UNIVERSIDADE FEDERAL DO MATO GROSSO DO SUL
EDUARDO AZEVEDO OR. PROFA MA JULIANA TRUJILLO
A INTERVENÇÃO COMO UM CONTRAPONTO A POSITIVAÇÃO DOS ESPAÇOS.
CAMPO GRANDE, MS
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Eduardo Azevedo Medeiros
CIDADE-JOGO: A INTERVENÇÃO COMO UM CONTRAPONTO À POSITIVAÇÃO DOS ESPAÇOS
Campo Grande, MS 2020
Eduardo Azevedo Medeiros
CIDADE-JOGO: A INTERVENÇÃO COMO UM CONTRAPONTO À POSITIVAÇÃO DOS ESPAÇOS Trabalho desenvolvido para a disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Orientadora: Prof. Ma. Juliana Trujillo
Campo Grande, MS 2020
Quem os vê andar pela cidade se todos estão cegos? Eles se tomam as mãos: algo fala entre seus dedos, línguas doces lambem a úmida palma, correm pelas falanges, e acima a noite está cheia de olhos. São os amantes, sua ilha flutua à deriva rumo a mortes na relva, rumo a portos que se abrem nos lençóis. Tudo se desordena por entre eles, tudo encontra seu signo escamoteado; porém eles nem mesmo sabem que enquanto rodam em sua amarga arena há uma pausa na criação do nada o tigre é um jardim que brinca. Amanhece nos caminhões de lixo, começam a sair os cegos, o ministério abre suas portas. Os amantes cansados se fitam e se tocam uma vez mais antes de haurir o dia. Já estão vestidos, já se vão pela rua. E só então, quando estão mortos, quando estão vestidos, é que a cidade os recupera hipócrita e lhes impõe os seus deveres quotidianos.
JULIO CORTÁZAR
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS 5
GLOSSÁRIO DOS PRINCIPAIS CONCEITOS 7
INTRODUÇÃO 10
CAPÍTULO 1: DA DERIVA À CARTOGRAFIA 12
1.1 A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO E A TEORIA DA DERIVA 13
1.1.1 O CONCEITO DE PSICOGEOGRAFIA 19
1.2 O HOMO LUDENS E A NOMADOLOGIA 24
1.2.1 MÁQUINAS DESEJANTES 25
1.2.2 ESPAÇO E SUBJETIVIDADE 30
CAPÍTULO 2: A CAPTURA DO ESPAÇO URBANO 38
2.1 UM BREVE HISTÓRICO DA POSITIVAÇÃO DOS ESPAÇOS 39
2.1.1 A CIDADE GENÉRICA E O JUNKSPACE 46
2.2 NEOLIBERALISMO E CIDADE 50
CAPÍTULO 3: DO JOGO À INTERVENÇÃO URBANA 60
3.1 JOGO, UTOPIA NÔMADE E UM NOVO ARQUITETO 61
3.1.1 ESPAÇO-MOVIMENTO, ARTE E O ARQUITETO URBANO 65
3.2 JOGANDO A CIDADE 70
3.2.1 RELATOS DE DEAMBULAÇÕES POR UMA CIDADE-JOGO 71
3.2.2 A INTERVENÇÃO COMO MÁQUINA DE GUERRA 80
CAPÍTULO 4: CIDADE-JOGO 86
4.1 EU SOU UM LUGAR! 87
4.2 CONVERSAÇÕES URBANAS 104
CONCLUSÃO 118
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 119
FILMOGRAFIA 121
LISTA DE FIGURAS Figura 1: Imagem da capa da edição de 1983 de “A sociedade do espetáculo”. EYERMAN, J. R. disponível em: https://proartsgallery.org/event/guy-debords-the-society-of-the-spectacle Figura 2: A excursão dos dadaístas. Da esquerda para a direita: Jean Crotti, Georges D”Esparbès, André Breton, Paul Éluard, Georges Ribemont-Dessaignes, Benjamin Péret, Theodore Fraenkel, Louis Aragon, Tristan Tzara, Phillippe Soupalt. Foto coletiva feita pelos Dadaistas, 1921 disponível em CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar com prática estética. (2013, p. 76) Figura 3: Metagrafia. DEBORD, G. 1954. Disponível em: https://piinel8.wixsite.com/paris60s/art-psicogeografia Figura 4: Colagens de arquipélagos sobre o mapa de Paris. IVAIN, G., 1952. Disponível em https://piinel8.wixsite.com/paris60s/art-psicogeografia Figura 5: Fin de Copenhague. JORN, A; DEBORD, G. 1957. Disponível em https://situationnisteblog.com/2015/11/24/fin-de-copenhague-1957/ Figura 6: La Guide psychogéographique de Paris. DEBORD, G. 1957. Disponível em: https://imaginarymuseum.org/LPG/ Mapsitu1.htm Figura 7: The naked city. DEBORD, G. 1957. Disponível em: https://searchofthesublime.tumblr.com/post/73523468378/ the-naked-city-guy-debord-1957 Figura 8: Helena descobre um estranho apodrecimento das paredes de seu mercado. Trabalhar Cansa, DUTRA, M; ROJAS, J. 2011. Disponível em: http://www.tyrannusmelancholicus.com.br/noticias/3425/trabalhar-cansa Figura 9: Os Idiotas. TRIER, L. Disponível em: https://sentego.net/go-and-chess/ Figura 10: O xadrez e o Gô. Website SenteGo, s/d. Disponível em: https://sentego.net/go-and-chess/ Figura 11: Jonas Mekas nas ruas em Ao Caminhar Entrevi Lampejos de Beleza. MEKAS, J. Disponível em: https://www.arter. org.tr/en/as_i_was_moving_ahead_occasionally_i_saw Figura 12: As ações de Haussmann são destacadas em preto no mapa. FRAMPTON, K. 1997. Editado pelo autor. Figura 13: Paris antes (esquerda) e depois (direita) da reforma de Haussmann. MARVILLE, sec. XIX MONCAN, sec. XXI. Editado pelo autor. Figura 14: A arquitetura escultural de Brasília. GAUTHEROT, M. 1956. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/ br/765687/brasilia-em-construcao-por-marcel-gautherot Figura 15: Habitações nas cidades satélite. ANDRADE, J. P. Brasília, Contradições de uma Cidade Nova, 1968. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zbSPytnX1ao&list=PLXd5HemGA7zy14IegI1B_ZIw8JhQ8n-Az&index=6&t=0s Figura 16: A Paris de “Playtime” TATI, J. 1967 Disponível em: https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/20.217/7599 Figura 17: Times Square, Nova Iorque. Acervo do autor, 2017 Figura 18: Loja Havan em Campo Grande, MS. Acervo do autor, 2019. Figura 19: Lista dos 10 livros mais vendidos no Brasil na Amazon em 20 de maio de 2020 (Destacados em vermelho os livros com temática Self-Help.) Amazon, Editado pelo autor, 2020. Disponível em: https://www.amazon.com.br/gp/bestsellers/ books/ref=zg_bs_nav_0. (Acessado em 20 de maio de 2020.) Figura 20: A entidade “Apple”. DO, C. 2016. Disponível em: https://www.slideshare.net/ChrisDo4/nuskool-brand-alignement Figura 21: O sistema de reconhecimento facial chinês. Eyes of the city, 2019. BBC News. 24 de dezembro de 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/news/technology-50658538 Figura 22: Bjarke Ingels ao centro e Jair Bolsonaro a sua esquerda. CORREA, M. 2020 Disponível em: https://failedarchitecture.com/bjarke-ingels-and-the-art-of-greenwashing/ Figura 23: As favelas do Rio de Janeiro foram ocultadas pela publicidade da Petrobras de 2011. PETROBRAS, 2011. Disponível em: http://www.global.org.br/blog/a-invisibilizacao-da-pobreza-e-dos-pobres-no-rio-olimpico/ Figura 24: A cidade nômade de Constant. Constant: New Babylon, 2016 Disponível em: https://www.amazon.com.br/Constant-New-Babylon/dp/3775741348 Figura 25: A Nova Babilônia se espalhando pelo mundo. Constant: New Babylon, 2016 Disponível em: https://www.amazon. com.br/Constant-New-Babylon/dp/3775741348 Figura 26: Pneutube. BOERSMA, P. 1969 Disponível em: https://failedarchitecture.com/the-playful-city-from-the-1960s-strive-for-spontaneity-to-todays-space-of-entertainment/ Figura 27: Brickhill. BOERSMA, P. 1969 Disponível em: https://failedarchitecture.com/the-playful-city-from-the-1960s-strive-for-spontaneity-to-todays-space-of-entertainment/ Figura 28: (a) - Modelo Arbusto (b) - Modelo Arbóreo. ALEXANDER, 1965 Disponível em: https://www.researchgate.net/ figure/Semilattice-a-and-Tree-Structures-b-Source-A-City-is-Not-a-Tree-4_fig1_333821711 Figura 29: Mapa afetivo referente ao primeiro experimento de caminhada. Autor, 2020. Figura 30: A trilha de bicicletas. Acervo do autor, 2020 Figura 31: Diversas cenas da caminhada. Acervo do autor, 2020 Figura 32: Diversas cenas da caminhada. Acervo do autor, 2020 Figura 33: Diversas cenas da caminhada. Acervo do autor, 2020 Figura 34: Intervenção CicloCor. CAMPBELL, 2015. Disponível em: https://arteparaumacidadesensivel.wordpress.com/ obras/acidum/ Figura 35: Cena de Visages, villages. VARDA; JR, 2017. Disponível em: http://su-city-pictures.com/tag/documentary/ Figura 36: Intervenção Campanha Não Eleitoral CAMPBELL, 2015. Disponível em: https://arteparaumacidadesensivel.wor-
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dpress.com/obras/campanha-nao-eleitoral/ Figura 37: “Apenas a verdade é revolucionária”. DITYVON, 1968. Disponível em: https://razaoinadequada.com/2013/06/16/ os-muros-da-sorbonne/ Figura 38: Campanha não eleitoral e Exorcismos Urbanos Fonte: CAMPBELL, 2015 e Relatório do Laboratório Urbano Efêmero de Campo Grande, 2019 Figura 39: Adesivos do projeto “Urbanism for sale” Fonte: Feldt72, 2008 Figura 40: Categorias de adesivos Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 41: Diversas cenas do Experimento Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 42: Diversas cenas do Experimento Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 43: Diversas cenas do Experimento Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 44: Diversas cenas do Experimento Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 45: Foto do Experimento Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 46: Diversos registros dos participantes do experimento. Fonte: Imagens produzidas pelos participantes, 2020 Figura 47: Adesivo vários dias após o experimento. Fonte: Juliana Trujillo, 2020 Figura 48: Diversas cenas dos adesivos vários dias após o experimento. Fonte: Juliana Trujillo, 2020 Figura 49: Diversas respostas. Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 50: Novos adesivos Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 51: Novos adesivos e anúncios nas redes sociais Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 52: Intervenções de Karen Freitas Fonte: Karen Freitas, 2020 Figura 53: Intervenções de Eduardo e Carol respectivamente. Fonte: Eduardo Lorenz e Carol Sanson, 2020 Figura 54: Intervenções de Michele Andrade Fonte: Michele Andrade, 2020 Figura 55: Diversas cenas do experimento. Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 56: Eu te amo poste Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 57: QR Code para download dos adesivos. Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 58: Mapa Síntese Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 59: Aproximações psicogeográficas das colagens do autor. Fonte: Acervo do autor, 2020
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GLOSSÁRIO DOS PRINCIPAIS CONCEITOS Espetáculo Relação social entre pessoas, mediada por imagens. Algo irreal introduzido ao mundo. Nas palavras de Debord (1997), “uma decoração que lhe foi acrescentada” e que “constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade.” (DEBORD, 1997) Deriva Andar sem rumo pela cidade. Sem uma atividade agendada ou objetivo se não experimentar a cidade. A Deriva é a antítese do Espetáculo. (DEBORD, 1997) Psicogegrafia Estudo dos efeitos do meio geográfico que atuam diretamente no comportamento afetivo dos indivíduos. (DEBORD, 1997) Mapas Afetivos Formalizações gráficas dos estudos Psicogeográficos. (JACQUES, 2006; CARERI, 2013) Jogo Nada tem a ver com a competitividade de esportes, e sim a faceta lúdica do jogar. Os Situacionistas buscam uma forma coletiva de jogo, buscam a criação de ambiências lúdicas comuns. (JACQUES, 2006; CARERI, 2013) Urbanismo Unitário Crítica ao Urbanismo. Busca uma maior conexão com o espaço, uma maior participação, afasta a faceta de cidadão-espectador e busca um cidadão-ator. (JACQUES, 2006; CARERI, 2013) Homo Ludens Nômade e explorador, aquele que usufrui do tempo livre, do tempo lúdico. (HUIZINGA, 2000; CARERI, 2013) Homo Faber Sedentário. A estirpe do trabalho, que usa seu tempo para o produtivo. (HUIZINGA, 2000; CARERI, 2013) Desejo Energia que direciona os instintos vitais do sujeito. Vontade de potência. Axioma É um princípio. Tudo está a serviço do mercado capitalista. Tudo está a serviço da extração do mais-valor. Todo desejo será axiomatizado. Ou seja, todo desejo estará a serviço do capitalismo. (DELEUZE; GUATTARI, 2004) Máquina Social Forma de transferência do Desejo do indivíduo de seu próprio interesse para o da sociedade. (DELEUZE; GUATTARI, 2004) Esquizofrenizar Tornar diferente. (DELEUZE; GUATTARI, 2004) Nomadismo Para Huizinga (2000; CARERI, 2013) é a forma de organização do Homo ludens, dos povos nômades. Para Deleuze e Guattari (1997) pode referir tanto aos povos nômades quanto filosoficamente como uma forma de existência livre não capturada ou sedentarizada pelo capitalismo. Aparelho de Captura Essa figura é o Estado, o aparelho de captura regulador. Trabalha capturando fluxos de interesse para o mercado capitalista e fazendo a gestão dos indivíduos, podendo colocá-los a serviço do capitalismo a partir da axiomatização de seu Desejo ou a partir da violência. (DELEUZE; GUATTARI. 1997)
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Ciência Nômade Forma de produção de conhecimento livre, não capturada pelo Aparelho de Captura. (DELEUZE; GUATTARI, 1997; VASSÃO, 2010) Ciência Régia Forma de produção de conhecimento legitimada pelo Aparelho de Captura. (DELEUZE; GUATTARI, 1997; VASSÃO, 2010) Espaço Estriado Um organizador da vida sedentária. Espaço e tempo podem ser esquadrinhados ou estriados, sendo transformados em agentes do Aparelho de Captura. (DELEUZE; GUATTARI, 1997) Máquina de Guerra Exterior ao Aparelho de Captura. Agente que produz o Espaço-liso. (DELEUZE; GUATTARI, 1997) Espaço Liso Um espaço que permite subjetividades singulares. (DELEUZE; GUATTARI, 1997) Rizoma Uma forma de pensamento não-binaria, que não consiste em um sistema, mas em um processo, uma rede. (DELEUZE; GUATTARI, 1995) Cidade Genérica Cidade neoliberal, resultado da globalização e desprovida de identidade. (KOOLHAAS, 2010) Junkspace Tipologia de espaço pós-arquitetônico. Desprovido de contexto ou autoria. Um espaço completamente alinhado a neutralidade e o neoliberalismo (KOOLHAAS, 2010) Cidadão Turista O habitante da cidade neoliberal. Está sempre em constante fluxo e mantém com o espaço uma relação prática e impessoal. (KOOLHAAS, 2010; PALLASMAA, 2017) Também pode ser chamado de Homo agens, Neossujeito ou Sujeito empresarial, não é mais o operário produtivo que aperta parafusos, o homem neoliberal é o homem ágil, flexível e competitivo. Esse sujeito faz da axiomatização capitalista do seu Desejo o seu propósito. (HAN, 2017; DARDOT; LAVAL, 2016; DELEUZE; GUATTARI, 2004) Cidadão Bricoleur Cidadão ativo. Que é parte do processo de construção da cidade e não um mero espectador. (JACQUES, 2011) Arquiteto Urbano Arquiteto que não projeta formas isoladas, mas ambiências complexas, através da mediação. (JACQUES 2006, 2011) Espaço-movimento O Espaço-movimento é um tipo de espaço em perpétua transformação, como a favela. Não possui forma final, por não possuir projeto. (JACQUES, 2011) Positivação dos Espaços A transformação da cidade em locus de produção e de consumo, tratando o mundo como uma coleção de objetos, pretensamente sem sujeitos. (VASSÃO, 2008) Arte Faceta produtiva livre da humanidade. (VASSÃO, 2010) Fratura Romântico-Positivista Processo histórico que levou a tomada da faceta técnica do conhecimento pelo Positivismo e a contemplativa e transcendental pelo Romantismo (VASSÃO, 2010) Cultura de Projeto
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Campo do saber que engloba o Design arquitetônico, de produto, gráfico, urbano, toda atividade produtiva ligada ao projeto. (VASSÃO, 2010) Cidade-Jogo O oposto da Cidade Genérica. É a cidade vista como Espaço-movimento. Uma cidade construída por um cidadão ativo. Essa cidade não é a utopia nômade Situacionista, mas uma cidade que existe, e cresce paralelamente a Genérica, conforme o espaço urbano é libertado das amarras do Aparelho de captura e abraça a espontaneidade.
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INTRODUÇÃO Tendo como método uma Cartografia afetiva, do pós-estruturalismo de Gilles Deleuze e Félix Guattari, nessa pesquisa buscamos a construção de um percurso de descobrimento pelo território da subjetividade no espaço, tomando como ponto de partida as experiências da Psicogeografia dos Situacionistas, liderados por Guy Debord nos anos 1960 e 1970, e relacionando-a à discussão do nomadismo, e do uso subjetivo do espaço urbano, trazida por Francesco Careri e pelos já citados, Deleuze e Guattari. Apoiado nesse resgate do nomadismo, busca-se criar uma discussão sobre a positivação de nossos espaços, a partir de um levantamento histórico sobre a construção positivista das cidades, desde as estratégias urbanas do Barão Haussmann até a Cidade Genérica e o Junkspace de Rem Koolhaas, a cidade neoliberal. Entendemos a positivação dos espaços como sendo aquela baseada na viabilização da produção industrial e do consumo, tratando o mundo como uma coleção de objetos, pretensamente sem sujeitos (VASSÃO, 2008). A abordagem teórica da pesquisa também relaciona o nomadismo com o conceito de espaço estriado de Deleuze e Guattari, passando por uma “atualização” dessa discussão com base no pensamento de Pierre Dardot, Christian Laval e Byung-Chul Han sobre o neoliberalismo, trazendo relações com a sociedade disciplinar de Michel Foucault com nossa atual sociedade, a chamada de “sociedade do desempenho” de Han e como nosso modo de vida afeta nossos espaços, que como consequência influenciarão a reprodução de determinadas subjetividades. Ainda discutimos o urbanismo nômade do situacionista Constant Nieuwenhuys, que reflete em propostas de outros caminhos para as profissões ligadas à cultura de Projeto, tendo como base os conceitos de Espaço-movimento de Paola B. Jacques e de Arte de Caio Vassão, sendo que ambos partem da teoria de Deleuze e Guattari e dos estudos dos Situacionistas ao campo do projeto. A partir da valorização do nomadismo, do campo de projeto como um saber independente, apesar de incompleto e da exploração do aspecto afetivo dos espaços urbanos como um antídoto a positivação, a pesquisa teórica juntamente com exploração metodológica permitiu a realização das intervenções urbanas em quatro experimentos, apresentados no último capítulo deste trabalho. O objetivo geral da pesquisa portanto foi explorar os aspectos teóricos sobre as subjetividades do espaço urbano, apropriando-se de metodologias que permitam a leitura desses espaços, como a Teoria da Deriva através das ferramentas psicogeográficas e a Cartografia através de mapas afetivos. Além disso, trazemos uma reflexão crítica sobre a positivação dos espaços promovida pelo método tradicional de projeto de arquitetura e urbanismo. Buscamos, ao longo do processo de pesquisa, descobrir as suas metas e objetivos, tendo na temática uma aliada para essa “errância” teórica, sendo considerado um método de pesquisa-intervenção (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015). Por fim, em conjunto com o processo cartográfico, a pesquisa utilizou os seguintes procedimentos metodológicos que possibilitaram alcançar os objetivos: 1. Consulta a fontes primárias e secundárias - A consulta a fonte primária está relacionada a informações e dados que não estão disponíveis, como por exemplo, a visitação às áreas de estudos e entrevista com a comunidade local. A consulta a fontes secundárias é a pesquisa documental, revisão bibliográfica, filmográfica, documentos relativos aos assuntos da pesquisa. 2. Levantamentos de campo - O levantamento de campo foi necessário para análise e organização das experimentações, como catalogação fotográfica e videográfica, levantamento de dados
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históricos e sociais sobre a(s) área(s) selecionada(s). 3. Experimentos práticos - Aplicação das metodologias estudadas: teoria da deriva e elaboração de mapas afetivos em áreas periféricas e centrais de Campo Grande ou, nos termos de Debord, áreas “desinteressantes”, invisíveis ao senso comum. Intervenção urbana através da inserção de elementos efêmeros que questionam a apropriação do lugar e convidam o pedestre a participar. 4. Discussão dos resultados - Após a sistematização das informações vindas dos procedimentos anteriores, especialmente dos experimentos, a discussão dos resultados é essencial para relacionarmos teoria e prática.
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CAPÍTULO 1: DA DERIVA À CARTOGRAFIA O urbanismo é a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo. Guy Debord
Com base nos textos de Francesco Careri, esse capítulo busca resgatar o pensamento nômade da cidade, tão presente nos anos 1950 e 1960, tendo como ponto de partida o Situacionismo de Guy Debord, relacionando-o com o pós-estruturalismo de Gilles Deleuze e Felix Guattari, tendo a finalidade de discutir as relações entre espaço urbano e subjetividade e familiarizar alguns conceitos retornarão quando abordarmos diretamente o urbanismo e a arquitetura.
1.1 A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO E A TEORIA DA DERIVA No final dos anos 1950, nasceu na Itália o movimento Situacionista, descendendo diretamente da vanguarda Letrista, que por sua vez estavam ligados ao Dadaísmo e ao Surrealismo. Fundado em uma visão libertária do marxismo e tendo em Guy Debord seu maior expoente, o movimento seria um dos pilares para a eclosão das revoltas de maio de 1968. Leitor de Sigmund Freud, Mikhail Bakunin e Karl Marx, Guy Debord se juntaria, em 1951, ao grupo dos Letristas e romperia com o movimento em 1952, fundando um movimento paralelo junto com outros jovens letristas debandados. Publicam o periódico “A internacional Letrista”, no período de 1954 a 1957, no qual expunham sua nova visão que, posteriormente, se transformaria na Internacional Situacionista formando assim, em 1957, um novo movimento. Seu livro mais conhecido “A sociedade do Espetáculo” (1967), traz uma exploração e evolução do conceito marxista de “fetichismo de mercadoria”1 materializado no que Debord chama de “espetáculo”. Para ele, o Espetáculo é o que permite a roda do capital girar tanto no voraz mercado ocidental, quanto no estado todo poderoso socialista no oriente. Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação.” (DEBORD, 1997, p. 13)
Para Debord (1997, p.14), o espetáculo não é um conjunto de imagens, é muito mais que isso, é “uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.” É algo irreal introduzido ao mundo. Nas suas palavras, “uma decoração que lhe foi acrescentada” e que “constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade.” (Idem). Antecipando as relações que serão feitas, ainda nesse capítulo, com o pós-estruturalismo, o espetáculo lembra a Máquina soicial de desejos2 de Gilles Deleuze e Felix Guattari. O que Debord evidencia são ritos, convenções, ou como ele próprio define acima, “enfeites” criados para a manutenção de uma ordem social. Esses enfeites podem ser a propriedade, o status, a ordem moral, a nação, e mais ainda, Debord propõe que o próprio trabalho seja um desses ritos, argumentando que o homem, capturado pelo sistema, trabalha diariamente para construção e detalhamento desse mundo espetaculoso, dessa realidade paralela. Uma fabricação constante do que o autor caracteriza como “pseudo necessidades” para a manutenção de uma sociedade. E que exemplo melhor de trabalho, falando sobre um capital que se acumula até virar imagem, do que o trabalho dos projetistas e produtores de conteúdo visual? Designers, arquitetos, publicitários e fotógrafos trabalham diariamente detalhando visualmente esse universo burguês. Aprofundaremos mais as relações entre projeto e espetáculo no Capítulo 2. Por hora podemos usar, como caso de estudo, o publicitário. O publicitário, principalmente os designers gráficos, que trabalham em empresas de marketing, têm sua força de trabalho utilizada para o detalhamento visual da realidade burguesa. Mas nesse meio de produção, onde podemos alocar um designer ou artista visual para que este possa sobreviver? O Espetáculo se apropria da força dos indivíduos e de sua própria necessidade para amarrá-los à esta cadeia de produção. Na introdução da edição brasileira de seu livro “Políticas do design” (2019), Ruben Pater, professor, designer e ativista, disserta sobre esse tema: Em muitos países, empregos na área de design gráfico pagam pouco ou nem sequer estão disponíveis.
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Muitos designers têm como única alternativa trabalhar com publicidade, e nisso acabam numa posição esquisita, entre seus ideais e a necessidade de sobreviver. Quem se envolve com ativismo no design muitas vezes trabalha em estúdios comerciais durante o dia e cria memes e imagens ativistas à noite. Não se trata de um caso de esquizofrenia, como se o designer dividisse entre uma personalidade política e outra apolítica, mas sim de uma tática de sobrevivência para manter a saúde física e mental. (PATER, 2019, p. 1)
Para Tony Fry, (citado por Pater, 2019, p. 2) “Todo design serve ou subverte o status quo”. Na linguagem visual da publicidade, por exemplo, a frase “rosa é feminino e azul é masculino” trabalha com o status quo, não são feitas perguntas. As imagens devem seguir, rigorosamente, a lógica do mercado. Mas para que esse sistema se reproduza, elas não somente precisam ser objetivas, mas precisam ser sedutoras. O consumidor precisa comprar não só o produto, mas a ideia por trás do produto, o modo de vida, a imagem que ele vende. A forma como esses indivíduos enxergam a realidade deve ser mediada pela lente do espetáculo. Como bem ilustrado na foto de J. R. Eyerman (Figura 1), que foi utilizada na capa da edição de 1983, em inglês, de “A sociedade do espetáculo.” Debord argumenta que essas lentes fazem parte de uma “técnica de separação”, uma busca pela criação de “multidões solitárias”. Essa separação pode ser feita através da sedução das imagens e da propaganda, mas também fisicamente, através do espaço. Debord (1997, p.112) afirma que “O urbanismo é a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo”, é a criação física do cenário burguês, a instalação do irreal sobre o real. O sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular de isolamento. O isolamento fundamenta a técnica; reciprocamente, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das “multidões solitárias” O espetáculo encontra sempre mais, e de modo mais concreto, suas próprias pressuposições [...] O espetáculo reúne o separado, mas o reúne como separado. (DEBORD, 1997, p. 23)
“A sociedade do espetáculo” é um dos textos seminais do movimento situacionista e um pilar indispensável para entendermos o que Debord propõe com a “Teoria da Deriva”, partindo dessa discussão sobre a criação dessa realidade paralela. Se muito do que vivemos, segundo Debord, é uma representação espetacular da realidade, como se alcança, então, o real? Para os Situacionistas a principal estratégia para se acessar o plano real era a Deriva. As grandes cidades são favoráveis à distração, que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível se pensar que as reinvindicações revolucionárias de uma época correspondem à ideia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso se inventar novos jogos. (DEBORD citado por JACQUES, 2003, p.17)
Andar sem rumo pela cidade. Sem uma atividade agendada ou objetivo se não experimentar a cidade. A Deriva é a antítese do Espetáculo. Enquanto o Espetáculo busca tornar o indivíduo sedentário, conformado em construir e detalhar a realidade burguesa, a Deriva se apropria do tabuleiro espetacular, a cidade, e explora-o em busca de fragmentos de realidade. Derivar é um experimento. É uma caça às situações. O que os Situacionistas desvendaram é que a cidade está cheia delas. O conceito de Deriva é, entretanto, anterior ao movimento dos situacionistas. Debord não criou
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Figura 1: Imagem da capa da edição de 1983 de “A sociedade do espetáculo”. EYERMAN, J. R. disponível em: https://proartsgallery.org/ event/guy-debords-the-society-of-the-spectacle
a técnica da deriva, mas apropriou-se dela, e como todo bom pensador, transformou-a. Muito antes, em 1921, a semente desse conceito foi plantada. Em Paris, os membros do Dadaísmo encontraram-se em frente à igreja abandonada de Saint-Julien-le-Prauve (Figura 2) para uma excursão urbana a um lugar considerado, pelo senso comum, como desinteressante, não era um ponto turístico, muito menos uma região nobre. Segundo Francesco Careri (2013), arquiteto e estudioso da Teoria da Deriva, essa era uma operação esteticamente consciente. Foi divulgada e documentada. Os Dadaístas ali se manifestavam em busca do que chamavam de Anti-arte. O que o Dadá buscava, não era o fim da arte em si, mas abolir altares criados para ela. Por que pintura? Por que escultura? Por que salões de espetáculo, museus e teatros? A arte pode também ser encontrada no banal. Antes da visita do Dadá, qualquer artista que quisesse submeter um lugar à atenção do público deveria deslocar o lugar real para um lugar designado por meio da representação e, inevitavelmente, através da própria interpretação e da própria linguagem. (CARERI, 2013, p. 75)
Esse movimento inicialmente tentou se comunicar através de meios tradicionais de representação, entretanto foi na cidade que o Dadá encontrou seu manifesto máximo de Anti-arte. Sua crítica a esses mesmos meios de representação se materializou na ocupação do espaço urbano e a perambulação por ele como forma de arte.
As visitas Dadáistas continuariam a ser anunciadas, sempre voltadas à exploração de partes da cidade consideradas desinteressantes ou abandonadas. Porém, isto nunca foi realizado, embora a vivência do espaço urbano como arte havia apenas começado. Em 1924, os Dadaístas decidem não mais se encontrar em um lugar específico da cidade, e sim, realizar um percurso errático. Liderados por André Breton, organizaram uma deambulação partindo do centro de Paris até Blois, cidade escolhida ao acaso no mapa. O grupo caminhou por vários dias. Segundo Breton, exploraram os limites entre a vida consciente e a vida sonho. (CARERI, 2013) […] iremos ao acaso, a pé, continuando a conversar, sem permitir-nos desvios deliberados a não ser na medida do necessário para comer e dormir. Um empreendimento cuja execução se mostra muito singular e até mesmo repleta de perigos. (BRETON, citado por CARERI, 2013, p. 79.)
A viagem levaria Breton, em seu retorno, escrever a introdução do Primeiro Manifesto Surrealista (1924), em que define o termo Surrealismo como “automatismo psíquico puro com o qual se pode expressar, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outro modo, o funcionamento real do pensamento.” (BRETON, 1924 citado por CARERI, 2013, p. 78) Diferentemente da visita dadaísta, a deambulação surrealista tomou lugar no espaço vazio, na estrada, pelos bosques, até a cidade de Blois. Espaço esse que reforçou a sensação de “transe” que o grupo buscava. Careri (2013) afirma que a deambulação surrealista é como chegar caminhando em um estado de hipnose, perder o controle, como se alcançasse a parte inconsciente do território. As excursões pelo campo não se repetiram, contudo, o grupo continuou sua errância pela cidade de Paris. A fim de buscar o que chamavam de inconsciente da cidade, começaram a perambular pelas zonas marginais periféricas, que não tinham sido impactadas pelas transformações burguesas. Assim, são retomadas as explorações das zonas “desinteressantes”. Os surrealistas se dedicaram a explorar o
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Figura 2: A excursão dos dadaístas. Da esquerda para a direita: Jean Crotti, Georges D”Esparbès, André Breton, Paul Éluard, Georges Ribemont-Dessaignes, Benjamin Péret, Theodore Fraenkel, Louis Aragon, Tristan Tzara, Phillippe Soupalt. Foto coletiva feita pelos Dadaistas, 1921 disponível em CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar com prática estética. (2013, p. 76)
“maravilhoso cotidiano que vive por trás da cidade moderna” conforme o surrealista Louis Aragon, em sua publicação Le paysan de Paris, em 1926. O surrealismo é uma espécie de investigação psicológica da própria relação com a realidade urbana, uma operação já praticada com sucesso por meio da escrita automática e dos sonhos hipnóticos, e que também pode voltar a ser proposta diretamente ao se atravessar a cidade. A cidade surrealista é um organismo que produz e esconde no seu seio territórios a ser explorados, paisagens nas quais perder-se e nas quais experimentar sem fim a sensação do maravilhoso cotidiano. (CARERI, 2013, p. 83)
Muito influenciados pela Psicanálise, que naquele momento estava se popularizando, o movimento buscou desvendar o que se escondia “atrás” da cidade. Perguntas como: O que se encontra além da velocidade dos automóveis, do comércio, do trabalho?; O que se esconde além da malha xadrez?; nos servem, aqui, para antecipar as relações que serão feitas em relação ao urbanismo positivista, no segundo capítulo dessa pesquisa. No pós-guerra, essas práticas foram retomadas pelos letristas. Com o reconhecimento desse “perder-se” pela cidade, não só como uma forma de Anti-arte, mas como um meio estético-político. Estabelece-se então o termo “deriva”, que para os letristas era uma atividade lúdica, uma forma de se subverter ao sistema capitalista. (CARERI, 2013) Para esse novo movimento, a deriva é coletiva e já não se prende em apenas definir as zonas “inconscientes” da cidade. Busca investigar os efeitos psíquicos que o contexto urbano produz no indivíduo. Uma experimentação de novos comportamentos no mundo real. Aqui, a deriva torna-se um oposto ao espetáculo e, assim, aproxima-nos novamente de Debord. Como Careri (2013, p. 86) define em Walkscapes, “um estilo de vida que se situa fora e contra as regras da sociedade burguesa.” A Deriva Letrista faz uma leitura subjetiva da cidade, sem muita importância, considerada pelo grupo uma forma exagerada que os surrealistas davam ao valor do inconsciente. O que os Letristas buscavam era a formalização de um método objetivo de exploração da cidade. Para os Letristas, essa busca pelos sonhos estava ligada a incapacidade dos burgueses de realizar, na realidade, um novo modo de vida. Rejeitam assim a separação entre a vida real e o potencial imaginário. Não era mais tempo de celebrar o inconsciente da cidade, era preciso experimentar modos de vida superiores através da construção de situações na realidade cotidiana: era preciso agir, e não sonhar. (CARERI, 2013, p. 85)
Entretanto, chegaria a vez dos letristas, assim como o Dadá e o Surrealismo, tornarem-se a teoria obsoleta quando um grupo de jovens escritores, encabeçados por Guy Debord rompem com o movimento, em 1952. Em 1956, Debord escreve o texto “A Teoria da Deriva” no qual detalha e formaliza o conceito. Na Deriva Situacionista, uma ou várias pessoas rejeitam, por um período, caminhar pela cidade pelos motivos que geralmente o fariam. Entregam-se ao terreno, as suas solicitações e às pessoas que encontrarão. Debord adiciona neste texto diversas formalizações e recomendações: a deriva pode ser realizada por alguém sozinho ou em conjunto, sendo, segundo o autor, mais proveitosa em grupo. Esses grupos têm recomendações de tamanho, sugere-se entre duas a três pessoas, se o grupo for maior, é melhor que seja fragmentado em vários grupos para a prática da deriva, simultaneamente. Em conjunto, as informações podem ser trocadas e questionadas, levando, segundo Debord, a uma percepção mais objetiva. A deriva pode durar horas ou até meses. O campo da deriva pode ser exato ou vago, depende do objetivo,
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podendo variar entre um quarteirão, um bairro ou no máximo uma grande cidade e suas periferias. A deriva pode ter saltos, pode-se tomar um ônibus ou um taxi e continuar derivando por outra região desconexa. Debord chega até a citar a possibilidade de se derivar dentro de um apartamento. “Até na arquitetura, o gosto pela deriva leva a preconizar todo o tipo de novas formas do labirinto, que as modernas possibilidades de construção favorecem.” (DEBORD, 1956 citado por JACQUES, 2003) Para Careri, a deriva é uma operação construída que aceita o destino, mas não se funda nele. É um meio lúdico no qual o território da cidade é reapropriado. A deriva será o principal instrumento da Psicogeografia Situacionista, e que será explorada como ação prática nesta pesquisa.
1.1.1 O CONCEITO DE PSICOGEOGRAFIA Partindo da definição formal da Internacional Situacionista, a Psicogeografia é um estudo dos efeitos do meio geográfico que atuam diretamente no comportamento afetivo dos indivíduos. A geografia, por exemplo, explica a ação determinante de forças naturais gerais, como a composição dos solos ou os regimes climáticos, sobre as formações econômicas da sociedade e, por isso, sobre o conceito de mundo que esta pode ter. A psicogeografia seria o estudo das leis exatas e dos efeitos precisos do meio geográfico, planejado conscientemente ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos. O adjetivo psicogeográfico, que guarda uma imprecisão interessante, pode, portanto, ser aplicado aos dados estabelecidos por esse gênero de pesquisa, aos resultados de sua influência sobre os sentimentos humanos e até, de modo mais geral, a qualquer situação ou conduta que pareçam provir do mesmo espírito de descoberta. (DEBORD citado por JACQUES, 2003, p. 39)
A Psicogeografia tem na Deriva uma ferramenta de pesquisa e experimentação. E nos Mapas Afetivos Psicogeográficos, a cartografia influenciadora, uma formalização. Ainda no Surrealismo, a ideia de criação de mapas afetivos já circulava. Breton, numa tentativa de formalizar a percepção do espaço cidadão, acreditava que poderia desenhar mapas em que os lugares que gostamos de frequentar tem a cor branca e aqueles que queremos evitar, a cor preta, e o resto, cinza, representando assim zonas de atração e repulsão na cidade. Zonas de bem-estar e zonas de mal-estar. Como a deriva, a Psicogeografia foi um conceito construído ao longo de muito tempo, passando de movimento em movimento, mudando aqui e ali, até ser formalizado pelos Situacionistas (CARERI, 2013). Em 1954, Gil J. Wolman, Gilles Ivain e Guy Debord apresentam um experimento chamado “Metagrafias influenciadoras” (Figuras 3 e 4) que são colagens com imagens e frases cortadas de jornais, da planta de Paris e outros mapas.
Em 1957, Debord e Asger Jorn continuam as experiências Metagráficas. Os situacionistas em “Fin de Copenhague” (Figura 5) simulam o litoral da Dinamarca como sendo habitado por símbolos de consumo. O livro é resultado de um experimento de 24 horas dos autores, que se apressaram em conseguir material de revistas e jornais, passaram a tarde colando e no dia seguinte levaram tudo para impressão.
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Figura 3: Metagrafia. DEBORD, G. 1954. Disponível em: https://piinel8.wixsite.com/paris60s/art-psicogeografia Figura 4: Colagens de arquipélagos sobre o mapa de Paris. IVAIN, G., 1952. Disponível em https://piinel8.wixsite.com/paris60s/art-psicogeografia
Figura 5: Fin de Copenhague. JORN, A; DEBORD, G. 1957. DisponĂvel em https://situationnisteblog.com/2015/11/24/fin-de-copenhague-1957/
Mas é em “La Guide psychogéographique de Paris” (Figura 6) que o primeiro mapa psicogeográfico é formado. Feito por Debord, em 1957, era um mapa dobrável para ser distribuído. Segundo Careri, o mapa foi um convite ao “perder-se”. No guia, Paris encontra-se em pedaços, com toda a sua unidade retirada. Os fragmentos de cidade flutuam sobre espaços vazios do mapa. O hipotético turista deve seguir as setas que unem unidades de ambiente, zonas homogêneas determinadas com base em relevos psicogeográficos. A cidade passou pelo crivo da experiência subjetiva, que a mediu segundo os seus próprios afetos e paixões - constituídos ao frequentar os lugares e ao escutar as próprias pulsões - e confrontou-os com os de outras experiências subjetivas. (CARERI, 2013, p. 92)
Ainda em 1957, Debord publica “The Naked City” (Figura 7). “A cidade está nua, a deriva espoliou-a, arrancou-lhe as vestes, que agora flutuam desorientadas.” (CARERI, 2013, p.92). Os espaços em branco, nos dois mapas são os percursos internos dos bairros. O traçado urbano é substituído por um campo aberto. As setas são os possíveis percursos de deriva. A cidade Situacionista é um jogo, muito diferente do xadrez no espaço esquadrinhado, é um jogo de exploração, de encontros e surpresas, um jogo de situações. Como experiência subjetiva, a cidade torna-se infinita. Um campo aberto e potente de experimentações e descobertas.
Os situacionistas tinham encontrado na deriva psicogeográfica o meio com o qual despir a cidade, mas também com o qual construir um meio lúdico de reapropriação do território: a cidade é um jogo a ser utilizado para o próprio aprazimento, um espaço para ser vivido coletivamente e onde experimentar comportamentos alternativos, onde perder o tempo útil para transformá-lo em tempo lúdico-construtivo. Era preciso contestar o bem-estar que se fazia passar por felicidade por obra da propaganda burguesa e que, do ponto de vista urbanístico, se traduzia na construção de casas “lotadas de conforto” e na organização da mobilidade. (CARERI. 2013, p. 98)
A psicogeografia estuda efeitos que vão além do ponto de vista “policial”, controlador e higienísta, imposto por Haussmann3, considerado por Debord, um idiota. A Paris Espetacular não servia aos Situacionistas. Estavam interessados no espontâneo, escondido por de trás do espaço esquadrinhado. Apesar de sua faceta subjetiva, Debord vê a Psicogeografia como um pilar para o urbanismo futuro na busca pela construção de cidades melhores. Em “Introdução a uma crítica da geografia urbana” (1955) afirma que os mapas Psicogeográficos podem descobrir fluxos totalmente novos pela cidade. O autor antecipa discussões do atual urbanismo em 1955 como, por exemplo, o excessivo uso de automóveis particulares na cidade, derivado de uma cultura de propaganda que seduziu a população a criar essa necessidade virtual por esse produto. Esses desejos virtuais também terão um papel na maneira burguesa de vivenciar a cidade, que não serve aos estudos Psicogeográficos. Por exemplo, Debord argumenta que as pessoas sabem que existem bairros “tristes” e bairros “agradáveis” mas essas definições vem de sensações arquitetadas por uma classe dominante. Como exemplo, o autor usa a comparação de ruas elegantes e ruas de bairros mais pobres, que nos sugere uma comparação possível em relação à arquitetura. Uma casa “alto padrão” no Brasil corresponde mais a quantidade de elementos de “luxo” anexados a ela do que, de fato, a uma boa arquitetura. O que importa é se há piso de porcelanato de alta performance, mármores e granitos, o forro com detalhes de gesso e iluminação automatizada, acabamentos “da moda” e não se esse espaço de 3
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A Reforma de Paris do Barão Haussmann será melhor explorada no segundo Capítulo.
Figura 6: La Guide psychogéographique de Paris. DEBORD, G. 1957. Disponível em: https://imaginarymuseum.org/LPG/Mapsitu1.htm Figura 7: The naked city. DEBORD, G. 1957. Disponível em: https://searchofthesublime.tumblr.com/post/73523468378/the-naked-city-guy-debord-1957
fato importa para aqueles que o habitam. Será que é possível derivar numa casa de condomínio fechado? Que elementos subjetivos podem ser encontrados nesse tipo de espaço colonizador? Esses conceitos serão mais bem explorados no Capítulo 2. “Com efeito, a única coisa a esperar é que as populações ativas tomem consciência das condições de vida que lhes são impostas em todos os setores, e dos meios práticos de mudar essa situação.” (DEBORD citado por JACQUES, 2003, p. 42) Debord fala de uma revolução, como bom marxista, no contexto histórico que precedia 1968, no qual essa revolução parecia iminente. Entretanto a história se mostraria mais complexa.
1.2 O HOMO LUDENS E A NOMADOLOGIA A cidade é composta de cheios e vazios. Fluxos, as vias, as praças, os parques, e sedimentos, a arquitetura. Os Surrealistas, Letristas e Situacionistas propuseram revelar algo oculto nas cidades. Seja o seu inconsciente ou sua vida não burguesa, esse oculto se descobriu justamente por propostas de atividades de fluxo e percurso, como a Deriva. E isso não é à toa. Uma face nômade foi abafada, assassinada, no ser humano, mas ela retorna como se fizesse parte do inconsciente, como se para assombrar. Segundo Careri, nossas cidades são compostas do mito de Caim e Abel. Encontramo-nos agora em uma parábola bíblica. Careri ressuscita o mito para buscar uma analogia para a diferenciação da humanidade em dois lados distintos: um nômade e o outro, sedentário. Sendo Caim, o agricultor, a alma sedentária e Abel, o pastor de ovelhas, a nômade. A classe de Caim é o Homo faber, a estirpe do trabalho, que usa seu tempo para o produtivo. Já a de Abel, a do nômade e explorador, aquele que usufrui do tempo livre, do tempo lúdico, seus descendentes são o Homo ludens. Na narrativa hebraica, Caim mata Abel, e é condenado por Deus a vagar pelo mundo. O trabalhador sedentário é ironicamente condenado a ser nômade, carregando em si ambos, ludens e faber. Segundo o mito, a descendência de Caim será responsável pela criação das cidades. Nessa metáfora, nossas cidades são resultado de uma lógica sedentária produtiva assombrada por um nomadismo explorador. (CARERI, 2013) O conceito de Homo faber e Homo ludens não foi criado por Careri, mas pelo historiador holandês Johan Huizinga, em seu livro “Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura”, de 1938, no qual explora o jogar como um elemento primário da vida, anterior até a cultura, que teria evoluído desta. Uma vez que não somos tão razoáveis como imaginara o século das luzes, que venerava a Razão, pensamos acrescentar á primeira definição da nossa espécie Homo sapiens a de Homo faber. Ora, este segundo termo é ainda menos justo que o primeiro [...] o termo Homo ludens, o homem que joga, que exprime uma função tão essencial como a de fabricar, parece-me merecer o seu posto depois do termo Homo faber. (HUIZINGA citado por CARERI. 2013, p. 37)
Careri, baseado em Huizinga, enxerga na separação “Caim e Abel” do trabalho, duas culturas diferentes. Porém, segundo ele, interdependentes. Careri afirma que agricultores e pastores têm necessidades contínuas de intercâmbio de seus produtos. Enxerga-se uma interdependência entre fabricar e jogar, o que se questiona é o abandono de uma dessas facetas. Entretanto, para discutir Nomadologia devemos voltar a maio de 1968. Os filósofos Deleuze e Guattari são citados vagamente por Careri em “Walkscapes” (2013), onde talvez tenha subutilizado os estudos destes autores sobre os nômades. Careri parece estar mais interessado nos situacionistas e no
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nomadismo primitivo. O tratado da Nomadologia de Deleuze e Guattari, parte do volume 5 de “Mil Platôs: Capitalismo esquizofrenia”, trata de conceitos importantíssimos para entendermos as relações com arquitetura e urbanismo, aprofundadas no capítulo 2. Para chegar a eles precisamos, entretanto, conversar um pouco sobre o pós-estruturalismo de Deleuze e Guattari, e assim como fizemos com o espetáculo situacionista antes de conversar sobre deriva, devemos nos munir de alguns conceitos fundamentais para se apropriar da filosofia de Deleuze e Guattari e traçar conexões e diferenças com os pensamentos já expostos aqui. 1.2.1 MÁQUINAS DESEJANTES Debord não foi a única mente a influenciar o movimento de maio de 1968. Estavam lá também Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michel Foucault e outros pensadores. Filósofos que, em comum, possuíam uma crítica à dois pilares do pensamento que imperava na época: o marxismo e a psicanálise. Não que eles fossem contrários a tais pensamentos, mas os pós-estruturalistas apresentaram um outro jeito de se enxergar aquela realidade. Numa breve comparação, para Guy Debord, a leitura que ele faz da sociedade, propondo o conceito de espetáculo, baliza tudo em sua filosofia. Sendo assim, a deriva e a Psicogeografia são ferramentas revolucionárias contra este Espetáculo. Em Debord, o profetismo da revolução tem forte presença. Como dito anteriormente por Debord “a única coisa esperar é que as populações ativas tomem consciência das condições de vida que lhes são impostas em todos os setores, e dos meios práticos de mudar essa situação.” (DEBORD citado por JACQUES, 2003, p. 42). Os meios práticos para Debord são a revolução proletária. A máxima “a história da sociedade é a história da luta de classes” permeia o pensamento situacionista. Para Deleuze e Guattari, a questão é um pouco mais complexa. Em Anti-Édipo, Deleuze e Guattari (2004) separam a humanidade em três grandes formações sociais, três estágios de recalcamento desejante, ou seja, a transferência do desejo do indivíduo de seu próprio interesse para o da sociedade. A história sedentária seria formada pela canalização de Desejo4 humano. Começando pela sociedade primitiva, com a codificação, o hábito e a tradição, seguida pela despótica, com o surgimento do estado e a concentração do poder em volta do déspota (filiado diretamente a Deus), e, por fim, a capitalista no qual surge o conceito de axiomatização. O problema do socius tem sido sempre o de codificar os fluxos do desejo, inscrevê-los, registrá-los, fazer que nenhum fluxo corra sem ser rolhado, canalizado, regulado. Quando a máquina territorial primitiva deixou de ser suficiente, a máquina despótica instaurou uma espécie de sobrecodificação. Mas a máquina capitalista, ao estabelecer-se sobre as ruínas mais ou menos longínquas de um Estado despótico, encontra-se numa situação absolutamente nova: a descodificação e desterritorialização dos fluxos. (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 36)
Agora na máquina capitalista, volta Marx, com a mais valia, ponto fundamental para o sustento desse modo de produção. O ser humano, entretanto, precisa concordar com isso. É preciso de um impulso para que o trabalhador continue a vender sua força de trabalho. E para isso surge um novo aparelho de subjetivação. 4
Desejo Energia que direciona os instintos vitais do sujeito. Vontade de potência.
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Quanto mais a máquina capitalista desterritorializa, descodificando e axiomatizando os fluxos para deles extrair a mais-valia, mais os seus aparelhos anexos, burocráticos e policiais, reterritorializam força enquanto vão absorvendo uma parte cada vez maior de mais-valia. (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 20)
O Axioma é um princípio. Tudo está a serviço do mercado capitalista. Tudo está a serviço da extração da mais valia. Todo desejo será axiomatizado. Ou seja, todo desejo estará a serviço do capitalismo. Seja o trabalho braçal ou o especializado. O próprio Estado deixa servir o déspota e coloca-se à serviço do capital. Sendo ele o principal polo de axiomatização e a família colonizada para cultivar a subjetividade axiomatizada. A axiomática capitalista é muito flexível, consegue sempre alargar os seus limites para acrescentar mais um axioma a um sistema já saturado. Ora vejamos, um axioma para os assalariados, para a classe operária e para os sindicatos, e o lucro passará a ser paralelo ao salário, lado a lado refluxo e afluxo. Até se há-de encontrar um axioma para a linguagem dos golfinhos. (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 248)
Exemplificar esse princípio não é uma tarefa simples, uma vez que o Axioma é um conceito muito amplo e subversivo, mas vamos a um caso de estudo. O mais simples deles seria o trabalhador. O trabalhador é subjetivado desde pequeno pela família a vender sua força produtiva. Entretanto, a mais valia, por mais que não seja conhecida por todos, é de certa forma sempre sentida pelo trabalhador. Esta causa-lhe exaustão e descontentamento. Chega o patrão com as férias, o estado e os sindicatos com os direitos trabalhistas, chega o happy hour, o brainstorming com salgadinhos. Tudo que possa fazer esse indivíduo esquecer sua dor e voltar a produtividade. O conceito de carreira, a cultura de empreendedorismo neoliberal, o estímulo a essa super produtividade para o alcance de um status, vindo do próprio espetáculo, citando Debord, a partir do século XX a mídia também se torna um grande veículo de axiomatização. Percebemos como os conceitos das duas teorias de entrelaçam aqui. O próprio patrão, é axiomatizado. No filme, dirigido por dois interessantíssimos cineastas brasileiros em ascensão, Marco Dutra e Juliana Rojas, essa representação fica muito evidente. A narrativa foca em um casal, o marido desempregado, e Helena, a esposa, que vê na abertura de um pequeno mercado sua única esperança. Entretanto as dificuldades de um pequeno empreendedor em um país subdesenvolvido vão de encontro constantemente com os esforços da família em fazer o negócio acontecer. O mais interessante é como essas dificuldades são representadas pela obra. Os diretores trabalham na linguagem de gênero de terror. O mercado de Helena é amaldiçoado, talvez como todo emprego e empreendimento real. Dentro de suas paredes há o cadáver de uma besta, que como um câncer, espalha o fracasso pelo local. Uma ferida escondida, que dói, mas é constantemente ignorada pelos protagonistas, muito ocupados pela necessidade de sobreviver. A axiomatização do Desejo, principalmente nos países subdesenvolvidos, impede até mesmo o indivíduo de refletir sobre suas dores. Trabalhar é preciso, sobreviver é preciso. A tragédia do Homo faber. Para Deleuze e Guattari (2004), uma grande diferenciação entre as máquinas despótica e capitalista é a ausência de senhores na última. O único senhor é a própria máquina. Todos os demais são escravos. Não importa a atividade, de apertar parafusos a criar uma obra de arte, tudo pode ser subvertido pelo sistema capitalista. Tomamos o trabalho, aqui, como caso de estudo, mas o axioma vai além. Podem ser capturados os acontecimentos, movimentos e lutas sociais, costumes, religiões e ritos culturais, e até
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Figura 8: Helena descobre um estranho apodrecimento das paredes de seu mercado. Trabalhar Cansa, DUTRA, M; ROJAS, J. 2011. DisponĂvel em: http://www.tyrannusmelancholicus.com.br/noticias/3425/trabalhar-cansa
mesmo espaços. Nossa sociedade capitalista, segundo os autores, é mais complexa que a luta de classes entre burguesia e trabalhador apoiada por Marx e Debord. A verdadeira oposição para os dois pós-estruturalistas está entre os que tem uma classe e os “sem classe” chamados “Esquizofrênicos” ou “Esquizos”. Quando há pouco dizíamos que o esquizo está no limite dos fluxos descodificados do desejo, referíamo-nos aos códigos sociais em que um Significante despótico esmaga todas as cadeias, as lineariza, as bi-univociza, e serve-se dos tijolos como se fossem elementos imóveis numa muralha da China imperial. Mas o esquizo separa-os sempre, desliga-os, leva-os consigo em todos os sentidos a fim de reencontrar uma nova plurivocidade, que é o código do desejo. (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 43)
O esquizo não tem relação com a doença Esquizofrenia, a palavra do grego pode significar tanto «dividido» como «diferente». É o corpo não disciplinado, não capturado pelos axiomas da máquina de desejos capitalista. Esses indivíduos não adequados, são a base da crítica dos filósofos a psicanálise, que, segundo os autores, acaba trabalhando para a axiomatização do sujeito. Partindo disso eles propõem um novo método, a Esquizo-análise, que segundo os autores “Propõe-se desedipianizar5 o inconsciente para poder chegar aos verdadeiros problemas.” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p.85) Em síntese, a Esquizo-análise busca “esquizofrenizar” o indivíduo, ou seja, diferenciá-lo, remover as amarras da subjetividade capitalista para a produção de uma nova subjetividade. Essa breve introdução à filosofia da diferença é necessária pois o “Esquizo” lembra muito o Homo Ludens de Huizinga, uma vez que tratam de uma subjetividade que não foi capturada pela lógica do sistema produtivo. A criação desse corpo descodificado, para Deleuze e Guattari é a verdadeira forma de resistência a axiomática capitalista. Para entender melhor esse conceito, podemos nos apoiar em outros exemplos cinematográficos. O segundo filme do movimento Dogma 95, dos anos 1990, “Os Idiotas”, ou “Idioterne”, do cineasta dinamarquês Lars von Trier, ilustra bem o confronto que as subjetividades diferentes têm com o mundo capitalista. Em “Os Idiotas” (1998), um grupo de jovens busca os seus “idiotas internos” se comportando como “loucos” em público, fugindo do tratamento considerado “normal” dado a inteligência humana, considerado por estes pouco criativo e limitado. No filme, esse novo comportamento é chamado de “spaz”. Os membros do grupo têm uma casa como “quartel general”, onde continuam a agir dessa maneira, explorando o comportamento de diversas formas (Figura 9). Diversas vezes, “os idiotas” recebem visitas de parentes e conhecidos, que ficam escandalizados com o modo de vida escolhido pelos jovens. A casa parece exercer uma espécie de papel inverso ao “manicômio” dos cegos do livro “Ensaio sobre a cegueira” (1995) de José Saramago. No livro, um surto de cegueira, aparentemente contagiosa, faz com que a sociedade isole as vítimas dessa doença em um sanatório, limpando a população indesejada pelos “normais” da cidade. Em “Os Idiotas” os membros do grupo se isolam por vontade própria, em seu porto seguro, onde exploram sua loucura, saindo apenas para provocar aqueles que vivem no exterior. Entretanto, um a um, são retornados para o mundo “real”, por parentes e conhecidos. No final do filme, uma das personagens, Karen, retorna para sua família. Descobrimos que Karen havia se juntado ao grupo de “loucos” após a morte de seu filho recém-nascido. Sua família não recebia notícias dela há duas semanas. Ao ser confrontada pelo marido, Karen fica sem reação e seu único impulso é entrar em 5
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Referente ao complexo de Édipo da Psicanálise.
Figura 9: Os Idiotas. TRIER, L. DisponĂvel em: https://sentego.net/go-and-chess/
“spaz”. Entretanto, tem como resposta um violento tapa na cara do marido. Esse “tapa na cara”, essa castração de subjetividades diferentes, se repete muito no trabalho de Lars von Trier. “Os Idiotas” faz parte de sua trilogia “Golden Heart” onde esse tema é constantemente explorado. Em “Dançando no escuro” (Dancer in the Dark, 2000), a cantora Björk vive uma sonhadora operária de fábrica com um problema degenerativo de visão, e em “Ondas do destino” (Breaking the Waves, 1996), somos apresentados a uma mulher, também sonhadora, que é parte de uma comunidade patriarcal calvinista, na Escócia dos anos 1970, que se casa com um homem de fora do clã, sofrendo grande repúdio por seus vizinhos. Para Deleuze e Guattari, fugir da axiomática não necessariamente é ter o comportamento dos “idiotas” de Lars von Trier, mas, assim como eles, buscam formas alternativas de se viver a vida. Essa visão, diferente da de Debord, é a revolução do pós-estruturalismo. Como Michel Foucault cita no prefácio de Anti-Édipo (1977), a filosofia de Deleuze e Guattari é uma introdução a vida não fascista. Por que fascista? Debord responde: O fascismo foi uma defesa extremista da economia burguesa ameaçada pela crise e pela subversão proletária, o estado de sítio da sociedade capitalista, pelo qual essa sociedade se salva [...] (DEBORD, 1997, p. 75)
Para Deleuze e Guattari, essa sociedade trouxe com ela um elemento de sua antecessora, a sociedade despótica. Essa figura é o Estado, o aparelho de captura regulador. A axiomática capitalista vai até algum ponto. Quando as coisas fogem do controle, retorna o despotismo, o autoritarismo, e como Debord argumenta acima, no caso da sociedade burguesa, surge o seu “cão de guarda”, o fascismo. Neste ponto, Deleuze, Guattari e Debord concordam. Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (embora a oposição do Anti-Édipo a seus outros inimigos constituam mais um engajamento político): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini - que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora. (FOUCAULT, 1977, p.1)
O que acontece aqui é que Foucault eleva o termo fascismo para um nível filosófico, e não histórico. Para os pós-estruturalistas o conceito de micropolítica é muito importante. Assim como a revolução acontece no “micro”, o fascismo também. A produção mais valiosa do capitalismo, para eles, não são suas mercadorias, mas o desejo pelo seu modo de vida. Como o próprio Foucault diz acima, é um constante “mobilizar e utilizar” o desejo das massas, seja por axiomas, por autoritarismo, ou até pelo desejo por autoritarismo. O fascista em nós, e é algo que pode ser buscado pela axiomática capitalista em estados de emergência, já que esse sistema tem que lidar constantemente com crises e com a sua própria morte. Na busca pela criação de existências singulares, Deleuze e Guattari enxergam nessa filosofia da diferença uma esperança contra esse fascismo interno e um caminho para uma vida mais sadia. 1.2.2 ESPAÇO E SUBJETIVIDADE
O Estado moderno, ou Estado nação, segundo Deleuze e Guattari (1997), é um Aparelho de captura de indivíduos e movimentos para o capitalismo. É também uma ferramenta de esquadrinhamento dos espaços. Um organizador da vida sedentária. Espaço e tempo podem ser esquadrinhados ou estria-
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dos, sendo transformados em agentes colonizadores. Em oposição a ele, existe a face nômade humana, já discutida anteriormente. Entretanto, para os autores, ela só existe com a Máquina guerra, sendo ela exterior ao estado e tendo como objetivo ocupar e propagar o Espaço liso, um espaço que permite subjetividades singulares. É o espaço do Homo Ludens, que tem relações afetivas e subjetivas. Se aproximando do espaço buscado pelos Situacionistas com a Psicogeografia e a Deriva. A Máquina de guerra produz o nomadismo assim como o Aparelho de captura trabalha para manter os indivíduos sedentários. Para explicar essa oposição, os autores, em “Mil Platôs” (1980), se utilizam de dois jogos de tabuleiro como metáfora: o Xadrez, para o espaço estriado, e o Go (Figura 10), para o espaço liso.
O xadrez é um jogo de Estado, ou de corte; o imperador da China o praticava. As peças do xadrez são codificadas, têm uma natureza interior ou propriedades intrínsecas, de onde decorrem seus movimentos, suas posições, seus afrontamentos. Elas são qualificadas, o cavaleiro é sempre um cavaleiro, o infante um infante, o fuzileiro um fuzileiro. Cada uma é como um sujeito de enunciado, dotado de um poder relativo; e esses poderes relativos combinam-se num sujeito de enunciação, o próprio jogador de xadrez ou a forma de inferioridade do jogo. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 13)
Os autores argumentam que o xadrez é uma “guerra”, mas uma “guerra institucionalizada” (DELEUZE; GUATTARI, 1997). Suas peças são codificadas, tem classes, privilégios e limitações e até formas de diferenciação. A torre por exemplo, pode andar quantas casas quiser, porém, apenas nos eixos X e Y e não na diagonal; o peão, a peça mais “fraca”, porém a mais populosa, só pode andar uma casa (duas em seu primeiro movimento) e comer outra peça na diagonal, o bispo só pode anda na diagonal, e por ai vai. Para Deleuze e Guattari, o espaço e tempo estriado assim é. O horário para cada coisa, 12 horas é hora do almoço, 13:30 volte ao trabalho, 18 horas vem a liberação. Antecipando as relações que serão feitas com a arquitetura nos próximos capítulos, podemos ter como exemplo dessa configuração estriada as salas de aula, organizadas como igrejas, os chamados “altares do saber” onde o professor ou palestrante fica no centro ou na frente, e os aluno enfileirados. A plantas de habitação com a clássica tripartição burguesa, divididas em setores de “serviços”, “social” e “íntimo”, métodos de organização ensinados até hoje em cursos de Arquitetura e Urbanismo, são grandes exemplos de espaços colonizadores. Os peões do Go, ao contrário, são grãos, pastilhas, simples unidades aritméticas, cuja única função é anônima, coletiva ou de terceira pessoa: “Ele” avança, pode ser um homem, uma mulher, uma pulga ou um elefante. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 13)
Já o jogo Go, trabalha com uma liberdade maior. Suas peças, como os autores citam acima, são “neutras”, todas tem o mesmo formato, tamanho, e não possuem as limitações de movimento por classe como as do xadrez. “Sozinho, um peão do Go pode aniquilar sincronicamente toda uma constelação, enquanto uma peça de xadrez não pode” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 13). O xadrez codifica suas peças, a fim de mantê-las em suas funções, enquanto o Go é composto de peças livres, com possibilidades de movimentação e interferência muito maior. Essa oposição entre o liso e o estriado é nada mais do que uma oposição entre nomos e polis, entre nomadismo e sedentarismo. A máquina de guerra é o que possibilita essa movimentação rica, enquanto as estrias criadas pelo aparelho de captura trabalharão para sedentarização.
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Figura 10: O xadrez e o GĂ´. Website SenteGo, s/d. DisponĂvel em: https://sentego.net/go-and-chess/
Aqui enxergamos a conexão entre espaço e produção de subjetividade. Com o estriamento do espaço a produção da subjetividade capitalista, e como consequência, a manutenção desse sistema de produção é muito mais eficaz. É como se fosse um braço físico da máquina desejante capitalista. E isso nos faz, mais uma vez, retornar a Debord: A sociedade que modela tudo o que cerca construiu uma técnica especial para agir sobre o que dá sustentação a essas tarefas: o próprio território. O urbanismo é a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço com o seu próprio cenário. (DEBORD, 1997, p. 112)
O situacionista evidencia a ligação entre o urbanismo e o conceito de espetáculo. Assim como Deleuze e Guattari encontram no espaço estriado um agente para a produção da subjetividade capitalista. Huizinga e o Homo ludens parecem ser a conexão perfeita encontrada por Careri, para uma conversação entre os dois pensamentos. Apesar de suas diferenças, ambos parecem interessados em ferramentas para a fuga de uma ordem imposta, para produção de novas formas de subjetividade. A arquiteta e urbanista e pesquisadora Paola Berenstein Jacques parece enxergar, em “Elogio aos Errantes” (2012), nessa fuga proposta por esses autores, uma verdadeira crítica ao urbanismo.
Através dos diferentes trabalhos, imagens (fotos, filmes, cartografias), músicas ou escritos desses artistas, ou seja, através de suas narrativas errantes, é possível apreender o espaço urbano de outra forma, partindo do princípio de que os errantes questionam o planejamento e a construção dos espaços urbanos de forma crítica. O simples ato de errar pela cidade pode assim se tornar uma crítica ao urbanismo como disciplina prática de intervenção nas cidades. (JACQUES, 2012, p. 30)
O espaço nômade trabalha justamente com essas relações afetivas, subjetivas, de memória, citadas por Jacques. Deleuze e Guattari enxergam essas relações de forma complexa e não dualista, “Abaixo o Estado! Viva a máquina de guerra nômade! Se ao menos a política fosse tão simples.” comenta da Michael Hardt nas abas do volume 5 de “Mil Platôs” (1997). Se trabalhamos, partindo do pós-estruturalismo desses autores, em um campo micropolítico, e não pelo profetismo da revolução macro de Debord, encontraremos em suas ferramentas um campo muito fértil para a exploração do espaço urbano. Debord, na versão cinematográfica de “A sociedade do espetáculo” (1973) afirma que “o mundo está filmado, agora deve ser transformado”, mais uma vez fazendo referência a revolução do proletariado. Entretanto, comparando essa teoria com a abordagem “micro” de Deleuze e Guattari, o filmar, exposto por Debord, como uma atividade que foi esgotada, pode ser, na ótica do pós-modernismo, um método muito potente para a transformação. Essa afirmação de Debord pode ser repensada também em contraste com o pensamento da escritora estadunidense Susan Sontag. Em “Sobre Fotografia”(1977), a escritora apresenta um discurso muito parecido com o do Espetáculo de Debord, apesar de não citá-lo. Sontag (2004, p. 34) afirma que “As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de imagens” e que a imagem “é a mais irresistível forma de poluição mental”. Mas ela enxerga, nessa apropriação do capital pelas imagens, uma evidência do poder delas. Partindo do ponto de que todo olhar, é um olhar subjetivo, afirmando que “Fotografar pessoas é violá-las, ao vê-las como elas nunca se veem, ao ter o conhecimento que elas nunca podem ter;” (2004, p. 25). Sontag enxerga uma “infinitude” subjetiva para a fotografia, sendo
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assim, por essa perspectiva subjetiva, como o espaço, a imagem é neutra. Mas voltando ao princípio do axioma, de Deleuze e Guattari, mais uma vez tudo está a serviço do capital, tudo pode ser axiomatizado, inclusive imagens e espaços. Resta aos urbanistas, arquitetos, designers e artistas “esquizofrenizar” seu conhecimento e técnicas para que essas sejam polos de “desestriamento” e de “desaxiomatização”. A arte e o design podem ser verdadeiras Máquinas de guerra. Para trazer um exemplo que ao mesmo tempo evidencia esse poder subjetivo do espaço e o da imagem, podemos citar o cinema do lituano Jonas Mekas. Em “Ao Caminhar Entrevi Lampejos de Beleza” (As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty, 2000), o cineasta compila partes de cerca de 30 anos de sua vida. São cenas do interior de sua casa, de jantares sendo preparados em família, de seus filhos brincando, de domingos com amigos em parques públicos, das ruas, do cotidiano (Figura 11). O banal tão procurado pelas vanguardas, citadas no início desse capítulo, aqui é desnudado e elevado ao status de protagonista. De forma poética, Mekas intercala os “momentos de beleza” que viu com uma poderosa narrativa, em tom de manifesto, sobre a essência do cinema. Para o diretor, o dia a dia está cheio de material fértil para a criação e os filmes podem ser uma excelente ferramenta para a exploração. Como uma peça de Go, Mekas se move livremente pelo espaço, partindo de registros despretenciosos, extraindo deles relações e sensações que, aparentemente, para a subjetividade capitalista, estavam escondidas. A verdade é que o Homo faber as ignora. Mekas, encara sua vida como um jogo, um constante explorar, e usa o cinema como ferramenta de catalogação do processo, como os situacionistas utilizavam os mapas afetivos. Deleuze e Guattari propõe um método de pesquisa que lembra o processo de Mekas e a Psicogeografia. Esse método é a Cartografia-afetiva, que “propõe uma reversão metodológica” e “consiste numa aposta na experimentação do pensamento”, sendo assim um “caminhar”, não para alcançar metas pré-estabelecidas, mas para descobri-las no percurso. (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p.10) Como cartógrafos, nos aproximamos do campo como estrangeiros visitantes de um território que não habitamos. O território vai sendo explorado por olhares, escutas, pela sensibilidade aos odores, gostos e ritmos. (BARROS. KASTRUP. Citados por PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA. 2015, p. 61)
Jonas Mekas não escreveu um roteiro para «Ao Caminhar Entrevi Lampejos de Beleza”, suas cenas foram descobertas no percurso. Sendo um “cartógrafo espontâneo” ou “acidental” Mekas tem “um território existencial” (o cotidiano) no qual “sujeito e objeto da pesquisa se relacionam e se codeterminam.” Habitar um território existencial é uma das pistas do método cartográfico. Uma pista metodológica não é o mesmo que uma regra ou protocolo de pesquisa, não é um procedimento que se dita de antemão, mas requer um aprendizado ad hoc, passo a passo. Nesse sentido, lançamo-nos na pesquisa tal como se diz “lançamo-nos na água”, sem perder de vista que tanto a pesquisa ela mesma quanto o campo pesquisado estão sempre num processo incessante de coprodução e coemergência. (PASSOS; ALVAREZ, citados por PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p.147)
Sendo assim, a cartografia não é uma pesquisa sobre algo, mas com alguém ou algo. É íntima ao nomadismo uma vez que trabalha numa constante desterritorialização e territorialização de conceitos e enxerga a “construção” desse conhecimento como um caminho. É como se apropriar da potência do Homo ludens, de suas relações afetivas e subjetivas para a criação de uma “Ciência Nômade”, uma forma
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Figura 11: Jonas Mekas nas ruas em Ao Caminhar Entrevi Lampejos de Beleza. MEKAS, J. DisponĂvel em: https://www.arter.org.tr/en/ as_i_was_moving_ahead_occasionally_i_saw
de pensamento livre. Retomando Jacques, é “possível apreender o espaço urbano de outra forma” (2012, p. 30), esse é o território existencial dessa pesquisa. É buscar na afetivação do espaço e nos métodos de formalização, seja na Cartografia-afetiva de Deleuze e Guattari ou na Psicogeografia Situacionista de Debord, uma forma diferente da imposta pelo aparelho de Estado. O que propomos realizar ao longo deste trabalho é experienciar, explorar e compreender o espaço urbano de Campo Grande, através dessas lentes filosóficas. O projeto (seja ele que escala for), não parte de uma determinação, de uma lógica dada, mas sim, de um processo de encontrar na cidade, formas de resistência e um outro modo de atuação para o Arquiteto e Urbanista.
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CAPÍTULO 2: A CAPTURA DO ESPAÇO URBANO A cidade já não existe. Rem Koolhaas
Neste capítulo apresentamos três momentos na história da cidade com foco na positivação do espaço urbano, da Paris do Barão Haussmann e seu embelezamento sanitarista, passando pela Brasília de Lúcio Costa, a cidade moderna, até a contemporânea cidade neoliberal chamada por Rem Koolhaas de Cidade Genérica. Abordaremos este período acompanhado de uma leitura crítica com base nos conceitos Deleuzianos e Situacionistas introduzidos no Capítulo 1 e, ampliaremos esta leitura com a contribuição os conceitos advindos dos estudos de Raquel Rolnik, Pierre Dardot e Chistian Laval.
2.1 UM BREVE HISTÓRICO DA POSITIVAÇÃO DOS ESPAÇOS Vimos que para Deleuze e Guattari (2004) a formação da máquina social capitalista se dá com o fim do déspota, ou seja, do senhor feudal, do rei, ou do imperador absoluto. A partir daí, o acúmulo de capital passa para o mercado, mediado e protegido pelo estado que irá conter novos fluxos através de Axiomas6 ou autoritarismo. Esse autoritarismo é evidenciado, por Deleuze e Guattari, pela ação despótica, pelo monopólio da violência pelo estado. Ou seja, mais uma vez exemplificando, esse controle de fluxos pode ser feito atendendo a desejos de uma classe trabalhadora insatisfeita, e trabalhando essa concessão para colocá-la ela a serviço da produção e manter a extração de mais-valor. Ou o estado, esse aparelho mediador, pode atuar sobre essas demandas sobre uma forma repressão violenta, abafando movimentos sociais e novos fluxos a partir de políticas de violência. Geralmente as políticas de axiomas são mais exercidas no norte do globo, nos países desenvolvidos, enquanto a repressão violenta é muito comum aos países subdesenvolvidos, mas isso não é uma regra. (DELEUZE; GUATTARI. 2004) Sendo assim, o planejamento do espaço urbano pelo Aparelho estatal, funcionaria como uma espécie de gestão dos cidadãos. A afirmação de Debord (1997, p. 112) de que “o urbanismo é a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo” ecoa fortemente o conceito deleuziano de estriamento do espaço. Ambos os pensamentos fazem muito sentido, uma vez que a luz da história o urbanismo surge como uma gestão estatal do espaço. Para entender esse fenômeno devemos voltar ao século XIX. Em 1853, Georges-Eugène Haussmann, prefeito de Paris, sob ordens de Napoleão III inicia uma drástica remodelação da cidade de Paris, justificada por questões sanitárias. A cidade, que havia passado por dois surtos de cólera, tinha sistemas de esgoto precários, poucos espaços abertos e grandes áreas de habitações insalubres. Além desses problemas, existiam alguns outros interesses, aspectos urbanos para além da área da saúde. Um desses aspectos partia da memória das revoltas de 1848, cujo método de combate dos rebeldes - a barricada - era favorecido pelo traçado medieval, sinuoso e estreito de Paris. Outro deles era o fato de que a malha viária da cidade não servia ao novo modo de produção capitalista. Assim, o objetivo do plano de Haussmann era trazer unidade a malha urbana parisiense, transformando-a em um todo operacional, numa grande fábrica, ou seja um espaço de produção e fluxo de mercadorias. (FRAMPTON. 1997). Surge aí o que Caio Vassão (2008) chama de Positivação dos espaços, que consiste na viabilização da produção industrial e do consumo, tratando o mundo como uma coleção de objetos, pretensamente sem sujeitos E assim nasce a Paris industrial, bela e geometricamente esquadrinhada, com avenidas largas, boulevares e grandes eixos norte-sul e leste-oeste. Para a criação desse traçado Haussmann tomou medidas radicais, expulsando a classe trabalhadora, antigos moradores da região central para a periferias, dando origem a diversos problemas sociais, transformando suas antigas residências em novas vias e prédios que emolduravam monumentos e reforçavam o novo traçado. Walter Benjamin (1939) critica duramente a reforma hausmanniana, que serviria de modelo para o desenvolvimento de diversas outras metrópoles no mundo. Em seu texto “Paris, capital do século XIX” de 1939, o filósofo alemão afirma que: A atividade de Haussmann incorpora-se ao imperialismo napoleônico que favorece o capitalismo financeiro. Em Paris, a especulação está no seu apogeu. As expropriações de Haussmann suscitam uma especula-
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Figura 12: As ações de Haussmann são destacadas em preto no mapa. FRAMPTON, K. 1997. Editado pelo autor. Figura 13: Paris antes (esquerda) e depois (direita) da reforma de Haussmann. MARVILLE, sec. XIX MONCAN, sec. XXI. Editado pelo autor.
ção que beira a trapaça. [...] A verdadeira finalidade dos trabalhos de Haussmann era proteger-se contra a eventualidade de uma guerra civil. Queria tornar para sempre impossível a construção de barricadas nas ruas de Paris. [...] Os contemporâneos batizaram seu empreendimento de “embelezamento estratégico”. (BENJAMIN. 1939, p. 13-14)
Em sua gênese, o urbanismo estria o espaço urbano. O “embelezamento estratégico” de Haussmann, servirá de modelo para a cidade industrial, e é um ótimo exemplo de remodelação física do aparelho de captura de Deleuze e Guattari (1997). Como tática de gestão, o estado estria, ou seja, captura, positiva, o espaço a fim de transformá-lo em um ambiente propício ao controle, vigilância e homogeneização levando a reprodução da subjetividade capitalista. Raquel Rolnik em seu ensaio “Paisagens para renda, paisagens para vida.” (2019) comenta a relação entre espaço e governabilidade e afirma que sob o modelo “Estado-nação” é criada a noção diferente do espaço público ou espaço comum. O nascimento do planejamento urbano (como um campo do saber formalizado), como vimos, está intimamente ligado a esta nova configuração. Baseando-se no pós-estruturalismo de Foucault, Rolnik enxerga na união entre estado e urbanismo no século XIX uma transformação do público em o que chama de “propriedade privada do estado”, o que afirma ser essencial para o funcionamento do governo capitalista. Ou seja, aquilo que era comum agora pertence ao Aparelho de captura. Debord (1997) acertou precisamente: o capitalismo tomou para si o espaço urbano. Outro modelo de ação estatal que, sem dúvidas, é um divisor de águas na história do urbanismo, foi a construção de Brasília, a capital manifesto do pensamento moderno. Dessa vez, não foi preciso demolir nada, a cidade foi feita do zero. Projetada por Lúcio Costa, o traçado parte da forma de uma cruz, uma estrutura em dois eixos, o rodoviário e o monumental, se apropriando dos princípios do traçado rodoviário para o urbanístico. Em Brasília, a rua foi transformada em artéria para a passagem de automóveis, o futurismo, a ideia de velocidade e da cidade máquina de Le Corbusier, tem presença muito forte na capital brasileira. (ANDRADE, 1968) As super-quadras, são o refúgio bucólico dos pedestres, configuradas em grandes áreas de habitação e lazer, baseadas no traçado ideal da cidade jardim de Ebenezer Howard. O pensamento moderno indicava a criação de ilhas de pedestres, removendo do fluxo principal da cidade as pessoas, enclausurando estas em super quadras autossuficientes. (GEHL, 2013. ANDRADE, 1968) O traçado viário de Brasília é envolvido por sua arquitetura monumental, projetada principalmente por Oscar Niemeyer. Curvas em concreto armado compõe seus edifícios gigantes que funcionam como uma espécie de mobília urbana para o traçado de Lúcio Costa, podendo ser classificado como o que o Venturi (2003, p. 203) chama de decoração construída: “Quando os arquitetos modernos abandonaram, de modo justificado, o ornamento, eles projetaram inconscientemente prédios que eram ornamentos.” A “esculturização” da arquitetura pelo modernismo (VENTURI. 2003), que ironicamente tinha como um dos seus pilares o funcionalismo, causará para as cidades fundamentadas em seus ideais, diversos problemas sociais e mesmo funcionais. O plano de Brasília de Lúcio Costa, assim como o de Haussmann em sua época, irá influenciar o desenvolvimento de diversas outras cidades. O urbanismo pós-moderno e contemporâneo criticará duramente o plano da cidade moderna, partindo da relação da escala do desenho urbano e da arquitetura com seus habitantes O arquiteto e teórico Jan Gehl, influenciado por outros campos do conhecimento, inicia sua carreira na década de 1960 buscando entender as possíveis colaborações entre arquitetura e urbanismo,
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Figura 14: A arquitetura escultural de Brasília. GAUTHEROT, M. 1956. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/765687/brasilia-em-construcao-por-marcel-gautherot Figura 15: Habitações nas cidades satélite. ANDRADE, J. P. Brasília, Contradições de uma Cidade Nova, 1968. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=zbSPytnX1ao&list=PLXd5HemGA7zy14IegI1B_ZIw8JhQ8n-Az&index=6&t=0s
psicologia, sociologia e planejamento. Seu trabalho fundamenta-se na análise comportamental, em encontrar as razões fundamentais no modo como nos apropriamos e percebemos determinados lugares. Para ele, a cidade de Brasília é uma “catástrofe ao nível dos olhos” uma vez que essa a escala do “olhar” foi ignorada pelos projetistas. Gehl (2013) argumenta que os espaços de Brasília são muito grandes, largos, os caminhos são longos e muito retilíneos. As grandes áreas verdes das super quadras são constantemente marcados por rastros de caminhar, mostrando o protesto silencioso e talvez inconsciente dos moradores da cidade contra o seu próprio traçado. “Se você não estiver em um avião, helicóptero ou carro - e a maioria dos moradores de Brasília não está - não há muito que comemorar”. (GEHL. 2013, p.197) Além do futurismo, do monumentalismo e da bucólica unidade de vizinhança, o pilar final do projeto de Brasília, e talvez sua maior contradição, era o coletivismo. Os apartamentos da cidade deveriam obedecer a três padrões econômicos distintos. Conforme o plano, a cidade não seria dividida em «bairro rico» e «bairro pobre», buscando a integração das classes sociais. Na realidade isso não aconteceu. A classe trabalhadora, conforme a cidade se consolidou, foi empurrada para fora do traçado moderno de Brasília, formando as chamadas cidades satélite nas áreas desertas no entorno da capital. No traçado dessas cidades não havia nada de moderno, respeitando uma malha xadrez convencional e crescendo espontaneamente. A cidade do futuro começava a apresentar problemas já conhecidos, o chamado «cinturão de pobreza.» (ANDRADE. 1968)
Ao expelir de seu seio os homens humildes que a construíram e os que a ela ainda hoje acorrem, Brasília encarna o conflito básico da arte brasileira fora do alcance da maioria do povo. O plano dos arquitetos propôs uma cidade justa, sem discriminações sociais. Mas a medida que o plano se tornava realidade, os problemas cresciam para além das fronteiras urbanas em que se procurava conter. Na verdade, são problemas nacionais, de todas as cidades brasileiras, que nesta, generosamente concebida, se revelam com insuportável clareza. (ANDRADE. 1968)
Confrontando os planos de Lúcio Costa e de Haussmann podemos pontuar um paradoxo entre o poder e a impotência e incompletude do projeto (VASSÃO. 2010). Se o plano de Paris ordena e esquadrinha para o melhor controle do estado, e é muito eficaz nesse sentido, o de Brasília vem com um discurso de progresso futurista que é resistido pela própria realidade. Paris triunfa em separar (DEBORD. 1997) enquanto Brasília fracassa em unir (ANDRADE. 1968). Partindo daí, somos levados de volta à discussão levantada pelos dadaístas no século XX. No manifesto Dadaísta de 1916, Tristan Tzara declara que o Dadaísmo é “contra o futuro” pois já encontrava no presente um universo a ser explorado. A cidade explorada pelos dadaístas é a cidade banal, não a cidade que está por vir, longe da utopia tecnológica do Futurismo. Como vimos no Capítulo anterior, isso estabelece uma linha de pensamento que desembocara nas discussões dos Situacionistas e sua visão afetiva anticapitalista do espaço. (CARERI. 2013) Em contraponto, os modernos parecem esbarrar numa visão positivista da cidade que foi muito conveniente para o desenvolvimento de uma nova fase de urbanização capitalista. A cidade moderna oferece na sua irrealidade uma nova leva de oportunidades para a captura. Brasília é um manifesto, um experimento, a sua influência no desenvolvimento urbano de cidades por todo o mundo foi o mais
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danoso. (GEHL. 2013) Para Rolnik (2019) esse planejamento urbano vanguardista (futurista) estrutura, novamente, a noção de cidade como “locus de produção”, um espaço de circulação de mercadorias e de reprodução de força de trabalho. As cidades modernas seguirão a síndrome de Brasília (GEHL, 2013) privilegiando uma escala monumental, um mar de torres com fachadas de vidro espelhado, vias largas com a predominância do automóvel unifamiliar como principal meio de transporte, trazendo graves consequências à vida urbana como por exemplo a poluição do ar, acidentes e congestionamentos. O homem moderno está sempre em trânsito. O cinturão de pobreza da Paris, de Haussmann, e de Brasília é algo replicado mundialmente, causando problemas de mobilidade, já que essa população precisa ir e vir diariamente para produzir. Debord (1997) irá criticar duramente a cultura do automóvel, usando termos como “ditadura” para defini-la. O situacionista entende essa cultura ditatorial como sendo mais uma artimanha da “técnica da separação” capitalista. Segundo ele, o automóvel foi como um produto teste do primeiro momento de abundância do mercado, e conquistou sua hegemonia com o surgimento das estradas, do acoplamento de estacionamentos aos polos de consumo (lojas, mercados e futuramente os shopping centers, por exemplo) e da configuração do traçado e da arquitetura das cidades com ênfase no automóvel. Essa configuração criou cidades esparsas, pensada para o consumo e o fluxo e não para a permanência e o caminhar. O cineasta francês Jacques Tati satiriza essa nova cidade em dois filmes clássicos dirigidos por ele, servindo como uma clara ilustração da transição do pensamento moderno e a cidade que nasceria conforme o encontro entre modernidade e realidade. O primeiro filme, “Mon Oncle” (Meu Tio) de 1958, satiriza o fracasso do modernismo em sua fase “Brasília”, o projeto moderno que produziu, em nome de um funcionalismo e futurismo, um design que parece negar o próprio usuário, o ser humano. Por exemplo, por meios como o sofá minimalista da casa, que torna quase impossível o sentar, ou os traçados geométricos do jardim da residência dos personagens principais, que dificultam o transitar dos mesmos, Tati humoriza a arquitetura, o mobiliário e o paisagismo moderno e seu hiper funcionalismo nada funcional. Já em “Playtime” (Tempo de Diversão. 1967), quase dez anos depois, Tati parece interessado na consolidação da vida moderna. Somos apresentados a uma Paris modernizada e homogeneizada, podendo se passar por qualquer outra metrópole moderna. Um cenário quase distópico, porém, que não foge muito do real. Da carcaça do modernismo, com vias congestionadas, torres prismáticas espelhadas por todos os lados, surge a cidade genérica, nos termos de Rem Koolhaas (2010), essa cidade que Dedord (1997) diz que “consome a si mesma”, a estética urbana do capital.
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Figura 16: A Paris de “Playtime” TATI, J. 1967 Disponível em: https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/20.217/7599
2.1.1 A CIDADE GENÉRICA E O JUNKSPACE Rem Koolhaas, arquiteto e teórico holandês, enxerga em “Grandeza, ou o problema do grande” (1994) um fim da autoria na Arquitetura e Urbanismo e um alinhamento do arquiteto com a neutralidade, o tecnicismo e o mercado. Koolhaas inicia assim sua narrativa escatológica que será desenvolvida nos textos “A Cidade Genérica” (1994) e “Junkspace” (2001). Trata-se de uma era, para o autor, do que podemos chamar de Pós-Arquitetura ou Pós-Projeto. O que não significa o fim do planejamento, mas o desaparecimento do projeto nos termos conhecidos até o modernismo, ou seja, o desalinhamento com autoria, teoria ou qualquer tentativa desenvolvimento do campo conhecimento da cultura de projeto. É o resultado do acúmulo da vida moderna por anos, o ambiente do capitalismo tardio. Se o modernismo homogeneizava com sua arquitetura internacional, a Cidade Genérica, para o teórico, é desprovida de identidade: «Será a cidade contemporânea como o aeroporto contemporâneo <igual a todos os outros>?» (KOOLHAAS, 2010, p. 31). Esta cidade é o resultado de um mundo globalizado, cujo aeroporto, usado pelo autor como ilustração, é o maior símbolo. Pode-se enxergar a Cidade Genérica em todos os continentes, por exemplo, comparando o horizonte de Beijing na China a qualquer metrópole americana, podemos encontrar diversas semelhanças como torres envidraçadas, grandes avenidas e publicidade, logos e lojas por toda parte. A Cidade Genérica é habitada por turistas, sejam eles visitantes de outras localidades (como indica o sentido literal da palavra) ou habitantes da própria cidade. Circulam em um regime de fluxo contínuo, porém não fluxo nômade do Homo ludens, que caminha criando laços afetivos com o espaço (CARERI, 2013). Trata-se de um movimento colonizado como o do xadrez (DELEUZE; GUATTARI. 1997). Os percursos são para o trabalho, shopping, mercado, para algum prédio estatal para se resolver alguma burocracia, e por fim no final do dia de volta para casa, todos ao mesmo tempo. Em um “déjà vu que nunca acaba” (KOOLHAAS, 2010, p. 52) a paisagem da cidade é complexa e ao mesmo tempo desinteressante, poluída e homogênea, de fácil consumo e entendimento. Não busca estimular nenhum outro tipo de exploração ou relação além das que sirvam aos interesses do mercado. Essas características vão além da organização do espaço, mas principalmente, desde o surgimento da fotografia, da união entre espaço e imagens, como afirma Juhani Pallasmaa em “O senso de cidade” (1996): A cidade visual nos coloca na situação de estrangeiros, espectadores voyerísticos e visitantes passageiros, incapazes de participar. A alienação visual se viu reforçada pela invenção da fotografia e da imagem impressa, que criou um crescente Mar de Sargasso de imagens. (PALLASMAA, J. 2017, p. 48)
Ironicamente, a máquina de fotografar é o principal instrumento do turista. “As fotos oferecerão provas incontestáveis de que a viagem se realizou” (SONTAG. 2004, p. 19) reforçando a cultura de aparências burguesa. O turismo urbano é o playground para o burguês entediado e uma meta para o trabalhador que, com seu desejo capturado, quer ser como o patrão. As cidades genéricas parecem ser um ambiente fértil para o turista cidadão, aquele que vai à um lugar da cidade como um visitante, para mostrar que esteve lá, e não para explorar, criar vínculos e encontrar novos espaços de permanência. Visitam-se shoppings, restaurantes, aeroportos, esse tipo de lugar que encontramos atualmente em quase todas as cidades. Com esse pacto entre cidade, publicidade e turismo, Pallasmaa e Koolhaas parecem ver a cidade pós-moderna como um terreno dado, um lugar previsível, como um corredor, um ambiente transitório. “A
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cidade obsessivamente funcionalizada se transformou em algo facilmente legível, evidente em demasia, que não deixa espaço para o sonho e o mistério.” (PALLASMAA. 2017, p. 49) Essa perda de espontaneidade se dá justamente pelo estriamento do espaço, pela limitação de movimentos. Pallasmaa e Debord buscam uma cidade lúdica e misteriosa, cheia de descobertas aqui e ali. Do ponto de vista de Deleuze e Guattari (1997), é dever do aparelho de captura evitar esses pontos de escape, estriando a cidade, seja por uma malha controladora, como propôs Haussmann, quanto por essa hiper legibilidade, uma espécie de publicidade espacial que, como já comentado no Capítulo anterior, fala a língua do status quo, ou seja, da subjetividade majoritária, a capitalista. Está por todos os lados, como na Times Square (Figura 17), capturando o desejo de seus habitantes, separando-os para que sejam estrangeiros, tornando suas relações com a cidade práticas e impessoais. A Cidade Genérica é a transformação das cidades pelo mundo neoliberal e é o exemplo máximo da Positivação dos espaços. Para Koolhaas (2010), o produto da modernização não foi a arquitetura moderna, mas o que chama de Junkspace ou Espaço-lixo. Se Niemeyer deu forma a Brasília com sua arquitetura escultural, o mundo Pós-arquitetura povoou a cidade genérica com o Junkspace. Esse espaço é como um acúmulo, matéria empilhada sobre matéria, um mix de resto e excesso do que era antes a arquitetura, ou melhor, é a axiomatização do projeto e da arquitetura, colocando estes totalmente a serviço do mercado. Esse novo espaço, como a Cidade Genérica, é desprovido de autor, de lado ou contexto. Assim como a publicidade, o Junkspace trabalha com o status quo, num regime de signos de fácil legibilidade. Como um “Frankenstein” histórico, sua estética, segundo Koolhaas (2010, p.73), “é 13% romana, 8% Bauhaus e 7% Disney (quase empatados), 3% art noveau, seguido de perto pelo estilo maia.” Esse Espaço-lixo é completamente irreal, “um domínio de ordem fingida e simulada”, mas ao mesmo tempo foi materializado na realidade, concebido pelo laboratório neoliberal, o mercado, a especulação, ele “não pretende criar a perfeição, só interesses”. Em um rápido caso de estudo para entender essa estética, podemos analisar a linguagem arquitetônica, ou pós-arquitetônica, replicada nas lojas de um dos gigantes do empresariado brasileiro. A figura 18 consiste em um compilado de fotografias tiradas pelo autor de uma das lojas Havan localizada em Campo Grande, MS. Podemos identificar signos óbvios de poder e “tradição”, associados à estátua da liberdade americana, as colunas, adornos e o frontão greco-romano, a própria tipografia serifada do logotipo da Havan, símbolos evocam um falso passado que de nada tem a ver com seu contexto, cheirando a neocolonialismo. Entretanto, sua técnica construtiva moderna, os pilotis no estacionamento, as vidraças, o revestimento brilhoso do prédio, que lembra quase plástico, escancara a irrealidade das intenções projetuais de forma quase cômica. Sem sombra de dúvida, estamos diante do espaço-lixo. Deleuze e Guattari (2004) consideram que a produção de Desejo é a mais valiosa arma do capitalismo. O Junkspace é parte dessa produção, é o estriamento puro do espaço, colocando este em serviço do mercado, como parte da máquina desejante capitalista, trabalhando para reproduzir seu sujeito e assim manter o seu sistema produtivo a partir da extração de mais-valor. Para Koolhaas e para Debord, esses problemas parecem externos, os culpados são os burgueses. No pós-estruturalismo deleuziano a situação é mais assustadora, mais complexa, uma vez que esse processo todo não vem de um “inimigo”, e sim a partir de um desenvolvimento orgânico e, como diz Foucault (1977), está dentro de nós. Fomos criados por nossos pais e educados por nossas escolas para viver no sistema capitalista. O Junkspace foi criado por e para nós. Essa positivação, ou simplesmente estriamento do espaço, pode ocorrer de formas mais evidentes, como Koolhaas (2010, p.74) comenta “os murais costumavam mostrar ídolos” , já os módulos do
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Figura 17: Times Square, Nova Iorque. Acervo do autor, 2017 Figura 18: Loja Havan em Campo Grande, MS. Acervo do autor, 2019.
espaço lixo são dimensionados para “mostrar marcas”, ou de formas mais sutis em regime de sedução, de “place branding”7, como discutiremos mais a frente, do alinhamento da estratégia dessa sedução com todos os pontos de contato do cidadão turista, capturando-nos por elementos subjetivos, oferecendo-nos “derivas forçadas”, “incríveis aventuras para o cérebro, a vista, o olfato, o gosto, o útero, os testículos”. O Junkspace “é pós-existencial; faz-nos não ter certeza do lugar onde estamos, oculta para onde vamos e anula o lugar onde estávamos» (KOOLHAAS, 2010, p. 90) como um «anti-transe” ou deambulação surrealista uma vez que não é necessário andar por horas para se perder ou mesclar as experiências do dormir com o caminhar, esse tipo de espaço tem o seu próprio composto dissociativo/desinibidor. Essa desorientação pode ser classificada como uma atualização do conceito de “técnica de separação” de Debord. O cidadão turista está separado e devidamente “medicado” pelo próprio Desejo, para evitar qualquer tipo de situação que fuja do programado pelo Espaço-lixo. Koolhaas usa constantemente palavras como “resíduo” ou “coágulo” para descrever o Junkspace ou a Cidade Genérica, ilustrando esse espaço como uma junção entre “resto” e “acúmulo”. Ligando esse pensamento a axiomatização e a máquina desejante de Deleuze e Guattari, podemos enxergar esse percurso neoliberal como uma espécie de evolução “natural” ou “colheita” de gerações de reprodução de subjetividade capitalista. Talvez esse acúmulo seja justamente um “empilhamento de axiomas”. Sem dúvida, o espaço-lixo não é apenas uma distração, mas uma forma de gestão. “O espaço-lixo é político: depende da eliminação centralizada da capacidade crítica em nome do conforto e do prazer.” (KOOLHAAS, 2010, p. 91) O “Espaço-lixo ocorre espontaneamente graças à natural exuberância empresarial - o livre jogo do mercado” (KOOLHAAS. 2010, p. 93-94) mais uma vez, evidenciando seu programa político, esses espaços transformam o espaço público em o que Koolhaas chama de “Espaço Público ®», o espaço comum da Cidade Genérica, que é coletivo, mas ao mesmo tempo dominado pelo privado. É como «estar condenado a uma jacuzzi perpétua com milhões dos teus melhores amigos...» (2010, p. 72), um autoritarismo sutil, baseado no desejo. O espaço-lixo é um espaço semelhante ao das férias; dantes havia uma relação entre o ócio e o trabalho, uma imposição bíblica que dividia as nossas semanas e organizava a vida pública. Agora trabalhamos mais arduamente, abandonados numa interminável sexta-feira informal... (KOOLHAAS. 2010, p. 99)
Agora o estriamento do tempo no neoliberalismo, é muito mais complexo. Vários axiomas que antes trabalhavam para manter o trabalhador produtivo através de “válvulas de escape”, como os direitos trabalhistas, as férias, o décimo terceiro, no neoliberalismo são substituídos por uma dominação total da vida do sujeito. A extração de mais valor aumenta proporcionalmente a axiomatização de novos agentes. Podemos citar como exemplo trabalhos informais como os freelancers e entregadores de aplicativos de delivery. Para esses profissionais o tempo de trabalho e sua vida se misturam. Nos momentos finais do texto “Junkspace” (2001), Koolhaas reflete sobre uma eventual incorporação ou invasão do espaço-lixo em nosso corpo e especula como ela se daria: “Através das vibrações do telemóvel? [...] De implantes de silicone? Da lipoaspiração?” Partindo de Deleuze e Guattari essa “invasão” vem antes do estriamento do espaço8. O Junkspace é resultado da máquina de desejos capitalista, 7 Um Lugar-marca, ou a gestão da imagem de um espaço comercial, busca criar pertencimento e identificação de indivíduos com uma marca, e assim criar consumidores para seus produtos. 8 Espaço Estriado é um organizador da vida sedentária. Espaço e tempo podem ser esquadrinhados ou estriados, sendo transformados em agentes do Aparelho de Captura. (DELEUZE; GUATTARI, 1997)
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é a externalização material desta. Essa máquina está constantemente buscando atualizações, descobre novos fluxos e os reposiciona a seu favor, encontra em cada época sua forma de reproduzir seu sujeito. 2.2 NEOLIBERALISMO E CIDADE No Capítulo 1 discutimos dois tipos de sujeito que fazem parte da gênese de nossas cidades: o Homo ludens e Homo faber (CARERI, 2013). O Homo faber, essa faceta produtiva da humanidade é um sujeito muito útil ao capitalismo. Segundo Pierre Dardot e Chistian Laval (2016) a partir do século XVII, começa-se a enunciar, com os avanços científicos que vão desembocar no iluminismo no século XVIII, que o homem é o que ele faz, assim podemos afirmar que se inicia uma espécie de cultivação de Homo faber, uma vez que se tem os primórdios do capitalismo, a transição de uma sociedade despótica para uma de apenas servidão (DELEUZE; GUATTARI. 2004), e “é para fazer do homem esse animal produtivo e consumidor, esse ser de labor e necessidade, que um novo discurso científico se propôs redefinir a medida humana” (DARDOT; LAVAL. 2016, p. 322). Entretanto, esse sujeito Homo faber é um ancestral primitivo do Cidadão turista da Cidade Genérica. Esse habitante turista é, segundo Dardot e Laval (2016), o neossujeito, ou o Homem-empresa. Esse “Sujeito empresarial” não é mais o operário produtivo que aperta parafusos, o homem neoliberal é o homem ágil, flexível e competitivo: O mercado é concebido, portanto, como um processo de autoformação do sujeito econômico, um processo subjetivo autoeducador e autodisciplinador, pelo qual o indivíduo aprende a se conduzir. O processo de mercado constrói seu próprio sujeito. Von Mises vê o homem como ser ativo, um Homo agens. O motor inicial é uma espécie de aspiração vaga a uma condição melhor, um impulso para agir a fim de melhorar a própria situação. (DARDOT; LAVAL. 2016, p.140)
O “Empresário de si mesmo” também é abordado por Byung-Chul Han (2017), esse sujeito que é parte do que ele chama de “Sociedade do desempenho”, que são os habitantes da Cidade Genérica de Koolhaas. Essa cidade é composta por playgrounds, espacos-lixos para esse tal Homo agens, “uma sociedade de academias, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shoppings centers e laboratórios de genética” (HAN, 2017, p. 23). O autor compara essa Sociedade do desempenho com o conceito de Sociedade disciplinar de Michel Foucault. Para Byung-Chul Han (2017), a sociedade estudada por Foucault era permeada por “negatividade” e proibição, gerando “loucos e delinquentes”, enquanto a sociedade do desempenho possui um excesso do que chama de “positividade” 9gerando depressivos e fracassados. Dardot e Laval (2016) também tratam do conceito de sociedade de desempenho e identificam uma cultura neo-individualista, uma ética de empresa, onde são valorizados o combate, o valor e o sucesso. O trabalho, antes opressivo, agora é visto como um meio de realização pessoal uma vez que sendo bem-sucedido no mercado, o Neossujeito faz automaticamente de sua vida um sucesso. A empresa de si mesmo é uma “entidade psicológica e social, e mesmo espiritual”” ativa em todos os domínios e presente em todas as relações. É sobretudo a resposta a uma nova regra do jogo que muda radicalmente o contrato de trabalho, a ponto de aboli-lo como relação salarial. A responsabilidade do indivíduo pela valorização de seu trabalho no mercado tornou-se um princípio absoluto. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 335)
9 Não se refere a Positivação dos espaços de Caio Vassão (2008) ou ao Positivismo, mas a um significado literal, a cultura de auto-ajuda e pensamento positivo.
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Essa ética neoliberal não se aplica somente às empresas, ela compreende do sucesso comercial ao “sucesso na vida”. Trata-se de uma subjetivação para o desempenho, todos os investimentos do neossujeito tem como fim o triunfo no mercado. Trata-se de uma praticidade positivista, um neo-funcionalismo aliado a um olhar bem mais subjetivo. (DARDOT; LAVAL, 2016) O indivíduo, e consequentemente os espaços, como veremos à frente é, na hiper modernidade, levado a se munir ao máximo de ferramentas que otimizem a sua produtividade, que elevem sua relevância no mercado. Esse “sujeito-marca” precisa comunicar seu valor, precisa de disciplina e estratégia para manter sua vida o mais funcional possível, precisa de uma aparência adequada ao padrão de beleza, roupas de marca, um carro de marca. Comprar não se configura mais como uma necessidade ou um desejo, e sim como um investimento. A vida na empresa é considerada uma formação na qual se adquire sabedoria prática. Constantemente, o trabalho técnico é vendido como uma faculdade, algo iluminador. Nessa educação empresarial, o patrão, o bem-sucedido, o milionário, torna-se um mestre, um sacerdote detentor de soluções práticas e rápidas para que o neossujeito siga seus passos guiados pelo aforismo: “se funcionou para ele para mim também vai funcionar.” (DARDOT; LAVAL, 2016) Nessa lógica, o neossujeito precisa manter também otimizado o desempenho de sua mente e a organização de sua vida. Aqui entra a máxima do empreendedor, que segundo Dardot e Laval é diferente do “conhece a ti mesmo” de Sócrates e do “ame ao próximo como a ti mesmo” do cristianismo, trata-se do “ajuda-te a ti mesmo”. A sociedade do desempenho é a sociedade da “auto-ajuda”. Não é à toa que os best-sellers de nosso tempo são livros Self-Help. Consultando rapidamente a lista de mais vendidos de uma das maiores lojas de livros online podemos constatar o domínio desse tema sobre o interesse da população (Figura 19). Como pode um sujeito ágil, empoderado, empreendedor de si, “Homo agens”, corresponder ao niilismo do Cidadão turista, voyeur, de Pallasmaa e Koolhaas? A resposta é simples: a hiper legibilidade, e funcionalização do espaço tornou a cidade evidente em demasia, não deixando espaço para o sonho e o mistério (PALLASMAA, 2017), apenas para aquilo que interessa a produção. A cultura de Self Help e pensamento positivo atuam para reforçar essa super produtividade e consumo, e ela também trouxe consequências para o Neossujeito. Chul Han (2017) afirma que essa positivação do mundo faz surgir novas formas de violência. Dardot e Laval (2016) elencam uma série de diagnósticos clínicos que surgem desse pensamento positivo excessivo. São eles o sofrimento no trabalho, estresse e assédio que vem sendo reconhecidos como principais causas de suicídio no trabalho; a corrosão da personalidade, a partir do ataque aos traços de caráter que unem os sujeitos e dão a cada um o “sentimento durável de seu eu”, a desmoralização, “a ideologia self-help” e do sucesso do indivíduo “que não deve nada a ninguém” destrói o vínculo social o qual é baseado na reciprocidade para com o outro; dentre alguns, o mais famoso: a depressão generalizada: É notório que o diagnóstico de «depressão» se multiplicou por sete50de 1979 a 1996 [...] A depressão é, na verdade, o outro lado do desempenho, uma resposta do sujeito à injunção de se realizar e ser responsável por si mesmo, de se superar cada vez mais na aventura empresarial. (DARDOT; LAVAL. 2016, p. 366)
Todos esses sintomas são resultado do entupimento do indivíduo de axiomas. Ou pior, o neossujeito enxerga no axioma um propósito, como um escravo que ama o mestre que o açoita. Esse homem
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Figura 19: Lista dos 10 livros mais vendidos no Brasil na Amazon em 20 de maio de 2020 (Destacados em vermelho os livros com temática Self-Help.) Amazon, Editado pelo autor, 2020. Disponível em: https://www.amazon.com.br/gp/bestsellers/books/ref=zg_bs_nav_0. (Acessado em 20 de maio de 2020.) Figura 20: A entidade “Apple”. DO, C. 2016. Disponível em: https://www.slideshare.net/ChrisDo4/nuskool-brand-alignement
que antes trabalhava para sobreviver, depois para ter, agora produz para ser. Parafraseando Andrade (1968), o neoliberalismo revela a com “insuportável clareza” como a “axiomática capitalista é muito flexível, consegue sempre alargar os seus limites para acrescentar mais um axioma a um sistema já saturado.” (DELEUZE; GUATTARI. 2004, p.248). O Junkspace e a Cidade Genérica surgem como um complemento, um viveiro desse Homo agens, o habitat concebido para otimizar o desempenho da extração de mais-valor. Enquanto o arquiteto se afastou da subjetividade, ignorou todos os conceitos explorados com entusiasmo por Debord e os situacionistas, o mercado buscou monetizar até mesmo as facetas subjetivas, afetivas, dos espaços. Criando assim lugares pré-moldados para conceber sensações premeditadas, anulando a espontaneidade, capturando fatores subjetivos, se apropriando deles para extrair mais-valor. Esses lugares podem ser criados por metodologias como a que acima foi citada como place branding, que é defendido por Caio Esteves (2016, s/p), em seu artigo sobre o tema, no popular portal Archdaily, como “uma abordagem que identifica vocações, potencializa identidades e fortalece lugares, a partir do envolvimento das pessoas que vivem e utilizam os lugares, em um processo bottom-up.” A definição parece amistosa, entretanto, o Branding trata justamente da gestão de uma marca (TYBOUT; CALKINS. 2018). Falar em lugar-marca é como uma extensão da cultura empresarial aos espaços. Esteves está certo, é um processo “de baixo pra cima”, isso não significa, porém, que é saudável. Justamente por ser “de baixo pra cima” ele está mais ainda alinhado com o neoliberalismo. O Branding não parte de análises urbanísticas, ele parte de um sujeito, de seus desejos, e busca axiomatizá-los e prol de sua marca. O verdadeiro espaço-marca já existe e já foi citado aqui: é o Espaço-lixo. Um lugar-marca é um lugar pseudo-espontâneo, é como uma cidade “anti-deriva”, com sua subjetividade monetizada até o seu último centímetro. Essa tática (Branding), é considerada por muitos empreendedores como a mais atual forma de gestão de negócios. Não se trata de Design de marca, mas esse faz parte dele, assim como não se trata de arquitetura, mas esta faz parte dele. Como já citado, essa estratégia busca o alinhamento de todos os pontos de contato de uma marca a uma “imagem” da marca. Vamos a exemplos: A multinacional americana Apple é uma das empresas mais eficientes na gestão de sua imagem-marca. Toda “entidade” Apple é pensada para um sujeito (ou vários) em potencial. Que tipo de design atrairia esse sujeito? Que lugar ele frequenta? Que cores e sentimentos o atraem? É uma abordagem muito mais subjetiva que o marketing, não basta apenas se divulgar um produto, deve-se pensar primeiro em um consumidor, e depois nos pontos de contato desse. Tudo produzido pela Apple e diversas outras empresas é cuidadosamente pensado para proteger a consistência dessa imagem-marca, seja seus produtos, suas embalagens, sua logo, a arquitetura de suas lojas e até mesmo o perfil e aparência dos funcionários que serão contratados. O Branding é uma busca por fabricar pertencimento em indivíduos. Sendo assim, um lugar-marca busca a confecção de pertencimento ao espaço, não para explorar essas relações, fortalecer laços e comunidades, mas para o consumo, para a extração de mais-valor. Sujeitos que se identificam com marcas acabam inconscientemente a trabalhar para estas. Mais uma vez, tudo está a serviço do capital. O place branding não está sozinho no trabalho de monetização dos espaços. Outro termo em inglês que tem relação com o avanço do mercado sobre a gestão urbana é a Smart City. Esse rótulo está relacionado a um novo tipo de “utopia urbana”. Smart descreve uma forma de pensamento, “designa usos mais eficientes e integrados, mas também qualquer coisa sexy e antenada, flexível e adaptável” (TAVOLARI. 2020, p.17) Se
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o Branding se apropria da geração de pertencimento para extração de mais-valia, a “smartização” da cidade parece retomar a disciplinarização do espaço através das novas tecnologias digitais. O termo Smart City, foin cunhado e registrado por uma gigantesca empresa de tecnologia, a IBM, que como todo discurso “empresarial” vem lotado de promessas, “uma cidade onde tudo funciona”, a utopia do funcionalismo tecnológico trazendo uma “vida melhor” para o indivíduo, assim como os eletrodomésticos a trariam no discurso do American Way of Life. Essa cidade inteligente traz uma faceta vigilante e autoritária por trás de suas promessas, assim como as redes sociais, antes festejadas, no início da década de 2010, como uma nova forma de conectar pessoas e de até impulsionar movimentos sociais e a democracia, se mostraram ao fim dessa mesma década um ambiente capturado e autoritário, extraindo e vendendo dados de seus usuários e criando um novo mercado baseado na vigilância. A Smart City trabalha na mesma lógica: Não é por outra razão que a smart city é mais que um slogan - é um mercado. Empresas oferecem instalações de “serviços inteligentes”: redes elétricas, mecanismos de controle e integração de sistemas. O fio condutor dos novos serviços é o uso massivo de dados, muitos dos quais não eram sequer coletados e registrados há bem pouco tempo (TAVOLARI. 2020, p.17)
Eis a cidade do desempenho. Controlando o aleatório, o incerto, o espontâneo, a Smart City vem com propostas variadas, desde um suposto ambientalismo como redução do gasto de eletricidade a partir da integração e ajuste da iluminação conforme os momentos do dia, sensores para otimizar a coleta de lixo, até medidas autoritárias, como o uso de reconhecimento facial em estações de transporte público, aumentando a vigilância. (TAVOLARI, 2020). As principais críticas a esse meio no espaço urbano estão justamente na ligação entre privatização, vigilância e desempenho. Como já citado, essa “tipologia de gestão urbana” pertence a uma empresa. Estaríamos falando de cidades privadas ou semiprivadas. Mas a novidade não seria nem a privatização, já vemos isso em diversos países, em principalmente no Brasil com a ascensão dos condomínios fechados. Mas “a entrega do controle e das capacidades estatísticas e computacionais para agentes privados” (TAVOLARI. 2020, p.17) Nossas cidades estão se tornando reféns, os dados de seus habitantes, armazenados, processados, vendidos. A cidade do desempenho é um laboratório para confecção de novos axiomas. Assim como foram as redes sociais. A cidade neoliberal, do desejo, vai revelando facetas cada vez mais autoritárias, evidenciando o que apontam Deleuze e Guattari sobre a união da axiomática capitalista a um despotismo violento que “previne, vigia, impede que haja alguma mais-valia que escape à sobrecodificação da máquina despótica.” (2004, p. 219). Essas tecnologias, usadas de forma despótica tem o potencial de transformar o espaço urbano na distopia orwelliana que se tornou o espaço digital. O reconhecimento facial, por exemplo, poderia ser usado para “identificar pessoas na multidão ou em protestos de rua, antecipar comportamentos com base no rastro de dados deixados por cada habitante” (TAVOLARI, 2020, p.17). Esses sistemas já são empregados na China. Em uma matéria da BBC de 2019 sobre as cidades inteligentes chinesas, Jiang Wei Dong, principal administrador do programa de “smartização” da cidade de Shenzhen, defendeu sua cidade de questionamentos sobre vigilância dizendo que esta seria apenas para tráfego, o que segundo exposto pela exposição Eyes of the city (Figura 21), na mesma matéria, não é verdadeiro. Wei Dong focou seu discurso em possibilidades mais sustentáveis ecologicamente advindas das Smart Cities. A cidade neoliberal se apropria constantemente de discursos para continuar seu avanço. A ques-
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Figura 21: O sistema de reconhecimento facial chinĂŞs. Eyes of the city, 2019. BBC News. 24 de dezembro de 2019. DisponĂvel em: https:// www.bbc.com/news/technology-50658538
tão ambiental fez surgir diversos novos rótulos de produtos, enquanto o aquecimento global parece avançar sem muitos problemas. Na arquitetura podemos ver claramente a incorporação desse discurso por starchitects como Bjarke Ingels. Ingels é o “herói” do estudante do primeiro ano de arquitetura, uma figura descontraída, com um discurso cativante sobre como arquitetura deveria ser como vídeo games, que ser sustentável pode ser divertido e lúdico. Entretanto, figuras como Ingels, os “arquitetos estrela”, são uma espécie de casamento do arquiteto autor modernista com a cultura de celebridades, são na verdade autores-marcas. Esse discurso de “sustentabilidade lúdica” e de “utopismo pragmático” pode ser interpretado também como greenwashing, termo que se refere a apropriação de virtudes ambientalistas por empresas e organizações, para o seu storytelling comercial. O portal de jornalismo crítico online focado em Arquitetura e Urbanismo “Failed Architecture” evidenciou, no artigo do colunista Alexander Hadley, “Bjarke Ingels e a Arte do Greenwashing” (2020) toma como ponto de partida o encontro de negócios entre o arquiteto estrela com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (Figura 22), um dos líderes da nova cúpula de extrema-direita “anti-ambientalista” mundial. Segundo HADLEY (2020), o acontecimento escancarou que arquitetos celebridade não buscam mudar sua indústria para uma direção mais sustentável de progresso, mas apenas se apropriam do discurso para se diferenciar no mercado. Hadley argumenta que os starchitects não são nossos aliados no combate as mudanças climáticas, pelo contrário, são uma classe capturada pelos interesses do mercado, e sendo assim são obstáculos a serem vencidos nessa luta. O arquiteto-marca e a especulação estão intimamente conectados e são players na neoliberalização da cidade. A arquitetura-grife tem em seu maior exemplo Frank Gehry e seu Museu Guggenheim em Bilbao, onde foi evidenciado o impacto econômico de uma arquitetura-marca no espaço urbano. As curvas de Gehry agora são um produto, podem ser encontradas pelo mundo todo, assim como uma peça de moda de um estilista famoso, a arquitetura, ou melhor, o Espaço-lixo também pode ser transformado numa franquia. Bjarke Ingels, Frank Gehry, Zaha Hadid, Calatrava e o próprio Rem Koolhaas, que apesar de suas pesquisas é o responsável por um dos maiores escritórios da atualidade, com arquitetura de grife por todo o planeta, não são mais arquitetos, mas movimentadores de capital. Para que essa Cidade-Grife surja é preciso antes remover resquícios indesejáveis, coisas que possam atrapalhar a experiência do cidadão turista. Aqui a ação neoliberal mostra suas garras materiais, e assim como na vigilância, assemelha-se a Haussmann. Uma vez que axiomatiza a terra, a gestão neoliberal do espaço trabalha com valor e não significado. Precisa “limpar” áreas com populações indesejáveis à valorização financeira do espaço. E aí entra a axiomatização de programas sociais. Segundo Rolnik (2017, p. 89) surge no final da década de 1970 no Chile, um novo modelo de política habitacional, baseado no laboratório das ideias neoliberais da Escola de Chicago. O modelo chileno funciona a partir do fornecimento de recursos públicos para famílias de menor renda terem acesso a produtos de construtoras privadas. Também existe um sistema de crédito onde quanto menor for a renda da família cadastrada, maior é o subsídio oferecido pelo estado e menores as parcelas pagas por esta. O programa foi replicado durante mais de três décadas, inclusive durante governos de centro-esquerda. O modelo praticamente colocou um fim a produção de habitação informal no Chile e foi mundialmente aclamado. Entretanto, anos depois, centenas de milhares de habitações do supostamente bem sucedido programa habitacional, produziram uma gigante segregação na paisagem chilena. Uma periferia homogênea, tanto em uso como classe social, surgiu, de péssima qualidade urbanística e arquitetônica.
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Figura 22: Bjarke Ingels ao centro e Jair Bolsonaro a sua esquerda. CORREA, M. 2020 DisponĂvel em: https://failedarchitecture.com/bjarke-ingels-and-the-art-of-greenwashing/
Mais ainda, desamparadas pelo estado, cresceram nessas áreas grandes problemas sociais, violência e tráfico de droga. (ROLNIK. 2017) Quando o ditador Augusto Pinochet criou o programa de habitação, não buscava solucionar somente o problema da moradia. Assim como as intenções de Haussmann para Paris estarem além de resolver problemas de saneamento e infraestrutura, havia motivações políticas e financeiras. Foi necessária a remoção das favelas (campamentos) da cidade de Santiago, tanto para a adequação da cidade ao avanço da Cidade Genérica, quanto, segundo Rolnik (2019), pelo fato dos campamentos também constituírem boa parte da base do crescimento dos partidos de esquerda, que eram oposição à ditadura militar. Essas estratégias, lembram muito a dinâmica das cidades satélites de Brasília, mencionadas anteriormente. Infelizmente, esse modelo de política de habitação se espalhou pela América Latina, principalmente no Brasil, com o programa Minha Casa, Minha Vida que tem basicamente as mesmas bases de financiamento que o de Pinochet, curiosamente implantado por um partido de centro-esquerda. Assim como na época da construção da capital brasileira, as classes sociais menos abastadas perdem seu direito à cidade, em prol de uma urbanização que, antes guiada pela modernidade, se dobra a especulação. (ROLNIK. 2019) A cidade neoliberal é a cidade das aparências, que “empurra sujeira para de baixo do tapete”, como na publicidade de 2011 da Petrobras que mostrava um modelo 3d do Rio de Janeiro com seus morros “limpos” de favelas (Figura 23). Aqui fica claro como “Todo design serve ou subverte o status quo” (FRY citado por PATER, 2019, p. 2), como todo projeto é político, independentemente da neutralidade que este pregue. A cidade neoliberal é um campo de guerra pelo direito à cidade. Restam aos Arquitetos e Urbanistas escolherem o seu lado nessa luta. Finalizando, confrontando esse histórico de Positivação e captura da cidade, o próximo passo desta monografia consistirá no estudo de formas de resistência e de subversão dessa realidade, assim como uma busca por um novo significado para o Arquiteto e Urbanista a fim de retirá-lo da neutralidade, que favorece o neoliberalismo, e reposicioná-lo nessa luta contra o a captura da cidade, uma batalha pela reconquista da espontaneidade no espaço urbano.
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Figura 23: As favelas do Rio de Janeiro foram ocultadas pela publicidade da Petrobras de 2011. PETROBRAS, 2011. DisponĂvel em: http:// www.global.org.br/blog/a-invisibilizacao-da-pobreza-e-dos-pobres-no-rio-olimpico/
CAPÍTULO 3: DO JOGO À INTERVENÇÃO URBANA Os Urbanistas do século XX terão de construir aventuras. Internacional Situacionista
Neste capítulo serão traçadas relações entre o conceito de Jogo Situacionista, o urbanismo nômade de Constant Nieuwenhuys, o conceito de Espaço-Movimento de Paola B. Jacques, e o conceito de Arte de Caio Vassão, a fim de traçar possibilidades de novos caminhos para a atuação do arquiteto e urbanista, ou para transformação deste no que Jacques (2011) chama de Arquiteto-urbano e do espaço urbano em oque essa pesquisa tratará com uma Cidade-Jogo. A partir disso são realizados experimentos, com base nas teorias Situacionistas estudadas no primeiro Capítulo que desembocarão na introdução das Intervenções urbanas como uma forma de ação do Arquiteto-urbano afim se iniciar o processo de despertar do olhar do espaço urbano como um espaço comum e lúdico.
3.1 JOGO, UTOPIA NÔMADE E UM NOVO ARQUITETO Para entendermos o Urbanismo Unitário e o projeto da cidade nômade “Nova Babilônia” do situacionista Constant Nieuwenhuys, precisamos antes nos debruçar sobre o conceito de Jogo Situacionista, que de nada tem a ver com a competitividade de esportes, e sim a faceta lúdica do jogar. E eles vão além: para os Situacionistas o “ganhar ou perder”, essa faceta competitiva do jogo está muito mais ligada a uma tensão por poder do que a atividade do jogar em si, e é um sentimento constantemente explorado pela lógica capitalista, e por isso, segundo os autores deveria desaparecer. Os situacionistas buscam uma forma coletiva de jogo, buscam a criação de ambiências lúdicas comuns. (JACQUES, 2003) Mais ainda, os Situacionistas, baseados no já citado Huizinga (2000), buscam quebrar a barreira entre a vivência cotidiana e o jogo. O jogar, para os membros do Situacionismo, rompe com o espaço e tempo convencional, lembrando muito o espaço e tempo liso de Deleuze e Guattari. Desse modo o Jogo é definido como uma experimentação permanente de novidades lúdicas, onde o sucesso não é obtido por uma vitória ou competição, mas pela experiência de situações e das sensações advindas dessa. Vimos que para Deleuze e Guattari (1997) esse Espaço liso10 é produzido por o que chamam de Máquina de Guerra11. Nossos espaços, como vimos no anterior, foram há muito estriados, axiomatizados, colocados à serviço de nosso sistema de produção e de sua máquina de reprodução de subjetividade, que como já afirmado também por Deleuze e Guattari (2004) é o produto mais importante do capitalismo, uma vez que será essa produção de Desejo e subjetividade que manterá este funcionando. A Máquina de guerra, assim como o Jogar Situacionista, é uma interferência nessa ordem, desafiando-a, produzindo espaço liso em meio a estrias. Os autores, como já citado, usaram justamente um jogo, o Gô, para exemplificar o funcionamento desse Espaço liso. Jogar o espaço urbano nada mais é que “esquizofrenizar”, ou seja, tornar diferente, a sua vivência. Busca-se um retorno ao Homo ludens, uma vivência da cidade não como locus de produção ou mera passagem, mas como um ambiente fértil e potente cheio de possibilidades, mistérios e sensações a serem descobertas. Esse Jogar, apesar de lúdico é tratado com muita seriedade pelos Situacionistas, como uma ferramenta capaz de se produzir uma nova forma de se enxergar e produzir a cidade. Essa nova forma de se pensar o espaço urbano é a teoria Situacionista do Urbanismo Unitário (UU). Considerado pelos membros do grupo não uma doutrina do urbanismo, mas uma crítica ao mesmo. Segundo os membros do movimento, o UU aborda a cidade como o tabuleiro ou percurso de um jogo do qual o cidadão participa. (JACQUES. 2003) A Internacional Situacionista argumenta, lembrando as discussões de Koolhaas (2010) e Pallasmaa (2017) sobre o cidadão voyeur/turista, que enquanto as cidades se oferecem como um museu Espetacular para turistas não haverá espaço para a espontaneidade. Em oposição, o UU busca uma maior conexão com o espaço, provoca uma participação, e afasta a faceta de Cidadão-turista, espectador da vida urbana, e busca um cidadão-ator, um cidadão participativo. Por isso a teoria do UU não se separa do espaço construído existente. Não se trata de um plano como o de Haussmann ou os de Le Corbusier de se pôr abaixo o passado e se construir o futuro e o progresso (FRAMPTON, 1997), mas uma abordagem que valoriza o presente, o contemporâneo. Esse Urbanismo, apesar de enxergar nas cidades de seu presente um ambiente propício a sua propagação, busca também uma transformação contínua e ao mesmo tempo permanente destas e de seus moradores. Essa constante renovação busca a criação de uma nova civilização, a do Homo ludens, ou seja, a subjetividade singular nômade apresentada por Huizinga (2000).
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Sendo assim, apesar de valorizar o espaço existente e de criticar o utopismo das vanguardas funcionalistas, o Situacionismo também possui sua faceta do porvir, ou seja, de um futuro ideal, pós-revolução. Nessa nova configuração por exemplo, a atividade do Homo faber, a subjetividade da produtividade, o trabalho, seria substituído pelo constante jogar e explorar, a constante Deriva. Constant formaliza a teoria do Urbanismo Unitário no projeto Nova Babilônia (New Babylon 1956-74), uma cidade nômade para uma sociedade errante. Segundo Careri (2013), o Situacionista concebe a Nova Babilônia através de estudos que fez ao visitar um acampamento de nômade em Alba, no qual encontra uma serie de referências conceituais que proporcionariam, para ele, a superação da arquitetura sedentária. Partindo de um projeto para um acampamento de ciganos, Constant expande seus estudos e imagina uma cidade pensada para a estirpe de Abel, uma materialização arquitetônica conceitual do Urbanismo Unitário. Segundo o mesmo autor, na mesma obra, na Nova Babilônia, os habitantes retomariam a atitude primitiva de autodeterminação do próprio espaço, recuperariam o instinto da construção da própria casa, sendo assim, para Constant, a arquitetura se tornará parte de uma atividade mais complexa, e assim a forma com a qual a conhecemos hoje desaparecerá em prol dessa atividade unitária, dessa transformação do espaço urbano em Jogo. Sua arquitetura pode ser descrita como megaestrutural e ao mesmo tempo labiríntica, diferenciando-se de exercícios como, por exemplo, os do design radical utópico do Archigram e da produção dos metabolistas, uma vez que estes apoiavam-se em um retorno ao pensamento vanguardista do futurismo. Para Careri (2013), se os mapas afetivos de Debord desnudavam e “explodiam” as cidades, Constant os une criando uma cidade inteira feita desse novo espaço afetivo em constante transformação. A Nova Babilônia, como um rizoma deleuziano (DELEUZE; GUATTARI. 1995) não tem começo nem fim, não tem fronteiras e pode ser constantemente ampliada como um parasita que se acopla ao mundo, desterritorializando seus habitantes, colocando estes em constante Deriva, em uma exploração lúdica sem fim. Essa cidade nômade suspensa ao ar, que Careri (2013, p. 104) chama de “Torre de Babel horizontal” depende de uma revolução para se concretizar. Os Situacionistas apesar de criticarem o utopismo das vanguardas funcionalistas, acabaram por também não concretizar suas ideias revolucionárias para cidade no mundo real. Os modernistas, que tenderam ao tecnicismo e apesar de todas as críticas elencadas aqui no Capítulo anterior, possuem uma série de manifestos concretos, na linguagem da Arquitetura, do Urbanismo, do Design de Produto e Gráfico que defendem, ou ao menos colocam a prova o seu modo de ver a Cultura de Projeto e a cidade. Entretanto a cidade de Constant influenciou outros projetos de menor escala. (FRAMPTON, 1997; VASSÃO, 2010) Em 1969, o coletivo Eventstructure Research Group (ERG) instalou seu experimento Pneutube em uma praça de Amsterdam. Causando um estranhamento do público de início tendo adesão, como esperado, primeiro pelas crianças, e depois pelos adultos. O Pneutube (Figura 25) consistia de uma espécie de pavilhão inflado em forma de minhoca com 30 metros de comprimento. (KONIJN, 2018) Dentro dele havia uma espécie de mobiliário disforme que poderia ser apropriado pelo usuário de várias formas, um design não-colonizador, que não impõe um uso, mas convida o usuário a inventar um uso para este. O Pneutube foi um de seis objetos/intervenções alocados na cidade pelo ERG. Eles chamavam as intervenções, baseados no conceito de criação de situações dos Situacionistas, de “Happenings”, podendo ser traduzido para “acontecimentos”. Esses projetos, como uma crítica direta a arquitetura funcionalista buscavam um design que estivesse em constante transformação e apropriação pelos habitantes da
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Figura 24: A cidade nômade de Constant. Constant: New Babylon, 2016 Disponível em: https://www.amazon.com.br/Constant-New-Babylon/ dp/3775741348 Figura 25: A Nova Babilônia se espalhando pelo mundo. Constant: New Babylon, 2016 Disponível em: https://www.amazon.com.br/Constant-New-Babylon/dp/3775741348
cidade. A intervenção mais literal do grupo foi Brickhill (Figura 26), que consistia em um cone gigante inflável, revestido com uma textura que lembrava tijolos, onde, a ideia de uma arquitetura mutável foi exposta de maneira lúdica e caricata. (Idem) É importante evidenciar que os Situacionistas, em 1963, rejeitaram as ações de grupos vanguardistas americanos que também fizeram exercícios chamados de Happenings (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1963). As ações do EGR não são as mesmas. Além disso, colocadas sob um olhar de fora desse contexto histórico, possuem uma concretude muito importante para entender e apoiar os estudos de uma apropriação lúdica e subjetiva da cidade. A discussão levantada por Constant e os Situacionistas, e posteriormente pelo ERG, é muito poderosa e útil para a teoria da Arquitetura e do Urbanismo. Como discutimos no capítulo anterior, o arquiteto, para o bem ou para mal, foi superado, nisso os Situacionistas acertaram precisamente. Resta a este decidir se esse “fim” será a morte ou a metamorfose dessa profissão. Para Constant essa resposta parecia bem clara: O arquiteto, como outros trabalhadores de nossa empreitada, vê-se diante da necessidade de mudança de profissão: nunca mais será construtor de formas isoladas, mas construtor de ambiências completas. (CONSTANT citado por JACQUES. 2003, p. 107)
Concluindo, opondo-se ao funcionalismo, o EGR propôs uma arquitetura que estimula o Jogar. Mas se encontravam ainda nos anos 1960, na cidade moderna. Os arquitetos do século XXI que se comprometerem a projetar aventuras deverão ter em mente que seu desafio é muito maior. Passamos por toda discussão sobre o neoliberalismo, Cidade Genérica e Junkspace para que nossas aventuras possam estar à altura de nossa época. Para recuperar sua relevância, ou mesmo sua existência, talvez seja o momento do arquiteto e urbanista, assim como os Situacionistas, voltarem aos livros e às ruas, “esquizofrenizarem” suas crenças e métodos, romperem as estrias de seu campo do saber, a fim de redescobrir seu significado.
3.1.1 ESPAÇO-MOVIMENTO, ARTE E O ARQUITETO URBANO Em Estética da Ginga (2001), Paola B. Jacques investiga a arquitetura vernacular das favelas do Rio de Janeiro, a partir das lentes de seu conhecimento deleuziano e sobre Situacionismo, a fim de desvendar novos processos e significados para a produção do espaço urbano. A autora separa sua análise em três escalas, usando para cada uma figura conceitual que ilustra a escala a ser tratada. A primeira delas é o Fragmento, nessa escala Jacques trata da noção de abrigo, analisando o processo de criação dos barracos e casas nas favelas. A partir desse estudo se descobre uma nova dinâmica de construção. Jacques (2011) afirma que a construção na favela, devido a sua ausência de projeto, nunca termina, uma vez que não possui uma forma final idealizada. Tendo como ponto inicial o barraco, que tende a evoluir para a casa de alvenaria, a arquitetura das favelas trabalha com o fragmentário, ou seja, está sempre adicionando e removendo pedaços de sua moradia. O próprio barraco é formado de restos de construção civil. É importante ressaltar que esse acúmulo e resignificação de coisas que antes eram restos, não se trata do Frankenstein estético que Koolhaas (2010) criticado em Junkspace, fruto de projetos alinhados
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com a neutralidade e o mercado, desprovidos de qualquer laço autoral ou afetivo. A crítica do autor é muito mais a uma estética comercial, que axiomatiza os estilos arquitetônicos, descontextualizando-os e assim neutralizando sua essência. Os arquitetos-favelados, para a autora, não são destruidores de significado, pelo contrário, são ressignificadores, são bricoleurs, termo que vem de Levi-Strauss e designa um “pensamento selvagem”. A bricolagem trabalha com a descoberta e constante atualização, remetendo à construção do abrigo primitivo, um retorno ao homem como construtor do seu próprio lar. No princípio esse abrigo era construído com elementos advindos da natureza, hoje como já citado, com fragmentos, materiais de segunda mão. A poesia dessa arquitetura vernácula encontra-se, justamente, na espontaneidade e aleatoriedade de seu resultado. (JACQUES, 2011) A segunda escala apresentada, pela autora na obra, é o percurso, ilustrado pela figura do Labirinto. Comparando o percurso da favela com o do labirinto Jacques enxerga uma contradição: o labirinto tem projeto, a favela não. Entretanto no labirinto todos se perdem sem um mapa. Na favela, só se perdem os visitantes, os estrangeiros, nunca os favelados, que não precisam de mapa para se encontrar, uma vez que sua relação com aquele espaço é diferente. A experiência de um Labirinto, para Jacques (2011), é o ato de vagar, uma vez que para se conhecer um Labirinto, sem um mapa, é preciso se perder, explorar, andar. Como os surrealistas com as deambulações, e os situacionistas com a deriva e a Psicogeografia, faziam com a cidade, o favelado desenvolve vínculos e guias espaciais que são exteriores a geografia. Podemos voltar também a Nova Babilônia de Constant, uma megaestrutura labiríntica feita exatamente apara um indivíduo com essas características (CARERI, 2013). Por fim, a última figura da obra é a do, já citado, Rizoma. A autora parte dos apontamentos de Christopher Alexander, em The City is not a Three (1965), onde critica o urbanismo moderno que tentou projetar cidades baseado na estrutura de raciocínio arbórea. O autor, citado por Jacques, critica essa forma de organização, caracterizando-a como uma forma de pensamento simples e binária. Para Alexander, as cidades não projetadas, espontâneas, ou não totalmente planejadas, se fossem comparadas a uma linha pensamento abstrato, teriam como modelo um arbusto ou uma figura próxima a semi-treliça (Figura 26). Sendo assim, classifica as cidades modernas como artificiais, cidades criadas por arquitetos-urbanistas, seguindo uma lógica funcionalista limitada. Entretanto, Jacques, na mesma obra, intervém no raciocínio apresentando a figura do Rizoma, ou simplesmente do Mato, da Erva. Para a autora o crescimento das favelas, diferente da cidade moderna e da cidade tradicional, segue uma lógica de crescimento de uma erva, uma forma de pensamento que seria difícil para Alexander compreender através de diagramas matemáticos uma vez que o Rizoma, assim como a favela, não tem uma imagem precisa. O sistema Erva/Rizoma é uma forma de pensamento que, em oposição à binariedade do raciocínio arbóreo, é marcado pela multiplicidade. Deleuze e Guattari (1995; JACQUES, 2011) apresentam o Rizoma como um conceito filosófico, que ao contrário do arbusto de Alexander, e da árvore, não consiste em um sistema, mas em um processo, uma rede. No rizoma, diferentemente da árvore e arbusto, qualquer ponto pode ser conectado a outro, não são fixos, deslocam-se, espontaneamente, sem um sistema generativo ou estrutural. Jacques pontua, ainda em Estética da Ginga, que não existe projeto que preveja o Mato, ele escapa da capacidade de antecipação do projetista. O Mato, assim como o Rizoma, está em constante movimento, nascendo aqui e ali. A autora assim inicia uma conexão entre espaço e movimento, partindo da afirmação de Deleuze de que o movimento é como uma translação no espaço, evidenciando uma in-
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Figura 28: (a) - Modelo Arbusto (b) - Modelo Arbóreo. ALEXANDER, 1965 Disponível em: https://www.researchgate.net/figure/Semilattice-a-and-Tree-Structures-b-Source-A-City-is-Not-a-Tree-4_fig1_333821711
terdependência entre movimento e espaço. O filósofo parte de uma tese “bergsonista” de que movimento e espaço percorrido não se confundem, uma vez que o espaço percorrido fica no passado e o movimento, o ato de percorrer, no presente. Assim, Jacques, enxergando no movimento uma ligação entre as três figuras expostas (Fragmento, Labirinto e Rizoma) e propõe o conceito de Espaço-movimento. O Espaço-movimento é um tipo de espaço em constante mudança, em perpétua transformação, como a favela. Nesse espaço existem dois atores: o primeiro deles o morador, que também geralmente é construtor do seu próprio espaço; o bricoleur, um habitante ativo e transformador do espaço; não o cidadão voyeur da Cidade Genérica, espectador de espaços estáticos. Em especial, o segundo ator seria um novo tipo de arquiteto, o Arquiteto-urbano, aquele que se ocuparia dos Espaços-movimento para organizar e mediar os fluxos. Partindo do princípio de que “a melhor maneira de se criar um caminho de pedestres em um gramado é esperar para ver a trilha deixada na vegetação pelos próprios passantes” (JACQUES. 2011, p. 155), esse novo arquiteto não tem controle total da cidade, mas é um ator em um novo processo de construção coletiva. Como o proposto por Constant (JACQUES, 2003. CARERI, 2013), o Arquiteto-urbano, ao invés de produzir obras arquitetônicas, passaria a mediar ambiências mais complexas, porém através de intervenções mais discretas, como um gerente de fluxos já existentes no espaço. Por exemplo, ao urbanizar um determinado lugar, o Arquiteto-urbano seguiria movimentos já iniciados pelos moradores, preservando a espontaneidade existente. (JACQUES. 2011) O Arquiteto-urbano seria um arquiteto-cidadão. A autoria de sua produção, que já perdeu sua relevância com o fim do modernismo (KOOLHAAS, 2010), como discutimos anteriormente, não seria precisa, uma vez que seria feita em conjunto com a população, com o morador-construtor. Além disso, Jacques afirma que o Espaço-movimento não está ligado ao conceito de projeto, uma vez que como vimos, um projeto estabelece uma forma a ser alcançada, um ponto final, e o Espaço-movimento, não para de se transformar, como um Rizoma, não tendo uma forma final. Jacques não é a única a apresentar um novo rumo para a profissão. O já citado anteriormente, Caio Vassão, doutor em Design e Arquitetura, em “Metadesign: Ferramentas, Estratégias e Ética para a Complexidade” (2010) também guiado pelo pós-estruturalismo de Deleuze e Guattari e pelos Situacionistas, busca no conceito de Arte uma liberação do campo do saber da Cultura de Projeto. Vassão (2010) argumenta que a noção de Arte comum à nossa cultura foi construída pelo o que chama de “Fratura Romântico-Positivista” onde o Romantismo teria formado um modo idealista de se fazer a filosofia, a arte e a estética, e o Positivismo tomado conta da área das ciências e da tecnologia. Tudo o que antes era considerado Arte, os saberes produtivos, que hoje são considerados artesanato, o conhecimento técnico produtivo, seja das artes, da construção, da oratória, da saúde foi alocado na categoria de Tecnologia. Aquilo que era voltado para o contemplativo, para elevação do espírito, para o que se chamava de “alma”, foi alocado na categoria de Arte. Sendo assim o Positivismo capturou a produção das “artes industriais” colocando-as dentro do campo que chamou de tecnologia, subdivididas em diversas ciências e engenharias. O Romantismo por sua vez apoderou-se do questionamento das ideias, da Estética, da sensibilidade e da compreensão de transcendência. Essa ruptura foi o resultado de um processo que durou um período de quase dois mil anos, do início da era cristã até o iluminismo. (VASSÃO, 2010) Segundo este mesmo autor, antes da ascensão das ciências e a categorização do saber produtivo como Tecnologia, a Técnica, o saber fazer, em seu sentido clássico techné do Grego, significava “fazer existir”, a produção de algo, assim como a Arte, ars do latim. Um campo de produção que englobaria
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desde a mimese, o copiar, até o estudo da manipulação dos sentidos, a Estética, a educação e a expressão. Ou seja, onde havia matéria disforme, a arte seria responsável por configurá-la, dar forma. Ali também se encontraria a técnica, o “saber fazer”, o “como fazer”. No século XIX surgem as chamadas “artes aplicadas”, que deixa o Romantismo e para adentrar a vida cotidiana, surge o que chamamos de Design. Entretanto essa arte banal não tem nada a ver com os experimentos dadaístas. Trata-se de uma positivação da arte de produzir, uma vez que essa é mediada pela lógica industrial, ou seja pelo Positivismo. Daí surgem pensamentos como o da Bauhaus, que irá sobrepor a Técnica a Razão, sendo a vanguarda do Design Funcionalista do século XX, que vai desembocar na problematização exposta no capítulo anterior. Partindo disso, Vassão (2010) busca um caminho, assim como Jacques, guiado por Deleuze, Guattari e os Situacionistas. Para o autor, a Arte, em seu sentido amplo, clássico, o conjunto de atividades produtivas humanas, é como a Ciência Nômade de Deleuze e Guattari. Um saber que não nega a subjetividade, como fez a Ciência Régia ou Estatal, mas a abraça, desembocando no pensamento rizomático. Essa oposição é comparada por Vassão aos conceitos Situacionistas de Situação e Espetáculo, poderíamos até trazer a Máquina de guerra e o Aparelho de captura, o Espaço-liso e o estriado. Um é liso, singular, livre, espontâneo e complexo, o outro até possui elementos subjetivos, mas esses são retrabalhados, direcionados para um caminho específico. O Espetáculo, afinal, nada mais é que uma Situação com um objetivo, que aponta para uma centralidade. (DEBORD, 1997) A Ciência Régia, assim, seria a Arte colocada sob um objetivo. É o que o “artista” produz, mas que depois é objetivado em prol da axiomática capitalista. Aqui é como se o quebra-cabeça fosse completo. Temos a fratura Romantico-Positivista. O Positivismo, por exemplo, valorizando a ciência como um campo do saber acima dos outros, tenta capturar, a Arte, Filosofia e a Cultura de Projeto para um guarda-chuva fictício de ciências. A Cultura de Projeto, a Arquitetura e Urbanismo, o Design Industrial e Gráfico, são tratados como “Ciências Sociais Aplicadas” pelo CNPQ, quando segundo Vassão (2010), não são ciências e nem mesmo filosofia. A própria Filosofia, que historicamente dá origem a ciência, é classificada no campo das ciências humanas. Efetivamente, tanto a Filosofia, como a Arte e também a Cultura de Projeto deveriam ser tidas como áreas de conhecimento autônomas, dotadas de métodos, abordagens, problemas e procedimentos próprios (VASSÃO. 2010, p. 92)
Assim como Jacques, Vassão tem uma proposta para novos rumos, não só para o arquiteto, mas para o que chama de Cultura de Projeto. Como um campo autônomo, os projetistas deveriam abandonar a tentativa de replicação da metodologia científica de solução de problemas no projeto. O par “problema e teorema” são segundo o autor, uma parte pequena da Arte e do Design. E daí surge o conceito de “Design Interrogativo”, uma nova postura para o campo do projeto, o projeto como pergunta, partindo do ponto de que, assim como a ciência, o projeto é incompleto, pois depende de todo um universo subjetivo, não pode oferecer respostas, mas sim levantar questionamentos, dúvidas. Um papel que pode incomodar muitos acomodados ao papel estipulado pelo aparelho de captura para a Cultura de Projeto. A quem queira se contentar com o “Ciências Sociais Aplicadas”, com o mercado de trabalho, a má remuneração, advinda dos avanços neoliberais e da perca do status dessas profissões. Somos questionados por negacionistas do “Ragnarok” de nossa profissão constantemente, é comum se ouvir frases como: “Mas o arquiteto é importante sim!” ou “O arquiteto tem que voltar a
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suas raizes, voltar a projetar!”. Gritos que pedem um retorno a uma realidade que não existe mais. Embasados em Jacques, Vassão, Koolhaas, Rolnik, Deleuze, Guattari, Debord, Constant, e muitos outros podemos enxergar que esta era já acabou e não volta mais. Mais ainda, podemos exercitar a autocrítica e potencializar conhecimentos de nosso campo do saber que são adormecidos pela Ciência Régia e exercitá-los como um campo do saber livre. A partir dessa nova postura poderemos construir uma nova cidade, uma que não é genérica, mas que está em constante movimento. Uma cidade jogável, que permita a constante exploração, ressignificação, uma cidade livre, que impulsione as facetas Homo Faber e Ludens da humanidade, pois se somos frutos desse conflito entre o ser produtivo e o lúdico, para Huizinga (2000; CARERI, 2013), com base em Vassão podemos sobrepor ambos e enxergar a produção não só como trabalho mas uma forma de Arte, povoando a cidade com o cidadão bricoleur, o cidadão construtor, jogador, que tem acesso a sua produção e uma identificação com esta, sendo assim, tomando como parâmetro o conceito de Arte apresentado pelo autor, um cidadão artista. Finalizando o raciocínio, Susan Sontag (2015) em seu ensaio “A estética do silêncio” (1967) desconstrói o mito da Arte com expressão, ou como dotada da função de expressar. Para ela, a arte não deve ser entendida como uma consciência que se expressa, mas que afirma a si própria, como uma capacidade de autoalienação da mente. Isso fica bem ilustrado em “A Vida Invisível” (2019), filme de Karim Aïnouz, onde Euridice, uma das personagens principais, que é pianista, quando é questionada sobre o porquê do seu gosto pela música, afirma: “Por que quando eu toco eu sumo.” É nesse ato de autoalienação que a Arte sobrepõe a produção a contemplação. Onde Homo ludens e faber se tornam um só. Para construirmos, ou melhor, potencializarmos o surgimento (uma vez que esse não é construído, mas surge espontaneamente) de um Espaço-movimento, precisamos, como Deleuze e Guattari propõe com o pensamento rizomático e a Nomadologia, abraçar a subjetividade e reconquistar a produção, esquizofrenizá-la, a fim de remover suas estrias Positivistas e capitalistas. Só assim podemos “despositivisar” nossos espaços. 3.2 JOGANDO A CIDADE Para continuar a discussão precisamos resgatar alguns conceitos desse capítulo e confrontá-los para a criação do que chamaremos de Cidade-jogo. Podemos partir do Espaço-movimento (JACQUES, 2011), que como foi exposto anteriormente, é um espaço vernacular, construído por cidadãos ativos, bricoleurs, com laços afetivos em relação a esse, e não pelo Aparelho de captura, cuja disseminação e manutenção seria impulsionada por um Arquiteto-urbano mediador. Tendo isso em mente, podemos voltar ao conceito de Jogo Situacionista, a forma coletiva lúdica de se experienciar a cidade, que busca a criação de ambiências lúdicas comuns. Se unirmos o pensamento rizomático aplicado por Jacques para criação do conceito de Espaço-movimento, e a noção de Arte de Vassão (2010), que nos permite unir Homo ludens e faber, podemos enxergar que a cidade lúdica, do Jogar Situacionista talvez já exista, mas esteja em sua maior parte capturada, por todos os fatores que elencamos aqui sobre como funciona a Máquina desejante capitalista para Deleuze e Guattari (2004, 1997, 1995). O que chamaremos de Cidade-Jogo é o oposto da Cidade Genérica de Rem Koolhaas (2010). Mas ao mesmo tempo, retomando a tese Surrealista do inconsciente urbano apresentada por Careri (2013) e
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exposta no primeiro Capítulo dessa pesquisa, é uma cidade que existe em sobreposição a Cidade Genérica. No mesmo tempo, apenas escondida. Se a Geografia descreve o traçado da Cidade Genérica, a Psicogeografia torna a Cidade-jogo evidente, uma vez que nada mais é do que o espaço lúdico comum. É a aplicação do terreno da cidade ao jogo, ao subjetivo e ao afeto. Esses espaços existem e não são produzidos pelo Urbanismo Régio (Aparelho de captura), são produzidos pelos criadores do Espaço-movimento, os cidadãos. Essa ideia de uma Cidade-jogo que já existente no presente vem de dois pontos. O primeiro é confronto entre o pós-estruturalismo de Deleuze e Guattari com as ideias revolucionárias de tom quase profético dos Situacionistas, que enxergavam uma cidade lúdica apenas no futuro, como no exemplo da Nova Babilônia de Constant (JACQUES, 2003; CARERI, 2013) que se materializou apenas como maquetes, como muitas outras utopias encontradas pela história da Arquitetura e do Urbanismo. Uma ideia de cidade que fica no porvir. Como já comentamos, uma cidade pós-revolução. Já para filosofia Deleuziana, o presente é talvez mais potente do que no Situacionismo. Se existe um Aparelho de captura é porque justamente novos fluxos surgem constantemente e o capitalismo precisa lidar com isso e capturá-los para ou seu interesse afim de se manter. Como se pequenas revoluções acontecessem no dia a dia, alterando o estado das coisas. (DELEUZE; GUATTARI, 2004, 1997) O segundo ponto foi a descoberta dessa Cidade-jogo a partir da experimentação prática das técnicas Psicogeográficas. Após toda essa abordagem teórica, sentiu-se a necessidade de experienciar algumas dessas metodologias, a fim de se buscar também uma bagagem concreta e sensorial para a pesquisa. Assim como os Situacionistas primeiro fizeram suas explorações, para depois formaliza-las em Mapas afetivos (CARERI, 2013), a Cidade-jogo escondida dentro do centro urbano que é o plano de trabalho dessa pesquisa, Campo Grande (MS), também deve ser descoberta antes que se proponha uma formalização ou intervenção que venha evidenciá-la. Para isso o autor tomou como ponto de partida a ideia Dadaísta de visita a lugares considerados desinteressantes da cidade, mesclando-a com a Deriva e Psicogeografia Situacionista. Sendo assim, esse subcapítulo irá se dividir em dois momentos, um dedicado a relatos de explorações urbanas realizadas pelo pesquisador, e um segundo relacionando as conclusões advindas das experiências com referências de possíveis intervenções práticas para a segunda etapa dessa pesquisa. É importante ressaltar que a ideia de uma Cidade-jogo foi desenvolvida em conclusão as experiencias e sensações vividas durante as explorações, sendo assim esse conceito só retornará ao final dos relatos que virão a seguir.
3.2.1 RELATOS DE DEAMBULAÇÕES POR UMA CIDADE-JOGO Existem diversos exemplos de grandes construções inacabadas por Campo Grande, um exemplo famoso é o Aquário do Pantanal, projetado pelo renomado arquiteto Ruy Othake, na principal avenida da cidade, a Afonso Pena. Mas o local escolhido para a primeira experimentação prática da pesquisa é bem mais antigo, se encontra nos limites entre as regiões urbanas Centro, Imbirussu e Segredo. Uma construção inacabada e abandonada pelo poder público por mais de 25 anos, que se tornou um ponto referência na discussão sobre o surgimento dos chamados “elefantes brancos” na cidade. (JORNAL NACIONAL, 2018) O Centro de Belas Artes de Campo Grande, na Avenida Ernesto Geisel, é um gigante que apesar
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de abandonado pelo estado, foi ressignificado pela população. A visita ao lugar foi feita no dia 11 de junho de 2020. Partindo da Orla Morena, área de lazer linear próxima a construção, o autor e seu amigo, Paulo Domingos, também estudante de Arquitetura e Urbanismo da UFMS, iniciaram sua exploração que será relatada a seguir e formalizada em um Mapa afetivo (a seguir) ilustrado pelo autor. (Figura 27) Durante os relatos, quebra-se um pouco do estilo de escrita empregada no restante dessa monografia, buscando uma maior liberdade de descrição das sensações experenciadas durante a caminhada. As impressões e informações advindas dessas deambulações serão a principal fonte de discussão, intercaladas com relações traçadas pelo autor com a bagagem teórica adquirida durante a pesquisa. A exploração será separada em tópicos, cada número no Mapa afetivo corresponde a um acontecimento, pensamento ou sensação que o pesquisador sentiu inclinado a descrever. (1) A caminhada se deu pelo entorno da edificação, teve início por volta das 16 horas, fazia Sol e o vento vindo do local era bem fresco devido a quantidade de arborização presente. Logo no início do percurso descobrimos uma vida urbana, voltada ao lazer, muito ativa na região. Grande parte do gramado do entorno do edifício foi transformado, pelos usuários, bricoleurs, em uma trilha ou pista para Bicicletas. No dia da visita diversas crianças brincavam e apostavam corrida nela. Também havia famílias se divertindo brincando com Drones controlados por controle remoto. (2) A presença histórica é forte na região uma vez que parte dos trilhos do antigo trem que passava pela cidade ficam no entorno da construção, hoje usados de bancos pelos visitantes. Acabamos por ser influenciados a seguir os caminhos do trilho. (3) Seguindo o caminho, fomos levados a uma pequena estação antiga, que descobrimos ser usada como um grande banheiro público hoje. O cheiro estava muito forte e por toda construção era possível se notar intervenções gráficas como o pixo e colagens, algumas delas ironizando o abandono do local e o elefante branco. (4) Contornando a construção encontramos nosso amigo Alberto Warmling, estudante de Psicologia da UFMS, andando de bicicleta e passamos um tempo conversando. (5) Continuando o passeio, passamos pelo pontilhão da Avenida Ernesto Geisel, onde tentamos continuar andando pelos trilhos. Ao olhar para baixo senti vertigem pois tenho medo de altura. Paulo me ajudou a voltar para a “terra firme”. Desistimos então de seguir os trilhos e atravessamos o pontilhão pela ponte de pedestres. (6) De longe podia-se ver a Paróquia São Francisco de Assis. Paulo lembrou que quando está por perto caminhando é lembrado do horário pelo sino da igreja. Isso me fez lembrar como tinha perdido totalmente a noção do tempo Estriado durante a nossa caminhada. Como os Surrealistas, entramos num transe pelo caminhar e pela conversa, apesar estarmos seguindo um caminho estabelecido, o dos trilhos, não prestávamos muita atenção nisso, acabávamos por prestar atenção nas coisas que encontrávamos seguindo ele, e de certa forma ressignificando e redescobrindo uma trilha que antes era percorrida por uma máquina, o trem. (7) Passamos em frente de um prédio que fica onde antes era um o armazém “Vai ou Racha” que funcionou entre 1940 e 1980 e foi já foi o supermercado mais importante da cidade. O espaço, muitos anos depois, quase em outra vida, foi um Bar, de mesmo nome, que movimentava a vida urbana na Praça São Frederico, que fica em frente do local. Hoje, após sua demolição, como numa vida após a morte, o lugar funciona como uma drograria de franquia, e a praça se encontra na maioria das vezes deserta. A única lembrança do tradicional armazém foi uma placa produzida pela drogaria, provavelmente como compensação, que como uma lápide, lembra o prédio que ali ficava e que foi demolido para dar lugar a essa nova edificação. (TORRES, 2017)
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Figura 29: Mapa afetivo referente ao primeiro experimento de caminhada. Autor, 2020.
Finalizamos o experimento retornando ao nosso ponto de partida pelo mesmo percurso que fizemos. Quando voltamos a noite já havia caído e todas as impressões que tivemos daquele espaço ganharam um tom mais escuro. Mas ainda havia muitas pessoas caminhando e se divertindo no local, a única sensação de abandono vinha da arquitetura do Centro de Belas Artes, que em todo passeio ficou no horizonte, sozinha, como se nos observando de longe. Isso nos lembrou uma antiga afirmação de Rem Koolhaas, feita em 1996, em uma entrevista para o Wired: As pessoas podem habitar qualquer coisa. Elas podem ser infelizes em qualquer coisa e felizes em qualquer coisa. Mais e mais eu acho que a arquitetura não tem nada a ver com isso. (KOOLHAAS, 1996, s/p)
Ao mesmo tempo se tem, por exemplo, o bar “Vai ou Racha” que potencializava a vida urbana, e quando substituído por uma drogaria, um espaço apenas de comércio, e não de permanência e lazer, viu esta vida desaparecer, pode nos fornecer observações importantes sobre o poder dos lugares. (TORRES, 2017) Na drogaria se tem um controle, uma vigilância, uma função “X” no tabuleiro do Espetáculo, e assim uma cultura estabelecida de uso voltada para o consumo passivo, ou seja, se entra na loja, o produto é escolhido, a conta é paga, e o próximo passo é deixar o local e voltar para casa, não se encontra nenhum estimulo a permanência. Podemos notar, a partir dessa observação, que quando se é removido algo espontâneo, tende-se a sentir falta, ou mesmo afastar pessoas. Porque o lugar espontâneo é justamente uma Máquina de guerra, que atua libertando o uso do espaço, enquanto a farmácia é um tipo de lugar interessante ao Aparelho de captura, é uma Estria no espaço, sua tipologia de uso já foi problematizada no Capítulo anterior, está naquela categoria dos shoppings centers, dos super mercados, um uso ideal para o Cidadão-turista, não ao bricoleur. Mas voltando a construção inacabada, sem dúvida, o elefante branco ali não interfere na diversão dos visitantes. Na verdade, se sua construção fosse finalizada talvez ele atrapalharia a diversão destes, assim como a Drogaria que substituiu o Bar, provavelmente haveria seguranças, controle de entrada dentro do entorno do edifício. A não ser que o entorno fosse caracterizado como uma área de lazer. O que nos leva ao pensamento de Jacques (2011), de um arquiteto que vem depois, que estuda os fluxos iniciados pela população e os potencializa. Um arquiteto que não impõe, mas facilita, que não afirma “Você é um lugar!” mas descobre espaços que dizem “Eu sou um lugar!” Partindo dessa ideia de lugares que gritam por serem descobertos e reconhecidos. Direcionamos nosso segundo experimento a um espaço onde a arquitetura é ausente, mas mesmo assim tem uma forte ocupação. Na Região Lagoa, no encontro das vias Lúdio Martins Coelho e Tenente Antônio João Ribeiro, que marca a divisa entre os bairros São Conrado, Tijuca e Leblon, existe uma espécie de grande superquadra vazia, desprovida de quase qualquer projeto, mas que é ocupada pela população da região como um parque. Paulo, que me acompanhou durante o experimento anterior, e novamente nesse, (junto com Vitória dos Reis, estudante de Psicologia da UCDB) mora perto da região e relatou que frequentemente, principalmente aos fins de semana, a área é tomada por pessoas que vão ali jogar futebol, andar de skate, caminhar, ou simplesmente se sentar, conversar e escutar música. Nossa visita a esse grande “Parque Espontâneo” (como será nomeado o lugar pelo relato), se deu no dia 20 de Julho de 2020, um Sábado. Chegando lá pode-se notar um menor número de pessoas do que é comum aos fins de semana na região, segundo os relatos de Paulo. Ainda assim, existia um número considerável de pessoas usando o parque. Havia pessoas andando de skate, numa pequena pista
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Figura 30: A trilha de bicicletas. Acervo do autor, 2020
Figura 31: Diversas cenas da caminhada. Acervo do autor, 2020
que existe no local, sendo o único elemento projetado do parque inteiro, pessoas sentadas conversando e crianças soltando pipa com os pais. Notamos por todo o parque caminhos espontâneos feitos pelo constante passar de pessoas que, como observado por Gehl (2013) nas grandes áreas verdes de Brasília, “protestam com os pés” e se recusam a seguir a calçada lateral que circunda toda a área, criando seus próprios caminhos pela grama. (Decidimos então começar nossa deambulação seguindo essas trilhas espontâneas. Nossa caminhada começou por volta das 15h. Seguindo os traçados e encontramos alguns “vestígios” de projeto, mobiliários precários feitos de concreto e já degradados. Ficamos experimentando a ergonomia dos mobiliários que não eram muito confortáveis. O lugar era bem isolado, nada convidativo e aparentemente pouco usado pelas pessoas que frequentam o local. Esse espaço com mobiliários era seguido por um resto de caminho proposto por projetistas, que já a muito havia sido tomado pelo imprevisível mato. Pelo caminho que seguíamos diversas pessoas se exercitavam, caminhavam, e passeavam com seus cachorros. Vitória tentou chamar a atenção de um cachorrinho que corria para lá e para cá, mas ele não deu bola para ela. A caminhada nos levou para uma ruazinha onde não havia asfalto, mas diferente do que se encontra geralmente em ruas sem asfaltos, a via não era coberta por terra, mas pro grama. Isso somado a uma grande arborização tornou a caminhada pela rua muito agradável. O único sinal de asfalto encontrado foi uma ciclovia que passava pelo centro da rua. Encontramos pelo caminho também alguns exemplários de design solitário, sofás e cadeiras abandonados. Seguindo a ciclovia fomos levados até o córrego Lagoa, que ali estava, cercado de vegetação, recebendo o esgoto da cidade. Por fim, retornamos ao nosso ponto de partida e exploramos por algum tempo a área mais utilizada pelos moradores da localidade. Ficamos ali por um tempo no fim de tarde. O movimento de pessoas já estava maior, mas, segundo Paulo, ainda inferior ao número de ocupantes que geralmente frequenta o local durante os fins de semana e fins de tarde nos dias de semana. Apesar disso, ao ver aquele gigante vazio cheio de pessoas se divertindo, a única constatação possível foi a de que, como indicaram os Surrealistas, existe uma cidade paralela a “cidade oficial”. Após essa experimentação das metodologias Situacionistas, o pesquisador foi afetado em relação ao poder subjetivo dos espaços ditos informais. O grande Parque Espontâneo da Região Lagoa é um lugar, porém não um lugar que interessa a Cidade Genérica e o que podemos chamar, fazendo um paralelo com a Ciência Nômade e a Ciência Régia (VASSÃO. 2010; DELEUZE; GUATTARI. 1997), de Urbanismo Régio, que conhecemos no Capítulo anterior. O Parque do Lagoa não tem nome, não tem lixeiras, sinalização, ele foi pensado para ser resíduo, o que sobra ao se traçar uma grande avenida como a Lúdio Coelho. Entretanto vemos, partindo dos estudos sobre Arquitetura e Urbanismo espontâneos de Jacques (2011) que existem elementos nesse panorama que não dependem desse Aparato Estatal, que está alinhado com os interesses do mercado. As pessoas vão ao Parque Espontâneo da Lagoa por que querem Jogar, se divertir, querem sentir ar fresco, sentar na grama, escutar música, encontrar os amigos, pouco importa se não existem bancos, caminhos projetados ou paisagismo pensado, essa apropriação, não tem nada a ver com arquitetura (KOOLHAAS, 1996), ao menos com essa arquitetura que conhecemos hoje, que se tornou Espaço-lixo. Partindo disso, o pesquisador conclui que existe uma cidade lúdica espalhada pela Genérica, uma Cidade-jogo, e que só encontra sentido em exercitar os conhecimentos de Arquitetura e Urbanismo em uma ação prática sendo um Arquiteto-urbano. Voltando a Constant e os Situacionistas, busca-se não mais projetar formas isoladas, mas aventuras (JACQUES, 2003). Ou melhor, partindo do Espaço-movi-
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Figura 32: Diversas cenas da caminhada. Acervo do autor, 2020
Figura 33: Diversas cenas da caminhada. Acervo do autor, 2020
mento de Jacques (2011), que torna obsoleto o projeto tradicional, a forma final, os agentes da Cultura de Projeto devem se colocar como exploradores e consolidadores de fluxos já existentes, criados pelo cidadão ativo bricoleur. Mas para isso é preciso um grande trabalho de democratização do acesso a esse discurso. Os cidadãos que frequentam e criam um parque espontâneo precisam ter a suas ações reconhecidas e louvadas, é necessária a criação de uma auto-estima e pertencimento o espaço público, que é, como Raquel Rolnik (2019) alertou, encarado geralmente como propriedade privada do estado e não como espaço comum, e é nisso que está pesquisa focará em sua segunda fase. 3.2.2 A INTERVENÇÃO COMO MÁQUINA DE GUERRA Voltando a Deleuze e Guattari (1997; 2004), e tomando o indivíduo como paralelo a cidade, temos um sujeito que é influenciado, ou axiomatizado, a reproduzir determinado tipo de pensamento e comportamento, devido a existência de uma Máquina de produção de Desejo por parte do Aparato Régio (Estatal/Aparelho de captura). Voltando nosso olhar para o espaço, temos a cidade, que é constantemente estriada, esquadrinhada, equipada com aparatos de vigilância, com publicidade, com um sistema viário que favorece a cultura do automóvel, como uma externalização, ou uma materialização dessa Máquina de desejos que Deleuze e Guattari enxergam. A cidade, ao mesmo tempo trabalha para capturar indivíduos aos interesses capitalistas, mas ao mesmo tempo transborda situações escondidas e espontâneas como as citadas nos relatos de deambulações, e todas as outras já apresentadas nessa pesquisa. (JACQUES, 2011, 2003) Cidade Genérica e Cidade-jogo, sobrepostas, coexistindo, porém, lutando entre si, uma vez que a Cidade Genérica, sendo propagada pelo Aparelho de captura, vai trabalhar para impossibilitar e abafar a Cidade-jogo a partir das várias maneiras de captura, já citadas no Capítulo anterior. Podemos constatar assim um espaço capturado e não um espaço perdido, que precisaria ser colocado abaixo para que o novo surja. Voltando aos dilemas entre revolução Situacionista e micro-revolução Deleuziana. Deleuze e Guattari (2004) propõe com, a já citada Esquizo-análise, uma diferenciação do indivíduo, ou seja, a “esquizofrenização”, a remoção de traços capturados em busca de uma vida mais saudável. Sendo assim, Arquitetos-urbanos, os responsáveis pela saúde da cidade, precisam esquizofrenizá-la, produzir nela o Espaço-liso. Isso só é possível partindo da construção de uma Máquina de guerra. Temos então a Máquina desejante capitalista, e o seu agente, o Aparelho de captura que coloca os indivíduos e a cidade a serviço do capital, da reprodução da forma de vida capitalista e da extração de mais-valor, e a Máquina de guerra que produz Espaço-liso, e assim novas possibilidades de vivência. O projeto prático final dessa pesquisa poderia muito bem ser uma cidade, ou uma arquitetura nômade especulativa ou um projeto de “adequação” de um desse espaços espontâneos com base nos fluxos já existentes, que não seria executado e ficaria no plano das ideias. Mas levando em consideração as teorias e correntes filosóficas estudas e a metodologia escolhida para pesquisa (Cartografia-afetiva), busca-se uma concretude nas ações advindas da pesquisa, como foi obtida por exemplo nos experimentos com a Deriva e Psicogeografia. É claro que mesmo um projeto que continuasse no mundo das ideias poderia funcionar como um método de discussão e mudança dentro da academia. Entretanto, a pesquisa tem como objetivo extrapolar esses muros, numa tentativa de difundir essa faceta afetiva e comum do espaço urbano, em busca da conscientização do cidadão e do arquiteto, para que deixem de ser obser-
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vadores e se tornem ativos no processo de construção da cidade. E para isso é preciso construir uma Máquina de guerra, cuja forma foi encontrada pelo pesquisador na Intervenção urbana. A Intervenção urbana, é um processo ou ação prática, que acontece nas estruturas urbanas, onde o artista ou arquiteto intervém em um espaço existente adicionando, subtraindo, ou realocando características do local. É importante lembrar que a intervenção urbana é uma tipologia de intervenção, existe também por exemplo intervenções artísticas em locais fechados, como museus. (CAMPBELL, 2015) A própria cultura de grafitti, tão comum nos centros urbanos, é uma maneira de subversão visual encontrada por tribos urbanas para ocupar o espaço visualmente de uma maneira mais espontânea. Essas intervenções, podem ser espontâneas como o grafitti, ou podem ser organizadas. E é esse tipo de organização e a documentação e análise de seu processo e de como essa ação interfere no uso da cidade que interessa essa pesquisa. Por exemplo, em 2011, na cidade Fortaleza, o grupo Acidum, coletivo local, realizou a intervenção CicloCor (Figura 32). Com um sistema caseiro composto por garrafas pet, carregadas com tinta, acopladas a bicicletas, O grupo convidou pessoas a pedalar pela cidade com as bicicletas equipadas. Com pedalar a tinta era liberada por uma mangueira equipa com uma espécie de pincel em sua ponta, assim cada bicicleta deixava um rasto colorido com seu percurso. (CAMPBELL. 2015) Intervenções, como a do Acidum, são uma forma de arte e ação urbana que tem um início, porém não um fim, uma vez que é materializada na rua, no espaço comum, essa obra impactará o dia a dia de uma população que cruza aquele caminho todos os dias, possibilitando um nível de impacto em uma maior escala, e uma resposta variada a ação. Esses fatores trazem de volta a discussão da Anti-Arte Dadaísta, a remoção da arte dos “templos”, ou seja, dos museus, dos teatros, dos locais fechados, levando-a para o cotidiano, banal e comum. (CARERI, 2013) As já citadas Happenings do EGR no final dos anos 1960, também são um exemplo de Intervenção mostrando que a produção de arquitetura também pode ter essa faceta. O intuito é introduzir um elemento ao espaço comum que altere a percepção desde por parte daqueles que ali frequentam. (KONIJN, 2018) Em “Visages, villages” (Olhares Lugares), documentário de 2017, Agnès Varda, lendária cineasta francesa e o artista urbano, também francês, JR refletem sobre o poder da intervenção. Nos filmes a cineasta e o artista viajam pela França conhecendo pessoas, descobrindo suas histórias, fotografando-as e espalhando suas imagens ampliadas pelos lugares onde essas histórias tomam como cenário (Figura 33). Como se as memórias se transformassem fisicamente em parte do espaço, trazendo uma externalização visual e material do afeto que já existia no campo do sujeito para o campo do comum. Sendo assim, voltando ao conceito Situacionista de Psicogeografia, como o estudo dos efeitos subjetivos do meio geográfico que atuam diretamente no comportamento afetivo dos indivíduos (JACQUES, 2003), podemos afirmar que JR e Varda elaboram pela França uma espécie de ação Psicogeográfica, que não se formaliza em um Mapa afetivo, mas em uma Intervenção. Além disso, a dimensão política da intervenção também deve ser levada em consideração. Discorremos anteriormente sobre a união entre Espetáculo e imagem, ou da Cidade Genérica e o Junkspace e a publicidade (DEBORD. 1997; KOOLHAAS. 2010). Se o Espetáculo tem na imagem um mecanismo de manutenção e mediação da sociedade, podemos concluir que a subverter é em si um ato político muito poderoso. É como já tanto citamos, a criação de um mecanismo de resistência e combate, possibilita a criação de um Espaço-liso, livre e diferente, sendo assim uma Máquina de Guerra (DELEUZE; GUATTARI, 1997). Em 2012, em Belo Horizonte (MG), durante o período de campanha eleitoral, o grupo Piseagra-
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Figura 34: Intervenção CicloCor. CAMPBELL, 2015. Disponível em: https://arteparaumacidadesensivel.wordpress.com/obras/acidum/ Figura 35: Cena de Visages, villages. VARDA; JR, 2017. Disponível em: http://su-city-pictures.com/tag/documentary/
ma elaborou a Intervenção Campanha Não Eleitoral que consistiu na criação de uma série de materiais gráficos, como cartazes, camisetas, bolsas, cavaletes, adesivos, além de artes nas redes sociais, com diversas hashtags com frases com reinvindicações ligadas ao direito a cidade. Os cartazes, muitas vezes foram colados sobre publicidades de candidatos a eleição. Limpando a paisagem urbana da tradicional publicidade eleitoral, lembrança constante de uma velha política que os brasileiros a muito, mas principalmente após os movimentos sociais de 2013, enxergam com desconfiança. No lugar são colocados também frases curtas, em contraponto aos jargões e slogans eleitorais, porém frases de demanda. (CAMPBELL. 2015) A ação do Piseagrama ressalta o poder de se estampar frases em paredes, o ato de tornar público e material o discurso nos faz voltar a maio de 1968, quando uma icônica Intervenção política coletiva no espaço surgiu com as frases escritas e grafitadas por estudantes da tradicional universidade francesa Sorbonne, em sua histórica ocupação estudantil. Em seus muros e corredores eram exibidas frases como: “As paredes tinham ouvidos, agora elas têm a palavra”, “Viva o efêmero”, “A poesia está na rua”, “Abaixo a sociedade Espetacular mercantil”, entre outras. (TRINDADE. 2013) Frases fortes que lembram toda a discussão Situacionista exposta no primeiro Capítulo dessa pesquisa, e que encontram seu papel de formalização, como reflexo externo, gráfico, e espacial, de jovens imersos em um movimento e um momento do tempo, onde a mudança parecia muito próxima. O poder das palavras também foi evidenciado por Debord que afirma que “As citações mostram-se úteis nos períodos de ignorância ou de crenças obscurantistas” (DEBORD, 1995, p.16) período este que para o autor era o seu tempo, e pela relação que traçamos no Capítulo anterior, podemos enxergar a Sociedade do Espetáculo claramente em nossa sociedade neoliberal, apesar de um pouco mais complexa, um vez que existem muito mais fluxos capturados a serviço do capitalismo em 2020 do que haviam em 1968. Se a palavra tem esse poder de combate, a Intervenção o une ao poder cotidiano do espaço público, tornando acessível e mais potente ainda o discurso. E isso nos leva novamente a crítica Dadaísta a reclusão ou “sacralização” da arte. O conceito moderno de exposição da arte, analisado por Brian O’Doherty (2007) em “No interior do cubo branco” (1986), que traz um processo que, assim como na Cultura de Projeto exclui o usuário ou cidadão (GEHL, 2013), exclui o espectador. Para O’Doherty a galeria, ou do museu moderno é como um limbo. Qualquer coisa que é colocada lá, pode ser encarada como arte, com a exceção do espectador, pois o que importa é a ideologia do espaço do museu como um altar do conhecimento e da arte. Com os experimentos do caminhar como prática estética, dos Dadaístas, Surrealistas, Letristas e Situacionistas, trazidos por Careri (2013), em Walkscapes, podemos enxergar um potencial muito mais livre para a Arte e como consequência, se levarmos em consideração o conceito de Arte de Vassão (2010), também para o Arquiteto. Logo, esse processo de ressignificação da cidade como palco para arte e a produção livre a partir da Intervenção, como já citado, é em si, a criação de uma Máquina de guerra contra o que chamamos de Urbanismo Régio que captura e limita a vida urbana em prol de uma utilidade para o mercado. Já sabemos como a publicidade (o aspecto gráfico da cidade), a Arquitetura e o Urbanismo, sendo capturados, exercem o papel de criar Derivas forçadas, como evidenciado por Koolhaas (2010), estriando visualmente e espacialmente a cidade. Agora, a pesquisa se propõe a estudar, experimentar e documentar o processo de subversão desses elementos. Como fizeram o Piseagrama, o Acidum e a dupla Agnès Varda e JR, a partir da subversão da faceta gráfica da cidade, ou mesmo, como fez o EGR, partindo da introdução de uma arquitetura não colonizadora, ou seja que não impõe um uso mas que estimula a apropriação espontânea, o Jogar, essa
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Figura 36: Intervenção Campanha Não Eleitoral CAMPBELL, 2015. Disponível em: https://arteparaumacidadesensivel.wordpress.com/ obras/campanha-nao-eleitoral/ Figura 37: “Apenas a verdade é revolucionária”. DITYVON, 1968. Disponível em: https://razaoinadequada.com/2013/06/16/os-muros-da-sorbonne/
pesquisa busca proporcionar a criação Derivas espontâneas poderosas, reconhecer espaços ignorados pelo Urbanismo Régio e provocar a discussão e a reflexão sobre os espaços capturados. Concluindo, o objetivo da etapa prática desse Trabalho de Conclusão de Curso é a criação de uma Máquina de guerra a partir da Intervenção urbana, que possibilite ou ao menos evidencie a faceta urbana que aqui foi chamada de Cidade-jogo.
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CAPÍTULO 4: CIDADE-JOGO Jogar é guerrear e guerrear é jogar. Johan Huizinga
A parte final desta monografia consiste a apresentação da organização, desenvolvimento e formalização dos experimentos práticos que consistem em intervenções urbanas efêmeras que são os produtos dessa pesquisa. Produto esse que foi descoberto pelo pesquisador a partir de afetos advindos do encontro da pesquisa teórica, sejam as leituras ou os filmes assistidos, com a experimentação prática e pessoal. Essa abordagem subjetiva de exploração do percurso da pesquisa, quase como se fosse uma deriva, como um caminhar entre pensamento e espaço escancara a metodologia escolhida: a cartografia-afetiva de Deleuze e Guattari (1997; PASSOS, E. KASTRUP, V. ESCÓSSIA, L. 2015)
4.1 EU SOU UM LUGAR! Os experimentos 1 e 2 dessa pesquisa foram indispensáveis para o entendimento de seu produto final. Sendo assim também parte desse produto. Com as derivas pelos espaços de ocupação lúdica espontânea ficou claro para o pesquisador que não existiria espaço melhor para o desenvolvimento de um experimento mais robusto que pudesse esclarecer ainda mais o fechamento dessa cartografia. Sendo assim, surge a ideia da criação de um jogo urbano voltado para a exploração, a princípio do, já visitado, inacabado Centro de Belas Artes do final da Orla Morena, em Campo Grande - MS. O espaço foi escolhido por ser um símbolo que é fortemente associado ao fracasso do Urbanismo Régio que, como citado anteriormente, foi incapaz de concluir sua construção, que se iniciou a mais de 25 anos. Foi incapaz de tornar aquele um lugar formal, instituído, e permitiu, por sua negligência, que a partir da ocupação lúdica das pessoas um manifesto espontâneo do próprio espaço urbano, do ambiente humano, surgisse, tornando-se evidência concreta da discussão dessa pesquisa: quem faz o ambiente humano são as pessoas, não as marcas ou o estado, esses estão a serviço do sistema econômico, capturam o espaço para torná-lo locus de consumo e produção (VASSÃO, 2008). Toda essa problematização já foi trazida no capítulo anterior. O próximo passo seria o desenvolvimento de uma estrutura, uma metodologia para um jogo de exploração que levasse outras pessoas a esse local, desprovidas em sua maioria das lentes teóricas da pesquisa, para que essa discussão salte de uma construção individual para um plano coletivo. Assim início aqui os relatos sobre a preparação do experimento piloto e o desenvolvimento de uma metodologia de exploração do espaço urbano. Antes de tudo esse experimento possui alguns objetivos, sendo eles: Testar, validar e atualizar metodologias de exploração ço urbano do Dadaísmo, Surrealismo e Situacionismo estudadas pelo
do espapesquisador;
- Agregar à pesquisa os relatos e experiências de outras pessoas para além do pesquisador, sua orientadora e seus amigos que acompanharam os experimentos anteriores. Por mais que esses também participarão do experimento, suas opiniões permanecem importantes. A ideia é também trazer pessoas desinformadas sobre a pesquisa, a fim de gerar uma pluralidade de opiniões e sensações; - Levantar e divulgar a discussão sobre a apropriação espontânea do Espaço Urbano como um despertar contra o uso imposto pelo Urbanismo Estatal/Neoliberal, que gera o que chamamos de “Positivação dos Espaços”; - Interferir na cidade de modo concreto, a fim de que os resultados da ação sejam experienciados pelos frequentadores e que seja aberta a possibilidade de ressignificação desta por eles. Levando, assim, as discussões acadêmicas para além dos muros da universidade. Assim, esse jogo, assim como o jogo situacionista, nada tem a ver com a competitividade de esportes, e sim com a faceta lúdica do jogar. Essa atividade busca uma forma coletiva de jogar: a criação de ambiências lúdicas comuns. (JACQUES, 2003) O experimento teve como referência três outras experiências de intervenção, sendo elas a já citada “Campanha não eleitoral” (CAMPBELL. 2015), a dinâmica de exploração de espaços abandonados ou
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Figura 38: Campanha não eleitoral e Exorcismos Urbanos Fonte: CAMPBELL, 2015 e Relatório do Laboratório Urbano Efêmero de Campo Grande, 2019 Figura 39: Adesivos do projeto “Urbanism for sale” Fonte: Feldt72, 2008
considerados inseguros “Exorcismos Urbanos” utilizada pelo coletivo Translab.Urb de Porto Alegre no projeto “Lab Campo Grande”, assim como os adesivos do projeto “Urbanism for sale” do grupo austríaco Feld72 para a sétima Bienal de Arquitetura de São Paulo. As regras do Jogo foram desenvolvidas em constante discussão com a orientadora da pesquisa, Prof. Ma. Juliana Trujillo. Antes de tudo, essas não eram regras inquebráveis mas um guia da dinâmica de exploração. As orie ntações foram enviadas aos convidados em um PDF explicativo por What’s app. A instruções presentes no material foram estas: O QUE É O JOGO? Esse jogo nada tem a ver com a competitividade de esportes, e sim com a faceta lúdica do jogar. Essa atividade busca uma forma coletiva de jogar: a criação de ambiências lúdicas comuns. O objetivo do jogo é fazer uma exploração afetiva pelo entorno do inacabado Centro de Belas Artes localizado na Avenida Ernesto Geisel, em Campo Grande (MS) com base em metodologias Psicogeográficas. Os locais a serem explorados no entorno são os estacionamentos do prédio, o traçado que liga a Orla Morena à Ferroviária, os caminhos, trilhos e ciclovias, o gramado próximo ao edifício abandonado, a pista de bicicross, a antiga estação local e o interior da obra inacabada e demais proximidades. Localização 232, R.
Plutão,
184,
Campo
Grande
–
MS
https://goo.gl/maps/7NiEKMkbYcBZNo2DA Data e horário do jogo: Sábado, 19 de Setembro de 2020 REGRAS DO JOGO O jogo não é uma competição. Não há pontos, nem vencedor. Instruções: 1. Em bada
dupla ou trio, explore o entorno dessa obra inacae cole os adesivos fornecidos ao longo seu percurso;
2. Leia os adesivos, pense na mensagem que ele tem ou que você quer escrever nele. Pense bem antes de colar os adesivos em algum lugar. 3. Registre com fotos ou anotações no seu celular os locais você colou os adesivos e o que você sentiu ou pensou, para podermos discutir sobre eles ao fim do jogo. Essas imagens e anotações deverão ser enviadas por Whatsapp para o número 67 9
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91602302
4. Cada equipe, tendo em posse um pacote de adesivos e um canetão, deverá explorar a área indicada e colar os adesivos em locais que, segundo a sensibilidade de cada jogador/jogadora, pareçam mais adequados. Na área do jogo há diversos lugares onde os adesivos podem ser colados como postes, muros, paredes, trilhos, chão, dentre muitos outros. Quantidade de jogadores O jogo tem o número mínimo de 6 e no máximo 10 participantes. As equipes podem variar, mas devem ter no mínimo 02 pessoas e no máximo 03 pessoas. Quantidade de adesivos para cada equipe Aproximadamente, 20 adesivos sortidos para cada equipe. Cada equipe também receberá um canetão para escrever uma mensagem no adesivo “em branco”.
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importante adesivos criadas.
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diferentes em três
clascategorias:
1. Rastros e setas: Esses adesivos foram pensados para que os participantes possam deixar um rastro se seu percurso e influenciar eventuais outros caminhantes a explorar o caminho. Esses adesivos põem ser explicados com uma alegoria a João e Maria, que, na história infantil clássica, deixavam migalhas por seu percurso na floresta para relembrar o caminho por onde passaram e assim pudessem voltar. No caso não existe esse intuito de retorno, mas de realmente emular um rastro ou “pegada” da deambulação do jogador 2. Frases: Consistem em adesivos com ilustrações e frases provocativas a respeito da faceta subjetiva do local e da subversão do uso dos elementos de um espaço abandonado. 3. Vazios: Os adesivos vazios foram pensados para permitir a interação direta dos jogadores com o espaço. Munidos de um canetão o participante poderia usar essa tipologia de adesivo para escrever a sua própria mensagem ou convidar alguém a escrever. A estética dos adesivos foi pensada para chamar a atenção de quem passa. Como um diálogo com a publicidade, como o Piseagrama fez, na já citada no capítulo 3, intervenção “Propaganda não eleitoral” (CAMPBELL. 2015). As formas dos adesivos são simples e geométricas e suas cores sãos inspiradas pelas três cores mais fortes do sistema de cores CMYK: azul, amarelo e magenta. Duração do jogo Em torno de 2 horas. As equipes se encontrarão no Freio do Trilho, às 15h e retornam da exploração às 17h para uma conversa sobre a experiência de cada equipe, tendo todos e todas
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Figura 40: Categorias de adesivos Fonte: Acervo do autor, 2020
a oportunidade de expor seus relatos, opiniões e sensações sobre o Jogo. Caso as equipes concluam a exploração antes desse período, a reunião poderá ser iniciada antes. Somada a essas instruções foi anexado um pequeno Manifesto da pesquisa, em uma linguagem bem mais despojada em relação a esta monografia, tendo como objetivo ser um pequeno resumo da discussão da pesquisa e um pequeno despertar para a faceta afetiva dos espaços. Leia o manifesto abaixo: O MANIFESTO DA CIDADE-JOGO Não se engane. O espaço urbano não é natural. Ele é uma realidade construída a partir de um projeto. A cidade se tornou uma máquina de controle físico e mental e também um objeto mercadológico. O planejamento urbano, segundo Guy Debord, é a tomada do espaço humano pelo capitalismo. Quem decide como será construída a cidade? O planejamento a partir do capitalismo é quem regula, dita as regras de experimentação, as formas como nós nos vivenciamos os espaços e influencia a reprodução de uma forma de vida: a burguesa. Para declarar guerra a essa realidade e encontrar um ponto de partida para a construção de uma cidade mais humana, podemos subverter o uso desse espaço através da exploração das nossas relações afetivas, sentimentais, nossas experiências e memórias que o espaço nos proporciona, mesmo que essa máquina de produção de realidades nos venda um projeto de cidade que ignora todos esses elementos. Assim, esse jogo escolhe esse lugar, o inacabado Centro de Belas Artes de Campo Grande, como um tabuleiro para essa atividade. O brincar, o caminhar e o descobrir: os itens mais inúteis a esse sistema político-social.
Durante o desenvolvimento dessa pesquisa o Brasil e o mundo enfrentam a pandemia de corona vírus que tem como único modo de prevenção, até o momento, o distanciamento social, o uso de máscaras respiratórias e a higienização constante das mãos e utensílios com álcool gel. Sendo assim, somada as orientações sobre a dinâmica e o manifesto foram adicionadas recomendações de biossegurança:
NÃO MENOS IMPORTANTE! Devido à pandemia de COVID-19, é necessário sempre o uso de máscara (de preferência, bem ajustada ao rosto) e manter o distanciamento de 1,5 metros, durante o experimento. Também é muito importante levar álcool em gel 70% para higienizar as mãos, especialmente após colar um adesivo ou tocar em qualquer local público. No início do jogo, haverá uma conversa rápida para sanar eventuais dúvidas em relação às regras do jogo, reforçando as informações disponibilizadas neste documento.
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No fim do jogo, faremos também outra conversa para compartilhar as experiências, percepção dos lugares através dos relatos das equipes. Todas as atividades serão registradas por fotografia, vídeos e gravação de áudio mediante a autorização do participante. Em suma, essa foram as instruções recebidas pelos participantes. O experimento ocorreu no dia 20 de setembro e teve a participação de doze pessoas divididas em quatro equipes. Os participantes exploram principalmente o interior e o entorno do Centro de Belas Artes.
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Figura 41: Diversas cenas do Experimento Fonte: Acervo do autor, 2020
Figura 42: Diversas cenas do Experimento Fonte: Acervo do autor, 2020
Figura 43: Diversas cenas do Experimento Fonte: Acervo do autor, 2020
Figura 44: Diversas cenas do Experimento Fonte: Acervo do autor, 2020
Figura 45: Diversas cenas do Experimento Fonte: Acervo do autor, 2020
Figura 46: Diversos registros dos participantes do experimento. Fonte: Imagens produzidas pelos participantes, 2020
Ao fim do experimento foi realizada uma breve roda de conversa onde cada participante pode expor os seus pensamentos sobre a dinâmica. O pesquisador selecionou alguns trechos dos relatos que de certa forma englobaram as discussões que se repetiram ao longo dos doze depoimentos, assim esses comentários figuram como um bom resumo da percepção do grupo. Seguem os relatos: Eliane Fraulob – Estudante de Arquitetura e Urtbanismo (UFMS) Dentro do prédio, eu como estudante de arquitetura fiquei com medo de subir em alguns lugares (risos). Vi que tinham uns buracos na laje. Mas foi muito legal ver o espaço. Não conhecia aqui, nunca tinha entrado. Muito legal ver como o espaço é ocupado de uma forma que a gente nem imagina. João Vitor Alves dos Santos – Advogado e Mestrando (UCDB) Moro aqui perto e sempre passo por aqui, mas tinha muito medo do local. Recentemente vim numa intervenção artística aqui e isso mudou a minha percepção. Miguel Barreto – Estudante de Psicologia (Universidade de Coimbra) Foi interessante ver como as intervenções artísticas e manifestações se sobrepõem e, até de certa forma, se complementam. Criando camadas de narrativas que dialogam com o que se passa na cidade e no país e nos fazem refletir para onde estamos caminhando (literalmente). Alberto Warmling – Estudante de Psicologia (UFMS) Achei legal para tirar do conforto. Eu ando de bike por aqui. Sempre vejo a galera entrando e saindo. Agora para mim é como se fosse outro espaço. Um outro jeito se se ver a cidade. Júlia Palmiere – Mestranda em Psicologia (UCDB) Interessante como parece um espaço abandonado mas quando você entra ele não tem nada de abandonado. Achei muito legal a questão de como os adesivos também foram um guia para percepção do espaço. Vitória dos Reis – Estudante de Psicologia (UCDB) Quando passava por aqui ou era dentro de um carro ou de um ônibus. É um espaço que ele é ocupado. Um espaço casa, um espaço rua. Desde as intervenções artísticas que você encontra nele, os pixos, os lambes, até as moradias improvisadas. Taynara F. de Sá - Estudante de Psicologia (UFMS) Então, eu nunca tinha vindo, achei bem interessante. Eu fiquei prestando atenção nos rastros, nos sapatos, nas latinhas, fiquei pensando nas varias coisas que acontecem nesse lugar, das mais comuns as mais bizarras. Gustavo Ignácio – Estudante de Engenharia (UFMS) Eu já tinha vindo aqui mais na parte externa, já tinha andado bastante. Mas eu achei muito legal de explorar a parte abandonada e ver a quantidade de coisa aleatória que tem lá. Achei uma prova de escola lá em cima, fiquei pensando como isso veio parar aqui. E isso é o mais legal, você fica pensando quando isso aconteceu, pode ser que tenha sido a muitos anos. Gabriel Quartin – Fotógrafo e Designer Já conhecia e já tinha explorado o local varias vezes e o mais engraçado é que parece que cada vez que eu entro nele ele tá de um jeito. E sempre tem esse contraste entre as pessoas que habitam
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ele por necessidade e os exploradores. O diálogo com certeza é algo que, em tempos de pandemia, essa pesquisa desesperadamente necessitava. Foi muito interessante enxergar os diferentes afetos que surgiram nos participantes. Alguns intrigados com as mensagens, outros com o descobrir de uma nova realidade. Com certeza o oculto urbano que os Surrealistas tanto buscavam foi descoberto por alguns nessa tarde de sábado. Porém, um dos relatos foi uma pista extremamente importante e de certa forma uma antecipação de algumas descobertas feitas no pós-experimento. Foi o relato do estudante de arquitetura e urbanismo na UFMS, e amigo, Pedro Ramires: Eu achei bacana essa interação atemporal. Você deixa a sua mensagem e qualquer pessoa pode passar e interagir com ela. Devia ter mais jeitos de fazer isso pela cidade. O poder da mensagem, da marca na cidade (TRINDADE. 2013), talvez tenha sido uma forma de interação coletiva lúdica maior ainda do que a exploração em grupo. Nós, estudantes, exploradores, intervimos naquele lugar e partimos. Os adesivos ficaram. Mesmo que apenas por um tempo. Permitiram diversos tipos de interações por cidadãos anônimos. Alguns interagindo respondendo aos diversos questionamentos dos adesivos, outros interagiram com brincadeiras ou mesmo arrancando os adesivos.
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Figura 47: Adesivo vรกrios dias apรณs o experimento. Fonte: Juliana Trujillo, 2020
Figura 48: Diversas cenas dos adesivos vรกrios dias apรณs o experimento. Fonte: Juliana Trujillo, 2020
4.2 CONVERSAÇÕES URBANAS Assim, o pesquisador é afetado a expandir a área de atuação das intervenções e explorar mais ainda essa interação anônima em um último experimento. Mas antes, a fim de entender como e onde poderia ser estabelecido esse diálogo, o pesquisador realizou uma pequena pesquisa teste por ferramentas de perguntas em suas redes sociais pessoais. As perguntas foram: - Você acha que espaço público é seu? - Como você usa o espaço público? - Que lugares abertos você costuma frequentar em Campo Grande? A pesquisa obteve o total de sete participantes. E em síntese essas foram as constatações: Você acha que espaço público é seu? - A maioria não se sente dona do espaço público. - A maioria também acredita que o espaço público deveria ser nosso. Como você usa o espaço público? - A maioria usa para lazer, descanso e fluxo. Que lugares abertos você costuma frequentar em Campo Grande? - A própria rua ou quadra onde reside. - Parque dos poderes. - Praças, gramados, obras abandonadas. - Orla Morena. - Aeroporto Demandas, opiniões e reclamações - Praças como Ary Coelho e Belmar são cercadas e fechadas, dificultando o uso. - A maioria reclama que a sociedade campo-grandense vê com estranhamento o uso do espaço público. - Muitos entendem a ocupação dos espaços abertos como um ato político de retomada da cidade pelo ser humano. Em geral, a pesquisa, sendo motivada pelas conversações estabelecidas por cidadãos anônimos, escancarou o limite do meio digital quando comparado com o ambiente urbano. Devida as configurações de bolhas de interesse ou sociais e a monetização das redes sociais o meio virtual se tornou muito pouco orgânico, assim se tornando muito propício a criação de uma inércia no discurso. Por exemplo: Um adesivo colado em uma praça ou em um local como o Centro de Belas Artes tem um alcance de um público não necessariamente maior, mas muito mais diverso. Nas redes sociais um post pode chegar a muitas pessoas porem ele já é direcionado por algoritmos para que encontre pessoas interessadas no assunto. Essa ferramenta pode ser muito útil se o intuito do post é atingir um público específico, porém não é isso que interessa a essa pesquisa. Essa discussão se torna necessária uma vez que os resultados obtidos pela pesquisa não trouxeram nenhuma surpresa, pelo contrário, um recorte de um meio social escolarizado, muitas vezes acadêmico, majoritariamente de classe média no qual o pesquisador está inserido. Deleuze e Guattari propõe em sua busca por atingir a multiplicidade um mergulhar na diferença. O espaço comum é o terreno da multiplicidade, o terreno da diferença. Pela rua andam pobres, ricos, negros, brancos, pardos, asiáticos
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Figura 49: Diversas respostas. Fonte: Acervo do autor, 2020
OQUE VOCÊ GOSTARIA QUE TIVESSE AQUI?
QUAL O SEU LUGAR PREFERIDO NA CIDADE?
OQUE VOCÊ MAIS GOSTA NESSE LUGAR?
DEIXE UMA LEMBRANÇA AQUI!
Figura 50: Novos adesivos Fonte: Acervo do autor, 2020 Figura 51: Novos adesivos e anúncios nas redes sociais Fonte: Acervo do autor, 2020
DESENHE OU ESCREVA ALGO AQUI!
ONDE VOCÊ VAI PARA RELAXAR?
e indígenas, andam artistas, sapateiros, cozinheiros, vendedores e advogados, andam pessoas de todos os gêneros e orientações sexuais. As redes sociais se tornaram um mero estrato. Um recorte, um aglutinado do que Deleuze e Guattari (1996) chamariam de um rosto social. Se quiserem entender os espaços-movimentos os arquitetos devem se perguntar o que acontece quando as mil e uma formas de cidadão descobrem que o espaço público é seu. O dado mais importante dessa pesquisa sem dúvida foi a listagem de locais interessantes onde o experimento final pudesse ser realizado. Assim passada essa etapa teste, os adesivos são adaptados para se relacionarem bem a diversos espaços da cidade e estimular ainda mais essa interação cidadã. Além dessa adaptação surgem os adesivos que possuem questionamentos e espaços para respostas. A grande diferença esperada da pesquisa online é justamente a potência da multiplicidade advinda da cidade. A interação dos frequentadores do Centro Municipal de Belas Artes abandonado trouxe reflexões de todo o tipo a partir de sua forma aleatória. É essa multiplicidade e espontaneidade que interessa a uma pesquisa busca contrapor uma positivação. Se buscamos entender uma cidade que cresce como a grama (JACQUES, 2011), como um rizoma, precisamos adotar uma abordagem que respeite esse movimento. Assim que os adesivos foram produzidos o pesquisador, novamente em suas redes sociais, anunciou que interessados poderiam receber adesivos gratuitamente (Figura 51). Também foram oferecidos adesivos a coletivos, espaços e grupos artísticos que tem em seu DNA o uso do espaço urbano. Foram eles: - Coletivo Bici nos Planos - Coletivo Massa Crítica - Campo Grande Barber Shop - Slam Carmélias - Slam Campão - Teatro de Rua Imaginário Maracangalha O pesquisador entrou em contato com essa mensagem: “Oi tudo bem? Eu sou o Eduardo, estou concluindo minha graduação em arquitetura e urbanismo pela UFMS. Meu Trabalho de conclusão de curso consiste em uma série de intervenções urbanas efêmeras, que convidam as pessoas a refletir sobre o espaço comum da cidade. Estou na reta final do trabalho e agora pretendo convidar alguns coletivos e indivíduos ativistas que tenham a cultura da apropriação e uso do espaço da cidade como característica da sua atuação. São ciclistas, exploradores urbanos, artistas de rua, cidadãos. Por isso, convido vocês a participarem do experimento. O envolvimento é bem simples. A ideia é “tagear” a cidade com adesivos, convidando as pessoas a escreverem algo. Eu vou dar os adesivos para vocês e peço que, num dia durante um percurso que vocês já planejaram, vocês colem em algum lugar na cidade que julgarem interessante. Pode ser voltando do trabalho, saindo pra caminhar, num rolê de bicicleta… A ideia é que não atrapalhe o seu dia a dia, que esteja inserido na sua rotina. Os adesivos têm frases e perguntas relacionadas a pauta do uso do espaço urbano, da relação afetiva para com esse espaço e do di-
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reito à cidade. Depois que o adesivo foi colado, peço apenas que a pessoa que colou poste uma foto com a #cidadejogo, para que eu possa ter acesso ao conjunto de todas essas imagens. Também peço que me envie essa foto e a localização do lugar onde você colou. Essas informações compõem uma cartografia da cidade, orgânica e sensível. Se você se interessou, por favor, peço que responda essa minha mensagem pra combinarmos a entrega dos adesivos. E para saber mais dos experimentos anteriores e ver os adesivos, você pode acessar aqui [https://www.instagram.com/p/CFala5_B5ko/?utm_source=ig_web_copy_link ] e aqui [https:// twitter.com/azevedudus/status/1308581765435527169?s=20] ) Valeu! Dos seis grupos contatados apenas três participaram do projeto, sendo eles os coletivos voltados ao ciclismo, Bici nos Planos e Massa Crítica, e o grupo de barbeiros e tatuadores skatistas Campo Grande Barber Shop. Esses grupos receberam adesivos entregados pelo pesquisador. Diversas outras pessoas também entraram em contato pedindo adesivos devido a divulgação nas redes sociais. Em síntese o experimento se dividiu em duas frentes, uma espontânea e coletiva, protagonizada pelos coletivos e pessoas voluntários, e outra pelo pesquisador. Os participantes espalharam pela cidade de forma orgânica os adesivos durante o seu dia a dia. Os adesivos que eles receberam seguiam a mesma lógica dos do experimento 3, frases, setas, adesivos vazios. Esse experimento coletivo permitiu uma grande capilarização do projeto pela cidade de Campo Grande, atingindo um número muito maior de regiões do que se o experimento fosse realizado unicamente pelo pesquisador. Por exemplo, uma das participantes, Karen Freitas, fotógrafa local, membra da Central Única das Favelas de Campo Grande, espalhou os adesivos pela periferia. (Figura 52) A participante também fez o seguinte relato via What’sapp: Mudou meu dia e minha relação com o lugar, foi um experimento massa. Foi legal ver quem passava na frente ler o que estava escrito e interagirem comigo inclusive dizendo “é.. lixeira falta aqui mesmo”.
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Lucas Caneca, arquiteto e urbanista, foi outra pessoa que se interessou peadesivos. Seu percurso de errância e colagem gerou os seguintes apontamentos: Chamar atenção pra algo que via de regra tá passando desapercebido é bem legal. Eu já tinha na cabeça locais problemáticos da cidade e agora fico tentando juntar eles às intervenções adesivas que cê tá propondo.
Já Eduardo Lorenz, barbeiro no Campo Grande Barber Shop relatou que: Foi super legal. Achei interessante ver as reações das pessoas ao verem o ato do adesivo sendo colado. Umas pessoas ficavam desconfiadas, outras olhavam como se fosse um ato de vandalismo. Foi legal ver que até o simples fato de colar um adesivo causa sentimentos nas pessoas. Além disso, a procura pelo lugar ideal, pra colar os adesivos, me fez olhar o meu trajeto de outra forma, fiquei imaginando outras formas que aqueles lugares poderiam ter. lugares que julguei muito mal projetados, onde as pessoas usam de uma forma forçada, por n ter outra opção, tipo as ciclovias que são utilizadas como pistas de caminhada.
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Figura 52: Intervençþes de Karen Freitas Fonte: Karen Freitas, 2020
Figura 53: Intervençþes de Eduardo e Carol respectivamente. Fonte: Eduardo Lorenz e Carol Sanson, 2020
Figura 54: Intervençþes de Michele Andrade Fonte: Michele Andrade, 2020
Carol Sanson, estudante de Arquitetura e Urbanismo na UFMS, também deixou seu depoimento: Eu curti bastante. Tirei um tempo pensando onde ia colar antes de sair. Faz você analisar a cidade de forma diferente. E acho que quem se deparar com eles também vai passar a perceber o espaço de um jeito um pouco diferente. Ao mesmo tempo o pesquisador espalhou os novos adesivos com perguntas e espaço para respostas (Figura 50) em locais chave decididos com base na pesquisa feita nas redes sociais. Sendo eles: - Centro (Praças Ari Coelho, Rádio Clube e dos Imigrantes e entorno) - Orla do Aeroporto - Parque dos poderes e Soter - Orla Morena Durante uma semana o pesquisador visitou esses espaços para colar os adesivos (Figura 54). Uma constatação interessante surgiu durante o percurso de colagem dos adesivos na região central da cidade, que trouxe reflexões sobre a tensão entre a gestão do espaço pelo estado e a ocupação espontânea dele discutida nos capítulos um, dois e três. Na região das Praças Ari Coelho e Rádio Clube, próximas a rua 14 de julho, uma das principais vias de Campo Grande que foi reformada recentemente, existe, devido a reformar e uma tentativa higienista de preservação de uma cidade segura e sem “problemas”, uma constante presença de policiais andando em duplas ou trios. Durante o percurso de colagem, eu e minha parceira de deambulação, Vitória dos Reis, começamos a receber constantes olhares de uma senhora. Não muito tempo depois passamos a ser seguidos por um grupo de policiais e fomos coagidos a deixar o local. Já na Praça dos Imigrantes, longe da Rua 14 de julho, a presença policial era inexistente, não por coincidência a colagem dos adesivos foi um processo tranquilo. 150 anos se passaram desde a Reforma de Paris, o fantasma de Haussmann, entretanto, continua presente. A editora Sobinfluência de São Paulo, próxima a temática situacionista, tem um lema interessante: “Ler e caminhar podem salvar sua vida ou te levar para a cadeia.” Seja por qual ótica se escolha para fazer a leitura, se Deleuze e Guattari ou Guy Debord, ali está, o Aparelho Estatal como um gestor da reprodução de corpos dóceis, de cidadãos turistas. Colar adesivos, por mais inofensivo e pequeno que o ato seja, se tornou algo perigoso. Esse acontecimento deixou claro também que o Experimento “Eu sou um lugar!” só foi possível porque teve como terreno de jogo um espaço abandonado pelo poder público. Não é à toa que Paola B. Jacques (2011) e Raquel Rolnik (2017) enxergam que as favelas e as ocupações, nas grandes cidades, hoje, representam a resistência por uma cidade mais humana. Um espaço humano é um espaço-movimento, um espaço comum, infelizmente ele só parece possível longe da gestão estatal atual. O grande desafio do século XXI para o arquiteto e urbanista, ou melhor, para o arquiteto urbano, será como ocupar esses espaços de poder e políticas públicas para que seja possível o desenvolvimento de um urbanismo que não seja uma tomada capitalista do espaço humano, mas um aprimorador desse espaço. Outra constatação interessante foi a diferença entre a quantidade de intervenções por cidadãos anônimos. Apesar de acontecerem as intervenções foram bem mais escassas do que as encontradas no Centro Municipal de Belas Artes. Pesquisador e orientadora chegaram a conclusão em discussão que muito provavelmente essa diferença tenha ocorrido justamente pela diferença da
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Figura 55: Diversas cenas do experimento. Fonte: Acervo do autor, 2020
Figura 56: Eu te amo poste Fonte: Acervo do autor, 2020
natureza do tipo de pessoa que frequenta o Centro abandonado e um cidadão que está transitando pela cidade. Muito raramente se leva uma caneta a cidade. Entretanto, cidadãos que frequentam espaços abandonados no intuito de se apropriar dele, muitas vezes ligados ao graffiti, a arte de rua, levam consigo materiais de desenhos e escrita, o que pode te possibilitado uma maior interação. Porém algumas interações interessantes ocorreram. A mais memorável sem dúvida uma frase escrita em um dos adesivos, colado na Orla Morena, que carregava o convite “Deixe uma lembrança aqui”. Alguns indivíduos deixaram ali a frase “Eu te amo poste”, juntamente com suas assinaturas. Muito provavelmente uma piada, porém uma declaração interessante para com um mobiliário urbano. (Figura 55)
Como um meio de cartografar o alcance do projeto na cidade, o pesquisador utilizou a ferramenta MyMaps do Google para a criação de um mapa onde estivesse registrado o percurso dos dois experimentos iniciais, a localização dos adesivos que restaram do experimento “Eu sou um lugar” e os novos adesivos do experimento 4.O link para o mapa com as localizações precisas dos adesivos é [https://www.google.com/maps/d/u/2/edit?mid=1zEc74CQg97Kr1rcVCPJEl_8NftQ7wGVU&usp=sharing]. Pata facilitar a visualização o pesquisador elaborou um mapa síntese (Figura 56) das atuações da pesquisa na cidade de Campo Grande. Nesse mapa algumas visadas aproximadas dos espaços visitados pelo pesquisador no experimento 4 foram alocadas. Essas visadas entretanto, fogem na representação técnica e representam um meio termo entre mapa e psicogeografia, contando com uma aproximação do trajeto percorrido pelo pesquisador durante a colagem dos adesivos. Concluindo, durante a realização do experimento 4 o projeto se esparramou pelo mapa de Campo Grande. E vai continuar se espalhando mesmo ao fim dessa pesquisa. Seja pelos exploradores voluntários que ainda estejam munidos de adesivos ou de pessoas interessadas em imprimir adesivos (cujo projeto estará aqui e nas redes sociais so pesquisador, disponibilizado gratuitamente para impressão) e iniciar suas explorações. Use o Link, ou scaneie o QR Code para fazer o download dos adesivos: [https://1drv.ms/u/s!AnO_4LBSZt7LgstRGDV2-z56jvGxlg?e=xHsm8g]
Figura 57: QR Code para download dos adesivos. Fonte: Acervo do autor, 2020
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Figura 58: Mapa SĂntese Fonte: Acervo do autor, 2020
Figura 59: Aproximações psicogeográficas das colagens do autor. Fonte: Acervo do autor, 2020
CONCLUSÃO O rizoma, mais uma vez, não tem começo nem fim. A cartografia, entretanto, é um acompanhar desse processo espontâneo. Um percurso, um caminhar pela complexidade do território da relação entre subjetividade e espaço. Um platô, nesse território infinito. Essa pesquisa se fecha, porém, seu recorte, um emaranhado de leituras, filmes, caminhadas, intervenções e observações marcam para o pesquisador um movimento. Inicia-se essa pesquisa em um local, terminasse em outro. Esse grande processo de desterritorialização trouxe aos envolvidos um jeito diferente, mais próximo e talvez mais assertivo de se entender a cidade. Arquitetos e urbanistas deveriam ser os pensadores do espaço. Entretanto, como visto no capítulo dois, nos tornamos meros espectadores do processo que chamamos aqui, com base nos estudos de Caio Vassão, de positivação dos espaços. Essa é uma realidade que incomoda pesquisador e orientadora e é nesse sentido, que essa pesquisa desterritorializa ambos. Tira o pensamento desse lugar incomodo, e de certa forma reativo, e o joga em um percurso errático de busca por uma outra coisa. Uma outra atuação para o arquiteto e urbanista. Uma atuação que respeite e esteja à altura de um campo do saber, da cultura de projeto. Seja a estética, a linguagem, a ética e a arte, os saberes, esses aglomerados humanos, complexos, cheios de caminhos diferentes, e de pensadores com ideias diferentes são explorados, ao longo da história da humanidade, com grande exercício de pensamento. Pensamento teórico aplicado a prática. Pensamento que respeita a complexidade dos campos explorados. Reduzir a arquitetura e urbanismo ao tecnicismo, a construção civil, a neutralidade é anunciar a entrega do espaço humano aos interesses, ao mercado, a politicagem, ao capital e por fim é faltar com a ética da profissão que deveria ler, entender e projetar para o ser humano. No fundo, é esse campo que essa pesquisa explorou. Uma nova ética para um arquiteto, um novo arquiteto para um campo que grita por ser explorado, entendido e bem administrado. Um campo complexo onde cada peão movido no tabuleiro afeta um número enorme de indivíduos. E é por isso que ele não pode ser gerido como um jogo de xadrez. Mas como o Gô, como a grama, respeitando a sua natural multiplicidade. Por mais banal e efêmero que seja caminhar, colar adesivos, essas micro intervenções, guiadas por uma filosofia do micro, trouxeram um entendimento gigantesco político, social e por conseguinte projetual para o pesquisador que produziu esse trabalho para concluir o curso de Arquitetura e Urbanismo. Por essa perspectiva essa pesquisa é um fim de percurso, um processo foi acompanhado por seis anos, um percurso foi traçado. Descobertas foram feitas, portas foram abertas e fechadas, e a conclusão final é que a cidade é uma bagunça. Para entendê-la e melhor projetá-la deve-se olhar para essa bagunça, mergulhar nela, entender os seus fluxos e tratá-los e direcioná-los com cuidado e carinho. Arquitetos e urbanistas precisam ser menos como paisagistas e mais jardineiros, precisam se enxergar mais como psicólogos da cidade do que projetistas dela. Em suma, arquitetos e urbanistas precisam caminhar mais.
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