Subtrópicos n23

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revista da editora da ufsc

novembro 2015

#23

Blue Jasmine: o real e seu duplo • O contrato do filme • Carlos Asp e a (in)útil paisagem • Impacto imediato • A dor que não acaba • Os giros de Roland Barthes • O lugar da mulher • Fotografia: Eduardo Frick


Javier Aguirresarobe/Perdido Productions

cinema

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expediente

é professor de filosofia (UFSC) e autor do livro O homem que ficou vesgo (Editora Insular, 2007).

Jason de Lima e Silva (Florianópolis, 1975)

Blue Jasmine: o real e seu duplo Personagem de Cate Blanchett no filme de Woody Allen aprendeu, de forma amarga, que olhar para o outro lado apenas a faz enxergar a sombra de uma ilusão que se tornou mais verdadeira que ela mesma

revista da editora da ufsc

novembro 2015

#23

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Reitora Roselane Neckel Vice-Reitora Lúcia Helena Martins Pacheco EDITORA DA UFSC Diretor Executivo Fábio Lopes da Silva Conselho Editorial Fábio Lopes da Silva (Presidente) Ana Lice Brancher

Jason de Lima e Silva É possível viver sem ilusões? Se não, é razoável sustentar as mesmas sempre, durante toda a vida, sob o risco de certo disparate entre a convicção íntima e os fatos, o deslumbre e a frustração? Mais uma: quanto do real é possível suportar quando a desilusão se torna maior do que o prazer de iludir-se e deixar-se iludir? Perguntas sobre as quais, por sorte, nenhum filósofo detém o privilégio, afinal, quem já não pensou que tudo seria melhor se...? Ilusão: o se permanece preso nos labirintos da linguagem, como a condição de uma possibilidade não mais possível. A vida segue, o real não barganha, e desilusões não passam muitas vezes de ilusões que não podíamos

Andréa Vieira Zanella Andréia Guerini Clélia Maria de Mello Campigotto Luis Alberto Gómez João Luiz Dornelles Bastos Marilda Aparecida de Oliveira Effting Editor Dorva Rezende Planejamento gráfico Ayrton Cruz Foto da capa Ayrton Cruz Revisão Aline Valim Gráfica Tipotil Tiragem 1,5 mil exemplares

Acesse a versão eletrônica da Subtrópicos no site da Editora da UFSC — www.editora.ufsc.br

evitar sobre algo ou alguém cujo sentido ou destino nunca seguramente nos pertenceu. Blue Jasmine (2013), de Woody Allen, conta a desilusão de Jasmine (Cate Blanchett) sob uma sequência de quedas: perde o marido, o filho, o patrimônio, o dinheiro, as amigas, quase tudo de uma vez. Mas não perde a pose, nem o impulso de mantê-la a qualquer custo, quando precisa tudo recomeçar. E para não perder um homem de boa posição, que casualmente surge e por quem se encanta, mantém-no iludido: sobre seu passado, seu trabalho, sobre quem realmente é. “Posso ter floreado alguns fatos”, comenta com sua irmã, “e omitido detalhes desagradáveis, mas os sentimentos, as ideias, o humor... não é isso o que sou? as pessoas não se reinventam?”. Reinventar-se aqui é uma tática para livrá-la de tudo o que foi e ainda é, já que nada lhe restou, senão a ilusão de que tinha coisas e era algo: a mulher de Hal (Alec Baldwin), o empresário bem-sucedido de Manhattan, pai exemplar, homem sedutor, filantropo picareta. Mas como surge essa personagem, Jasmine? Falando sem parar. Fala disparatadamente a uma senhora que sequer conhece,

Campus Universitário — Trindade Caixa Postal 476 88010-970 — Florianópolis/SC Fones: (48) 3721-9408, 3721-9605 e 3721-9686 editora@editora.ufsc.br www.editora.ufsc.br www.facebook.com/editora.ufsc.5


do avião ao aeroporto. Nada de mal nisso: quantas pessoas não monologam diante dos outros sem que precisem de ouvidos? Jasmine vai ao encontro da irmã, Ginger (Sally Hawkins), cujos genes eram piores do que os seus, segundo comentavam seus próprios pais. Quando chega ao endereço indicado em San Francisco, toda a sua elegância destoa do cenário ao redor, como acontece à personagem Blanche em Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams (1947): “Sua expressão é de incredulidade, e ela parece chocada”. Blanche e Jasmine jamais cogitaram o apelo às suas irmãs pobres. Blanche chega de Belle Rêve e Jasmine ouve Blue Moon desde quando encontrou Hal pela primeira vez. E se uma regula o desamparo pelo whisky, a outra prefere a vodca, mais uns remedinhos. Augie, o ex-marido de Ginger, não esconde o incômodo pelo aparecimento dessa irmã, e ele tem suas razões (mais adiante vemos o golpe que toma de Hal, que subverte a sua sorte). Mas “o que ela entendia de finanças?”, pergunta Ginger, por impulso de zelo fraterno. “Bobagem, não me venha com essa!”, responde Augie: “Fica anos casada com um cara envolvido em fraude imobiliária e bancária, e vem me dizer que ela não sabia de nada. (...) quando ganhava diamante e peles, ela olhava para o outro lado”. Técnica da ilusão: olhar para o outro lado. Não que Jasmine não soubesse quem era o marido ou que sua especialidade fosse os grandes golpes: ela apenas olhava para o outro lado. Clément Rosset publica em 1976 um ensaio sobre a ilusão: O real e seu duplo. “Na ilusão”, escreve ele, “quer dizer, na forma mais corrente de afastamento do real, não se observa uma recusa da percepção propriamente dita. Nela a coisa não é negada: mas apenas deslocada, colocada em outro lugar”. A percepção é atravessada pelos fantasmas do próprio desejo, ao passo que passamos a ver a realidade como quem olha de soslaio algo incapaz de obscurecer a convicção sobre o que somos ou nos acontece. O iludido olha o que quer ver, e se olha para o outro lado, é para enxergar apenas o que não se sobrepõe ao entusiasmo de sua fantasia. Pode até reconhecer algum inconveniente, mas não o associa a sua escolha. Aceita então o fato, mas não seus efeitos. Sabe do que se passa, mas não consente. A ação do filme se dá neste presente: morar com a irmã e seus dois filhos, compartilhar às vezes o espaço com o amante de Ginger e seus amigos. Mas esse presente é interrompido por reminiscências, cenas de um passado ainda recente. Os olhos de Jasmine então caem num lugar desconhecido, sua expressão muda, às vezes fala sozinha ou xinga alguém que não está na cena. E aos poucos seu drama nos é revelado. Uma de suas primeiras lembranças é na casa de campo: vemos Jasmine com suas amigas e seus respectivos maridos ricos, os quais se retiram do jardim com papéis em mãos, quando uma das mulheres comenta:

“Eles vivem escapando do Departamento de Justiça”. Jasmine depois retruca: “Nunca sei dos negócios de Hal. Não tenho cabeça para esse tipo de coisa”. E uma amiga fala da expressão ultimamente famosa: chama-se “olhar para o outro lado” (to look the other way). Não se trata de não ver o que se mostra, mas de se concentrar apenas no que não lhe afeta o desejo, medido pela ilusão daquilo por cuja posse não haveria infelicidade. Tanto via e sabia Jasmine que nada esconde dos filhos de Ginger, num bar. Bem curiosos a respeito da reputação de loucuras da tia, e assustados ao mesmo tempo, ouvem-na contar como tudo desmoronou rapidamente, a ansiedade, o medo da morte, os pesadelos, os remédios, o colapso nervoso: “Eu suspeitava que nem tudo o que Hal fazia era cem por cento legítimo: tinha que ser idiota para não suspeitar que seu sucesso fenomenal era bom demais pra ser verdade”. Vejam, ela não pôde negá-lo, nem no presente, nem no passado: talvez até tenha se feito de idiota, e por isso mesmo não pôde encarar o que restou à sua frente. Entre a vida proveitosamente iludida e o cerco inexorável do real, a ação se vê paralisada, o passado repete o malogro, o presente está disperso e o futuro não se abre: o mundo se torna maior do que todos os sonhos juntos, e o impacto da queda é proporcional à ascensão do mito inventado para si mesmo. Pois a ilusão duplica o que há e o que somos. “No par maléfico que une o eu a um outro fantasmático”, escreve Rosset, “o real não está do lado do eu, mas sim do lado do fantasma: não é o outro que me duplica, sou eu que sou o duplo do outro. Para ele o real, para mim a sombra”. Quem é Jasmine senão a sombra de uma ilusão que se tornou mais verdadeira que ela mesma? Senão o duplo de um outro perdido na memória, o fantasma de uma vida bem aproveitada? Talvez o único ato propriamente seu tenha se realizado na plenitude da vingança, o que dá justamente unidade a toda narrativa: eis o seu grande lance antes da bancarrota, quando não mais pôde efetivamente olhar para o outro lado. Mas como suportar as consequências desse feito sem volta? Entre as ilusões de si e as desilusões do mundo, Jasmine chega em pedaços ao fim da história. Se ela mudou de nome porque “Jeanete não tinha brilho”, após a trágica peripécia que a persegue na memória e outra reviravolta no tempo contínuo de sua ação, Jasmine se torna blue, as ideias se confundem e as palavras se misturam. “Em cada esquina cai um pouco a tua vida / Em pouco tempo não serás mais o que és”, não canta Cartola? A ilusão da arte não duplica o mundo por um além redentor, nem duplica o que somos pela representação de um destino feliz. A ilusão da arte mostra o que, se já não está definitivamente cindido, encontra-se ao menos tenso em nós: que caminho percorremos quando há muitos outros lados possíveis, nenhum necessário e todos sem volta?

lançamentos da

EdUFSC

livros

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Demorar: Maurice Blanchot autor: Jacques Derrida Este livro, traduzido por Flavio Trocoli e Carla Rodrigues, pertence a uma linhagem herdeira do nosso breve século 20 que articulou a catástrofe à escrita. Nele, Jacques Derrida analisa em detalhes O instante de minha morte, de Maurice Blanchot, e coloca em cena os limites frágeis da ficção e do testemunho, que, como a literatura, padecem por não ter essência e por estar à espera de um ato de leitura e de transmissão.

Cálculo 1 autor: Nilo Kühlkamp Em matemática, combinar simplicidade, clareza e rigor é tarefa árdua. Essa dificuldade é o que motiva autores a escrever livros, de acordo com suas concepções do assunto, apesar do grande número de títulos existentes no mercado, especialmente em Cálculo. É o caso deste livro, do professor Nilo Kühlkamp, em sua 5.a edição pela Editora da UFSC. A obra traz exemplos e exercícios aplicados às Ciências Agrárias, e que também podem ser aplicados a outras áreas, de grande valia também para professores e alunos de qualquer outro curso em que se utilize o cálculo de funções de uma variável.

Gestão, Usos e Significados das Águas: Conflitos e Convergências organizadoras: Adriana Marques Rossetto, Maria José Reis e Neusa Maria Sens Bloemer Debater o uso das águas significa identificar como esse patrimônio vem sendo utilizado e avaliar as repercussões das aceleradas mudanças em seu uso que vêm ocorrendo no mundo globalizado. Como recurso e bem patrimonial indispensável para qualquer sociedade e qualquer cultura, a água é, sem dúvida, merecedora de atenção especial. Os conflitos e as convergências a ela relacionados promovem deliberações e estudos sobre os modos e significados de sua apropriação e gestão, como os apresentados nesta coletânea, publicada pela EdUFSC em conjunto com a Univali Editora.

notas universitárias w Estão abertas até o dia 8 de janeiro de 2016 as inscrições para o Concurso de Tradução de Poesia da EdUFSC. w O certame homenageia o editor, tradutor e poeta Cleber Teixeira. Confira o edital no link: http://www.editora.ufsc.br/noticia/ detalhe/id/250


cinema

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O “era uma vez” do começo de Underground, de Emir Kusturica, desmonta o discurso da verdade ao mesmo tempo em que apresenta, de forma alegórica, a real brutalidade da guerra e de quem com ela lucra

Vilko Filac/Komuna

O contrato do filme

divulgação

Demétrio Panarotto O escritor, romancista e crítico Amós Oz nos fala, em seu E a história começa, daqueles começos de histórias que considera irretocáveis na literatura. Seleciona dez — entre eles, O Nariz, de Gogol, Um Médico de Aldeia, de Kafka, O violino de Rothschild, de Tchekhov —, e nos revela, na introdução, que “qualquer começo de história é sempre um tipo de contrato entre o escritor e o leitor”. Há, ainda, (é óbvio) todo tipo de contrato, e Oz nos fala de alguns deles para reafirmar que o contrato firmado, já no começo, irá conduzir o leitor através das vielas — independentemente de quais sejam — da história. É difícil começar, e Oz sabe bem disso. Sabe, também, que não são todos os autores que conseguem firmar esse contrato com precisão. Sabe mesmo que alguns nomes considerados imprescindíveis em qualquer biblioteca também têm textos de menor expressão, em que os começos parecem frágeis. Depois de me sentir provocado pela leitura que Amós Oz faz em relação à literatura, dediquei algumas horas a pensar em começos de filmes que pudessem ter o que o autor de Não Diga Noite chama de contrato. Voltei, a partir dessa provocação, a assistir a vários deles (emblemáticos para mim) com esse olhar, procurando neles um bom começo, um contrato que armasse e sustentasse a história. E selecionei, por ora, um filme que já havia me deixado intrigado e que se manteve assim após eu voltar a vê-lo (mais de uma vez): Underground, de Emir Kusturica, carrega em seu começo os elementos essenciais que consi-

dero (junto com Oz) imprescindíveis para o pontapé inicial de uma grande obra. Se, para Oz, o começo de um livro (já no primeiro parágrafo ou capítulo) deve expor as regras daquilo que o leitor vai acompanhar ao ler um livro, Underground faz o mesmo com o espectador. O começo do filme é sensacional. Uma “fábula cinematográfica”, para pensarmos junto com Jacques Rancière. O texto inicial, impresso na tela, nos previne para isso: “era uma vez um lugar, que tinha como capital Belgrado, 6 de abril de 1941”. Esse “era uma vez” usado pelo cineasta, como todos sabem, faz referência às fábulas tradicionais, como as conhecemos, sinalizando para o espectador que tudo não passa de uma história. Ou seja, Kusturica faz com a imagem um movimento muito parecido com o usado pela literatura: o cineasta nos prepara para o fato de que não devemos acreditar na história que está sendo contada, ou de que devemos acreditar de outro modo, duvidando. O “era uma vez”, em Underground, desmonta o discurso de verdade — muitas vezes reforçado pelo famoso “baseado em uma história verídica” —, mesmo que o filme (como se fosse um documento) nos dê a ideia, e a data nos revela isso, de que fala supostamente a partir de fatos e datas “reais”. Desmontar o sentido de verdade nada tem a ver com contar uma mentira; Kusturica, e é isso que o torna um cineasta como poucos, apenas se utiliza de uma outra ferramenta para se posicionar criticamente diante de um acontecimento. Esse é o charme da jogada. É uma fábula, mas não é uma fábula convencional,


rece em cena correndo, como um exercício de se apresentar à beira do precipício, em que o tropeço parece ser o inevitável. O filme começa acelerado. O espectador não apenas escuta a trilha sonora, mas vê a banda presente em cada momento do filme. A música não se desprende da cena: música, texto e imagem caminham juntos. Ou melhor, tudo é texto. Depois das primeiras movimentações, as sombras da carroça, dos personagens e da banda, que se projetam nas paredes das casas, anunciam que o espectador vai entrar em um outro mundo, de um grande faz-de-conta. Na parede, os personagens parecem manuseados pelas mãos do diretor: são marionetes — outra referência muito forte para aquela região da Europa. Em Underground, com 50 segundos de filme, o contrato já está firmado, já sabemos do que se trata. Os personagens já não parecem reais; nos dão, simplesmente, a impressão de que estamos em um grande palco. O palco da vida. Esse jogo, da vida transformada em um grande palco, faz com que, contraditoriamente, o tom de realidade do filme seja ainda mais duro, mais perverso. Os personagens retornam de um evento em que um deles foi filiado ao partido comunista. A filiação ao partido nada mais é do que um gesto de resistência à iminente invasão nazista. Todavia, o modo como a cena acontece apenas acentua a ideia da celebração: os dois personagens, Marko e Blaky, arremessando, da carroça, panfletos em cima da banda, com armas em punho (sendo descarregadas em várias direções) e bebidas na mão, compõem uma cena de um “faroeste” filmado no leste europeu. O significado desse faroeste é outro. A guerra não é entre os mocinhos e os bandidos. O inimigo está fora, mas está dentro também.

Depois que o bombardeio aéreo posiciona as peças no tabuleiro, os personagens, como marionetes, serão manuseados nos porões que ambientam o filme. O filme, basicamente, se passa no subsolo — e não há como não lembrar de Memórias do subsolo, de Dostoievski neste ponto; é no underground que os personagens se alimentam e alimentam a história. Marko e Blaky enriquecem produzindo armas que vendem no mercado negro para a resistência. Enquanto um dos personagens, sem saber do que acontece lá fora, sobrevive nos porões, o outro, alimentando uma mentira que se sustenta durante a Segunda Guerra e imediatamente depois dela, percorre as rodas da alta sociedade iugoslava. A metáfora montada é precisa: coloca-se o “povo” no porão, distante das decisões que o precedem, dá-se a ele uma função (amparada em um discurso de resistência), um pouco de bebida e de divertimento, e a vida segue. A Segunda Guerra termina, mas a história continua sendo alimentada no subsolo, descobrem-se outras guerras para dar conta da produção de armas e para manter a chama da resistência acesa. O ser humano, manuseado, parece se adaptar com facilidade a qualquer situação. Emir Kusturica faz de Underground a sua obra mais emblemática. Os personagens são marcantes, hilários, irônicos, debochados, tomados pelos interesses mundanos, e constantemente embriagados. A história termina como um corpo desgrudado — o cineasta já havia anunciado essa cisão no começo —, e o filme, como um todo, nos revela que o mundo ali fora, ou ali embaixo, é sempre mais cruel que a realidade, ou talvez o ser humano seja expert em fazer histórias para amenizar o peso bruto da realidade. Bum Bum Bum Bum Bum Kalashnikov.

DEMÉTRIO PANAROTTO (Chapecó, 1969) é músico, poeta e professor universitário (UFSC). Autor de Borboletas e

pois não há nela a inclusão de animais falantes, nem mesmo da boa e velha moral com o intuito “educativo”; muito menos uma fábula kafkiana, em que a densidade da escuridão parece reforçar o isolamento e a penumbra, como se o espaço com poucas cores acentuasse o tom burocrático, funesto e asfixiante da história. É uma fábula com cores cinzentas, em que a celebração emerge em vários momentos do filme, como se fosse a única salvação. É uma fábula composta por vários acontecimentos que em, em outras circunstâncias, deflagrariam certa apreensão, mas que, no filme, são tratados pelos dois personagens principais, Marko e Blaky, como se fossem parte de uma grande “farra”. É em algum momento uma carnavalização da realidade que transforma a vida em uma celebração, uma alternativa (no filme) para cruzarmos o calvário que a realidade nos impõe. A celebração não é pra sempre, mas, enquanto é possível, suaviza os acontecimentos. Assim: o texto, as imagens e a sonoridade evidenciam, desde o começo, por onde o filme vai caminhar. A música, que abre a cena, é Kalashnikov, de Goran Bregovic, conterrâneo de Kusturica, e responsável pela trilha sonora do filme. Ela é tocada por uma banda composta por instrumentos de sopro e percussão que lembra as bandas populares (com influência cigana) do leste europeu. A música, com uma acentuação irônica, tem por trás um significado bélico e será tocada em vários momentos, como se fosse um deboche sublinhando cada cena. Na cena inicial — depois dos créditos, da dedicatória e da epígrafe —, desmontando as hierarquias da música europeia erudita (de apresentações em espaços fechados, do público em silêncio e comportado, dos músicos sentados), a banda apa-

Abacates (Editora Universitária, 2000); Mas é isso, um acontecimento (Editora da Casa, 2008) e 15´39” (Editora da Casa, 2010); do ensaio, Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé (Lumme Editor, 2009); e de Ares-Condicionados (Nave Editora, 2015).

Vilko Filac/Komuna

cinema

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6 arte

Na Costa de Dentro, no Sul da Ilha de Santa Catarina, o artista encontrou um espaço apropriado para depositar o seu corpo, a sua obra e a lenta cartografia pessoal de seus “campos relacionais”

fotos ayrton cruz

Carlos Asp e a (in)útil paisagem

Fernando Boppré O cenário Atlântico Sul. Sul da Ilha de Santa Catarina. Encosta. Costa de Cima. Dentro da Costa. As localidades chamadas Costa de Dentro e de Cima estão situadas nas cercanias da enseada que enfrenta os Mares do Sul, o que lhes confere um ar fresco e selvagem. A dita costa é formada por uma cadeia de montanhas rochosas cujas quedas d’água formam poços cristalinos, tendo aos pés o alagadiço vasto que os antigos acordaram chamar de Pântano do Sul. É por isso que as primeiras ocupações e lavouras começaram ao sopé dos morros e não pela planície. Cenário úmido onde o verde invade a densa mata e azul é o mar e o céu intenso. A trilha sonora é composta pelo trinado nada ritmado e pouco discreto das aracuãs, saracuras, dos tucanos e das gralhas, tendo ao fundo o marulho do Atlântico e, em dias de chuva, o rumor das vertentes d’água que se distribuem assimetricamente pelo terreno íngreme. Lá reside Carlos Asp. Lá também fez casa e galeria o casal de colecionadores Wolfgang May e Vera Bicca. Não me arrisco a abordar a conjunção astral que os colocou naquele canto do mundo. Muito menos a combinação

de eventos aleatórios, a matemática da incerteza, que juntou um alemão (Wolfgang) e dois gaúchos (Vera e Asp). Eles se conhecem há mais de 30 anos e, em julho deste ano, calhou de realizarem — Wolfgang e Vera na organização, Asp como artista convidado — a primeira exposição do espaço “b ananas”. O local tem uma arquitetura arrojada (Vera é arquiteta e autora, junto com Wolfgang, do projeto) e nos faz lembrar dos traços e transparências da arquitetura moderna, mas com o contraponto da vegetação barroca, desprovida de linhas retas, que a cerca. Embaixo das colunas que erguem os módulos expositivos, há um lago com o formato do mapa da América do Sul. foto Fernando Boppré

A exposição, o artista “Preserve-a” é uma placa de madeira pintada à mão pelos moradores da praia do Matadeiro. Asp a achou no meio do caminho. Caída, fora de circuito. Viraria caldo no oceano. Ou lenha. A inscrição virou ready-made logo na entrada da exposição. Asp é o artista que mais exercita a “pedra [drummondiana] no meio do caminho”. A

sua obra recente tem sido uma épica ascese do acaso. Poucas vezes vi ou encontrei Asp indo em busca de algo. As coisas, inexoravelmente, e a seu tempo, vêm parar diante de si. É o Método Asp. Não se trata de algo previamente deliberado. Não há nessa postura nada de performático. O que existe são as circunstâncias de uma vida que acredita em Deus, nos astros, na família, na arte e no amor. Tudo isso ao mesmo tempo. Estamos falando aqui dos conflitos decorrentes dessas crenças e, sobretudo, do sublime e do grotesco surgido desses embates que, com o passar do tempo, modelaram a face de sua estética. Asp é mais um desses artistas que o tempo todo nos mostram paisagens — céu, mar, terra; folhinhas, formigas, limos — mas que na verdade nos entregam autorretratos amorosamente brutais. “A (in)útil paisagem”, que dá nome a sua exposição, traz uma fina ironia: como desenhar paisagens estando em meio à mata verde, tendo o mar a se estender até onde a vista alcança? Em sua humildade, Asp deixa transparecer a impossibilidade de competir, mesmo artisticamente, com a natureza preservada, com a exuberância daquilo que existe, apesar do humano. “B ANANAS”, o ESPAÇO O espaço expositivo não tem nada da assepsia do cubo branco modernista. É ponto que conta a favor do “b ananas”. As imensas vidraças deixam entrar e escapar a paisagem e o olhar. No meio, um cubo vazado, construído com restos de madeira. O sofisticado projeto arquitetônico convive com a precariedade dos materiais expográficos — incluindo os trabalhos do próprio Asp, que desenha sobre embalagens, bulas de remédio etc. Em exposição, uma porção significativa dos trabalhos de Asp, tanto recentes quanto de décadas passadas (a partir de 1970),


Todos os atributos de uma tartaruga, Carlos Asp os têm. E o fato de manter o hábito de andar sempre atrasado e ao léu, em busca de seu título de “doutor honoris causa em causa própria”, como ele gosta de dizer, apenas reforça essa impressão. Ele é o Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas, mas invertido. Ele tem algo de caracol também: a casa são sacolas plásticas ou de tecido amarradas às mãos. O ateliê é móvel, o que chama de “bolsa da arte”, uma bolsa que serve para guardar seus remédios e trabalhos, uma espécie de reserva técnica, farmacinha e galeria ambulante.

uma leve camada de umidade, com o viscoso, o resinoso. Uma roupa lenta é uma roupa úmida: o personagem de Castilho dizia: “que horror! Até já sinto o corpo todo lento”. A vida não se cria sem umidade e, portanto, o brotar e o nascer estão associados à lentidão. Em termos náuticos, um navio lento é aquele que não obedece bem à ação do leme. O timoneiro vagaroso não sabe para onde vai. Sabe apenas que parte rumo ao sem rumo.

é curador e historiador, integra a equipe do Museu Victor Meirelles/IBRAM/MinC, de Florianópolis.

Asp, o antropolento

Ao longo dos mais de 10 anos que o conheço, tenho percebido que a sua média de velocidade, que sempre foi lenta, começa a despencar drasticamente. Almoçar ou jantar ou fazer qualquer refeição com Carlos Asp significa adentrar à longa duração. Porque o mastigar nunca termina. Ele sente o gosto de cada alimento, de cada tempero. Por diversas vezes, eu e ele ficamos o dia inteiro sentados à mesa da cozinha, emendando uma refeição na outra. E ele sempre mastigando e, é claro, falando. Ele conversa como um beatnik, uma fala infinita, carregada de tons proféticos, um Walt Whitman tropical. Ele fala por metáforas, e as imagens atendem pela poesia. Tenho percebido um outro fenômeno interessante em Asp: cada vez está mais difícil para ele falar e caminhar ao mesmo tempo. Afinal, são coisas absolutamente diversas. Quando ele desenvolve a sua retórica, a locomoção fica afetada. E vice-versa. Lembro-me, recentemente, de que ele passou uma manhã inteira para conseguir colocar um tênis nos pés. Depois do almoço, olhei para seus pés, e o tênis continuava fora do calcanhar. Não obstante, eu tinha aprendido coisas sobre os gregos, os Novos Baianos e sabia detalhes incríveis sobre a vida de seu avô que veio da Suécia. Há uma acepção do vocábulo “lento” que me parece instigante. É a relação entre a lentidão e a umidade: úmido, orvalhado,

Fernando Boppré (Florianópolis, 1983)

pertencentes à coleção de Wolfgang e Vera. É algo importante poder ver montadas as “3 escadas moles para lugar nenhum”, de 1986, que foram selecionadas para o Salão Nacional (eu só havia visto fotos desse trabalho até aqui). Outro exemplo: logo na entrada, éramos recepcionados por um trabalho em tecido, de 1982, cuja forração floral já desbotara. No dia em que realizamos o ensaio fotográfico presente nestas páginas (cujas fotos, de Ayrton Cruz, relatam com extrema sensibilidade o caráter do artista), Asp “restaurou” as flores que atualmente quase não têm cor com uma vistosa flor de hibisco que lhe parou, ao acaso, nas mãos. A Costa de Cima, onde aluga seu casebre, é parte distante, fora do centro, portanto excêntrica, da Ilha. Quando se diz que se mora ou se quer morar lá, a parte central da Ilha questiona quase indignada: “Mas não é muito longe?” Apesar de ser um sujeito relativamente isolado (ele costuma aparecer pelos museus com certa frequência, com sua bolsa de arte repleta de desenhos), os desenhos de Asp nos falam sobre o relacionar-se. Há quase duas décadas, ele vem fazendo o que chama “campos relacionais”. Do que se trata nesses fields (como ele próprio gosta de dizer e anotar em seus trabalhos)? Uma espécie de esquema, de estrutura, cujas variações são infinitas. Trata-se de esferas desenhadas a partir de algum molde que se torna um estêncil. Geralmente, serve uma tampa redonda, um elemento vazado de embalagem industrial ou mesmo um pires. Esses círculos recebem densa camada de lápis de cor dermatográfico. Ou o lápis ou caneta que lhe estiver nas mãos. Esses círculos são repetidos à exaustão, uns a uma certa distância dos outros, numa ou em várias superfícies, que, futuramente, podem ser coladas umas às outras. O peso que a camada de cor confere a essas circunferências produz uma gravidade capaz de atrair um círculo ao outro, perfazendo assim a relação entre corpos que, por si só, são separados e sem modo de encaixe. Asp conta que teve a ideia de seus “campos relacionais” após conversar com uma física acerca dos “campos gravitacionais”. A migração de um conceito da física para as artes visuais tem muito a nos dizer sobre a psicanálise: “A relação sexual não existe”, disse Lacan.

arte

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geografia

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Processo de Consulta Prévia, Livre e Informada é a solução para equilibrar o licenciamento ambiental e realmente dar voz àqueles que são afetados por grandes projetos

PHILIPPE HANNA (Ribeirão Preto, 1983) é mestre em

Antropologia Social (UFSC, 2009) e atualmente faz doutorado em Geografia Cultural pela Universidade de Groningen, Holanda.

Philippe Hanna Grandes projetos que causam impactos em povos indígenas e outras comunidades tradicionais, como quilombolas e pescadores, são cada vez mais frequentes no Brasil e em outros países. De acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, como também a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da ONU (ambas assinadas pelo Brasil), o planejamento e a instalação de tais projetos devem ser submetidos ao processo de Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI), do qual as comunidades impactadas têm o direito de participar. Isso se deve ao fato de que modos de vida tradicionais e suas culturas são intrinsecamente ligados ao meio ambiente em que se localizam, e mesmo impactos que sejam aparentemente “pequenos” podem causar danos irreversíveis a esses modos de vida e sua subsistência. No processo de consulta prévia, toda informação sobre um determinado projeto deve ser apresentada de maneira transparente, trazendo dados sobre impactos de uma maneira compreensível à comunidade (o que quer dizer, em uma linguagem não

técnica), e antes de qualquer decisão sobre o projeto ter sido tomada. Comunidades afetadas devem ter o direito de influenciar até mesmo os aspectos técnicos e, caso os impactos sejam inaceitáveis, de recomendar que o projeto não siga em frente. Em situações em que comunidades discordem completamente da implementação de um determinado projeto (por exemplo, no caso de Belo Monte ou das usinas hidrelétricas planejadas para o Rio Tapajós), o mais sensato seria desistir da sua instalação. Isso não se deve apenas ao respeito à autodeterminação das comunidades locais, mas também aos altos custos associados ao conflito com essas comunidades. Esses custos podem incluir batalhas judiciais, bloqueio do local de construção, gastos com mitigação de impactos ambientais e sociais, dano reputacional, entre outros. Estudos demonstram que o custo de conflitos com comunidades pode ser bastante alto para grandes projetos. Além do custo de tempo com pessoal dedicado a apaziguar os conflitos (incluindo CEOs e alta gerência), custos de conflitos com comunidades locais são estimados em torno de U$ 20 milhões por semana de atraso, no caso de grandes projetos de mineração. Respeitar comunidades locais e seus direitos internacionalmente reconhecidos é o primeiro passo para empresas evitarem conflitos e trazerem resultados positivos tanto para as comunidades quanto para elas mesmas. Estender o direito ao Consentimento Prévio Livre e Informado a todas as comunidades potencialmente afetadas, não apenas a povos indígenas e outros povos tradicionais, seria um avanço importante, pois esse mecanismo jurídico garante que empresas e comunidades impactadas discutam em pé de igualdade os projetos planejados e as suas repercussões. Isso reduziria os custos com conflitos

agência brasil

Impacto imediato para empresas, estabelecendo claramente quais projetos serão capazes de conseguir uma “Licença Social para Operar” — isto é, quando a comunidade considera que os benefícios provenientes de um determinado projeto são superiores aos impactos negativos e informalmente aceite as operações em seu território — e quais são inviáveis devido à oposição dos grupos impactados, mesmo que uma licença de operação seja concedida pelo Ibama. Principalmente após a tragédia que ocorreu em Mariana, comunidades afetadas por grandes projetos estão mais empoderadas no Brasil e devem usar este momento para pressionar o governo e empresas para que tenham maior participação no processo de licenciamento ambiental, tanto em nível federal quanto estadual. Comunidades afetadas podem fornecer opiniões valiosas para o design técnico de um projeto, principalmente devido ao fato de que são a parte mais interessada em evitar os impactos negativos que podem influenciar suas vidas. No caso de Mariana, a barragem de rejeitos nunca deveria ter o seu caminho de escoamento voltado para uma região habitada. Além disso, um mecanismo de alerta em caso de emergências (sirenes, SMS) deveria ter sido estabelecido na região. Caso a comunidade tivesse a oportunidade de realmente participar no licenciamento ambiental desse projeto, creio que tais erros teriam sido apontados, e um grande desastre poderia ter sido evitado. As tradicionais Audiências Públicas, baseadas em Estudos de Impacto Ambiental que costumam ter mais de mil páginas, não podem mais ser consideradas um mecanismo adequado para a participação popular. Talvez a Consulta Prévia, Livre e Informada seja uma solução para equilibrar o licenciamento ambiental e realmente dar voz àqueles que convivem com os impactos em primeira mão.


política

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Como explicar a inação da presidenta? Por que Dilma deixa-se imolar a céu aberto, e justamente por grupos políticos que ela definitivamente despreza? Fábio Lopes da Silva Em entrevista recente, Ciro Gomes deu uma saída para Dilma: demitir todo o ministério de incompetentes e ladrões que a cerca, substituindo-o por um elenco de notáveis. Segundo o político cearense, esse gesto deveria ser completado por um outro: convocar o presidente do Congresso e exigir dele que pautasse o impeachment de uma vez por todas. Dilma estaria, assim, rompendo com a sua precária base de sustentação para buscar forças em uma aliança direta com o povo. O gesto, claro, seria temerário e arriscado. Ela bem poderia ser imediatamente deposta. Mas haveria uma chance de o exato oposto acontecer: uma refundação radical e benfazeja de seu mandato. Para o bem ou para o mal, estaria resolvido o impasse que paralisa o país e joga gasolina na fogueira da crise: o de uma presidenta que reina, mas não governa. Dilma, no entanto, provavelmente não seguirá a indicação de Ciro. A rigor, não fará isso nem qualquer outra coisa. Pelo contrário: permanecerá submetida à sanha insaciável do PMDB, que lhe rouba tudo, exceto (por enquanto) o cargo, e que, de resto, a entrega alegremente ao vilipêndio brutal dos opositores. Como explicar essa inação da presidenta? Por que Dilma deixa-se imolar a céu aberto, e justamente por grupos políticos que ela definitivamente despreza?

Por certo, sua atitude não tem nenhuma relação com falta de coragem. Dilma é uma mulher de fibra, capaz de suportar o diabo, e já deu provas suficientes disso. Uma hipótese mais plausível — aquela que, aliás, é a mais frequentemente aventada — é a de que Dilma tem um perfil e uma formação essencialmente técnicos, faltando-lhe, por isso, o traquejo e a malícia que a política solicita. A ausência de colaboradores capazes de suprir essa lacuna contribuiria para o desastre. Ora, parece certo que é também disso que se trata. Mas, a meu juízo, há mais em jogo. O que está por ser compreendido é a estranha figura pública de Dilma. Por um lado, tudo nas reações da presidenta transpira impotência e resignação; por outro — e de um modo que claramente não é simulado —, ela se mostra hierática, estupendamente resistente à saraivada de ataques desferidos. Desde a reeleição, Dilma suporta pancadas seguidas, vindas de todos os lados. Por muito menos, a maioria de nós já teria sucumbido e renunciado. Dilma, não — e a pergunta que fica é por que ela não usa essa sua titânica força interior para sair das cordas e proceder a lances ousados, que lhe oferecessem uma possibilidade de virar a mesa. Talvez a chave para desvendar esse enigma proposto pela presença aparentemente paradoxal da presidenta esteja em sua experiência prévia como vítima dos porões da ditadura. É na tortura que as duas faces de Dilma — a da notável firmeza e a da

desconcertante impotência — podem se superpor sem contradição. Destituído de tudo, entregue à ação de forças que o destroçam, o sujeito torturado não pode senão fechar-se na concha do sofrimento silencioso, altivo. Aguentar até o fim — sobreviver — é a sua única cidadela, o último abrigo de sua individualidade arruinada. O ponto, claro, é que Dilma não está objetivamente no lugar da torturada: a política lhe permitiria muitos movimentos, entre os quais o sugerido por Ciro. Mas é como se ela estivesse imaginariamente presa ao seu passado. É como se a dor sentida na tortura ainda a dominasse e, na esteira do que Freud chamou pulsão de morte e de automatismo de repetição, a fizesse reviver ainda uma vez — talvez para sempre — a cena experimentada 50 anos atrás. Divido a humanidade em duas categorias: os que foram prisioneiros em campos de extermínio e nós outros, cuja grande tragédia, no fim das contas, é a morte do peixinho dourado na infância. Há as nossas dores, limites e dilemas comuns, e há os torturados, que são outra conversa. É preciso respeitá-los profundamente (o que, bem entendido, não significa defender — muito menos incondicionalmente — as ideias e práticas que os levaram às salas escuras da polícia). Dilma, suponho, foi convertida em objeto, em coisa, ou em menos que isso, na tortura. É uma experiência radical de dessubjetivação, da qual talvez não seja possível sair nunca. Bola pra frente? É o que, suponho, ela tenta fazer. Mas a bola dela não é igual à nossa. É uma bola de ferro, imensa, irremediavelmente atada à sua perna. Uma bola que, rigorosamente falando, é irredutível às que nos cabe controlar (e, ainda assim, eu nunca na vida aprendi a fazer embaixadinha). Há dores que nunca acabam.

FÁBIO LOPES DA SILVA (São Paulo, 1966) é doutor em Linguística pela Unicamp, com pós-doutorado em Teoria Literária na PUC-Rio, professor da UFSC e diretor da EdUFSC.

José Cruz/Agência Brasil

A dor que não acaba


Os giros de Roland Barthes No centenário de nascimento do escritor e filósofo francês, completado no dia 12 de novembro, comemora-se uma obra que raspa a película do real para desintegrar a estabilidade dos signos ou conferir-lhes as ambivalências possíveis dos acontecimentos Cristiano Moreira Barthes nasce à beira do oceano, na Normandia, e após a morte do pai, antes de completar dois anos, muda-se com a mãe para Bayonne, também à margem do Atlântico, na confluência dos rios Adour e Nive, a poucos quilômetros da Espanha. Suas incursões e observações sobre esse lugar e os encantos provocados pelos jardins da casa de sua tia e professora de piano estão registradas em Roland Barthes por Roland Barthes. Beatriz Sarlo acaba de publicar na Revista Peixe-elétrico n.o 3 um pequeno texto sobre o romance que Barthes sonhou e de cuja matéria esses afetos fazem parte. Antes dos 20 anos, a saúde de Roland Barthes leva-o a um retiro, retardando seus planos de ir à École Normale Supérieure, (terá alta definitiva em 1946). Durante o período de internação, Barthes escreveu alguns ensaios aproveitados em O grau zero da escritura (1953). Nessa fase, preocupa-se com os ideais socialistas, e as dificuldades financeiras são suas companheiras. É o período em que segue uma investigação na tentativa de desenvolver uma tese sobre Michelet. Em Leysin, conhece Georges Fournié. Assim que deixam o sanatório, Fournié o apresenta a Maurice Nadeau, então editor da página de literatura do jornal Combat, editado por

Pascal Pia e Albert Camus. Sartre havia rompido com Camus e passara a editar com Maurice Merleau-Ponty a revista Les temps modernes. Nadeau convida Barthes a colaborar com o Combat. O primeiro artigo publicado é sobre Michelet e é precedido por uma nota de advertência aos leitores, pois o jovem, desconhecido e inédito Roland Barthes é um “apaixonado pela linguagem”. Poderia seguir com uma pergunta de Roland Barthes: “Como afastar a escritura do corpo?”. Roland Barthes dirá em O grau zero da escritura que a língua e o estilo constituem o fator transformador oriundo da reação entre tempo e corpo biológico. Talvez esse resultado estivesse de algum modo presente nas notas para o romance que habitou os desejos de escritura de Roland Barthes. Essa reação, também motivada pelo desejo, fez surgir Fragmentos de um discurso amoroso, resultado, em certa medida, da relação não correspondida, exceto pelos assuntos de pesquisa literária, com Robert Davi durante sua internação. Notas preparadas e distribuídas em inúmeros livros, os quais, de algum modo, serviram de contenção à vocação de escritor. Notas sobre signos da moda, esporte, música, das imagens em movimento ou não. Notas sobre a escrita, sobre a letra, sobre o Oriente. Notas problematizando a escritura

Tiphaine Samoyault/divulgação

CRISTIANO MOREIRA (Itajaí, 1973) é autor dos livros de poemas Rebojos (Bernúncia, 2005), O Calafate Míope (Papaterra, 2009) e

Infância do Pife (dengo dengo cartoneiro, 2011). Com Miguel Angel Rodrigues traduziu e editou o livro de narrativas Apartados (Papaterra / La Cebra: 2011), do escritor chileno Rodrigo Naranjo. É doutorando em teoria literária na UFSC, com tese sobre Osman Lins.

literatura

10 do diário em o Rumor da língua ou deixadas em seu último seminário, Preparação para o romance. Barthes foi um escritor das espirais, giros e elipses, sua pena raspava a película do real para desintegrar a estabilidade dos signos ou conferir-lhes as ambivalências possíveis dos acontecimentos. A fluidez das águas que acompanhou sua gênese seguiu-o no escritor que busca a fluidez das palavras sabotando o discurso acadêmico. O modo pelo qual o autor de Mitologias elabora a escrita nesse livro aproxima elementos cotidianos da cultura de massa e aproxima-os da filosofia. Aproxima, por sua vez, a filosofia de um texto cuja política é ampliar o entendimento do homem produtor. O poder de atração do signo, para Barthes, é o canto da sereia. Atento aos paradigmas do efeito do real na modernidade, ou seja, aos problemas da interpretação em uma sociedade logocêntrica “que regressa à letra”, Barthes dedica-se a um trabalho mais minucioso com a letra, trata o texto como corpo orgânico, como se pode ler em O espírito e a letra, texto que se contrapõe à máxima de Paulo de Tarso segundo a qual “a letra mata e o espírito vivifica”. Aqui lemos Barthes próximo a Jacques Derrida de Da gramatologia e que se aproxima do grupo de intelectuais da Revista Tel Quel, período em que escreve sobre Severo Sarduy. No texto “A face barroca”, o irregular e anacrônico de Barthes vêm à tona. É como se Bayonne, a poucos quilômetros da Espanha, onde viveu a infância e onde as touradas são frequentes, rescendesse como dispositivo proustiano. Barthes pensa a força e a dança barroca da linguagem em ensaios cuja desenvoltura manifesta a graça dos movimentos dos toureiros. Em uma espécie de exercício de tradutor, percebe o movimento, espécie de rodopio barroco dentro da língua francesa, com tal potência que não perde nada do barroquismo vindo de Cuba, da língua espanhola, da escritura de Sarduy e da sua inscrição no corpo do texto. Como afastar a escritura do corpo? No sistema barthesiano, a imagem segue a etimologia segundo a qual deriva da raiz imitare. Nesse sentido, poderíamos iluminar a proximidade entre o conceito barthesiano de punctum e o conceito benjaminiano de aura. Para ambos, a força da imagem é sentida no “inconsciente óptico” ou naquilo que Barthes acertava como o “isso foi”. O indício de que Roland Barthes tenha lido Walter Benjamin é a publicação da tradução de Pequena história da fotografia, em 1977, na revista Nouvel Observateur, com o título de “Les analphabetes de l’avenir”. Segundo Russel Stephens, a revista aparece em 1979, ano em que Barthes está trabalhando em seu último livro. Barthes deixa uma folha em branco em sua máquina de escrever. Não pode retornar para preenchê-la. Resta, sobre o branco, o rumor da língua, a morte do autor, que ressuscitaria anos depois o debate entre o grão da voz e o gramma da letra. Roland Barthes criou na literatura um lugar no qual mais pessoas pudessem encontrar o prazer do texto.


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da ONG Think Olga, dedicada a questões de direitos das mulheres), munidas de batom e bom humor. O batom percorre as bocas, mas logo rabisca o corpo todo, o rosto inteiro, marcando que ali cada uma define seu próprio desenho. “Meu corpo, minhas regras.” E assim tem sido a vida. Uns anos atrás, minha irmã caçula, 10 anos mais jovem, a mais tranquila de nós as três, deu um soco no estômago familiar: se assumiu bissexual, apresentou a namorada e inventou um novo lugar para o feminino dentro de casa. Mas tem coisas que ainda me deixam confusa. Confesso que não soube o que fazer diante de uma briga de casal. O rapaz beliscando a garota no centro, na mesma rua por onde o protesto havia passado cinco dias antes. Todo mundo viu, ninguém reagiu. Mas a reação mais esperada ainda está por vir, a da diversidade feminina. Foi a única frustração do protesto. O predomínio de apenas um perfil de mulher. Não acredito que só as estudantes jovens queiram respeito. Onde estão minhas amigas assediadas no trabalho, na rua, na natação? Minha mãe, minhas primas, minha avó? Estou representando todas elas? Foi provavelmente isso que confundiu mais um machista. Quando ia embora, ainda na Praça XV, ouvi seu tom provocativo e intimidador, no fundo desesperado: “Vão sair daqui e ir pro shopping fazer compras, né?” Por que não? Lugar de mulher é em todo lugar, amigo. Fazendo o que ela quiser. Só não venha me dizer que protesto não muda ninguém.

Católica de Pelotas (UCPel). Já atuou em veículos como RBS TV Pelotas, FURB TV e SBT SC. Atualmente é repórter e apresentadora da RIC TV Record Florianópolis.

No dia 6 de novembro de 2015, pela primeira vez, empunhei um cartaz. Um escândalo para quem até então erguia uma bandeira discreta, subjetiva, acho até que temerosa. O ato era contra o Projeto de Lei 5.069/13, que restringe uma série de direitos femininos. Muitas mulheres, alguns homens, cartazes, gritos de protesto e gente pintando corpo e rosto: a concentração estava formada em frente ao principal terminal de ônibus da cidade quando ouvi de um senhor: “É interessante o que vocês fazem, mas protesto não muda nada.” Eu ainda não estava muito certa do que fazia ali até encontrar duas amigas que têm filhas. Uma das pequenas estava lá: Isa, 3 aninhos. Ao sair de casa, ouviu da mãe que estavam indo “lutar contra o homem mau”. Estreamos juntas nas manifestações. Cantamos, caminhamos e, enquanto Isa se divertia, de repente tudo ficou mais claro. Nunca falei nem com grandes amigos sobre o assunto: o assédio, que envergonha, cala, humilha e entristece. O ato foi um encontro comovente de vozes antes mudas, e que agora gritam e exigem respeito. Olhares cúmplices formaram o estranho clima de amizade que emergiu entre desconhecidas. “Empoderadas”, como costumam dizer. E uma mulher empoderada sabe exatamente porque luta. Luto porque tem homem como o casado da caminhonete, jovem e bonito, que assedia mulheres na rua, convidando-as para entrar. Porque tem desconhecido na academia que reprova a quantidade de peso que estou pegando, e se sente tão à vontade que vem até mim deixar isso claro. Porque, sem constrangimento, o pedestre põe a cara no vidro e assiste aos exercícios femininos como

MARTA HERNANDES GOMES (Pelotas, 1983) é jornalista, formada pela Universidade

Marta Hernandes Gomes

cachorro olhando frango em assadeira de padaria. Dentro do consultório não é diferente: placidamente, o médico de uns 70 anos diz que sou cheirosa, linda, e que não entende porque não tenho namorado, afinal de contas, ele está disponível. Legal, né? Luto contra a postura machista das mulheres. Quando uma amiga se submete a um relacionamento cruel por dinheiro ou quando elogio a colega de dança criticada pelas outras por ser gordinha e “se achar”. Vamos ser mais amigas? É verdade que a gente não fala sobre o assunto. Se constrange, reproduzindo o comportamento feminino desse acúmulo de séculos: a ilusão da culpa. Mas, depois do protesto e de uma série de depoimentos de famosas e anônimas corajosas que lideraram esse movimento na internet, me senti mais segura. É triste, mas evidente: não estamos sozinhas! Há muitas histórias a serem compartilhadas: é um estranhamento familiar. Minha mãe, 57 anos, contou que ouviu coisas constrangedoras de um senhor por quem passou na rua na semana anterior. Casada há 10 anos, uma amiga disse que até hoje é chamada de “mocinha” no trabalho pelo público masculino. A outra, jornalista esportiva, diz que precisa provar competência diariamente aos colegas, chefes e ao público, mas muitas vezes desaba e se sente sozinha. Tenho amiga que não usa as roupas bonitas que compra por medo de andar na rua. Acredite, são situações corriqueiras na vida de qualquer mulher — que estão se refletindo em Brasília. Agora, quem ainda aceita? Confesso que achava que era muito mimimi. Até que abri os olhos, e a omissão virou uma não opção. Me posicionar foi um caminho natural. Quando respondia que o protesto era pelos direitos das mulheres, muita gente achava o máximo. Se dizia que era pelo feminismo, faziam cara feia, tipo “que besteira”. Então vamos esclarecer as coisas: você, homem ou mulher, acredita que as mulheres precisam de um mundo diferente? Parabéns, você é feminista! Simples assim. Percebo em pessoas próximas a tentativa de educar os filhos para exercitarem o respeito. O sobrinho de um amigo, de 5 anos, disse para ele esses dias que não era machista. — E o que é ser machista, Pi? — Ah, é quando os meninos dizem que são melhores que as meninas, que elas não podem andar de moto, lutar karatê, jogar bola, e que o aniversário delas não pode ser do Homem de Ferro. Isso não tem nada a ver com abrir a porta do carro. Apoiadora da causa, a atriz e cantora Clarice Falcão acaba de lançar um videoclipe com sua versão de Survivor. Nele, aparecem mulheres de diferentes idades e etnias (são elas: a mãe e a irmã de Clarice e integrantes

Arquivo Pessoal

Pela primeira vez, repórter e apresentadora de tevê participa de um protesto contra o Projeto de Lei que restringe uma série de direitos femininos e conta como percebeu a mudança na atitude de vozes que, antes mudas, agora exigem respeito

SOCIEDADE

O lugar da mulher


e-mail: edufrick@gmail.com site: http://360panoramas.com.br

fotografia

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Eduardo

Frick

(Rio de Janeiro, 1967) é especialista em macrofotografia e em fotografia panorâmica. Frick é um dos poucos fotógrafos brasileiros especialistas na produção de panoramas em 360 graus e de gigafotos — imagens compostas a partir da montagem de centenas ou até milhares de fotografias. Como artista digital, cria vídeos e imagens com softwares de fractal e compõe música eletrônica psicodélica misturando sintetizadores antigos, Iphones e Ipads.

“Geribá Little Planet é uma forma original de se ver um panorama em 360 graus. Foi produzida a partir da montagem de 6 fotos feitas em cima de um velho barco de pesca na praia de Geribá, em Búzios (RJ).”


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