Pavão Pavãozinho - June 2015

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A Turma do Vet Pav達o-Pav達ozinho Por Axelle Dechelette Julho 2015


obrigada ao ninho das águias, pela casa, pelo café, e às crianças, pelos risos, pelo amor.


oficina de vídeo - documentário realização: ninho das águias parceria: pássaro films oscar louis eleonora iani gonzalo maria maria helena yngrid alan nicole evelyn luisa jonathan ana beatriz daniel bia natalia eric kauani cássia (harmonicanto) ronaldo

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Na misteriosa região do Arpoador, entre umas das duas praias mais conhecidas do mundo, vibra o morro de vistas incomparáveis. No topo do morro está a comunidade do PavãoPavãozinho, onde participo como voluntária desde o ano passado num projeto social liderado pelo grafiteiro Acme. Três gringos surgiram um dia das redes sociais, amigos de amigos, de proximidade surpreendente, para apresentar um projeto que queriam realizar neste verão seu, durante o mês de junho 2015, aproveitando das longas ferias cheias de possibilidades das universidade norte-americanas. Queriam realizar um filme a partir do olhar das crianças, um documentário da atualidade, fotografia do presente, produzido por um grupo de adolescentes do Rio de Janeiro. Demos início ao projeto com a seleção

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das crianças que iam participar. O território do Vietnã, nome da última pracinha antes da mata, é o local mais afastado do Pavão. Fica isolado do resto da comunidade pela verticalidade das longas escadas que levam lá; não existe outro modo de acesso do que um par de pernas ou quatro patas. Consequência e causa, os serviços da prefeitura não chegam lá em cima, no infinito círculo vicioso da marginalidade. O lento processo de urbanização sobe devagar. Só até certo ponto os moradores são cobrados pelo consumo de água e de luz. Depois, é território ocupado, ilegal, em área de risco. Poucos vão além da quinta estação do bonde, aonde a comunidade se recolhe sobre si-mesma. Na concepção inicial, a ideia era trabalhar com um grupo de


adolescentes de mais de 15 anos, quando já se tem maturidade suficiente para pensar a vida. Mas no final, acabaram participando do projeto crianças entre 12 e 13 anos. Foi muito mais fácil acessar a eles do que aos mais velhos, já projetados no mundo adulto e pouco disponíveis para “projetos”. O grupo nos deu acesso a uma infância misturada de vontade de adolescência, de rebeldia, de “já cresci”. É quando ainda podem se refugiar da dura realidade nas brincadeiras infantis, apesar de já ter uma forte consciência do mundo no qual eles vivem. Propusemos para eles realizarem um pequeno filme, cada um sobre o seu tema de interesse. Ao longo das conversas, construíram cada um seu pequeno projeto, alguns com mais maturidade ou estrutura do que

outros; conseguiram criar mais ou menos coerência e foram evoluindo junto com as câmeras, explorando o mundo ao seu redor e no seu interior, cada um a sua maneira. Através das atividades e das horas de filme, nos adentramos dentro do mundo visto desde 1 metro 40. Este texto propõe ser o relato e a análise deste projeto educativo, como uma testemunha dos ensinos e conhecimentos de uma imersão marcada pela troca constante, o aprendizado e a vontade, e uma ilusa esperança que o mundo pode ficar um pouquinho melhor.

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A imersão seguiu o ritmo do nosso contato com as crianças. O grupo se fez e desfez em múltiplas ocasiões; o que pensávamos que ia ser um grupo fechado de quatro ou cinco meninos passou a ser módulos de atividades, de manhã e de tarde, nos quais as crianças participavam com mais ou menos regularidade, segundo os turnos escolares, as tarefas de casa e as obrigações de família. As meninas eram especialmente impedidas pela sua contribuição ao andamento do lar, ajudando, quando não substituindo o papel das mães, muitas vezes solteiras. Das mulheres que conhecemos, muitas assumem a maioria das responsabilidades de cuidado da casa e da família, delegando tarefas às suas filhas. No Pavão, a casa desborda na rua, infusando uma certa familiaridade no ambiente da comunidade. Parece que todos devem assumir um grau de responsabilidade frente ao complexo de famílias, pois estão todas conectadas umas com

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as outras. Na favela se cruzam vários destinos pela procura de uma vida melhor. Uma família do Ceará que se estabeleceu num barraco no Vet; imigrantes nordestinos na busca de melhores oportunidades, ou os outros, sem lar, à procura de uma moradia. A coabitação entre os moradores, as famílias e as idades não segue regras senão aquelas tecidas pelas costumes e as rotinas. As coisas se fazem do jeito próprio ao morro. Tentamos em varias ocasiões refletir com as crianças sobre a família, através de rodas de conversa, atividades de entrevista ou de filmagem e percebemos que o tema é quase tabu. A estrutura das famílias parece pouco estável no sentido de que muitas não seguem o padrão tradicional. Numa mesma casa moram famílias compostas de várias; os irmãos são de mães e pais diferentes, moram com os primos, os avôs. Em alguns casos, o pai mora em outro lugar ou não volta muito pra casa. O espaço público é muitas


vezes ocupado pelas mães, crianças e idosos, os homens trabalham fora. No Vietnã, eles fazem tempo na praça no fim de tarde, quando já escureceu, provavelmente na volta do trabalho. Sentados no banquinho, observam as cores que o sol deixou no céu, conversando silenciosamente. Mas as crianças botam dedo na realidade entre eles, tocando onde machuca: “Meu pai está em casa, hoje ele não trabalha” “O meu também!” “Mentira! Cadê teu pai? Chama ele!” As casas permanecem hermeticamente fechadas aos visitantes de fora do morro, mas tive a oportunidade de entrar em alguma casa, puxada da mão pelo frescor de uma criança. O interior da casa reflete realmente o interior da família, a expõe nas paredes, nos móveis e no solo, e aponta com evidência a distância entre as nossas realidades. Conseguimos falar sobre família só depois de umas semanas, quando

estabelecemos uma confiança maior com o grupo. Sentados em círculo com cinco ou seis crianças, cada uma delas foi falando sobre ela, contando a sua vida, a sua família, entregando relatos muito puros e pessoais. Foi um intenso momento de troca, no qual as crianças se ouviram entre si, compartilhando com nós e entre elas seus sonhos e angustias. Esse falar e ouvir desvelou a semelhança das suas existências, preocupações e projeções. “Quando crescer, vou tirar a minha mãe do morro, vou comprar uma casa para ela, se Deus quiser” (Maria Beatriz) “O que mais gosto no mundo é a minha família, por isso que quero ser jogador de futebol, tentar minha carreira, se eu conseguir vou ajudar muito minha família” (Alan) Um tema é particularmente importante para as crianças: o lixo. Conversada com frequência, foi um ponto de convergência entre todas as preocupações dos meninos. Todos

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falaram sobre sua vontade de deixar a comunidade mais limpa, como o “Grotão”, um lixão na encosta do lado do Vietnã, na qual os moradores costumam jogar seu lixo. As crianças sabem dos problemas, das baratas, dos ratos e das doenças, e demostram sua revolta contra a situação. Isso revela a implicação pessoal que elas tem com o ambiente fora da casa. O morro e a praça, unidos por um laço afetivo, são como uma extensão do lar. As crianças são as que mais ocupam o espaço exterior, e a rua é o terreno de todas as suas brincadeiras, universo dos seus jogos, das suas histórias, carreiras e brigas. Assim, são as primeiras expostas aos problemas resultantes da sujeira do espaço coletivo pois são os principais atores deste. A evidência do problema, a sua imediatez faz dele uma prioridade nas coisas que as crianças “gostariam de mudar”. Com as atividades botaram palavras sobre esse incomodo, sobre seus ressentidos, expuseram sua

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percepção do meio ambiente que rodeia eles questionando ele, se interrogando: “-O que que você gostaria que mudasse aqui? - Ah, mudar tudo, o lixo. Tirar aquele lixo do Grotão, porque é muito lixento aqui em cima. Não dá. Eu, eu mesma, quando tiver 18 ou 19 anos, vou ser presidente daqui do morro, e vou mandar limpar isso tudo. Mas senão, também quero ser modelo.” (Yngrid, Luiza)

O lixo, problemática central na vida da comunidade, foi uma passarela nos guiou à exploração de outros temas. Lixo é política. Aprendemos que a Comlurb já tinha limpado em duas ocasiões o “Grotão”; removeu o lixo das encostas, deixando o espaço livre e fresco de novo; mas, como as crianças tem apontado, os moradores continuam jogando lixo no local, se importando pouco com a


oportunidade de melhoria. Foi assim que abordamos uma problemática central da política na comunidade: a articulação entre a cooperação dos moradores e o alcance dos serviços públicos. Na sexta-feira 25 de junho, Ronaldo, membro da Associação de Moradores do Pavão-Pavãozinho subiu no Vietnã para um encontro com as crianças. Elas tinham se preparado no dia anterior durante uma roda de conversa, na qual refletimos sobre a política no morro. Foram umas atividades especialmente produtivas, e entramos no coração da grande problemática da vida pública na comunidade: quem é responsável pelos problemas do morro? O desinteresse por parte dos poderes públicos ou por parte dos moradores? Iani Antunes, mulher do Acme, artesã e moradora da comunidade fez parte da equipe da oficina, acompanhando ao longo das sessões os progressos e a evolução do grupo, incluindo-nos. A ajuda

dela foi muito valiosa, especialmente na preparação das entrevistas com as crianças, incentivando elas a falar e explorar com profundidade os seus pensamentos. Na véspera da entrevista com o Ronaldo, ela insistiu para os meninos: “Vocês não podem só cobrar dele. Têm que mostrar que vocês são cidadãos conscientes, que se importam com a comunidade, que sabem do que vocês estão falando” Nessa sessão, assistimos à indignação das crianças que começaram a formular só perguntas de reclamo: que faz a Associação para o Vietnã? Porque ela não termina com o lixão do Grotão? Que projetos existem para o Vet? Ronaldo explicou para as crianças com clareza o fazer política na comunidade, e revelou suas particularidades. Num território supostamente fora da legalidade, aquilo não segue os víeis tradicionais. As mudanças e as melhorias precisam da participação

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dos moradores, e isso significa que eles devem estar conscientizados aos problemas para poder contribuir na luta contra eles. No asfalto, na cidade formal, não se precisa da participação da população à vida das ruas, pois está regulada pelos poderes públicos; na favela, na ausência deles, recai nos moradores uma grande responsabilidade no andamento da vida comum. Como os garis não sobem o morro, pelo difícil acesso, os moradores devem descer com o lixo, mas isso nem sempre é uma evidência para todos. “Nós estamos tentando conscientizar os moradores para que eles não façam isso [jogar o lixo no Grotão]. A conscientização tem que ser feita todos os dias. Quem tem mudar aqui somos nós. Desta forma, vamos conseguir mudar alguma coisa” (Ronaldo). As melhorias de estas áreas marginais recai sobre a articulação entre a boa vontade dos poderes públicos e dos moradores. Mas a implicação deles é particularmente importante, pois os governo, por sua vez, destaca pela sua ausência. Pouco interesse é manifestado por parte dele, e faz

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incursão no morro mais sob a cara de repressão do que de progresso. As políticas mais visíveis destes últimos anos parecem estar irremediavelmente manchadas de polêmica e violência. A luta contra o tráfico, as pacificações, as remoções, os excessos da polícia. As relativas melhorias parecem condenadas aos seus terríveis extremos, cuja resposta foi a luta, o medo e uma grande desconfiança. Além de tudo, vários poderes disputam o governo da favela, o que dificulta que ações sejam realizadas. Uma questão pouco falada mas muito presente são as remoções. Um jogo de azar. É sabido na comunidade que os misteriosos “SHM” pixados nas casas significam que são ilegais, que podem ser removidas qualquer dia. Pareceria quase um mito, se não fosse pelas desaparições repentinas de casas, deixando ruinas espalhadas em toda a comunidade. Receber um aviso da prefeitura, anunciando que devido a sua irregularidade, por estar em área de risco, a casa será demolida dentro de uma semana. Pedindo de favor que retire seus pertences. Durante o desenvolvimento das atividades começaram a construir uma


casa na parte de baixo do Vietnã, que duas meninas foram registrar com as câmeras. Quatro homens trabalhavam mergulhados no cimento, sob o olhar empolgado de uma senhora em pé do lado da obra. “- O que você acha desta obra? Ta sendo um sonho pra você? - A gente constrói uma casa aqui, não é fácil, material, mão de obra, e depois vir um e querer tirar... Aí... É caro pra comprar, é caro pra carregar e é caro pra fazer, né?. Graças a Deus as pessoas estão ajudando. Ele levanta cinco horas da manhã pra carregar até aqui. E assim, um ajuda o outro, tem que ajudar o outro né? Que a união faz a força. Eu tô dando meu melhor, estamos todos dando nosso melhor, né? E assim, a gente vá construindo nosso lar. Tem que ter disposição pra fazer. - Mas no final aquele que crê em Deus consegue fazer tudo, né? - Com certeza! Eu acredito que sim, daqui a pouco vocês que estão aqui, vai ver a casona e vai falar ‘olha, que lindo, agora, ela fez a casa, agora nos tamos vendo a casa que foi entrevistada!’” (Naiara, 16 anos, com

a dona da futura casa). De pau-a-pique, de tijolo ou de concreto, a casa própria é um sonho que ninguém desiste, apesar dos riscos dessa ilegalidade. A casa está dentro de um contexto, de um complexo de vizinhança, dentro do que se chama de cidade. Se insiste em subir o morro pelo que há embaixo dele; emprego, escolas, saúde, comércios. Se insiste em ficar no morro pela vida aí construída, os laços ai tecidos. Pela família que se têm na comunidade, pela família que encarna a comunidade. A vizinhança representa uma rede de apoio e solidariedade essencial, pois muitas coisas aqui são feitas com a ajuda dos outros. Os mutirões são comuns para construir casas ou fazer obras, como a construção da casa que as crianças filmaram e entrevistaram. As pessoas não ficam na favela só por causa da pobreza. Se luta por permanece lá, porque existe algo para se defender, um patrimônio para se reconhecer. As comunidades do Pavão-Pavãozinho e do Cantagalo existem desde o inicio do século XX, e muitas gerações construíram sua história. Mas apesar de partilhar um mesmo

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morro, nem sempre compartilharam o mesmo destino. Há muito tempo teve uma briga entre moradores das duas comunidades; o Cantagalo tem origens quilombolas, e o Pavão foi lentamente conquistado pela imigração nordestina. Cada cor de pele do seu lado do morro. As vezes, na fila do bonde ou nas escadas se ouvem os cantados sotaques nordestinos e os ritmos sertanejos... A história da favela é difícil de se descobrir, como andar na escuridão, se guiando com as mãos. É uma história que vai se contando, tecida como se fala e se esquece. Depende da memória das pessoas, e os relatos que cada vez são criados vão substituindo os antigos. É assim como se escreve a história da favela, na instabilidade das falas, ao fio das conversas. Não está registrada além do que nas lendas, nas canções e nos grafites. Por não ficar impressa nos cadernos de história, a favela existe através de uma cultura tão ardente quanto a sua energia. E essa cultura é o local de refúgio e resistência, lá onde o passado encontra os sonhos e o futuro.

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Ao longo deste ano fui me adentrando e entendendo a cultura da favela, um universo efervescente e cheio de paradoxos. O morro faz arte do seu jeito, seguindo seu próprio modelo, rebelando-se contra as regras e normas da cultura dominante do asfalto. Uma certa contracultura, que representa um espaço onde as referências de criação são próprias da favela e fogem do que deveria ser “correto”. Um dos momentos mais emocionantes de todas as atividades foi quando surgiu a ideia de filmar um clipe de funk, protagonizado pelo “Bonde do estrondo”. Daniel é um menino de 14 anos que não falta de caráter. O que ele gosta é usar saia, o cabelo cumprido, e sobretudo de dançar e cantar funk. Gosta de ficar com as amigas na rua, botar um som e dançar, fazer coreografias com toda a galerinha funkera do Viet. Desde o início das atividades fez parte do grupo de crianças que iam participar da oficina, mas ele vinha raramente nos encontros. Apesar de comentar e dar like no grupo do Facebook, ele permanecia ausente fora do mundo virtual, parecia que se escondia para


não ter que subir com a gente. Até que um dia achamos como convencer ele: vamos fazer um clipe de funk. Chamou as amigas, escolheram as músicas, ensaiaram, e no sábado 4 de julho entre risos e brincadeiras realizamos a filmagem, escoltados por um bando de crianças curiosas. Naquele dia, um vento muito forte trazendo a tempestade criou um ambiente selvagem que acompanhou o rebolado com perfeição. A cultura do funk têm isso de visceral e selvagem, como uma explosão de impulsos, desejos e ritmos imparáveis, e tão sexuais. Muitas críticas são feitas àquilo: à sexualização extrema das mulheres, à apologia da violência, à grande agressividade que o funk remete. Não podemos negar que nós mesmos questionamos a moralidade de filmar crianças-adolescentes rebolando sem pudor. Podemos filmar essas bundas se mexendo, oscilando entre a inocência e a provocação? Mas no mesmo tempo, questionamos também o nosso olhar, os critérios segundo os quais julgamos isso inapropriado para as crianças. Revelou até que ponto os ritmos,

movimentos e mensagens do funk são extremamente subversivos frente às normas; mas são a referência, a aspiração que mais corresponde ao universo destas crianças. A cultura da favela se inspira dela mesma e retrata as dificuldades da cidade marginalizada, sublinha com traços perfeitos as adversidades de crescer e viver nela. A violência omnipresente, a dureza das relações humanas. A agressividade de certas músicas reflete a agressividade da realidade. Um exponente maior da cultura da favela é o grafite; é uma projeção dela em imagens que permanecem e marcam o espaço. No Cantagalo e no Pavão-Pavãozinho existe o “Circuito das casas-tela”, um projeto do Museu da Favela, fundado em 2009; são três caminhos educativos que atravessam as três comunidades, seguindo os murais que contam sua história. O Acme é sócio-fundador do MUF e o idealizador desse circuito, cujo propósito é embelecer e valorizar o território com murais que retratam e dão vida a sua tradição, seus episódios, suas personagens. O grafite se distingue da pixação pela sua vontade de ser arte. Faz

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“e eu gosto mais de jogar futebol do que soltar pipa porque, eu não gosto muito de ficar aqui por cima, pra não arrumar problema, fico mais na casa dos meus primos, dos meus amigos, faço futebol... e o meu futuro sempre foi pra ser jogador de futebol, igual ao neymar, para seguir o futuro dele. e o que mais gosto no mundo é a minha familia, por isso que eu quero ser jogador de futebol, tentar minha carreira, se eu conseguir vou ajudar muito minha familia. mas eu nunca vou sair daqui de cima, porque aqui em cima sempre foi meu sonho, eu prefiro continuar sendo pobre do que ser rico, porque você pode arrumar muita coisa ruim sendo rico.”

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da comunidade uma galeria a céu aberto, cuja obra principal são as pessoas que nela residem. Um convite à exploração do espaço, e assim ao seu reconhecimento. As pessoas da comunidade estão constantemente expostas ao grafite, que está presente em todos os cantos. As obras são flutuantes, aparecem e são apagadas, pintadas por cima. Marcam o espaço e convidam à apropriação dele. Dão forma às lutas e aos sonhos e abrem nas paredes portais de escapatória. Não é por acaso que existem tantos projetos sociais que propõem dar para as crianças acesso à cultura. É justamente o lugar privilegiado para distorcer os traços da realidade e fazêlos mais amenos. Acme possui uma visão muito desenvolvida do que pode ser feito para melhorar as condições de vida na favela, começando com as crianças. Confirmei ao longo deste ano o que ele tem me falado várias vezes; aqui, a infância não tem seu lugar. São obrigadas a crescer rapidamente para

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poder enfrentar tudo o que a favela exige delas. A dura escola da vida acrescenta de alguns anos as crianças. Não saberia dizer se é no rosto, no corpo ou no jeito, mas sempre há essa maturidade que dilui a idade. Realizamos em duas ocasiões um passeio com as crianças no Cantagalo; fomos visitar o projeto Harmonicanto, entrevistar a fundadora Cássia Oliveira e filmar as crianças. É uma ONG de “música e cidadania”, onde aproximadamente cem crianças recebem aulas de música, lancham, brincam e fazem os deveres de casa. Mais do que tudo, Harmonicanto providencia um espaço para as crianças serem crianças, um lugar cheio de cores, brinquedos e curiosidades, preservado e destinado para a infância. Por sua parte. Ninho das Águias tem o mesmo objetivo: dar para elas um espaço diferente da sua realidade, onde possam ir ao encontro dos seus sonhos. Nos meios favorecidos, a casa e a família são o


refúgio das crianças.. No morro, elas costumam ficar na rua, expostas a tudo que acontece nela. Por isso, esses projetos procuram criar esses espaços onde a infância não têm limites. O futebol, de certa forma, já cumpre essa função para os meninos; nele, cultivam uma paixão, se projetam e sonha em voar mais alto. “Eu gosto mais de jogar futebol do que soltar pipa. E o meu futuro foi sempre pra ser jogador, igual ao Neymar, seguir o futuro dele.” (Alan) As crianças foram se interessando no que aprenderam: mexer com a câmera, filmar, fazer entrevistar. Tanto eles quanto nós enxergamos o mundo de forma diferente, através do olhar do outro. Aprendemos juntos, trocamos ideias. Acredito que vimos novos horizontes se abrir para as crianças. Atingiram alturas desconhecidas, de onde enxergaram novas possibilidades. “O sonho que eu tenho é de ser jornalista, e agora eu tô realizando um

sonho que eu já tinha desde pequena, e tô aprendendo né? E quando mais estão me ensinando é bom pra mim, tá sendo muito legal, e a minha mãe também tá me inspirando direto, para eu fazer, para eu aprender mais, para mexer com as câmeras; tá sendo muito bem legal”. (Yngrid)

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As imagens desse impresso s達o resultado de frames retirados do filme por gonzalo e de um iphone na m達o da axelle.


Este texto não tem pretensão acadêmica, mas foi elaborado com as seguintes referências: Marco Antônio Mello e Arno Vogel, Quando a Rua Vira Casa, IBAM, Rio de Janeiro, 1980 Yi-Fu Tuan, Topofilia, 1874 Leandro Tartaglia, A paisagem e o grafite na cidade do Rio de Janeiro, Revista Geral da Cidade do Rio de Janeiro, nº7, 2013 Natalia Iorio, O silêncio pacificador, Monografia, PUC-SP, 2013 Museu da Favela, Circuito das Casas-Tela , MUF, Rio de Janeiro, 2012





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