não é real ou ficcional, mas transcendente. A questão aqui, portanto, não é a origem (ou essência) da mise en scène, mas os pontos de aproximação e divergência que ela cria entre o cinema e as outras artes, e que podem expandir a própria noção de cinema como modulação de tempo e espaço.

Já se falou muito de poesia como pintura falada, de arquitetura como música em pedras. Fala-se que a literatura organiza o mundo em narrativa enquanto o cinema organiza a narrativa em mundo. Em 1917, o austríaco Oskar Walzel, em seu livro “Iluminação recíproca entre as artes”, refletia sobre a separação da arte em disciplinas (já existente desde 1800, com o Lacoonte de Lessing), divisão sem a qual não estaríamos agora falando de mise en scène no cinema, em contraste com a mise en scène no teatro. O cinema na Áustria (e na Alemanha), em seus primórdios, era chamado Lichtspiel (jogo de luzes),

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termo que nada agregava de drama ou atuação (representação), mas já continha certa ideia figurativa da encenação cinematográfica. Talvez melhor do que dizer que o cineasta organiza a narrativa em mundo, seja olhar para o modo como ele o faz em um trabalho de luzes, cores, sons e movimentos. O mundo é bruto, mas a realidade diante da câmera (apenas por estar diante da câmera) já é artificializada, logo, a narrativa (quando

há) é organizada dentro de outra realidade já artificializada, e não dentro de um mundo puro, que se apresenta como é diante da câmera. Mas a ideia de que o cineasta parte de um mundo desorganizado e gritante em suas dificuldades exteriorizadas e o escritor de um mundo ideal e recalcado (interiorizado) não é tão absurda, e pode ajudar na reflexão sobre a mise en scène no cinema. O cinema constrói um mundo imitado

Kaiserpanorama (1900) | 46 |


Aurora diferente do da literatura justamente porque o escritor parte de uma subjetividade interior que organiza em narrativa escrita (na folha em branco), e o cineasta, de uma realidade que precisa “subjetivar” (no mundo). Tomemos, por exemplo, Cortázar ou qualquer outro escritor latino do realismo mágico, ou mesmo E.T.A Hoffmann, na Alemanha. Não há limites para a fantasia em suas prosas; para os coelhos que saltam da cabeça, para os monstros feitos de areia. Já no cinema não basta imaginar, criar e organizar, é preciso também adaptar para chegar-se ao efeito desejado, ou perto dele. Mesmo que o filme não parta de uma fonte literária, sempre será uma adaptação da imaginação ao mundo que se apresenta diante dos olhos (por isso, talvez, sempre se tenta aproximar o universo cinematográfico do universo onírico), e não uma passagem à folha em branco, simples operária (passiva) da criatividade do autor. Segundo Günther Anders, pesquisador de Kafka, tudo que é mais lento no cinema é mais rápido no livro de ficção. A partir da mesma percepção, Kafka parece ter criado diversos contos curtos como exercício de contraste en-

tre cinema, Kaiserpanorama1 e literatura. Segundo o teórico, a prosa de Kafka estaria mais ligada às artes plásticas, pois em suas obras mesmo que a narrativa seja agitada, a impressão que fica é de uma vida que não anda, por mais que os personagens e os dramas se movimentem. Por exemplo, no conto “Uma mensagem imperial” o protagonista precisa enviar uma mensagem, mas o seu esforço de deslocamento (dentro de um palácio) parece expandir o espaço ao infinito2. Em seus escritos, Kafka dá a entender que os contos mais seriais e de ritmo acelerado, com frases separadas por muitas vírgulas ou sequer pontuação, narrados de um fôlego só (que descreviam uma amazona se preparando para uma corrida ou um mensageiro que levava uma correspondência ao duque, por exemplo), corresponderiam a uma cena dramaticamente estruturada de forma simples e direta na tela. Em contrapartida, uma vida inteira seria melhor narrada na literatura em uma espécie de resumo breve e 1

Aparelho de exibição de imagens individual, precursor do cinema e que exibia, em geral, “cenas” de paisagens paradas. 2 BENITES, Thiago. “Franz Kafka e o medium Kaiserpanorama”, Revista Contingentia, Vol. 5, Número 2, novembro 2010, 23-32.

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A u rora subjetivo, sem uma sequência lógica e veloz de ações em um espaço-tempo, pois uma vida inteira seria tão complexa que apenas a imobilidade (ou a velocidade) da imagem pode dar conta. Isso pode remeter ao velho clichê de que “uma imagem vale por mil palavras”. No entanto, a ideia contida nos diários de Kafka é bastante divergente dessa concepção: a relação entre literatura e cinema não se dá entre imagens e palavras, mas entre espaço e tempo. A questão é de velocidade e encenação, e não de quantidade e representação. Para Kafka, o Kaiserpanorama (que exibia imagens paradas por no mínimo 10 segundos) ao mesmo tempo em que apresenta uma proposta de calma ao olhar, agita o espectador (que não suporta tal calmaria), enquanto o cinematógrafo acalmaria o espectador por meio de uma velocidade organizada e confortante (como se a retina ocupada em acompanhar uma sequência imagética conduzisse a mente a uma espécie de descanso). A ideia da mise en scène (como articulação de tempo e espaço de forma dramática) sempre esteve atrelada a ideia

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de autor, aquele que no cinema seria o mestre em cena, ou o orquestrante, ainda que um organizador de orquestra trabalhe apenas com tons e ritmos, e o mestre em cena teatral não lide com a câmera. Também na literatura não se fala jamais de algo próximo a um organizador de cenas, já que a ideia de autor literário está ligada única e exclusivamente à criação e não à organização (essa está sempre submetida - exclusivamente - à primeira, não é um pressuposto). Ao mesmo tempo em que a apropriação dos conceitos de uma arte pela outra pode ser perigosa, ela também pode nos ajudar a perceber que, antes mesmo da própria arte, o que sempre está em jogo em uma obra artística é a atuação do homem. O mesmo problema do misticismo ou da filosofia, que coloca o sentido antes do homem e não além do homem, parece ser também o problema da história da arte ou das “ciências” da arte (como se diz na Alemanha). Os conceitos acabam tendo mais importância do que o objeto ou área artística que abarcam. Por isso a pergunta ontológica (e por que evitála, se afinal a pergunta de toda a ciên-


cia que estuda a arte vive retomando a questão de quem é ela mesma, ao invés de perguntar sobre as próprias obras?): haveria então mise en scène fora da ciência ou da história da arte? Como “signos” fora da astrologia? Para responder a essa pergunta talvez seja importante olhar para a arte (e o homem) sempre no sentido inverso ao que aponta a teoria: a partir do próprio filme, e do próprio homem (como criador). Ou, como Kafka, olhar o cinema a partir da literatura (ou, como Jacques Aumont, a partir da pintura). Afinal, retomando Borges “o original é que não é fiel à tradução”, da mesma forma que o cinema (e sua crítica, teoria e história) não é fiel aos seus filmes, e não o contrário. Partir de uma arte para entender a outra parece um método de estudo que volta a entrar em voga, daí a questão da mise en scène (que vem do teatro) e a atual vertente de retomada da aproximação do cinema e da pintura (Aumont). Na pintura não há mise en scène, há drama congelado em cores, ângulos e texturas, mas sem ação, embora às vezes possa haver uma impressão de movimento. Na literatura não há mise

en scène, porque a ação se dá na mente (na subjetividade) do leitor. Por isso, Günther Anders afirma que tudo que é mais agitado na literatura revindica no cinema apenas a velocidade normal e necessária; justamente porque na literatura é necessário que se forneça ao leitor o maior número de informações possível para que ele coloque o pensamento em cena (ou em ação) na sua imagin-ação. Marcel Martin diz que, no cinema, a cena é uma unidade de tempo e lugar, enquanto a sequência é uma unidade de ação. Na literatura a cena é definida, em geral, como cada um dos momentos envolvidos na evolução de um enredo. No entanto, esse momento é obviamente mais subjetivo do que no teatro (no qual uma cena é determinada pela entrada e saída dos atores) ou no cinema (por um corte de ação ou sentido imagético). No cinema, devido à presença da câmera, a definição de cena é geralmente pautada pela questão espaço-temporal. Na definição de Aumont, a cena cinematográfica é “um segmento que mostra uma ação unitária e totalmente contínua, sem elipse nem salto de um plano ao outro”.

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O que Kafka demonstra em seu diário e em seus contos breves é que a literatura demanda mais narrativa sequencial para determinar espaço e tempo (Por exemplo: “O mensageiro saiu do castelo pela manhã em direção à moradia do duque para entregar a carta às duas da tarde.”) do que uma unidade de ação (“Viveu por 100 anos e morreu.”), enquanto no cinema o tempo e o espaço estão de certa forma dados, e é a ação em cena que resume o esforço de encenação do drama. Portanto, de acordo com a ideia presente nesses contos, quanto mais narração contiver

uma obra de ficção literária na qual se baseia um filme, mais breves terão de ser suas cenas, e quanto menos dotadas de narração mais difícil (e lentas) de resumir em imagens serão as descrições. O cineasta competente, para Kafka, parece ser aquele que engendra um pensamento em ação de forma clara e sucinta (em termos dramáticos), em contraponto àquele que apresenta o espaço de forma magistral; pois isso, na sua concepção, já havia sido feito pelo Kaiserparanorma. E o cineasta ideal, para o escritor, seria o que

Despedida de Ontem (Alexander Kluge, 1966)

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Aurora conjuga a calma do olhar em relação ao espaço com ações precisas no tempo. Tomemos como exemplo (com a permissão de um necessário salto no tempo) o cineasta Alexander Kluge. Apesar de mais conhecido pelos seus documen-

Em seu último documentário (Notícias da Antiguidade Ideológica) Kluge também apresenta sua mise en scène: seja quando coloca uma pianista ao fundo de uma entrevista, ou nas cenas com um casal lendo Marx em

tários, Kluge também já fez muitos fil-

sintonia, ou mesmo quando modula o

mes ficcionais de mise en scène, como

próprio som de sua voz (alegando que

por exemplo “Despedida de Ontem” va”, nos anos 1960/70. No início de

o espectador presta mais atenção na entrevista quando o entrevistador fala baixo, o que geraria uma vontade de

“Trabalho ocasional de uma escrava”

ouvir mais). Kluge tem um estúdio ci-

vemos em close a vagina de uma mulher sofrendo um aborto. Não podemos falar que essa cena exclui a trapaça da câmera e que é pura mise en scène, pois não há certeza de que um close seja uma ques-

nematográfico em sua casa, calculada-

e “Trabalho ocasional de uma escra-

tão de mise en scène, já que sua função não é encenar, mas sim acrescentar um valor derivado da operação fotográfica (de apreensão), de choque contra a crueza da proximidade do que é físico, e não encenado. Embora a força desta cena esteja mais no valor (e na aproximação) fotográfico (a) do que na mise en scène, ela não deixa de ser uma colocação em cena, pois encerra uma ação completa e narrada em imagens: a retirada de um feto do útero, passo a passo.

mente cheio de livros e com iluminação de abajures (simulando um aconchegante escritório), o qual utiliza no seu último documentário, assim como entrevistas artificializadas (por exemplo, ele entrevista um filósofo simulando uma conversa telefônica sobre Brecht). Mais radical ainda me parece Eduardo Coutinho em seus “Jogo de Cena” e “Moscou”, filmes em que o cineasta questiona os limites entre ficção e realidade (documentada) e nos quais muito se falou que o documentarista parecia ausente, o que é interessante aqui porque na verdade sua ausência era também uma questão de mise en scène.

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A u rora Citando o Leonardo Bomfim (em comentário feito na saída do cinema após “Moscou”): Como se pode falar de um cineasta ausente, com aquela iluminação de isqueiros ao som de Roberto Carlos? Justamente, o estranhamento que Eduardo Coutinho causou nesses filmes foi por estar ausente como documentarista, no entanto, estava mais presente como orquestrante das cenas documentais, como um cineasta de mise en scène (levando a ideia literalmente aos extremos), o que não é exatamente an-

tônimo de “cineasta documentarista”, como também prova Alexander Kluge. Logo, o que separa um cineasta (de ficção ou documentário) da mise en scène não é um abismo de conceitos, mas uma postura diante de seu objeto. Colocar em cena é arrancar o movimento do mundo e reorganizá-lo com competência dramática. Falar de Fassbinder nesse contexto pode parecer óbvio e redundante, mas a cena de “Martha” onde o protagonista aperta o corpo queimado de sol da esposa contra o seu em um quarto de hospital, gerando uma ima-

Moscou (Eduardo Coutinho, 2009)

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Martha (Rainer Werner Fassbinder, 1974)

gem de dor em contraste com a calma do mar azul que se vê da porta da sacada, me parece uma das colocações em cena mais primorosas do cinema moderno. A cor rosa-choque do corpo de Martha, a marca das mãos dele no corpo dela e a atmosfera de morte “branca” do local3 compõem uma cena (das mais fortes do cinema novo alemão, e talvez de toda a história do cinema) cuja força só é possível atribuir à mise en scène especificamente cinematográfica, nesse caso de um cineasta que de fato devorava e arrancava as coisas do 3 Fassbinder afirmava usar muito a iluminação e o branco para despertar a consciência do espectador, já que na época se falava que o preto conduziria a uma calma - e consequente alienação - do olhar.

mundo, e cujo mundo no final já não se sabia se era da vida ou do cinema. A postura do autêntico orquestrante em cena, do mestre da mise en scène, não é uma postura no sentido de símbolo e representação, mas de posicionamento estilístico visceral diante da realidade e do cinema. Na mesma época (da literatura) de Kafka, a (teoria da) “Iluminação recíproca entre as artes” de Osckar Walzel já nos deu o recado em 1917: a arte é uma questão de postura diante do mundo, não de postulados diante dela mesma.

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Mizoguchi e o problema da mise en scène Francis Vogner dos Reis1 1 Pesquisador, professor e crítico de cinema cinema. e cinema, etc

A expressão mise en scè-

ne revela uma pratica – a de “colocar em cena” - e já levou muitos cineastas franceses a colocar nos créditos de seus filmes “mise en scène” ao invés do tradicional “direção”. Só que nos domínios da crítica a expressão, quando bem usada, serviu como distinção qualitativa, seja como elegia a determinados filmes (Jacques Rivette), seja como reconhecimento de uma vocação definitiva do cinema (Eric Rohmer), seja como categoria normativa (Michel Mourlet). O fato hoje é que o tema da mise en scène está em alta, tanto que a revista Aurora a transformou em pauta temática de seu primeiro número. O resgate da questão é visto por alguns com desconfiança como se ao trabalhar o problema da

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mise en scène a essa altura dos anos 2000 tentasse se girar a roda da História para trás na defesa de um classicismo tardio. Para outros, a questão é retomada com o intuito de tirar o estigma de anacronismo da mise en scène (nos filmes e nas ideias) e afirmá-la em suas prerrogativas dialéticas e imanentes em uma época em que pululam imagens de natureza contemplativa, de aleatoriedade difusa e rarefeita, que inclusive, encontrou em certa crítica contemporânea uma defesa e um repertório léxico próprio. A dissertação de Luiz Carlos Oliveira Jr. (não por acaso entrevistado nessa edição) “O cinema de fluxo e a mise en scène” é provavelmente o trabalho realizado no Brasil de maior vulto sobre o tema.


Aurora A mim foi pedido um texto breve sobre Kenji Mizoguchi nessa edição. A escolha do autor é certeira, no sentido de que foi ele historicamente quem melhor representou o metteur en scène, levando inclusive Rivette a escrever que a linguagem universal do cinema era a mise en scène. Dito isto é preciso assumir que a empreitada de escrever sobre o cineasta a essa altura é um pouco intimidatória, pois me sentiria compilando um The Best of da crítica francesa sobre ele ou de maneira menos inspirada (e mais honesta), fazendo um inventário pedagógico do estilo do cineasta como já fizeram melhor alguns teóricos americanos. Em ambos os casos eu me sentiria embalsamando a ideia da mise en scène e a transformando em disciplina e regra. Ainda por cima localizaria a mise en scène nos anos 40 e 50. O fato é que esse trabalho já foi feito e de forma melhor do que eu faria. Como sou defensor que a questão da mise en scène não se encerrou no início dos anos 60, de que ela não é atrelada a um modelo clássico vazio e de que tratar dela não é uma refratária reacionária, me dou o direito de não apresentar o autor como se fosse um monitor de museu. Por isso não vou me limitar aqui a fazer só uma apreciação de Mizoguchi. Se há alguns

anos escrevi sobre Contos da Lua Vaga para a revista Paisà, foi sem conhecer a obra do cineasta ou a maior parte do que havia sido escrito sobre ele. O filme foi um choque e o texto foi um jorro. Hoje isso não seria mais possível (ao menos para mim) e me sentiria macaqueando a Cahiers du Cinèma editada pelo Rohmer. Por isso me sinto mais à vontade ao pegar Mizoguchi para problematizar a mise en scène, tal como ela é vista e tratada hoje. Kenji Mizoguchi foi valorizado no Ocidente a partir disso que se convencionou a chamar de mise en scène. Jacques Rivette, Jean Douchet e Jacques Lourcelles elegeram esse ponto de vista nada sistemático (porém, prático como qualquer ofício) para propor uma compreensão mínima do enigma Mizoguchi: que filmes eram esses em que os fantasmas se materializavam para desassombrar a morte? Em que o amor se perpetuava no tempo como força cósmica fazendo convergir o céu e a terra? Que obra é essa em que os homens e as mulheres são seres desgraçados fadados a uma compaixão mais forte do que a morte? Temas estes muito poderosos, sem dúvida, que poderiam inclusive incorrer no equívoco de discu-

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A u rora

Utamaro e suas Cinco Mulheres (Kenji Mizoguchi, 1946)

tir o conteúdo dramático e não a sua forma efetiva. Por isso era importante falar sobre o modo como essas questões se constituíam em filme. Daí a mise en scène que parece ter surgido, em parte, como conceito para defender filmes em que a forma parecia intrínseca ao relato (como fusão de um no outro, por isso o classicismo como ponto de partida) e chamava pouca atenção para si mesma (Hawks, Preminger e Lang, sobretudo). Portanto, nada mais natural que o fato desses críticos preferirem as harmonias de Mizoguchi ao formalismo de serena extravagância de Ozu. | 56 |

Mizoguchi foi um dos cineastas que melhor condensaram os predicados do que seria a mise en scène, porém ele não criou um modelo1 . E condensar não é só juntar, articular, montar ou falsear procedimentos cinematográficos e animar elementos cênicos, mas integrá-los de modo que reconheçamos esse conjunto orgânico em movimento, sem confundir seus elementos e nem separá-los. Os travellings em Mizoguchi são exemplares nesse sentido: o deslocamento do personagem é também o movimento 1

Não existe um sistema Mizoguchi, assim como não existe um sistema Lang, Preminger... quanto à Hitchcock, tentou-se até forjar um “sistema Hitchcock”, porém seus melhores discípulos sempre vêem seus filmes como “imagem base” não como sistema acabado de mise en scène.


do drama e, de modo bastante clássico, o movimento do homem e do mundo são um só. Dessa maneira os travellings como os das últimas sequências de O Intendente Sancho, Contos da Lua Vaga e Os Amantes Crucificados fazem do destino dos personagens não um mero relato encenado, mas uma tragédia cósmica (o céu pesa arduamente sobre a terra, a luz e a sombra criam um embate e assim dão forma à realidade, a morte e a vida fazem parte de um só movimento...), assim como o travelling da

exibição das cortesãs à beira do lago em Utamaro e suas Cinco Mulheres deve ser mais exemplar do fascínio estético no protagonista ao se encantar com a beleza das mulheres (vistas mais como uma força da natureza), do que com corpos em uma coreografia programada. Há também a violência dos planos-sequência que possuem uma serenidade que não se deixa acometer pela urgência do contexto. Isso se faz sentir na concentração de brutalidade nas composições de plano fixo com ruínas e prostitutas

O Intendente Sancho (Kenji Mizoguchi, 1954)

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no Japão do pós-guerra em As Mulheres da Noite e no peso gravitacional da câmera nas cenas de luta de Os 47 Ronin. Tudo isso não consiste só em truque de linguagem, preciosismo de estilo e virtuosidade técnica. Existe isso também, mas não só isso. O pintor Utamaro, um dos personagens mais interessantes do cinema de Mizoguchi, ao olhar as gravuras de uma gueixa feita por um artista de técnica talentosa, educação ilustrada e traços precisos, disse, “o desenho é mui-

Os 47 Ronin (Kenji Mizoguchi, 1941)

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to bonito, mas falta vida”. Desse modo, Utamaro se apressou a dar seus toques ao desenho para que a gueixa ao menos ficasse mais verdadeira (não mais realista, não mais mimetizada). Talvez esse exemplo vindo do próprio universo do cineasta nos ajude a fazer as distinções certas entre a mera encenação bem realizada e aquilo que chamamos de mise en scène, menos como prática efetiva e mais como ideia crítica que norteia a apreciação de um efeito cênico singular


A ur o r a

Contos da Lua Vaga (Kenji Mizoguchi, 1953)

O fato é que a apreciação da obra do cineasta japonês está entre os grandes momentos da crítica, pois foi quando ela se propôs a organizar e apontar o que um mero trabalho de análise de procedimentos e estilo demasiadamente objetiva poderiam deixar escapar: a complexidade com a qual (e na qual) um filme se constrói, um universo que se faz a partir de um trabalho formal e de um drama que se articulam e se fundem. Perante isso, a vertigem do espectador não é simplesmente uma experiência de passividade sugestionada, mas um enga-

jamento ativo do olhar. A mise en scène seria, diferente do que diriam nos anos 60 e 70 os críticos do cinema clássico, o que proporciona um engajamento ativo do olhar do espectador, não seria assim uma estratégia de conciliação, e nem mero fascínio deslumbrado. Por isso, tiremos da conta da mise en scène a pecha de classicismo vazio, de neurose passiva, considerações essas que envelheceram tanto quanto a defesa intransigente da mise en scène como natureza fundamental do cinema e do realismo como condição absoluta e ontológica.

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A urora Só que por outro lado falar em mise en scène – como provam alguns textos e contextos atuais - se tornou (hoje) um exemplar de preguiça terminológica que tende a partir desse conceito como encurtamento de um caminho árduo na relação crítica com um filme. Mostrar um plano ou uma sequência e dizer que ali “há um trabalho maravilhoso e rigoroso de mise en scène” (ou que há problemas derivados da mise en scène), ou que “existem problemas no filme, porém uma bela mise en scène”, não diz absolutamente nada, pois neutraliza os efeitos singulares da mise en scène. E mise en scène (“colocar em cena”) não é colocar e animar um personagem em um palco vazio, não é uma tenda com estrutura armada – mesmo que suntuosa e colorida - onde se monta um espetáculo, ela é em um só movimento: o lugar, a ação e o tempo. Recomendaria aos críticos, inclusive, que usassem a expressão mise en scène só quando absolutamente necessário. Mise en scène se tornou um assunto rotineiro quase como se fosse uma modalidade tradicional de trabalho no cinema, um princípio ou mesmo um postulado teórico, quando na verdade ela sempre foi vista como uma realidade objetiva dos filmes, porém que transcende esquemas muito estreitos | 60 |

e ortodoxos de trabalho. Reconhecese nela um método, não uma receita; uma moral, não um sistema formal; um olhar singular, não um modelo de cinema. Pode até mesmo se reconhecer uma tradição específica na qual os filmes se inserem, um trabalho de cena com atores e com o espaço, mas na origem do uso desse termo na crítica, mise en scène só foi usada para apontar a exceção, a grande exceção. Mise en scène não seria algo que todos os filmes têm de modo muito fácil (como se houvessem bons e maus metteurs en scène), mas aquilo que só alguns filmes atingem plenamente, não por meio de um estilo específico, de um esquema ou de um conjunto de regras. Mise en scène não seria um exercício, mas um segredo. Mizoguchi era um cineasta que conhecia o segredo, não era o único, mas foi um dos maiores. E se esse segredo, que só pertence ao ofício da arte, tem alguma força é porque ele não se apresenta a todos os artistas da mesma maneira, pois sequer se apresenta a todos. Para Rivette a mise en scène é algo que surge entre o segredo e a regra. O caminho para chegar a ela e também para discutila é tortuoso e é bom que assim seja.


De Mallarmé a Tarkovski: mise en scène espiritual Nathália Rech1 1

Na estância da poesia e ima-

gem, o poeta Sthéphane Mallarmé se sobressai como entusiasta da relação entre ambas. Sendo preceptor daquilo que Pound cunhou como imaginismo, o poeta francês ia além de fanopéias. No século XIX, em paralelo com Apollinaire que mais tarde publicava seus caligramas em Le Figaros à fora, o escritor deu um novo nível de sensibilidade ao corpo do poema. Foi ao escrever, ou melhor, compor Um Lance de Dados que Mallarmé chamou a atenção para a imagem tátil e anatômica do poema – longe das metrificações firmes e sufocadas do passado – aumentando seu impacto visual preocupando-se com o sentido do olhar.

Estudante de jornalismo da PUCRS

A experimentação gráfica do poeta, berço da poesia concreta no Brasil e da visual no mundo inteiro, ainda jogou com questões de simultaneidade e discurso, e obviamente, não só criou novas formas de exposição como também novos tipos de leitores, mais entrosados e presentes. Ainda assim, a questão do rompimento de linearidade é um dos sopros mais energéticos que resultou dessa sua criação. No prefácio do poema, Mallarmé antevê as futuras possibilidades da poesia – a qual que ele colabora ao revolucionar com seu poema. Ao rejeitar for| 61 |


Fragmento de Um Lance de Dados, Sthéphane Mallarmé, 1897, publicado pela primeira vez em 1914)

mas herméticas de realização, o poeta

que o poeta chamou de mise en scè-

amplia o espectro de força do poema lhe

ne espiritual, e o resultado de tudo isso

dando possibilidades gráficas (novas for-

é o emprego nu do pensamento, com

mas de organização), que somado a mu-

direito a seus retrocessos, fugas e pro-

sicalidade da obra cria uma “arquitetura

longamentos. Ou seja, palco à serviço

visível” e intensa. O que faz, segundo ele

da evocação de sentimentos e idéias.

mesmo, é valer-se de recursos de forma estética (tipografia, disposição...) para

criar “subdivisões prismáticas da ideia”,

ambiente, engenhado fisicamente, lança

ou seja, um conglomerado de relações

diversas ruelas de pensamento, e nos

temáticas. Essas relações deságuam no

convida para transitar nesse espaço.

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Portanto, o poeta cria um palco-


Aurora

Esse poema investiga o absolu-

to da linguagem, os esconderijos dos símbolos universais. Ao mesmo tempo, sugere um silêncio para que tudo isso triunfe, que é caracterizado pelos espaços vazios da folha, a qual esculpe graficamente como uma argila é afetada por mãos (As palavras são tijolos, mas cabe a alguém organizá-los). Segundo o pensamento do poeta, podemos deduzir que o modo como os elementos se relacionam com esse vazio, de forma quebrada, brusca, alinear, somado aos restantes dos elementos visuais (arranjos do palco) e as inclinações de sentido que cada trecho proporciona, gera um campo espiritual, já que o sentido encontrase no todo, em suas tensões e nas sensações obtidas da cenografia em geral. Assim, como definiu Mauro Faustino, o poema trata-se de uma obra completa pois trata de tudo, consegue despertar o leitor com seu envolvimento, mesmo que ele não tenha uma visão objetiva do que se trata. Cada parte revela uma versão do todo que se estabelece sendo a aura da obra. É de se pensar que quem fala de tudo na verdade não fala é de nada – porém, é daí que vem a força da obra. Não se fala, se sente, e a mensagem às vezes parecida às vezes não

ressoa – não há como sair indiferente. O poema é entendido como um espaço de construção de sentido. Mallarmé acaba assim fazendo um convite ao leitor. Ao criar uma cena interior ele depende de um receptor, carregado de uma certa profundidade perceptiva, para tornar consistente seu texto. O espiritual, ideia mais interessante lançada pelo poeta em seu poema e no prefácio desse, vem da junção entre o espaço real e o mental, sendo o mental dependente do leitor. É sabido que Mallarmé era um fã assíduo de teatro, defendendo que essa arte em nada era inferior aos feitos da literatura. Pensava que o palco como “o centro evidente dos prazeres sentidos em comum”. Se estivesse vivo durante o desenvolvimento do cinema, com certeza seria um entusiasta dessa arte já que era da alma. Porém, mesmo não estando vivo e atuante durante esse período, Mallarmé está muito acordado para nos ajudar a entender como essa arte relaciona-se conosco. Ler o poema Um Lance de Dados não é se defrontar com fronteiras de escolas literárias, ou pensar a métrica do verso – por exemplo. Mas sim, pensar sobre o anseio principal de uma obra de arte

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A u rora que costuma intuir o esboço interno e sensitivo do indivíduo, a camada mais nobre desse, ou seja, a espiritual. Assim da mesma forma com que Mallarmé fez isso com tipos gráficos e o pintar das palavras na folha, ao nosso ver, no cinema, Tarkovski consegue resultado semelhante. Ao lermos as idéias mallarmenianas, fica impossível

não pensar nesse cineasta, que antes de tudo era também um poeta assumido. Veremos como o pensamento de ambos consulta uma fonte parecida, não só em relação a arte como a própria linguagem em si. Se Mallarmé friccionou a linguagem da poesia escrita até que resultasse daí faíscas de novas idéias, Tarkovski se debruçou sobre os elementos cinematográficos chegando até a afirmar cer-

O Espelho (Andrei Tarkovski, 1975)

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ta vez que seu desejo é construir – se a tecnologia a disposição o permitisse – um filme inteiramente composto em primeiro lugar dos recursos mais próprios do cinema (e não heranças características de outras artes). Além de diversas semelhanças, que iremos tratar nesse texto, há algo que chama bastante a atenção. Ambos utilizam a expressão mise en scène espiritual para ajudar a explicar suas obras. Um impacto estético, que se põe a estimular a subjetividade, parece que é o que ambos se propõe a fazer, exaltado assim a poesia nata. Na apresentação de seu livro “Esculpir o tempo”, Tarkovski conta que o mote que o inspirou a escrever a obra foi a quantidade de cartas recebidas por espectadores que afirmavam terem gostado de seus filmes, embora - pouco os compreendessem. O cineasta russo pode até ser um artista de difícil assimilação, porém, não podemos negar que preserva um grande desejo de comunicação.Tarkovski não subestima ninguém, ou espera que caiam no seu jogo, nas correntes de suas narrativas. Ele convida. Vamos pegar como exemplo o filme O Espelho. O filme aparenta ser composto

por diferentes espaços de tempo, lapsos de situações que podem ser reais ou não, imagens-sensações, inserts poéticos. É uma obra de diversas portas que cabe a alguém escolher o caminho que será feito por elas. Ao abraçar esse tipo de situação o que o autor faz não é afugentar o espectador de sua linha de raciocínio, mas sim, chamá-lo para participar da obra ao fornecer uma possibilidade de interpretações, e assim, resultando uma resposta de sentido que pode ser comum ou individual. Ainda por cima, o filme possui abertamente um caráter autobiográfico (há até poemas lidos pelo próprio diretor de autoria de seu pai) o que acrescenta um maior intimismo, liberdade para o subjetivo. Tarkovski almeja interagir com seu público através desse intercâmbio. Sozinho, o filme existe enquanto obra estética. Aliado ao espectador, o filme ganha um lugar de sentido. Jean-Louis Boisser tem um termo que define esse tipo de encontro, ao qual chama de imagem-relação. A palavra relação é usada para caracterizar objetos (aqui planos e cenas) que solicitam uma intervenção afetiva de seus destinatários.

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Por não ser direta, a subjetividade poética exige sempre um cúmplice para chegar a um significado ou até a uma história, sendo o espectador essa pessoa. Portanto antes de mostrar a imagem, e principalmente o entre-imagens, o que existe não é a necessidade de informar e contar, mas sim um desejo de sentir e impactar. Estimular sensações e empatias, e a partir daí entregar o convite da reflexão, parece a vontade primeira que esse universo se propõe.

a plataforma era “alienante às massas”, o cinema tarkovskiniano prova totalmente o oposto disso. Não é apenas o livro, objeto de principal culto intelectual, que pode despertar o indivíduo o tornando atuante. Mesmo o espetáculo cinematográfico sendo um dependente dos meios materiais e espaciais (concretos), ele pode criar um entrosamento com seu receptor o tornando ativo. Níveis de camadas sensoriais.

as aparências. São imagens que não são

Nos guiarmos pela visão é uma tarefa fácil. A ideia de cinema nasceu da vontade de igualar-se a um registro correto à ela. Por isso que fazer uma obra cinematográfica que dialogue mais com a imagem interior (pelo espectador gerada mentalmente) do que simplesmente com as imagens exibidas é como definiu Rohmer um além-cinema. Essa questão da excitação do subjetivo e indireto nos é vista também como uma criação espi-

apenas miméticas, que mesmo por se-

ritual, possuidor de uma aura. Embora

rem caracterizadas pelo elemento mo-

exista diversos fatores que contribuam

vimento vão além da representação da

para a lapidação desse estado no cine-

ação (o devir do sentido não cessa após

ma, procuraremos nos focar na relação

o corte). Diferente dos primeiros crí-

entre esse conceito e a mise en scè-

ticos da invenção cinema, que carregavam um pessimismo por acreditar que

ne. Vimos a igualdade de efeitos, tanto

O retrato do corpo, mas sim a apreensão do espírito. Essas características se encontram com uma idéia de Rohmer, sobre um tipo de obra que não salienta apenas o que o físico pode nos mostrar, mas também um “paraalém dos fenômenos, de uma alma ou de um todo outro princípio espiritual”. Trata-se de um filme que transcende

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em Mallarmé como em Tarkovski, em


A ur o r a relação ao diálogo com o espectador. Falamos também da questão estética e da necessidade de uma criatividade estética para impactar esse e se aproximar a estranha palavra “espírito”. Agora, vamos nos prender mais ao objetivo eixo desse texto. Usaremos para nossa investigação uma expressão advinda do teatro, citada pela poesia e usada no cinema. No livro escrito pelo cineasta russo, citado anteriormente, um dos momentos valiosos é quando o autor nos relata seu sentimento em relação a um de seus filmes antigos, A Infância de Ivan. Essa obra foi lançada em 1962, e é um filme bem trabalhado, dotado de requintes, planos memoráveis. Segundo Tarkovski, esse foi também um teste que, caso fosse aprovado, atestaria seu talento e direito de ser diretor. Por isso, fora pensado nos mínimos detalhes as escolhas estéticas (o que é bem visível para quem assiste). Cenários, transições, silêncios, cenas e episódios recebiam o máximo de atenção. A representação do real e a reconstituição exata da memória eram bandeiras usadas. Porém, eis o resultado para o cineasta: feito tudo isso, a realização total pareceu inexpressiva, e embora os elementos

fossem mostrados de forma precisa, não causaram nele emoções estéticas, longe de causar associações poéticas. Bom, é de se pensar. A partir daí, o artista firmou em seu pensamento a importância da memória como elo de ligação entre a obra e o apreciador. Se uma recordação pessoal fosse devidamente expressada, a sinceridade que jorraria dessa mexeria com as percepções do espectador. Todo esse curso de idéias se concretizariam na experiência de realizar o filme que falamos anteriormente – O Espelho. “ E se o personagem não fosse mostrado, mas seus sonhos, suas lembranças, e pensamentos fossem a própria história do filme?”. Para o artista há aspectos da vida que só podem ser entendidos pela poesia. E no cinema não são efeitos especiais ou truque que ajudarão nessa missão.

O impacto emocional, a sensação

da arte é passada através da energia espiritual que o artista impregnou a obra nos diz ele. Mas não é a intenção levar a um desfrutar individual. A arte é a ânsia pelo espiritual, e ainda mais, pela comunicação, comunhão, que obviamente é por ela atingida. Ainda nesse pensamen-

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A u rora to, Tarkovski cita Ovídio: “A arte consiste em ocultar a arte”. O filme não é um jogo e o diretor o dono das regras. O que interessa não é adivinhar o final, se o mundo será salvo da terrível catástrofe ou se o casalzinho ficará junto até o desenvolvimento de uma franquia. Embora a sinceridade do autor seja um dos princípios mais importantes, ocultar as concepções dele faz bem à saúde da obra. Portanto, fica o sentimento, descarta-se o rumo concreto. São os “primas de idéias”, geradores de sentido, que nos falava a pouco Mallarmé. Diversas idéias, e não uma idéia. E como passar isso tudo? O que difere A Infância de Ivan e O Espelho? Poderíamos agora ouvir ressoar a conhecida afirmação de Mourlet “tudo está na mise en scène. A legislação bem elaborada no corpo dos atores, o manuseio dos cenários e dos movimentos físicos, em tese, gerariam a apreensão do real, e seria isso a medula do cinema. Dar forma ao mundo juntamente com a verdade fotográfica da câmera. A administração física (posição de atores, objetos, etc), a harmonia dos travellings de Otto Preminger com seus objetos, é isso que pode fazer um filme um bom filme.

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A idéia de mise en scène, ligada

a filmagem de um real bem disposto a representar ficcionalmente um real acreditável, é o essencial dessa mise en scène. O palco que Gene Rowlands usa para mover-se em Noite de Estreia, a delimitação seja dele ou de um plano, é uma reposta mais imediata. Porém, Tarkovski amplia esse conceito. Se para ele a realidade é realidade quando há comunicação de sentimentos pairando, sua idéia de fazer cinema alia-se a isso. Não trata-se então de condições mecânicas, exatidões e sequências lógicas. É preciso preparar o ambiente para levar a mensagem, criar um estado de espírito. Acreditar no acontecimento depende que a mise en scène elaborada tenha um que de incongruência, extra-ordinário (há algo mais real que isso?) o que leva o espectador a acreditar no acontecimento e além disso, guarda diversos significados em sua raiz. Não só o simplismo da passagem de uma idéia (Eisenstein) faz da mise en scène um sucesso. Não só transmitir o significado, mas sim, fazê-lo ser uma surpresa, um acordar diferencial. Na lógica do simplismo é muito fácil nascer clichês, esses sempre aliados as pobrezas de significados.


Tarkovski retoma a literatura para trazer suas principais preocupações que segundo ele definem a mise en scène desejada. A imaginação e a emoção geradas pelo episódio final do livro O Idiota, de Dostoievski, a alta tensão psicológica dos personagens, que aumenta no cenário onde eles se relacionam, é usada para demonstrar que na mise en scène de cinema esse tipo de complexidade também

precisa existir. Nesse caminho, partir de um relevo psicológico para depois encontrar o ambiente tátil, passível de ser fotografado, é a melhor escolha a tomar Trabalhar os personagens em uma “dinâmica interior da atmosfera da situação”. Manusear o extra-material da cena, o espiritual. Repassar estados de espíritos pela tela para gerar conseqüências semelhantes. Passar não apenas a ima-

A Infância de Ivan (Andrei Tarkovski, 1962)

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gem visível e de compreensão mais agilizada, como também, talvez, a imagem como pensava filosoficamente Leibnitz: dotada de uma certa confusão resultante de diversas possibilidades de idéias. Tanto Mallarmé quanto Tarkovski buscam gerar cenários que evoquem estados de espíritos, a natureza mais sensível de que com eles se relaciona. Ambos falam muito de forma, mas é uma forma necessária para encontrar o espiritual dentro da matéria. Ambos também buscam a ascensão do absoluto em seus trabalhos, um absoluto que é a manifestação do infinito. Além disso, não há nada que defina um filme ou poema a não ser o próprio poema ou filme. Não trata-se apenas de uma mise en scène bem pensada. As estratégias dos artistas são muitas para seduzir a subjetividade, incitar a memória, o sentimento. Os signos semelhantes, ou aplicados com intenção parecida. Mallarmé usa letras graficamente diferentes, enquanto Tarkovski costuma mudar a cor de cenas – uso de sépia, coloridos ou escala cinza em uma mesma obra. Enquanto Tarkovski afirma que a música, longe de

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algum acidente superficial, eleva o grau espiritual de onde é posta, a musicalidade é para Mallarmé algo importantíssimo. Assim como o poeta francês utiliza a matéria prima do poema, a folha de papel, de forma presente e lapidadora na obra, dando respiros e vazios ao poema, o cineasta usa aquele elemento que para ele é a essência do cinema, quanto ao trabalho do diretor, que é o tempo. Tudo isso sem mencionarmos o poder das metáforas visuais de cada um. De qualquer forma a mise en scène espiritual, e os pensamentos em torno de suas profundezas líquidas, fazem parte da “lógica da poesia”. Nas palavras de Tarkovski, essa é a atração especial que o fez apaixonar-se pelo cinema. Ler um livro ou assistir um filme no cinema são atividades tidas como solitárias, isso se não fosse os malabarismos da arte poética a aparecer no caminho, insistindo em nos categorizar como humanos. Animais de sensível porte.


Aurora

O ecletismo de Brisseau Pedro Henrique Ferreira

1

1 Graduado em Comunicação/Cinema pela PUC-RIO. Escreve na Cinética e no blog coletivo Ladrões de Cinema; dirigiu o longa-metragem Mergulho, entre outros trabalhos. Organizou o cineclube CinePUC de 2006 a 2010.

“Não estou falando desses pobres coitados que por toda parte cumprem seu dever sem jamais serem recompensados por seu trabalho e que chamo de confraria dos chinelos do bom Deus. Sem dúvida, ali está a virtude em toda a flor de sua asneira, mas ali está a miséria. Vejo daqui a careta dessa boa gente se Deus nos fizesse a brincadeira de mau gosto de estar ausente no juízo final.”

Honore de Balzac, “Pai Goirot”.

Conhece-se

a predileção de Eric Rohmer pelo cinema de JeanClaude Brisseau desde ao menos La croisée des chemins, da ocasião de sua première num festival em 1975. O aclamado crítico e cineasta da novelle vague que nos anos cinquenta, “à época das estéticas e dos manifestos” (Aumont), se distanciava sutilmente tanto da ânsia

moral de Rivette/Godard quanto da fenomenologia macmahonista de Mourlet, lançando-se a uma teoria do Belo puramente cinematográfico, viria a se tornar, se não um mentor direto, um genuíno defensor e entusiasta dos rumos artísticos tomados pelo jovem professor oriundo de uma família modesta. Ora, o fortuito encontro entre o mestre e

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A urora o protegido novato não poderia dar num resultado diferente: é bem possível que Jean-Claude Brisseau seja o diretor da segunda metade do século que tenha seguido mais à risca as prescrições teoréticas e práticas do classicismo de Rohmer, um que, mesmo face à modernização estética pela qual o cinema passava, ainda o entende atrelado ao ideal do Belo, herdeiro da tradição neoclássica de Winckelmann a Hegel. Uma das faces da obra de

Brisseau, sobretudo nos filmes dos anos 80 e 90, é este exercício de economia dos meios expressivos, e de cautelosa ordenação destes meios, das regras da simetria e do ponderatio, o balanceamento dos elementos, dando atenção mais ao drama e à encenação do que à composição gráfica da imagem. No horizonte do mise-en-scène, é notável como a decupagem segue justamente o ritmo dos atores, dando ênfase a suas posturas, poses, respirações e gestos,

Os Indigentes do Bom Deus (Jean-Claude Brisseau, 2000)

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muitas vezes sublinhando-as pela tática da frontalidade ou o uso démodé de planos-conjuntos, e evitando qualquer “sobra” estilística imediata numa rarefação do quadro a fim de não romper a fascinação que tem para com eles – os ditames das discussões da Cahiers du Cinema nos anos cinquenta. Tudo caminha rumo a uma invariabilidade, a um apaziguamento dos sentidos literais que evita a todo e qualquer custo reduzir os objetos físicos a signos de linguagem, afinal, o cinema não seria uma linguagem. Certa vez numa entrevista, o fotografo e parceiro Roman Winding narrou a importância que Brisseau dava ao filete de luz criado pelos backlights que sublinham o contorno de seus personagens em inúmeras cenas. São recorrentes em todos os seus filmes, quiçá em quase todos os planos que faz. O sentido da luz que vem de trás da figura não é o que seria o tradicional, isto é, destaca-la do fundo. A intensidade pontual do filete cria uma espécie de silhueta angelical, saltando aos olhos mesmo nas imagens mais lavadas, onde a claridade preenche o quadro por inteiro e não há fortes áreas de penumbras (a rigor, o cineasta nunca foi um adepto do chiaro-

escuro). O que este filete faz mais precisamente é participar de um curioso tratamento de imagens que dá volume e profundidade ao corpo, à fisicalidade monumental da matéria num esforço radical de objetividade. A forma plástica de Brisseau não estende a profundidade de campo ou compõe entre a figura e o fundo qualquer relação naturalista mas, através deste halo perspectivo, encorpa uma figura e lhe dá presença, realidade, materialidade, em meio a um espaço vazio. Imerge e isola essa figura no espaço real e, ao isolá-la, idealiza-a. Não há sequer um espaço imaginário, mas apenas coisas reais num espaço real como formas absolutas. O procedimento poético não é de redução dos objetos físicos a signos de linguagem, mas o viés diametralmente oposto: a sublimação contínua da matéria até torna-la, por sua presença física imponderável, o objeto perfeito da Beleza ideal. É esta a interpretação que Brisseau faz das teses classicistas de Rohmer, e a necessidade da Arte de restituir “as coisas às próprias coisas” – podemos observá-la no procedimento de criação da imagem de Elodie (Coralie Revel) no leit motif de sua grande obra-prima, Os Indigentes do Bom Deus (2000) – a ex-mulher deitada

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ao leito, objeto perdido do desejo que o protagonista Fred (Stanislas Merhar) sempre vê quando fecha os olhos. A composição de luz e cor, o esvaziamento cênico ao essencial, o volume de seu corpo nu, sua postura curvilínea, o ângulo circular a la Canova com que estende o braço direito e toca a testa com a ponta das unhas, o cabelo crespo e volumoso, e o olhar fascinante que nos lança, o Belo com o qual nos seduz. É o conjunto de recursos de um procedimento heurístico que levará à exaustão em seus filmes seguintes, os três que chegaram aos cinemas aqui no Brasil, Coisas Secretas (2002), Anjos Exterminadores (2006) e A Aventura (2008). Esta orientação fortemente clássica não tem efeito somente no mise-enscène ou nas formas plásticas do autor, mas também nas tramas, principalmente as do primeiro momento de sua carreira. Seguem uma fórmula: jovens de infâncias traumáticas, que cresceram em famílias modestas ou em conjuntos habitacionais e se revoltaram contra o mundo, semelhantes ao de muitos filmes de Ray, emblemas típicos de burgueses

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angustiados ou dos movimentos operários, feministas, punks ou anarquistas tão típicos a partir dos anos setenta; e o choque-relação destes personagens com outras figuras ligadas ao ensino, seja em nível acadêmico, místico ou erótico, formando uma tríade cultural de polaridades (espiritualidade, cultura e erotismo) que, à seu modo, sempre se entrecruzam e transformam a vida desgraçada destes jovens abandonados, domando, nem que por algum tempo, sua violência. Por um lado, tais narrativas são reflexos de dois aspectos autobiográficos de Brisseau, ele mesmo oriundo de família humilde e por profissão, professor universitário. Por outro lado, são jornadas de reconciliação de toda uma geração consigo mesma (e não a toa, dada a proporção de suas diferenças, Os Indigentes do Bom Deus é do mesmo ano de Eureka, de Shinji Aoyama, outra jornada de reconciliação), uma geração mergulhada num vazio existencial que encontra neste misticismo cultural uma momentânea razão de ser, uma ordem maior do que o seu sofrimento, que pacifica as coisas, origina a Beleza, engendra uma forma de pureza e harmonia ra-


Aurora

Os Indigentes do Bom Deus (Jean-Claude Brisseau, 2000)

faelesca entre o homem e a natureza – é como a sequência de Indigentes do Bom Deus em que o assaltante aprende a ler, encenada numa poesia regada ao verde das gramas e ao amarelo do sol, entoadas por strings new age, que apontam uma forma de plenitude cotidiana, mesmo que esta seja entre assaltos a bancos e tarefas domésticas. E, como Rohmer afirma, o clássico não é justamente o instante em que “a Beleza segundo a

Arte e a Beleza segundo a Natureza pareciam ser a mesma coisa”? A Beleza não é “aceitar as coisas como elas são”? Mas a hipérbole clássica que o cineasta contemporâneo exacerbou a partir de Rohmer é tão somente uma das faces da moeda. A outra é ter extraído deste mesmo classicismo muitas possíveis tendências ecléticas, isto é, um estilo que abraça livremente for-

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A urora mas plásticas, convenções e gêneros ao bel prazer, sem apegos ou preconceitos, também uma concepção filosófica que concilia diversas correntes, apropriase de teses das mais diversas fontes e enxerga uma síntese ou conciliação maior nelas todas. Assim se explica o flerte com os gêneros, o humor negro de Indigentes do Bom Deus a conviver com o road movie, o drama pessoal e a tragédia grega a conviver com o surrealismo ou a comédia de costumes balzaquiana (que dá título à obra), a estrutura social marxista junto ao espiritualismo africano ou egípcio, a psicanálise freudiana com a consciência do grego antigo, o uso expressivo do mise-en-scène e o lirismo da poesia oral. Mesmo com um respeito supremo à encenação e ao volume das figuras, Brisseau aceita uma amplitude cromática enorme em seus filmes, ao ponto de, por muitas vezes, ter no mesmo quadro tons de cores díspares entre si. Da mesma maneira, leva ao ápice, senão ao limite do absurdo, a observação de que a decupagem reconfigura o espaço cênico, feita por Rohmer no artigo “Le cinema, art de l’espace” – por vezes, filma um mesmo ambiente numa lógica quadricular, exibindo

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todos os lados ao redor e ampliando, complexificando a cada corte, o espaço da cena somente com a angulação do fundo. Utilizando-se da simbiose desta pluralidade de elementos, Os Indigentes do Bom Deus é uma narrativa insólita que não diz “não” a nada, podendo ser o retrato de um Robin Hood contemporâneo ou o processo psicanalítico de transferência de um amor a outro. Mas é sobretudo um filme plácido, sincrético, clássico, pois procura uma lógica existencial e uma visão do mundo empírico mais ampla que explique a possibilidade de coexistência de tantas coisas. Todo o cinema de Brisseau se baseia nesta dialética entre sua consciência clássica e uma visão eclética do mundo. No fundo oco desta dualidade, nos deparamos com um sentimento profundamente trágico. Um que nos remete ao determinismo-libertário de Racine, à aparição de anjos para incitar as vontades humanas através da paixão e, na maioria das vezes, erigir a catástrofe por causa dela. O amor e a sexualidade são temas privilegiados no todo da obra de Brisseau por que são eles que suscitam o fascínio, o meio através do


qual estes anjos tocam e incitam as vidas humanas, pelo qual o caos do universo e esta força de ordem absolutamente incompreensível ao intelecto age no mundo dos homens. O caráter trágico de sua obra nasce do fato de que todas as correntes, formas de pensamento, mitos ou corpos são incapazes de desnudar o véu da elevação em si mesmo. Vemos a matéria sublime, o corpo nu como representação (ou melhor, como forma) do Belo, mas o essencial, isto é, a sublimação como gesto do criador, a origem mesma desta Beleza, é um fato místico insondável – um que dá toda a graça da vida, mas que ao mesmo tempo também pode lhe retirar todo o sentido, ao ponto de levar alguém a jogar gasolina no próprio corpo e se queimar. A jornada de Fred em Os Indigentes do Bom Deus é uma jornada de transição entre a sublimação de dois corpos diferentes, da esbelta e sensual Elodie que lhe abandonou para se tornar modelo de uma campanha publicitária e habitar a high society de milionários corruptos - fio da meada que se desenrolará em seu filme seguinte, Coisas Secretas - até o da acanhada Sandrine (Raphaele

Godin), sua amiga que está a seu lado, que lhe ensinou a ler, que convive com ele e está “sempre presente”. São dois corpos, duas distâncias diferentes, mas um e mesmo processo de sublimação da matéria que eleva as coisas ao Belo, e não a toa, o diretor troca as atrizes, mas a estratégia de composição das imagens é a mesma. No sistema classicista das artes ao qual Brisseau parece aderir, se não há lugar no cinema para o exagero do ut pictura poesis, há ainda uma regra clara e diretamente relacionada ao idealismo de Rohmer: por mais que as formas técnicas mudem, umas sejam mais velhas, outras mais modernas, por mais que os métodos de criação e uso pessoal das ferramentas disponíveis se transformem de artista a artista, e por mais até que os corpos ou signos adequados para cada veículo sejam diferentes uns dos outros (e na confusão gerada pela indiscernibilidade destas diferenças é que se encontra toda a tragédia do mundo), o processo místico de sublimação da sua matéria ao status de Belo é ainda e sempre a única função cabível a uma forma de arte da qual o Cinema, por mais que moderno, não estaria isento.

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Em busca de uma mise en scène pictórica Leonardo Bomfim1 1 Mestre em Comunicação Social pela PUCRS. Pesquisador de cinema. Edita o blog freakiumemeio.wordpress.com

O ponto de partida é Raoul Ruiz. De certa forma, um ponto de partida esperado, trata-se de um cineasta que assume as imagens como poucos, tanto em composições atípicas, de forte deslocamento visual (por exemplo, um personagem parece muito maior do que o outro, ou então vemos elementos em primeiríssimo plano – velas, pés, cigarros – enquanto a ação ocorre ao fundo), quanto em incansáveis brincadeiras com a textura, valendo-se de lentes, filtros e luzes. Somos sempre forçados a olhar, a entender o quadro. Não é estranho, portanto, que o chileno tenha encontrado no cinema o espaço ideal para problematizar a imagem. É o tema central de A Hipótese do Quadro Roubado (1979), filme em que Ruiz constrói e descons-

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trói uma série de pinturas, interrogando, inclusive, as possibilidades de uma mise en scène pictórica. Justamente o nosso problema: a mise en scène pictórica. No desfecho da década de 1970, falar de mise en scène em termos pictóricos talvez nem surpreenda – pelo menos desde os anos 1950 o cinema se viu muitas vezes diante da pintura como a sua grande referência estética, essencialmente nos momentos de ruptura –, mas é sempre importante lembrar que o conceito vem do teatro. Por mais que o cinema o tenha absorvido de forma muito livre, a julgar pelos escritos franceses nos anos 1950, um fantasma teatral permanece. Porque há a cena: o pôr em cena significa uma virada importante


Aurora do teatro no século dezenove, marcando justamente a passagem do teatro do texto para um teatro que buscava uma presença física mais acentuada. Em suma, quando o teatro ganha vida para além das palavras. A vida (e também a cena) na pintura existe, é evidente. Mas é outra. São visualidades diferentes. E é justamente sobre isso que Ruiz se debruça em A Hipótese do Quadro Roubado, a vida por trás, diante, e – fundamental destacar – na pintura. Forçando logo uma tensão entre o teatro e o cinema, lembro de uma determinada cena em

que o protagonista comenta que a mise en scène de um dos quadros é teatral, pois um facho de luz impossível, distante de qualquer janela ou abertura externa, invade a imagem. Na longa explicação, ele encontra uma resposta: um espelho reflete a luz original e cria a ilusão. O teatro, segundo Ruiz, não como a cena, mas como a luz ilusionista. Se lembrarmos que, historicamente, o pintor Lumière representa o real e o metteur en scène Méliès representa a ficção, a abordagem de Ruiz, mesmo que por outros caminhos, parece comportada.

A Hipótese do Quadro Roubado (Raoul Ruiz, 1979)

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A urora A separação entre o teatro e a pintura é um ponto importante se quisermos encontrar uma mise en scène que fuja de seus predicados iniciais. Em Ruiz, parece ser questão de guerra. Aparece novamente, dessa vez sem digressões teóricas, no emblemático A Cidade dos Piratas (1984). Logo na primeira cena, há uma tensão destacável entre as atrizes e a câmera. Uma tensão entre a ação e o quadro. Como pensar o pôr em cena quando a câmera recusa a cena, ou pelo menos o que deveria ser a cena? Pois na cena inicial de A Cidade dos Piratas,

as personagens passeiam (e falam) livremente enquanto a câmera demonstra certa ansiedade para construir uma imagem, os corpos entram e saem do quadro e a câmera de Ruiz, num movimento suave mas insistente, permanece obcecada pela janela. Não parece ser no sentido da “janela aberta para o mundo”, expressão renascentista de Leon Battista Alberti que muitas vezes foi aproximada ao cinema, a impressão é a de que Ruiz busca a janela no sentido oposto, da moldura mesmo, de algo que define uma imagem, que seleciona um espaço

A Cidade dos Piratas (Raoul Ruiz, 1984)

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que deve prender toda nossa atenção (anulando, inclusive, muito do potencial narrativo do que está fora de quadro). Fica claro que a tensão imposta na cena inicial carrega um quê de manifesto, pois a partir dela todos os planos trazem os personagens grudados na imagem. É o termo exato: grudados. Como se Ruiz confirmasse seus princípios cinematográficos ali, os corpos que ignoravam a câmera (e que, num jogo recíproco, também eram ignorados) agora só existem em função dela, fazem parte de uma composição visual. Podemos ver nesse gesto uma ruptura com certa tradição teatral no cinema (seja ela aplicada ao cinema clássico ou ao moderno) de que a imagem se faz em função do corpo do ator. Em contraste, a mise en scène do chileno impõe o corpo do ator à imagem. Especialmente em dois aspectos, a mise en scène de Ruiz apresenta uma relação evidente com a pintura: o primeiro, já vimos, é quando tudo está em função do quadro. Já o segundo é a quebra com a relação sintática entre as imagens, um dos princípios básicos da decupagem clássica. Se seguirmos as premissas de André S. Labarthe, Ruiz já pode ser visto como um cineasta pósmise en scène, sobretudo porque suas

imagens carregam uma forte narrativa em si. Nesse sentido, é previsível apontar Raoul Ruiz como um pintor. A pintura é escancarada em sua obra. Sendo bem coloquial: seus filmes se parecem com pinturas num sentido imediato, não é preciso refletir muito para entender a proximidade. A Cidade dos Piratas, por exemplo, deve a alma ao acervo surrealista, especialmente a René Magritte. Mas essa evidência pictórica faz de Ruiz um cineasta com uma mise en scène pictórica? Não estaremos refazendo, com algumas pequenas distâncias, aquilo que Serguei Eisenstein já propunha na década de 1920: a separação entre o pôr em cena e o pôr em quadro? A interrogação no meio de uma evidência só deixa uma escolha: voltar à estaca zero. Literalmente, voltamos à estaca zero do cinema: Louis Lumière, o pintor Lumière. É estranho que costumeiramente se coloque o pictórico no sentido de uma ruptura, discurso que remonta aos anos 1920, período em que era questão de honra declarar guerra ao teatro e, conseqüentemente, optar pela imagem (e pela montagem) para situar o cinema como arte autônoma. Esse é um caminho que costuma tomar quem pensa o cinema a partir de D.W. Grifitth

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– ou até mesmo de Méliès. Mas fica um buraco enorme. Porque Lumière, aquele que se inspirava em Cézanne para realizar alguns de seus filmes, tirou o cinema da costela da pintura. Foi Jean-Luc Godard (ou Henri Langlois, a paternidade é sempre discutível) quem determinou que Lumière era um pintor,“que filmava as mesmas coisas que Monet pintava”, o último pintor impressionista: um moderno. Godard reafirma isso, via Jean-Pierre Léaud, em A Chinesa (1967). Num primeiro momento, parece mais uma bravata, uma típica provocação godardiana daqueles tempos, mas traz uma questão significativa, abrindo um caminho interessante para encontrarmos uma possibilidade de mise en scène pictórica que fuja da evidência pictórica. Pois esse tal fim do impressionismo que Lumière secretamente decretou, na verdade pode ser entendido como o ponto de virada da arte, o momento em que muda a grande questão da arte moderna. Nesse sentido, o impressionismo mais parece anunciar o fim da arte moderna do que o seu surgimento, como pedem alguns historiadores. Na segunda metade do século dezenove, encontramos em boa parte dos escritos dos artistas um drama que,

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de certa forma, possibilita (e justifica) a existência do impressionismo: a relação entre o artista e o mundo, aquilo que estava entre a sensibilidade do artista e o mundo em seu aspecto virginal. Este era o sonho. A realidade que vemos nas obras é justamente a impossibilidade de fazer da arte a relação entre o artista e o mundo. Era inevitável que o pôr em obra escancarasse a sensibilidade do artista no jogo de forças com o mundo, este objeto tão sagrado quanto utópico. Seguindo premissas bazinianas, Michel Mourlet destaca a questão com uma precisão cirúrgica em seu famoso ensaio Sobre uma arte ignorada: A arte sempre havia sido uma mise en scène do mundo, ou seja, uma chance dada à realidade contingente e inacabada de se locupletar, de um golpe preciso, segundo os desejos do homem. Mas esse mundo não podia ser apreendido senão por um meio termo, era preciso recriá-lo em uma matéria indireta, transpô-lo, proceder por alusões e convenções, na impossibilidade de uma possessão imediata.

A impossibilidade de uma possessão imediata era o grande drama do impressionismo – mas não só dele. Seria um engano pensar que o problema moderno começa ali. Erwin Panofsky o identifica como a questão anunciada (mas não consumada) pelo Renascimento: o problema sujeito-objeto, o eu e o mundo, a espontaneidade e a receptividade,


A ur o r a

Barco saindo do Porto (Louis Lumière, 1895)

o dado material e a atividade formal. No século dezenove, ela se intensifica, até chegarmos ao impasse claro em suas últimas décadas: está em Cézanne, está em Van Gogh, está em Gauguin, quando já encontramos a recusa da arte como uma imitação da natureza a partir da ideia de que a imaginação é a principal matéria-prima do artista, o único meio de subir em direção a Deus. Em abordagens diferentes (Cézanne devoto da natureza, Van Gogh em crise com a natureza e Gauguin rompendo com a natureza), os três revelam uma progressiva mudança de pensamento na relação entre o artista e o que está diante dele. É sempre perigoso determinar

uma linearidade na história da arte (que de fato não existe), mas é sintomático que a angústia revelada por Cézanne em cartas renove basicamente os anseios que apareciam no Renascimento: a ideia de que se deve fugir dos mestres (no caso do pintor francês, do Louvre) e encarar a natureza. Fazer da pintura uma atitude do olhar.Trata-se de um impasse que, como antecipa Gauguin, resultaria na catarse libertária do século vinte. Não havia opção: ou a arte acabava ali, com o naufrágio impressionista, ou a questão da arte deveria mudar. E de fato muda1. A ruptura está

1 Contemporâneo de Picasso, Marcel Duchamp revitaliza a procura, mas num sentido intelectual. Na primeira metade do século vinte, é ignorado (ou mal-entendido, principalmente

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A urora bem ilustrada na mítica frase de Picasso: “eu não procuro, encontro”. A procura, o grande drama do impressionismo, se torna uma página virada. André Bazin dirá que a fotografia e o cinema são os grandes culpados, libertam a pintura para abstração, para que ela se torne apenas o fruto da sensibilidade do homem. Não seremos tão eufóricos2 , o cinema é apenas contemporâneo de um esgotamento da impossibilidade da relação sujeito-objeto, que se consuma justamente na pintura impressionista. Dois exemplos extremos do impressionismo que demonstram esse esgotamento: Claude Monet, como observa o ensaísta inglês David Sylvester, fazia do ato de pintar um meio de se perder na natureza. Novamente: a relação é o que interessa, quando o artista e natureza se na associação que se faz, imediatista e vazia, ao surrealismo). Mas a partir dos anos 1950 se torna o artista que possibilita a existência da arte depois da saturação com os excessos retinianos do expressionismo abstrato. Se o impressionismo foi o último passo da impossibilidade da relação sujeito-objeto, o expressionismo abstrato aponta o esgotamento da pintura do sujeito. Não por acaso, sempre se faz muitos paralelos entre esses dois momentos da arte. 2 De qualquer forma, Bazin não fala ao vento: é notável que Gauguin defenda uma pintura primitivista em resposta à presença da reprodução fotográfica no final do século dezenove, citando inclusive as experiências de Edward Muybridge, um dos mais célebres pré-cinemas.

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tornam uma coisa só. Mas Monet não via o acaso, importante destacar, seu famoso jardim de Giverny, das grandes musas de sua pintura, era cuidadosamente construído, arranjado, arquitetado. Cito Sylvester: “ele não remodelava aquilo que via: modelava aquilo que iria ver”. É uma trapaça tipicamente impressionista. Ou seja, para tentar imprimir a relação sujeito-objeto na obra, Monet criava o seu objeto. Cito agora John Rewald, estudioso do impressionismo, sobre o procedimento de Pierre-Auguste Renoir: Essa nova abordagem da natureza pouco a pouco levou os pintores a estabelecer uma nova paleta e a criar uma nova técnica, apropriada a seus esforços para captar a fugacidade dos jogos de luz. (...) Como a mão é mais lenta do que o olho, que é rápido na percepção dos efeitos instantâneos, uma técnica que permitisse que os pintores trabalhassem com rapidez era essencial se quiserem acompanhar suas percepções. Ao aludir a esses problemas, Renoir costumava dizer: “Ao ar livre trapaceia-se todo o tempo”. Contudo, sua “trapaça” consistia apenas em escolher entre a multiplicidade de aspectos oferecidos pela natureza, a fim de traduzir os milagres da luz em uma linguagem de cores bidimensional e também de transmitir o aspecto escolhido com as cores e a execução que mais se aproximassem da impressão recebida.

As malandragens de Monet e Renoir na tentativa de “acompanharem suas percepções” explicam por que Lumière foi colocado como o último pintor impressionista. Porque depois de Lumière (poderíamos dizer depois do cinema caso Méliès não mudasse seu


rumo radicalmente), toda essa procura, a possessão imediata que Mourlet cita, se torna inútil. Retorno à frase de Picasso: no século vinte o artista apenas encontra. O mundo está nele. Nesse sentido, Lumière é colocado como pintor porque, mesmo que timidamente, seus pequenos filmes apresentam justamente o sonho impossível da pintura moderna: o mundo sendo olhado ao mesmo tempo em que se olha o mundo. Por que não pensar, então, a mise en scène pictórica como uma mise en scène que sustenta

a relação sujeito-objeto em obra, como aquela que dá seguimento à questão da arte moderna contemporânea ao surgimento do cinema? Pensando mais na questão, no problema, do que nas obras em si, não é exagero dizer que há mais pintura em determinados cineastas do que em boa parte da pintura do século vinte. Aliás, se entendermos o cinema como o último suspiro de um longo processo moderno que tem origem, num sentido filosófico, artístico e até mesmo tecno-

Elle a Passe Tant d’Heures Sous les Sunlights (Philippe Garrel, 1985)

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A Bela intrigante (Jacques Rivette, 1991)

lógico, no Renascimento – essa possibilidade se torna ainda mais interessante.

Entendendo a mise en scène pictórica a partir da possessão imediata (o roubo irresponsável do termo mour

letiano é proposital), é preciso desconsiderar os jardins cuidadosamente moldados. Pelo contrário, valoriza-se o esboço, os mal-entendidos, a sujeira. O que não significa uma luta grosseira entre a câmera e o que está sendo filmado. A sujeira pode aparecer numa imagem

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bem enquadrada, de enorme beleza, como são os filmes de Lumière. É mais uma questão de postura do cineasta diante do mundo. Mourlet recusava o cinema de Rossellini, por exemplo, condenando a sua “aproximação tateante”. Mas é justamente a aproximação tateante que nos interessa. O mundo olhado em seu aspecto caótico, como fazia Lumière em seus filmes sobre o mar em 1895, como fez Jean Renoir com sua cadela em 1931, ou Rossellini em 1950, que ao ouvir a reclamação de Ingrid Bergman (“você sempre me diz para


Aurora andar!) respondia “é isso mesmo, ande, se você andar eu posso acompanhá-la com a câmera”. Também nos intermináveis jogos com os atores de Jacques Rivette nos anos 1970; ou ainda na intimidade pesada das imagens de Philippe Garrel em 1985, quando a câmera e os atores trocam olhares confessionais. Jacques Rivette é um nome admirável nesse sentido, pois enquanto crítico já percebe esse aspecto em Rossellini (o compara a Matisse em Viagem à Itália [1954], relação que está longe de ser evidente num sentido pictórico) e Renoir (que o impressiona pelo modo livre como se relaciona com os atores). E décadas depois fez provavelmente a cena definitiva dessa proposta de mise en scène pictórica, justamente num filme dedicado à criação de uma pintura: A Bela Intrigante, baseado em A Obra-Prima Ignorada, novela de Balzac de 1831 sobre a angústia de um artista que preza pela sua sensibilidade em obra, mesmo que ela se torne um caos de cores, tons e matizes indecisos, uma espécie de neblina sem forma. Ou seja, o escritor francês observa algumas novidades da pintura (Turner, Delacroix), mas antecipa em algumas décadas o turning point do século vinte. O filme de Rivette, ao contrário da novela que

é sobre a idealização e a recepção da arte, se dedica à criação do quadro, da tal obra-prima. Durante mais de cinco horas, ficamos mergulhados numa odisséia criativa, do primeiro esboço (aliás, do primeiro encontro entre o pintor e a modelo) até o seu ponto final. Nem importa se é um pintor, o que interessa é acompanharmos, do início ao fim, o drama da arte acontecendo. E o que é Rivette senão o cineasta das coisas acontecendo? Pois quando a jovem que passara dias imóvel, modelada pelo pintor como o jardim de Monet, percebe que precisa agir, ou seja, deixar de ser modelo, encontramos o melhor comentário sobre a mise en scène pictórica no cinema. Como bem define Milton Do Prado, “é a partir dessa interação ativa entre o pintor e a modelo que é feita a obra, que a história avança, que os personagens se transformam”. O atrito entre as duas ações criadoras é o que possibilita a existência da obra-prima. Se a intensidade da relação sujeito-objeto parece um evento atípico no cinema, é porque invariavelmente se opta por valorizar apenas um dos lados: o olhar ou a cena. Pois logo após Lumière, surge Méliès impondo ao cinema uma questão totalmente diferente do problema pictórico, entram em jogo a funcionalidade narrativa e a rigidez da

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A urora ação cênica. O cinema se organiza. Por isso que, mesmo após diversas reconsiderações, Lumière não é visto como um cineasta ao pé da letra. “Porque o cineasta é aquele que conta uma história”, nos lembra o sempre conservador Martin Scorsese, em sua aula sobre o cinema no recente A Invenção de Hugo Cabret (2011). Mas o que é uma história? Godard questiona isso em Paixão (1982). Ali a história não interessa ao cineasta, pelo contrário, todo mundo pede uma história e ele foge dela o tempo todo. O que interessa é a luz. A luz, Lumière, a matéria-prima do cinema e de boa parte da pintura, pelo menos daquela que é contemporânea do cinematógrafo. A luz não apenas no sentido literal, mas também no de aparição, religioso mesmo, como bem apontou Aumont em seu ensaio sobre o pintor Godard em O olho interminável. No lugar da história, há a sensibilidade para captar uma aparição, algo não esperado, não controlado, que pode estar num rosto, numa paisagem ou na interminável peregrinação de uma mulher em uma ilha. Esse imprevisto que o pintor Renoir trapaceava para tentar colocar em cena, e que seu filho colocava em cena sem recorrer à trapaça alguma. Por fim, como um novo ponto de partida, roubo as palavras do crítico português José Oliveira a respeito de

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Boudu Salvo das Águas (1932), um dos filmes de Renoir que melhor dá conta dessa ideia de mise en scène pictórica. Parece um documentário porque acima de qualquer efeito ou “impressão” de cinema, o que lhe interessa é um homem e tudo o que à sua volta o envolve e pulsa. Interessa-lhe os seus instintos, a sua natureza, essa espécie de loucura dos livres. Interessa-lhe ver como tudo o que o envolve reage, abana, se comporta. E a forma como tudo isto é captado, apreendido, essa construção livre e de uma frescura retumbante, tem a um tempo a alvura dos primitivos e a audácia dos mais modernos. Ou será a mesma coisa? De planos intimistas e evadidos por um lirismo desencantado um certo plano de um cão à beira rio… - logo se passa para planos que funcionam como pura descrição dos lugares e das ações; do puro controle de um esteta para a soltura da câmara sobre a bruitage do mundo; a estridência e vitalidade de toda a sonoridade do filme, esse oxigênio para os ouvidos - impressionante quando do dentro se sai para fora, e vice-versa - vai precisamente nesse sentido, o de se deixar enlevar pela imprevisibilidade e surpresa do mundo, ao invés de um qualquer fechamento sobre qualquer lógica falsamente cadencial ou coerente.

Referências: AUMONT, Jacques. O olho interminável ______________O cinema e a encenação BALZAC, Honoré de. A obra-prima ignorada. BAZIN, André. O Cinema: ensaios. CHIPP. H.B. (org). Teorias da arte moderna OLIVEIRA JR. Luiz Carlos Oliveira. O cinema de fluxo e a mise en scène (Dissertação) PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo PRADO, Milton Do. La mise en scène du corps dans La Belle Noiseuse, de Jacques Rivette. (Dissertação) REWALD, John. A história do impressionismo. SYLVESTER, David. Sobre arte moderna.


Exilados, de Johnnie To A mise en scène e o cinema de ação Juliana Pinheiro Maués1 1

Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Multimeios, da Universidade Estadual de Campinas; graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Pará.

Um thriller, um filme policial, um filme de máfia. Exilados, dirigido por Johnnie To em 2006, encaixa-se em todas essas classificações. Englobando-as, está o gênero maior: o filme de ação. O argumento é simples, passível de ser resumido em poucas linhas, como o faz a própria sinopse de divulgação: O ano é 1998. O lugar: Macau. Cidade onde todos buscam a chance de ganhar dinheiro, antes que uma nova era se inicie. Um membro renegado, que está tentando uma nova vida ao lado de sua família, passa a ser procurado por dois mafiosos de Hong Kong. Mas os assassinos entram num dilema quando encontram dois antigos membros da máfia, cuja missão é proteger o alvo a qualquer custo. Uma simples e velha foto de infância nos revela a amizade que existe entre estes cinco homens e o porquê eles serão eternamente leais uns aos outros.

Figuram, no filme, aspectos já tradicionais do cinema de ação de Hong Kong, desenvolvido simultaneamente ao advento da sétima arte na Ilha com a exploração do universo das artes marciais bem antes da febre do kung-fu nos anos 1970. A violência, a tríade (como são chamadas as máfias locais), a lealdade fruto da amizade são os principais elementos motivadores da narrativa. Também é marcante a perspectiva predominantemente masculina, batizada yang gang pelo diretor Chang Cheh nos anos 1960 e perpetuada dali por diante no cinema de ação, principalmente por nomes como John Woo e Ringo

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Lam. Fundada com base no modelo da Hollywood clássica, a indústria cinematográfica de Hong Kong despontou como iniciativa privada, sem o benefício dos subsídios estatais. Além da verticalização, fez da prolificidade dos estúdios, uma de suas estratégias protecionistas frente ao filme estrangeiro. Do mesmo modo ocorrido com seu modelo norteamericano, a era dos grandes estúdios entrou em crise na Ilha, deixando como herança um ritmo ágil de produção, que hoje é também estratégia de sobrevivência. A produtora Milkyway Image, fundada em 1996 por To e Wai Ka-Fai, é das mais representativas do apocalíptico cenário da Hong Kong pós-colonial e uma das que luta para manter a independência – temática, estética e financeira – da produção local frente à influência crescente da China continental. Apesar do trabalho em gêneros diversos, foi no filme de ação que To construiu o seu nome internacionalmente, em obras como Breaking News, Profissionais do crime, Eleição – o submundo do poder e Vengeance . A maestria com que o diretor manipula o esquema da continuidade intensificada será equiparada a poucos, inclusive no Ocidente, onde a inventividade ao uti-

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lizar essas normas no cinema de ação talvez só encontre paralelos na obra de Michael Mann. Para o andamento deste ensaio, e já que falamos nela, é importante relembrar o que seria a continuidade intensificada. A expressão cunhada por David Bordwell nomeia um esquema cinematográfico surgido nos anos 1960 e difundido nos 1980, caracterizado pela utilização de planos únicos e aproximados do rosto dos atores, tomadas filmadas com lentes longas, utilização massiva de câmera móvel e uma redução sensível da duração média do plano, resultando em filmes com ritmo de montagem cada vez mais rápido e fragmentado. Difundido pelo mundo todo, “em Hong Kong, diretores como John Woo, Tsui Hark, Ringo Lam e Johnnie To aperfeiçoaram o estilo, colocandoo a serviço das tradições locais de movimentos percussivos e manifestações sensuais”. (BORDWELL, 2008: 55) Uma vez esclarecidos estes pontos sobre o nosso objeto de análise, vamos àquilo que motivou a breve reflexão contida neste ensaio. Em 2006, Jacques Aumont (p. 14) lamentou que o filme de ação já não tivesse “o apanágio de uma concepção do cinema como arte do plano e do plano obriga-


Aurora toriamente expressivo” – frase esta que nos provocou a sugerir argumentos em contrário. Todavia, muito do que dissemos até agora, senão tudo, parece ir de encontro a ela. Reiteramos que Johnnie To é um mestre da continuidade intensificada, um modelo em que o interesse não vem de uma encenação complexa e, sim, de técnicas de edição e trabalho de câmera. Reafirmamos esta perspectiva na citação de David Bordwell, em que o ritmo de montagem e a utilização de elementos do que o autor chama “cinema-

tografia” são o destaque. A preferência por iniciar abordando a maestria de To nesses aspectos esconde outra intenção: a de que, ao falar da mise en scène em Exilados, possamos ainda demonstrar como é possível que um filme pautado na continuidade intensificada mantenha a preocupação com o plano. Falar de mise en scène, entretanto, pode ser um terreno traiçoeiro. Antes de buscá-la no filme, é necessário delimitar a que nos referimos quando utilizamos este termo.

Exilados (Johnnie To, 2006)

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A u rora

Exilados (Johnnie To, 2006)

Um pouco de encenação “Se a encenação é um olhar, a montagem é um batimento de coração” nos disse Godard em um famoso aforismo. Sendo percebida pelo olhar, é lógico concluir que a encenação repousa na composição visual do quadro cinematográfico. A questão, contudo, não é tão simples. Derivada do teatro, a ideia de mise-enscène é uma das que mais diferem de acordo com a fonte adotada, embora seja sempre vista como a centralizadora da criação cinematográfica, aquela

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responsável pela construção do universo ficcional. Para Jacques Aumont, ela é o instrumento que permite construir, a partir de elementos do mundo (mesmo que totalmente teatrais), a apresentação convincente de uma história, que nos permite recebê-la com prazer, compreendê-la e atribuir-lhe um estatuto ontológico muito particular (o da simulação lúdica, ou ficção). (AUMONT, 2006:163)

David Bordwell restringe essa definição, sugerindo uma concepção mais afeita ao seu pensamento cognitivista. Para ele, encenar é o ato de dar forma à


representação dentro do espaço-tempo da cena, por meio de cenário, iluminação, figurino, maquiagem e atuação dos atores – em especial, a movimentação dos corpos pelo quadro. O lugar da encenação, por excelência, seria o plano-sequência fixo com grande profundidade de campo. Ao contrário de posicionamentos como o de François Truffaut, Bordwell desconsidera o movimento de câmera. Embora reconheça a influência teatral no primeiro cinema, ele prefere enxergar a tela não como um palco, mas um plano vertical emoldurado. Para este autor, o cinema utiliza-se de alguns princípios próprios da pintura em sua encenação, tais como esquemas de cor, iluminação e perspectiva, com o propósito narrativo de direcionar o olhar do espectador ou produzir significados expressivos ou simbólicos. É esta a perspectiva que adotaremos na análise desenvolvida a seguir. Com a emergência do modelo da continuidade intensificada, Bordwell aponta para um declínio da arte de encenar. A aceleração do ritmo da decupagem clássica negou à imagem o tempo para tornar-se pregnante e, com isso, a preocupação com os elementos da mise en scène diminuiu. Condição ideal da encenação, o plano sequência fixo tornase uma prática cada vez mais rara. Se é

anacrônico, hoje, falar em um cinema da montagem opondo-se a um da encenação, o autor considera a existência de um “cinema da cinematografia” em oposição a ele. É neste grupo, pautado no movimento de câmera, que o autor inclui o cinema de Johnnie To. Nossa intenção, com a análise a seguir, não é forçar a sua inserção em outra tradição cinematográfica, à qual ele notoriamente não aspira pertencer, mas apenas sugerir a limitação desta, e de qualquer, dicotomia e demonstrar que também no cinema de ação da era 2000, da continuidade intensificada e da cinematografia, há espaço para a mise en scène. Para a realização da análise a seguir, nos guiamos pelas funções do estilo cinematográfico, conforme estabelecidas por Bordwell. Narrar Essencialmente narrativa, um bom exemplo da função denotativa está já na primeira sequência do filme, em que o esquema de cores nos antecipa informações sobre as boas ou más intenções dos personagens: enquanto alguns são posicionados de forma a contrastar com o tom pastel das fachadas das casas; outros, vistos em plongée, têm como fundo o asfalto cinza, tornado quase negro

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pela iluminação. O modo como o filme direciona o olhar do espectador dentro do quadro também deve bastante à mise en scène, especialmente ao posicionamento dos atores e à iluminação, já que muitas vezes nas cenas de diálogo o diretor prefere não recorrer ao esquema clássico do plano único seguido de campo/contracampo. A opção, entretanto, não é pelo plano sequência, inexistente no filme, mas por cenas constituídas por curtos planos de conjunto, em que o posicionamento dos atores varia – de uma perspectiva frontal para uma lateral ou dorsal, de um primeiro para um último plano, de um ponto mais iluminado para outro mais obscuro – de acordo com aquilo que mais merece nossa atenção no momento. Outro ponto a destacar está no modo como é construída a caracterização dos personagens. A nível de enredo, não há um principal entre os cinco amigos protagonistas, mas a mise en scène se encarrega de dotar o personagem de Anthony Wong de contornos mais fortes que os demais. Ele recebe um diferencial já no figurino: enquanto todos utilizam roupas escuras, ele veste um casaco bege. O enquadramento também se esforçará por nos direcionar a ele: nos planos de conjunto, sempre o

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veremos em primeiro plano ou enquadrado frontalmente. Logo no início do filme, é o reflexo dele que vemos destruído por um tiro. Dentre os cinco personagens principais, é ele quem vive o conflito mais forte: tensionado entre a lealdade aos amigos de infância e a submissão ao chefe da tríade. Uma sequência chave para o personagem é quando, ao receber o telefonema de Chefe Fay, na Ilha Cotai, decide finalmente enfrentá-lo. Nesse momento, todos os personagens caminham para fora do quadro até que reste somente ele em campo. Daí em diante, ele assume a liderança do grupo: é o primeiro a entrar no quadro, o primeiro a sair da cabine de fotos na última cena. Será dele também o último rosto que veremos no filme. Chefe Fay é outro personagem cuja mise en scène é interessante. Em sua primeira aparição, ocupa uma posição que será sua nas primeiras sequências do filme: o centro do enquadramento. Perceberemos que, mesmo em planos únicos, poucas serão as vezes em que outros personagens ocuparão este lugar. Ele, por outro lado, o terá mesmo em planos de conjunto. Esse equilíbrio proporcionado ao personagem pelo poder de que desfruta, é perdido quando esse mesmo poder está ameaçado. A partir


Aurora do conflito armado no restaurante, ele oscilará entre os momentos de expressão de poder, em que ocupa o centro do enquadramento, e aqueles de vulnerabilidade, nos quais, como todos os outros, pende mais para uma das extremidades. O enquadramento mostra-se aqui como uma escolha narrativa, além de estética. O último dos personagens centrais a quem To dispensa maior atenção é Wo. Apesar de o filme todo contar com bastantes planos emoldurados, perceberemos a incidência maior naqueles em que ele está presente. Nos planos de conjunto, ele estará no meio dos amigos, nunca nas extremidades e, não raro, terá de um lado aquele que pretende salvá-lo e, de outro, aquele cuja obrigação é matá-lo. Outra marca visual deste personagem diz respeito à ideia de perspectiva. Não podemos dizer que Exilados seja um filme onde a profundidade de campo é essencial, contudo, seria igualmente errado não perceber que o campo quase sempre se apresentará em profundidade, mesmo que a ação se desenvolva em apenas um dos planos. Nesse conjunto, o caso de Wo é incomum, já que, em muitos dos seus planos únicos, o veremos lançado contra algum fundo chapado, muitas ve-

zes escuro, como que traduzindo a ausência de alternativas daquele personagem, para quem o futuro já está selado. Há ainda outros elementos narrativos da mise en scène, que poderíamos investigar mais a fundo: o modo como alguns elementos do cenário funcionam como leitmotiv; o figurino cômico do comissário de polícia; a luz vermelha completamente antinatural que se derrama sobre Wo algum tempo antes de o personagem ser literalmente tingido de vermelho, dessa vez pelo próprio sangue etc. Predominante em todo filme narrativo, a função denotativa pode ser exemplificada a partir de quase qualquer cena escolhida. Acreditamos, entretanto, já haver elucidado os principais pontos. Partamos para o próximo aspecto. Expressar Não apenas no caso de Exilados, mas, em se tratando do gênero da ação como um todo, podemos dizer que a função expressiva, com seu objetivo de representar ou despertar emoções, é a segunda mais enfatizada. Se, ao analisar esta função, Bordwell detém-se na delicada modulação do sentimento realizada por Kenji Mizoguchi; ao obser-

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A u rora varmos a estética de To, percebemos uma oposição na execução, mas não na proposta. À flor da pele, os sentimentos em To também são revelados com delicadeza, mas é uma que expõe ao invés de esconder. Quando surgir pelo enquadramento, o representante máximo será o close. Assim, o primeiro close up do filme é do rosto da esposa de Wo, quando reza pela vida do marido. Do mesmo modo, alguns objetos serão dotados de dramaticidade ao serem expostos em primeiríssimo plano: o terço nas mãos da esposa; os revól-

Exilados (Johnnie To, 2006)

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veres nas mãos dos homens; o pequeno chocalho no tornozelo de um bebê. A iluminação em low key, que enche o ambiente de sombras, e a artificialidade de suas cores dão ao filme uma atmosfera perenemente melancólica, transmitindo ao público uma sensação de irrealidade. É como se a história se passasse em um tempo outro, como se estivesse sendo narrado, logo filtrado, pelas memória e imaginação de um autor, e não acontecendo naquele exato momento. Nas sequências de tiroteio, a atmosfera, preenchida por uma espessa


fumaça, torna-se enevoada, dando ainda mais uma função à iluminação: a de confundir o espectador.Ao contrário do gunplay cuidadosamente coreografado de John Woo, os conflitos armados filmados por Johnnie To neste filme são caóticos. O interesse aqui é mais despertar sentimentos do que propriamente narrar. Em uma das sequências, acrescentase um elemento ao bailado: cortinas flutuantes. Tecidos esvoaçantes estarão presentes em várias cenas, mas longe de trazer alguma informação narrativa ou significado simbólico, em seu movimento suave, porém constante, eles apenas contribuem para a criação de um estado expressivo de inquietude e tensão. Simbolizar O domínio do simbólico é, aqui, bastante reduzido, mas ainda assim forte o suficiente para permitir algumas divagações. Esta é, dentre as funções, a de terreno mais arriscado, pois nos leva a fazer inferências interpretativas das quais nunca teremos realmente certeza, a não ser conversando com o realizador. Mesmo assim, vamos ao que as imagens dizem. O primeiro conteúdo simbólico está em um fato histórico. O filme se passa em 1998, em uma Macau que, prestes a sair do domínio português, enfrenta a inse-

gurança quanto ao futuro. Neste sentido, as cores predominantes, constituídas simultaneamente por cenário e iluminação, na casa de Wo são emblemáticas: verde, vermelho e amarelo; as cores da bandeira de Portugal. E a casa é justamente o local que todos acabam abandonando. Curioso é notar que esse sistema de cores ainda se repetirá, embora não tão marcadamente, na clínica e na Montanha do Buda. Neste último local, a paisagem se encarrega do verde e do amarelo, mas o vermelho está no carro trazido pelos amigos. É como se mesmo deixando a casa, eles levassem dela uma herança da qual não há como se desfazer. Há, também, elementos simbólicos que conduzem ao próprio mundo midiático. As referências ao western spaghetti já foram muito enfatizadas em outros trabalhos e ultrapassam a esfera da encenação, aparecendo também em nível de narrativa e de montagem, neste caso, especialmente na primeira sequência. Na mise en scène, ela transparece em dois momentos, ambos relacionados ao personagem do ladrão que surge ocasionalmente na metade do filme. O primeiro é quando os amigos reconstituem uma cena famosa de Por uns dólares a mais. O outro é a presença de uma gaita, que o ladrão toca insistentemente. Ainda na mesma esfera, elementos tam-

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bém remetem ao cinema de artes de marciais, berço do cinema de ação de Hong Kong. Em primeiro lugar, o cenário do hotel remete às pensões famosas, especialmente, nos filmes de King Hu e em produções do estúdio Shaw Brothers. O banho de sangue do final lembra o encerramento de muitos filmes de Chang Cheh. Outro momento remete à filmografia deste diretor: quando Wo é jogado da janela da clínica, ele cospe sangue em grande quantidade. Por mais banal que possa parecer, na maioria dos filmes de kung fu, este é o sinal da morte anunciada. Decorar Finalmente, chegamos à última função: a decorativa. É nela que encontramos o menor número de elementos de encenação. Não é o caso de dizermos que Exilados enfatiza pouco este aspecto. Pelo contrário, ele é um dos que recebem mais atenção. Entretanto, faz-se sentir muito mais por elementos de cinematografia (planos em slow motion, movimentos de câmera que não se completam) do que pela mise en scène. Mesmo assim, podemos dizer que alguns dos aspectos já descritos desempenham igualmente papel decorativo, no sentido de que acrescentam beleza plástica ao filme: as cortinas esvoa| 98 |

çantes, a fumaça espessa dos tiroteios, a iluminação um tanto artificial capaz de ir subitamente de cores quentes a frias com o simples apagar de uma vela. Outra mise en scène – ou algumas considerações Finalizada a análise, é útil esboçar, em breves linhas, algumas conclusões. Tal qual havíamos pressuposto, Exilados é um filme capaz de sustentar nossa tese de que é possível haver uma preocupação com a expressividade do plano mesmo em um filme de ação pautado pela continuidade intensificada. Por outro lado, percebemos que esta condição impõe limitações que devem ser esclarecidas, significativamente no que diz respeito à recepção. Referimo-nos, aqui, à necessidade da pregnância da imagem. De pouco adianta a preocupação do cineasta em incluir recursos de encenação em seu filme, caso esses mesmos recursos não disponham de tempo para serem percebidos pelo espectador. Nesse sentido, notamos que há uma gradação temporal entre os elementos que constituem a encenação. Figurino, posicionamento dos personagens no quadro, iluminação e cenário podem ser percebidos mais de imediato. Já o desen-


Aurora

Exilados (Johnnie To, 2006)

volvimento de ações em profundidade de campo e a movimentação dos corpos dos atores pelo quadro (seja com finalidade narrativa, expressiva, simbólica ou decorativa) demandam planos mais longos. Dois minutos é o máximo que um plano dura em Exilados, sendo que a maioria não alcança a metade disso. Nesse sentido, optar por um modelo de encenação pautado na fluidez dos corpos, segundo o evangelho de Michel

não traz acréscimos à narrativa. Todavia, seria igualmente incabível negar ao plano qualquer expressividade. Estamos diante de um tipo outro de encenação, um que privilegia as curtas durações e os efeitos que elas são capazes de produzir. Não há mérito em buscar relações com uma suposta pós-modernidade, e seu olhar cada vez mais aguçado, para tentar equivaler esta à outra, baseada numa dita aceleração de ritmo do espectador

Mourlet, seria incabível. Tanto que os

atual. A adaptação, antes de ser ao rit-

personagens pouco se movimentam e,

mo do mundo, é ao ritmo do próprio

quando o fazem – infalivelmente, inter-

filme. Logo, ela não é própria a uma épo-

rompidos pelo corte – é de forma que

ca, mas a um modo de se fazer cinema | 99 |


A u rora existente há décadas. Um modo de se fazer bom cinema, que privilegia a montagem, mas zela pela encenação; da mesma forma que aqueles que privilegiam a encenação não podem deixar de olhar para a montagem. A crítica de Aumont, parece-nos, direciona-se àqueles que não olham nem por um nem por outro. Voltamos, então, à afirmação do estudioso francês. Compreendemos que ela surge no contexto de uma pesquisa abrangente, não sendo justo desconsiderá-la com base em alguns poucos exemplos – porque há outros além deste filme. Em muito do cinema de ação atual, o espectador não conseguirá sequer individualizar o plano, cujo ritmo de sucessão é, para além de fragmentado, frenético, especialmente em cenas que envolvem algum confronto físico. Muitos desses filmes, inclusive, escondem imagens vazias atrás de um discurso de representação de um estado caótico (vivido por seus personagens ou dominante na realidade atual). E, sendo que, em termos gerais, concordamos com Aumont, do mesmo modo que ele, lamentamos. Contudo, não tendo a força do tempo para afirmar com certeza quais dentre esses filmes permanecerão, Exilados e outras obras semelhantes surgem

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como um reconforto e um afago para que não nos tornemos tão apocalíptico

Referências: AUMONT, Jacques. O cinema e a encenação. Lisboa: Texto & grafia, 2006. AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995. BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz: a encenação no cinema. Campinas: Papirus, 2008. ______. Planet Hong Kong: popular cinema and the art of entertainment. Madison: Irvington Way Institute Press, 2011, 2ed. GROSSMAN, Andrew. The belated auterism of Johnnie To. Disponível em: http://archive.sensesofcinema.com/ contents/01/12/to.html. Acesso: 23/ 03/ 2011. TEO, Stephen. Hong Kong Cinema: the extra dimensions. London: British Film Institute Publishing, 2007, 5ed.


A mise en scène do futebol televisivo Marcio Telles1 1 Mestrando em Comunicação e Informação no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS. É integrante do Grupo de Pesquisa em Semiótica e Culturas da Comunicação (GPESC). .

Muito já foi pesquisado sobre

entre futebol e televisão, essa bibliogra-

a televisão: a bibliografia é vasta quando o assunto é os usos políticos dessa mídia (principalmente), as telenovelas e os telejornais. Ainda assim, resta outro tanto a pesquisar: a transmissão direta, os telefilmes e telesséries, o tradução intersemiótica (um filme na tela da televisão é a mesma coisa... certo?), e o futebol. Chega a ser curioso que um dos programas mais presentes nas telinhas tenha uma bibliografia na grande área da Comunicação tão minúscula. Se formos limitar o foco às interrelações

fia se resume a pouco mais que nada.

Escrevi o parágrafo acima há pou-

co mais de três anos, enquanto definia o tema de meu projeto de conclusão de curso. De lá para cá, nada mudou, tanto que a mesma justificativa vem aparecendo, com pequenas alterações, ao longo de todo trabalho que desenvolvi desde então – o que inclui, além do TCC, meia dúzia de artigos e uma dissertação de mestrado em vias de finalização.

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Dito isso, é preciso levar em conta que este ensaio é parte de uma pesquisa muito maior, mais ampla e mais crítica do que parecerá nestas breves páginas. Escrevi este artigo com o intuito de que serviria como uma “introdução” aos meus interlocutores (todos que se interessam pelo futebol e pela televisão) de questões que venho me colocando desde que me propus pensar as teletransmissões do “esporte bretão” (como se os outros não fossem, eis aí outro mito futebolístico). Portanto, o ensaio colocará várias questões e resolverá somente algumas delas, e não será sempre claro na linha de raciocínio que segui para afirmar aquilo que afirmo. Deixarei tais problemas para mais tarde. A questão aqui é pensar, sucintamente, na organização cênica das teletransmissões esportivas. A bola é a âncora da transmissão Existem alguns princípios básicos que organizam as teletransmissões esportivas, a começar pela centralidade na bola. Onipresente, ela funciona como “âncora” da transmissão: a câmera a seguirá por onde quer que ela vá, tentando mantê-la o máximo quanto possível no centro do quadro. Isto leva à perda de sentidos presentes em outros estra-

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tos do gramado, como uma linha defensiva desorganizada ou a movimentação tática de uma equipe. O futebol, afinal, é um jogo de ocupação de espaços, e a centralidade na bola acaba por colocá-la como elemento mais importante da mecânica esportiva. Não que a movimentação em torno da bola não seja interessante, mas uma transmissão ponderada também levaria em conta aquilo que acontece fora desse entorno. No limite, o “bolacentrismo” leva à fetichização da bola. Certa vez, um amigo lançou uma observação interessante. Disse ele que, enquanto assistia a uma partida na escolinha de futebol de seu filho, simpatizou-se com o treinador que se esgoelava a beira do gramado, implorando para que os meninos não corressem todos atrás da bola, mas também guardassem suas posições. É um exemplo interessante de uma mudança cultural na percepção do jogo. Entre outros indícios de tal fetiche pela bola estão nos jogadores defensivos que partem em debandada para a meta adversária tentando o gol, esquecendo-se de suas funções táticas (Lúcio e David Luiz, dois bons zagueiros brasileiros, tornaram-se conhecidos por essa fixação em desempenhar uma função que não é a deles).


Aurora

A rara identidade do tempo morto no futebol e na televisão

O tempo morto futebolístico não é morto para a televisão A bola é tão presente nas teletransmissões de futebol que ela é a âncora inclusive nos quadros em que está ausente. Após uma tentativa de gol que resulta em fora de jogo, a câmera corta rapidamente para o rosto do autor do chute. Este é um exemplo daquilo que chamo de “tempo morto” do futebol –

o fora de jogo – que resulta em uma transcriação criativa por parte da televisão. Se antes – na década de 1960 – havia correspondência entre tempo fora de bola e tempo “morto” televisivo (ou seja, acompanhávamos os jogadores voltando ao centro do gramado após a marcação de um gol), tal identidade perdeu-se ao longo das últimas décadas do último século. Agora os jogadores marcam o gol e somos bombardeados por replays de vários ângulos, closes de jogadores

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A urora de ambas as equipes, planos americanos dos treinadores e da arbitragem, imagens aéreas da torcida... e então quando percebemos as duas equipes estão prontas para reiniciar a partida, como em um videojogo. (Aliás, vocês já se perguntaram o que um videojogo de futebol realmente simula? O esporte ou a teletransmissão?). Conclui-se que este tal “tempo morto” de morto não tem nada: talvez estejam aí enunciados sentidos que não são possíveis durante o tempo de bola rolando. Exemplos: os constantes closes na estrela de uma equipe (que querem dizer? que a televisão espera que ele resolva a partida?) ou a repetição do conhecido sistema dialógico cinematográfico, aqui sem vozes (afinal, o plano e contraplano entre a torcida pedindo por um jogador e o treinador ignorando o recado é uma forma de diálogo). Há de se maximizar a ação e minimizar os espaços Outra característica interessante das teletransmissões é a tendência em abordar a ação esportiva em espaços visuais pequenos, quadros limitados que oferecem uma visão mais aproximada dos atletas e da bola. Chamo-o, à esteira de WHANNEL (1992), de princípio da

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“máxima ação no mínimo espaço possível”. Com a bola em movimento e em disputa no centro do gramado, a televisão tende a registrar esta ação com seu “plano principal”, muito próximo em enquadramento do plano geral do cinema, contudo diferente em função (não quer localizar, mas sim registrar). Quando a jogada está restrita a espaços menores e de grande embate corporal entre os jogadores (os terços finais do gramado, próximo às áreas), há a opção por utilizar planos mais fechados, como o de conjunto, que se centra na situação de jogo. Assim, há um permanente diálogo ao longo da transmissão entre esses dois tipos de planos durante o tempo de bola em movimento: o principal, que então funciona como “tecido” sobre o qual os outros se costurarão; e os situacionais, que focam ações de alta tensão (daí “máxima ação”) em um espaço reduzido. Ao privilegiar a ação em detrimento de uma maior compreensão da mecânica do jogo, muito é deixado de fora do quadro, como no caso da centralidade da bola. Todavia, é preciso pensar que lógica televisiva está sendo operada: para RIAL (2003), a televisão ideologicamente “pensava” o futebol nos anos 1960; depois, passou a “emo-


cionalizá-lo”, para hoje “imergir” nele, ver cada partida por dentro, aproximarse do esporte o máximo possível. É esse princípio que guiará o crescente uso de imagens em close de jogadores, treinadores e árbitros, além de replays e slow motions de quase qualquer lance (não só daqueles dotados de alta tensão narrativa). É uma tentativa de situar o telespectador não na posição passiva que até então ocupava, onde os jogadores

desfilavam para ele; mas sim de colocar o telespectador “dentro” do jogo, onde os jogadores desfilam com ele. O telespectador ocupa a dupla posição de estar para o jogo e estar com o jogo, o que guiará dois princípios de “organização” da mise en scène da transmissão: ao minimizar o espaço da ação (da “cena”), a televisão aproxima o telespectador do campo; todavia, esse

Exemplo de plano principal

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Para a TV, os principais músculos dos atletas são os faciais

espaço mínimo não dá ao telespectador a capacidade de compreensão do todo desportivo, resolvido pelas tomadas à distância, o que cria uma cena que reorganiza as demais em torno de si. Não é novidade: quem ao menos passou os olhos por uma transmissão de futebol pela televisão sabe que existe um plano que se sobrepõe aos outros. Este plano elevado, posicionado no alto das tribunas centrais junto à linha central do gramado é aquele que chamo de “plano

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principal”, e se constitui como o núcleo sequencial de todas as outras tomadas de uma transmissão: é somente por causa dele, nas relações de montagem, que os demais planos adquirem significado. Todavia, a melhor posição no estádio para se perceber a trama de uma partida não é a posição horizontal das câmeras televisivas (e do Plano Principal), mas sim as tribunas centrais (atrás das goleiras), curiosamente os


Aurora ingressos mais baratos – que torcidas organizadas, camarotes, algumas cabines de imprensa, auxiliares técnicos e mesmo treinadores impedidos de exercer seu trabalho à beira do campo preferem. No Plano Principal elimina-se a noção de profundidade. Logo, a compreensão dos espaços preenchidos fica comprometida – e o que seria dos sistemas táticos senão a melhor forma de ocupá-los? Não parece ser coincidência que as cadeiras mais disputadas nos estádios sejam as posicionadas ao longo das linhas laterais do campo, preparadas para acompanhar o jogo horizontalmente, como na imagem televisiva. Ou seja, o espectador leigo prefere emular no estádio a experiência televisiva. Os jogadores não são personagens, mas objetos cênicos Tende-se a pensar os jogadores como personagens do futebol, mas, apesar de sua indicialidade (afinal, não representam, mas são pessoas reais), eles não passam de “objetos” para a televisão. Alijados da voz e do poder de fala, jogadores, treinadores e demais personas “falam” através de expressões, muitas vezes exageradas. São o inverso das talking heads dos telejornais, cabeças falantes

sem corpos; aqui são corpos têm cabeças, mas não produzem fala. Enquanto sujeitos, os jogadores na transmissão são imperfeitos, já que este elemento tão importante para a subjetivação – a fala – lhes falta. Todavia, eles podem ser “subjetivados” a partir dos comentários de narradores e outros jornalistas, através de um discurso em terceira pessoa – ou mesmo em primeira pessoa, mas então não serão objetos dotados de fala, mas dos quais se fala no lugar deles. A literatura sobre televisão tende a considerar os rostos como principal elemento da estética televisiva. Seja pela (outrora) baixa definição da imagem televisual, seja por seu poder simbólico (DELEUZE já descreveu o afeto que o rosto produz), ou indicial, em que canais perdem-se no meio do processo de zapping. O futebol não escapa a essa lógica. Se a produção de formas é o principal atrativo esportivo para GUMBRECHT (2007), chega a ser irônico que, para a televisão, os principais músculos de um atleta sejam os faciais. Todos os desempenhos de que o corpo atlético é capaz é reduzido, enquanto potência visual, ao rosto. São os rostos e não os corpos que se oferecem às interpretações de narradores e comentaris-

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A urora tas, que os “decifram” como se fossem grandes telas recheadas de significados. Os corpos, essencial para o esporte, tornam-se acessórios para a televisão. Se os mecanismos de projeção e identificação são essenciais na cultura de massa, a afirmação dos jogadores enquanto objetos colocam dificuldades a eles. É claro, projeção e identificação são possíveis em relação aos jogadores: a onda de garotos com penteados semelhantes ao de Neymar não é mero acaso. Todavia, este é um exemplo de fascínio que ocorre em sentido amplo, não apenas pela televisão, mas também por todo cerco midiático que atua sobre os atletas. O jogador na televisão tem um caráter indicial: está lá para ser identificado por nós, mas nossa identificação com ele atua em meandros bem mais obscuros, ao longo de entrevistas em jornais, perfis em revistas, debates em mesas-redondas, etc. O torcedor na arquibancada é o telespectador no sofá Mas, se existe uma persona com que o telespectador se identifica e projeta, esta é a figura do torcedor. Nele, o telespectador se projeta: o torcedor na arqui-

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bancada é o “homem comum” inserido dentro do espetáculo televisivo; está lá no meio da torcida para mostrar onde o telespectador deveria estar e o que ele “deveria” sentir emocionalmente se lá estivesse. O torcedor, fitado pelas câmeras televisivas, é sempre um anônimo, e esta é sua qualidade: sua presença é simbólica, e por ele passa o telespectador. Se existe projeção, também existe identificação. E coloca uma dificuldade: o torcedor nas arquibancadas exibido pela televisão não é qualquer torcedor, mas um torcedor bastante específico. O torcedor televisivo é reativo a momentos pré-determinados de grande emoção, como a tentativa frustrada de marcação, o gol, o pênalti, a alteração desprestigiada, etc. É um torcedor com os “nervos à flor da pele”, e, portanto, tão facilmente confundido com o visceral e fora de si “fanático”. E aí o que aparece, pela repetição deste construto, é a (re) afirmação que todo torcedor de futebol é – e deveria ser – louco e fanático por seu clube, afinal, é isso com que se parecem na teletransmissão esportiva. Ora, o problema é óbvio: nem todo torcedor de futebol é fanático por sua equipe e, custa admitir, mudar de equipe “do coração” (falei em vísceras...) é


O torcedor é o telespectador

algo bem mais corriqueiro do que se quer ou se deseja admitir. A “representação” televisiva do torcedor apoia-se confortavelmente em um mito inerente à esfera futebolística e ao jornalismo esportivo, a do torcedor estático e imutável. O clichê sustenta que um indivíduo pode (e muito provavelmente, irá) mudar ao longo de sua vida elementos que definem sua identidade, como profissão, partido político, orientação sexual – e sexo –, religião e cônjuge, mas jamais torcerá para qualquer outro time

que não aquele que o primeiro cativou. WISNIK (2008, p.34) corrobora esse mito, oferecendo uma explicação “psicologizante” sobre o fenômeno. O que passa despercebido a um literato apaixonado como WISNIK é que esse “objeto de amor” (o clube) com que nos “identificamos” muda assim como mudam nossos gostos, preferências e opções políticas, religiosas, ideológicas, etc. É – como qualquer outra paixão – dinâmica e muitas vezes passageira, com períodos mais e menos concentrados. Ser fanático não

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é uma posição estática, mas um processo. Após analisar os dados de várias temporadas do campeonato inglês, a dupla britânica KUPER e SZYMANSKI (2009) demonstra que variáveis tão díspares como a fase da vida do torcedor e o nível de sucesso do clube são levados em consideração na hora de torcer. Não é que não existam torcedores “míticos”, como os descritos por WISNIK, mas eles são menos numerosos do que achamos que são e de que os clubes gostariam que fossem. Considerações finais Levantei, ao longo deste ensaio, algumas questões e “postulados” (muitos deles ainda para serem confirmados em teses) que me afetam sempre que assisto ao futebol na televisão e me proponho a pensar naquilo que assisti. Ainda há muito a ser pesquisado e pensado, todavia, sendo o objetivo deste texto criar no leitor uma sensação de alteridade em sua experiência televisiva corriqueira, creio que ele cumpre – ao menos em parte – seu papel. Espero que, na próxima vez em que se colocar à frente de sua televisão de alta definição para assistir a mais um jogo narrado por Galvão Bueno (a função

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do narrador foi deliberadamente esquecida neste ensaio), o leitor consiga se colocar algumas das questões que trouxe aqui. E que faça experiências: vários amigos, inveterados torcedores de estádio (sempre me defini como um torcedor de sofá, e é por isso que este trabalho me afeta), confirmaram que a experiência de se assistir aos jogos atrás das goleiras é de fato magnífica. Bibliografia: DELEUZE, Gilles. Cinema 1: A imagem-movimento. São Paulo, Brasiliense, 1985 . GUMBRECHT, Hans Ulrich. Elogio da beleza atlética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. KUPER, Simon; SZYMANSKI, Stefan. Soccernomics. Nova Iorque: Nation Books, 2009. RIAL, Carmen. Televisão, futebol e novos ícones planetários. Aliança consagrada nas Copas do Mundo. Trabalho apresentado no GT Cultura das Mídias, no XII Encontro Anual da Associação dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (COMPÓS), realizado em Recife – PE, de 02 a 06 de junho de 2003 . TELLES, Marcio. Futebol da (´) televisão: moldurações televisivas. Monografia (Bacharel em Comunicação Social – Habilitação Jornalismo) – Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. WHANNEL, Garry. Fields in Vision: television sport and cultural transformation. Londres: Routledge, 1992. WISNIK, José Miguel.Veneno remédio: o futebol e o Brasil São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


Aurora

Jacques Rivette e o mistério da mise en scène Poucos homens do cinema personificam a questão da mise en scène de forma tão intensa quanto Jacques Rivette. Se no período de crítica nos Cahiers du Cinéma, havia um desejo de descoberta, posteriormente, em filmes instigantes, surge a necessidade da reinvenção. O professor e montador Milton Do Prado dedicou sua pesquisa de mestrado em Estudos Cinematográficos pela Concordia University de Montreal ao olhar rivettiano sobre a mise en scène. A entrevista é um convite para que o leitor descubra um dos capítulos mais fascinantes da história do cinema.

Entre os críticos dos Cahiers du Cinéma, Jacques Rivette parece ter sido o menos definitivo em relação a mise en scène. A impressão é a de que, ao contrário de outros nomes (como Michel Mourlet), o interesse de Rivette não era tanto o de determinar uma essência, mas de encontrar a mise en scène de cada cineasta, ou ao menos algumas possibilidades de mise en scène. De que forma se situam as ideias de Rivette sobre o tema dentro do cenário

crítico e como elas se relacionam com seus próprios filmes posteriormente? Comecemos com um fato: o conceito (ou a idéia) de mise en scène serviu de apoio para a Politique des auteurs, porque ele é responsabilidade última do diretor. Em outras palavras: pode se dizer que o roteirista cria (ou ajuda a criar) o drama, o montador o ritmo, o fotógrafo o enquadramento, mas a mise en scène é tarefa do diretor. Logo, para se

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A urora defender a idéia de que o diretor era o real autor do filme (essência da Politique), a mise en scène caiu como uma luva. A utilização do conceito muda, porém, de autor para autor – isso é natural, principalmente com um conceito de definição imprecisa. No caso de Ri-

L’Amour Fou (Jacques Rivette, 1969)

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vette, vai se tornar uma obsessão seja temática (com filmes portando sobre o mundo do teatro, explícita ou implicitamente), seja formal (com a utilização de planos de conjunto, que permitam o movimento do ator etc). Para Rivette, principalmente a partir de L’amour


fou, a mise en scène é a possibilidade de mover os atores no espaço, criar novas relações e extrair disso sua força. O conceito de mise en scène vem do teatro. Mas você identifica, especialmente em Alexandre Astruc, certa expulsão do conceito teatral de mise en scène do cinema. De fato, as abordagens críticas nos anos 1950 fugiam bastante das premissas teatrais. No entanto, quando Rivette se torna cineasta, o teatro aparece como um elemento central de sua obra. Entre distanciamentos e aproximações, qual é a relação entre a mise en scène do cinema e o teatro? Para ser usado no cinema, o conceito foi distorcido (no bom sentido, diga-se), adaptado, às vezes reduzido, às vezes ampliado. Para Rivette o teatro é sempre uma referência (como era para Jean Renoir, por exemplo). A principal diferença é bastante evidente: a presença da câmera, que coloca um novo olhar, que pode inclusive mover-se, à encenação que está sendo criada. É interessante notar como algumas peças de teatro hoje em dia tentam colocar uma câmera (e a imagem que vem dela) como ele-

mento cênico, com resultados diversos. Mas o que falava antes é outra coisa: é o olhar da câmera selecionando, permitindo e interagindo com o que é colocado em cena. Acho que poucos diretores pensam realmente nisso. Agora uma pergunta para o montador. Como você vê a relação entre a montagem e a mise en scène. Pois num sentido mais imediatista, pensa-se sempre a mise en scène a partir do jogo entre a câmera e os atores. A montagem muitas vezes é colocada de lado... Mise en scène é colocada às vezes como oposto da montagem. Há, porém, um conceito maravilhoso que une harmoniosamente as duas coisas: a decupagem. Falo aqui da decupagem no primeiro e no terceiro nível citado por Noël Burch, não da decupagem técnica, que seria o segundo nível e é, na maioria das vezes, a única que é referida num set de filmagem. A decupagem como processo mental nada mais é que a mise en scène questionada por uma possível montagem (nesse momento, na minha opinião, é que a câmera entra realmente em jogo). No final, a montagem estabelece a

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decupagem final do filme – baseado no material que foi filmado, evidentemente. Se a decupagem em muitos filmes é somente um ato burocrático de dividir a cena em planos é porque, antes disso, não houve mise en scène real (não estou dizendo aqui que todos os filmes ou todas as cenas precisam ter uma). Mas se houve mise en scène e a montagem não percebeu isso, aí o problema é da montagem. Você comenta sobre a “evidência” como um conceito chave da mise en scène. Foi uma palavra muito usada pela crítica francesa nos anos 1950, de certa forma até meio curinga, servia tanto para cineastas mais clássicos quanto para os modernos. Como você entende o conceito a partir da mise en scène? Michel Mourlet falava em “evidência do mundo” de uma maneira próxima, mas diferente da de André Bazin. Para Mourlet, a arte está em deixar, pela neutralidade clássica, essa evidência aparecer; já Bazin achava que a arte deveria deixar o real exprimir sua ambigüidade, o que envia ou pelo menos deixa o terreno para uma idéia bem mais moderna de evidência. Basta ler alguns escritos de

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Rivette ainda nos anos 1950 para deduzir rapidamente que mise en scène, para ele, estaria mais próximo dessa idéia baziniana que do que defendia Mourlet. O problema é que uma coisa é teorizar sobre isso, na prática da crítica cinematográfica, outra é criar sua própria mise en scène – ou melhor, descobrí-la. O que só acontece, evidentemente, aos poucos. Mas acho que uma revelação é uma palavra que descreve melhor a mise en scène de Rivette, pois mantém o caráter ambíguo de evidência e se libera do real. No cinema de Rivette, você encontra três principais períodos. A mise en scène é uma questão determinante para tal separação? Acho que sim. No que identifico como primeira fase, Rivette estava ainda aprendendo a filmar, o que, em outras palavras no caso dele, estava aprendendo o que colocar em cena (mettre en scène). No primeiro longa, Paris nos pertence, marcado intensamente pelos problemas de produção, a tentativa de se montar uma peça ecoa o clima de paranóia mundial que o filme capta muito bem. Ou seja, a mise en scène invade a narrativa do filme. Já em A Religiosa, a opção é mais direta


Aurora

A Religiosa (Jacques Rivette, 1966)

ainda: adaptar de maneira bem próxima uma peça que o próprio Rivette já havia encenado. Ele mesmo se deu conta que essa visão de “mise en scène da mise en scène” era muito limitada (independente da qualidade dos filmes) e partiu para experiências mais radicais a partir de ne do real, do imprevisto, que marca a

o final dos anos 1970, início dos anos 1980. É a partir da necessidade de uma síntese entre o controle e o imprevisto, que acredito que se deve em parte à chegada de colaboradores como Pascal Bonitzer e Christine Laurent, que nasce o que chamo de terceira fase do seu cinema. Apesar das obras-primas que vieram antes dela (L’Amour fou, Céline et

proposta mais experimental da segunda

Julie vont en bateu), acho que é a partir

fase do realizador, que acho que vai até

de L’Amour par terre que Rivette atinge

L’Amour fou. Ali começa a mise en scè-

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A urora

Céline e Julie vão de Barco (Jacques Rivette, 1974)

uma assinatura de mise en scène inconfundível; uma segurança total entre a câmera e a movimentação dos atores, inclusive o que tem de imprevisível nisso. Acho interessante pensar nisso como a mise en scène de Rivette: a segurança do imprevisto.

quitetura do espaço”, o que passa uma ideia de forte controle por parte do cineasta. De fato, o cinema de Preminger apresenta uma organização impecável, que faz da própria mise en scène algo invisível. Sobre Rivette, principalmente a partir do final dos anos 1960, você diz que a concepção de mise en scène

Sobre Otto Preminger, Rivette chegou a dizer que a mise en scène é uma “ar-

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foge dessa premissa. Realmente, é possível identificar nesses filmes o oposto, a


mise en scène até mesmo como o registro de um descontrole, a relação entre a câmera e os atores, em filmes como O Amor Louco e Out 1 traz muito de atrito. Pode-se dizer que nessa fase, a mise en scène de Rivette se torna mais um processo, uma busca, do que um resultado? Sim e não. Sem dúvida o processo e a busca estão no cerne da encenação de Rivette, principalmente nessa fase, mas acho que ao mesmo tempo o cinema traz essa evidência (olha ela aí de novo) de ser um registro daquilo tudo. É uma evidência mágica: é o registro dessa busca, é a orquestração em filme daquele processo. A mise en scène não é mais controlar tudo, mas é deixar que o que de mágico há no incontrolável apareça, se revele. Há de se ter muita humildade, talento e trabalho árduo para se atingir isso. Ainda sobre o descontrole, chama atenção, principalmente nos filmes dos anos 1970, o modo como Rivette intercala duas abordagens de mise en scène que, a princípio, parecem opostas. A relação livre da câmera com os corpos, em que o imprevisto se torna matéria-prima do

filme; e planos extremamente compostos, de uma rigidez estética bastante determinada. Em alguns momentos, como na sequencia final de Celine e Julie vão de Barco (aqui até com um tom de manifesto), Rivette consegue reunir os dois elementos no mesmo quadro. Há sempre uma composição trabalhada, de certo ponto até maneirista, mas ao mesmo tempo há uma sujeira, as personagens principais parecem completamente livres em cena. Naturalmente, se identifica a composição maneirista com a referência pictórica, enquanto os corpos livres estão mais próximos do teatro. Quando encontramos A Bela Intrigante, o objeto principal de sua pesquisa, temos um filme sobre a criação de uma pintura. Mas foi a obra que você escolheu para estudar a mise en scène do corpo. É possível pensar a mise en scène a partir de uma referência pictórica? Nesse sentido, há uma ruptura em relação ao teatro? Não acho que haja uma ruptura, mas a escolha de outro caminho, como uma ramificação de uma mesma árvore. Porque na pintura sempre houve mise en scène, seja para elogiar atos heróicos, seja para louvar o ser supremo (Deus),

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seja para colocar a vista o corpo da mulher. A pintura moderna vai problematizar isso um pouco, no momento em que a pintura impressionista, por exemplo, trabalha com traços incertos, pontos, ao mesmo tempo que vai encenar cenas cotidianas, piqueniques no parque, prostitutas etc. É uma encenação diferente, óbvio, porque o movimento

Le Pont du Nord (Jacques Rivette, 1981)

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é sugerido, deve ser “sentido” antes de ser visto. Dessa tensão entre movimento e pose acho que nasce boa parte da força de A Bela Intrigante, que no final das contas é a encenação de um processo: ou seja, mais do que a mise en scène NA pintura, trata-se da mise en scène da pintura em processo. Há muito de teatro no atelier de Frenhofer, embora


Aurora

A Bela Intrigante (Jacques Rivette, 1991)

certamente seja um teatro mais contido – mas por isso mesmo, mais explosivo, talvez. Sempre é bom lembrar que o filme começa com o casal de namorados encenando outros personagens no jardim do hotel; depois descobrimos que eles estão entediados e aí que surge Frenhofer e a idéia de se fazer o quadro com ela (a mulher do casal) como modelo. É outro teatro que se propõe, pois o anterior não estava dando conta. Acho uma grande cena inicial, que para

mim fala também da relação desse filme com o resto do cinema de Rivette. Pensando em A Bela Intrigante (e na relação que você faz com o Van Gogh de Maurice Pialat, lançado no mesmo ano), pode-se dizer que a mise en scène é sinônimo de criação? Ou melhor: do ato criador? Talvez seja a questão mais difícil de todas, mas tendo a responder que não, não

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A urora

chega a ser um sinônimo. Talvez possamos pensar que seja uma manifestação – das mais evidentes, das mais palpáveis – do ato criador, mas não um sinônimo. Você faz uma aproximação entre a mise en scène de Rivette e os escritos de Maurice Merleau-Ponty e Gilles Deleuze. De que forma os pensamentos dos dois filósofos encontram o cinema de Rivette?

esse questionamento em uma passagem, que fala em “fazer um dia, talvez, um filme sobre a relação entre os corpos”, não de um ponto de vista estritamente sexual, mas de como a experiência da proximidade entre os corpos afeta um ao outro e produz algo. O filme que ele fez depois disso foi justamente A Bela Intrigante, que deve muito ao MerleauPonty de O Olho e o Espírito. Aliás,

Acredito que de duas maneiras. Primeiramente, de maneira mais geral, sempre é bom lembrar o papel que Rivette teve, dentro da Cahiers du

isso é um detalhe importantíssimo: se

Cinéma, em abrir a revista a outro tipo

obras referentes à pintura (O Olho e o

de discussão que não se restringisse so-

Espírito, de Merleau-Ponty; A Lógica da

mente a cinema. Mais especificamente,

Sensação, de Gilles Deleuze), muito mais

em relação a esses dois nomes, é possí-

do que textos específicos sobre o cine-

vel pensar em uma espécie de confluên-

ma. Uma última observação: acho per-

cia de pensamento moderno onde, en-

feitamente possível se pensar que o que

tre outras questões, o corpo é assunto

Rivette chamava de mise en scène era

primordial – sua presença, a experiên-

algo que ele não tinha vocabulário para

cia impressa nele. Talvez Rivette nunca tenha expressado em entrevistas essa

identificar, que ele também identificava

preocupação de forma explícita. No

tério de alguns filmes. Acho que a obras

documentário da Claire Denis sobre o cineasta, no entanto, é possível pescar

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eu aproximo esses autores da obra de Rivette é porque acho que há um grande diálogo entre suas idéias presentes em

como responsável por um possivel misdesses pensadores dão pistas preciosas do que possa vir a ser ser esse mistério.


La Bande des Quatre (Jacques Rivette, 1989)

Qual a herança que a mise en scène de Rivette deixa para o cinema contemporâneo? Você identifica algum paralelo forte em novos cineastas? Outra pergunta difícil. Poderia te ruma atitude como a de Jacques Aumont e

ços da mise en scène de Rivette em filmes do Miguel Gomes, Pedro Costa ou algum outro cineasta contemporâneo. Mas prefiro acreditar que sempre que um mistério surge na tela por causa da encenação estamos vendo

dizer que a mise en scène está prati-

um outro tipo de manifestação do que

camente morta. Ou tentar pinçar tra-

Rivette acreditava ser a mise en scène.

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