SteamPunk Magazine #1 Incompleta

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Colocando o Punk de volta no SteamPunk Estilo de Vida, Ciencia, Teorias & Ficção


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Colocando o Punk de volta no SteamPunk Estilo de Vida, Ciencia, Teorias & Ficção


Ao contrário do que dizem as palavras doces dos cavalheiros, esta Era Imperial é uma pestilência que assola todos os continentes e almas, através de um colonialismo manifesto ou implícito. A classe dominante desce de suas construções de pedra vagando cegamente, entre miseráveis, a caminho da ópera após um dia cheio, gasto no planejamento de guerras além mar; e a despeito destes cavalheiros serem ótimos em impor a nova ordem mundial, são igualmente eficientes em “colonizar” donas de casa. Enquanto sua atenção está voltada para fora e conspiramos de dentro da barriga da besta. Descontentes com as maquinações complexas do Estado Imperialista, construimos um sistema de cooperação e economia. Fartos da fome a nossa volta, cobramos dos mais abastados. Cansados de jogar o jogo de Servo e Senhor, trabalhamos apenas como amigos e amantes. Nos olham estupefatos quando, abordados pelos jornais, lhes dizemos de coração aberto: “Morte ao Império! Não mais nos acovardaremos; somos todos da nobreza! Sua colonização de corpos e mentes é um ato de guerra!”

- Erica A. Smith, sobre A Situação Política de Nossa Era


edição #1 Colocando o Punk de volta no SteamPunk É com grande satisfação e alegria que lhe dou as boas vindas, querido leitor, a primeira edição da SteamPunk Magazine. Você tem em suas mãos (ou vê em sua tela) o produto do trabalho volutário de um série de pessoas. Nosso orçamento era literalmente zero. Uma das metas desta revista é trazer a cultura SteamPunk para fora da rede, um passo que consideramos importante para sua popularização. Queremos que o SteamPunk seja mais que um blog ou um website. Queremos que o SteamPunk seja mais que uma revista; o imaginamos como um meio de vida. E mesmo respeitando a Internet - como ferramenta útil - percebemos que - como toda ferramenta - ela acabou se tornando um monstro em si mesma. Revistas são veículos em extinção e somente as revistas de consumo de massa, orientadas a propaganda sofisticada, estão sobrevivendo sem maiores problemas. E - não elevando as revistas em um pedestal - junto com a morte do meio físico vem também a falta da “cultura física”. Dificilmente conceitos novos são apresentados face-a-face e é raro o debate em pessoa. E é justamente a natureza física do SteamPunk que nos atraiu. Amamos máquinas que podemos ver, sentir e da qual podemos ter medo. Somos fascinados por artefatos e muito pouco impressionados pela alta-tecnologia. De um modo geral, percebemos o mundo moderno entediados até às lágrimas e dizemos “Não obrigado. Prefiro que haja árvores, pássaros e engenhocas mecânicas monstruosas ao descaso auto-centrado que tem como conseqüência a falta de diversidade.” Nesta revista o leitor vai encontrar algumas peças que são fruto de pensamento político radical. Dentre elas “A Coragem de Matar um Rei”, um ensaio que explora o período no tempo em que anarquistas eram afeitos ao assassinato político. Achamos, portanto, importante declarar que esta peça não representa necessariamente a visão de quaisquer dos demais colaboradores ou da equipe editorial da revista. É o lado “punk” do SteamPunk que é controvertido, claro, e é com este lado punk do SteamPunk que a equipe editorial está comprometida. Esperamos, contudo, fornecer uma variedade de material que seja do interesse de uma audiência relativamente diversificada. Um pouco contraditório, talvez, mas acreditamos que tenhamos conseguido equilibrar bem o conteúdo. Estamos sempre abertos a receber correspondências e planejamos incluir uma seção de cartas na segunda edição. Adicionalmente devemos lembrar que somos uma revista orientada a colaboradores: todo nosso material nos é enviado para apreciação. Espero que goste da revista. E, se não gostar, colabore enviando algo que prefira ver!

- Margaret P. Ratt


Sumário Ficção

A Mãe dos Despossuídos...........................................................10 por Anon Yena of Angeline and the Tale of the Terrible Townies.......22 por Margaret P. Killjoy An Unfortunate Engagement....................................................42 por G. D. Falksen O Barão.........................................................................................56 por Jimmy T. Hand

Entrevistas

Michael Moorcock......................................................................20 escritor Abney Park...................................................................................32 banda Thomas Truax..............................................................................52 cantor/compositor Darcy James Argue......................................................................64 compositor

Destaques Mas então o que é Steampunk...................................................4 colonizando o passado de forma que possamos sonhar o futuro O Pirofone....................................................................................6 órgãos flamejantes Harmônica de Vidro....................................................................8 um instrumento de vidro, dedos e engrenagens Entalhe Eletrolítico.....................................................................36 escrevendo no bronze de forma permanente A Coragem para Matar um Rei..................................................48 gaetano bresci & regicide Variedades de Experiências SteamPunk...................................60 steampunk nostálgico versus melancólico Terra, Mar & Céu.........................................................................68 detalhes acerca de um texto de história natural datado


O que, então é o SteamPunk?

Colonizando o Passado para que possamos Sonhar com o Futuro

da Catastrophone Orchestra and Arts Collective (NYC)

Steampunk é re-visionar o passado com percepções hipertecnológicas do presente. Infelizmente, a maior parte do chamado “steampunk” não passa de revestimento, nostalgia recriativa: os enfumaçados salões de chá dos imperialistas Vitorianos e os desbotados mapas da arrogância colonial. Esta forma de passado recente tonalizado em sépia é mais adequada à Disney e avós suburbanos que a uma cultura ou filosofia vibrante e viável. Primeiro e mais importante, steampunk é uma crítica não ludista à tecnologia. Rejeita a distopia ultra-avançada cyperpunk— uma postura que mistura niilismo e chuva radioativa—e ao mesmo tempo descarta a fantasia do “selvagem nobre” da era pré-tecnológica. Celebra a realidade tecnológica concreta ao invés do abstracionismo cibernético super-analítico. Tecnologia a vapor é a diferença entre o cientista louco e o nerd; as máquinas steampunk são partes reais, respirantes, pigarreantes, combatentes e ruidosas do mundo. Não são fadas de algoritmos matemáticos intelectuais e vaporosas mas grandiosas manifestações de músculos e mente, a eugenia feita de sangue, suor, lágrimas e delírios. A tecnologia do steampunk é natural, se move, vive, envelhece e até morre. Steampunk, aquele cientista louco, recusa-se a ser cercado pelas sempre crescentes jaulas da especialização. Leonardo DaVinci é a pedra de toque steampunk; um amontoado de linhas entre a arte e a engenharia, função e beleza constituída mutualmente dependentes. O autêntico steampunk busca tomar as rédeas da tecnologia dos tecnocratas que drenam suas qualidades tanto reais quanto artísticas, que subjulgam monstros tecnológicos vivos transformando-os em risíveis servos da comodidade sem sentido.

Formamos com os traidores do passado enquanto buscamos crimes impossíveis contra nosso presente.


O autêntico Steampunk não é um movimento artístico mas sim um movimento estético-tecnológico. A máquina deve ser liberada da eficiência e desenhada pelo desejo e sonho. A elegância da engenharia otimizada deve ser substituída pelo ornamento necessário à verdadeira funcionalidade. Imperfeição, caos, sorte e obsolescência não devem ser visto como falha, mas como meio de libertar a espontaneidade da predizível perfeição. Steampunk destrona a fábrica de inconsciência através da beleza entrópica, criando um contínuo paradoxo entre o prático e o belo. Este sonho vivo de tecnologia não é mestre nem escravo, mas sim parceiro na exploração do inescrutável território que reúne ambos arte e ciência. Steampunk rejeita as míopes políticas impregnadas de nostalgia tão comuns às culturas “alternativas”. Nossa cultura não é a do Neo-Vitorianismo, da etiqueta estupefaciente e nem de longe do escapismo do clube de cavalheiros ou da retórica classista. É a fada verde do delírio e da paixão, desagrilhoada de sua garrafa, espalhada pelas engrenagens brilhantes da fúria. Procuramos inspiração nas alamedas entupidas de fumaça do opaco Império Vitoriano. Encontramos solidariedade e inspiração nos grafiteiros com punhos sujos de tinta, em mulheres cansadas de apanhar que por nada se rendem, nos eflúvios que escapam dos telhados juntando-se ao circo fazendo-nos tossir e nos amotinados que tornaram-se nativos e entregaram as ferramentas dos mestres àqueles mais preparados para usá-las. Estamos inflamados pelos trabalhadores de docas do mondocane que incendeiam a Prince Albert Hall e apaixonados pelos rituais negros da Ordo Templi Orientis. Formamos com os traidores do passado enquanto buscamos crimes impossíveis contra nosso presente. Muito do que se passa por steampunk nega o punk, em todas as suas formas. Punk—o pavio usado para acender fogos de artifício. Punk—o oprimido e sujo. Punk—a agressiva ética faça-você-mesmo. Nos levantamos dos ombros cansados dos aditos de ópio, dândis estéticos, inventores de máquinas de moto perpétuo, amotinados, mascates, jogadores, exploradores, loucos e fêmeas intelectuais. Rimos dos experts e consultamos tomos de possibilidades carcomidos pelo mofo. Escarnecemos as utopias esperando as novas ruínas se revelarem. Somos uma comunidade de magos mecânicos encantados pelo mundo real e carregados pelo mistério da possibilidade. Não temos o luxo das amenidades ou polidez; estamos reconstruindo o ontem para garantir nosso amanhã. Nossos coletes estão furados de alfinetes de segurança e nossas cartolas escondem viciosos topetes moicanos. Somos chacais fashion correndo selvagens pela alfaiataria. Ele vive! Steampunk vive no passado coletivo reincarnado das sombras e alamedas esquecidas. É um maravilhoso gabinete histórico que promete, como o do Dr. Caligari, acordar o sonâmbulo do presente para a realidade de sonho do futuro. Somos os arqueologistas do presente, reanimando uma história alucinante.



OÓrgão Pirofone Termo-Acústico Flamejante da Perdição! ilustração por Ika

Em 1869, um cientista e músico chamado George Frederic Kastner pôs chamas em tubos de vidro para ver o que aconteceria. E vejam só – som emergiu do outro lado. Na versão aperfeiçoada (pelo próprio), o som surgia quando dois jatos de gás flamejante se separavam, e desaparecia quando eles se juntavam novamente. Nós não fazemos a menor idéia de como funcionava, mas ele conectou os jatos de gás a um teclado e o chamou de “pirofone”, ou “órgão de fogo”. Mas existe um método mais simples de se fazer música termoacústica, and nós até temos a audácia de chamá-lo de pirofone. Uma única chama, quando colocada dentro de um tubo, causa uma diferença de temperatura, que faz o ar “oscilar” – fenômeno que nós percebemos como som. E que som! O ataque é lento e a nota se constrói durante um ou dois segundos, com harmônicos pronunciados na oitava. Podemos ter um som sintetizado belo sem usar idéias antiquadas como “eletricidade”, e o tamanho de um pirofone é limitado apenas pela imaginação e pela fonte de calor. A forma mais simples de ouvir um pirofone é adquirir um tubo de metal (com 3 a 5 cm de diâmetro) e uma tocha de propano. Acenda a tocha e ponha o bico dentro do tubo. Rapidamente um som irá surgir. Rapidamente, também, a segurança irá chegar – se você ainda estiver dentro da loja!

Afinar os tubos também será difícil. Para alguém que esteja mais interessado em experimentação do que música pop, há uma solução simples: não afinem. Apenas arrume tubos de comprimentos diferentes. Tubos mais longos = tons mais graves; tubos mais curtos = tons mais agudos. Mas se você quiser harmonizar com o resto do mundo, você terá que afinar os tubos. Um tubo tem sua ressonância a uma certa freqüência, dependendo se ele é aberto de ambos os lados ou em apenas um. Nós estamos supondo que o nosso pirofone é composto apenas por tubos abertos de ambos os lados. A freqüência de ressonância de um tubo é uma função do comprimento e do diâmetro do tubo e da velocidade do som. Infelizmente para nós, piromaníacos, a velocidade do som muda com a temperatura. Fizemos algumas experiências para determinar o tom de tubos diferentes com comprimentos diferentes. Parece que a velocidade do som muda em nossos tubos, mas não muito (aproximadamente 407 a 413 m/s). Esta tabela fornece alguns guias – fogo é uma força caótica, e nós não experimentamos tanto quanto gostaríamos. Não espere que isso funcione! Sobreestime bastante o comprimento e então afine encurtando o mesmo. NOTA

f2

L’3

L=comprimento (m)

C

130.8

1.567

Mas para um pirofone multitonal, dois problemas têm de ser resolvidos: o método de aplicação do fogo aos tubos, e a afinação dos mesmos.

L’=comprimento efetivo (m)

C#

138.6

1.479

d=diâmetro (m)

D

146.8

1.396

t=temperatura (ºC)

D#

155.6

1.317

O método mais simples de aplicação de fogo é o uso de tochas de propano à mão. Limitado por ter duas mãos, você terá de encontrar um amigo para formar acordes com três ou quatro notas, mas vários tipos de sistemas mecânicos (ou, ok, ok, elétricos) podem ser desenvolvidos para controlar os jatos de chamas. Um sistema mecânico poderia direcionar o input de teclado para válvulas e isqueiros posicionados abaixo dos tubos.

f=freqüência (Hz)

E

164.8

1.243

v=velocidade (m/s)

F

174.6

1.174

Um músico notou que velas não eram quentes o suficientes, e que a chama de bicos de bunsen eram puxadas para fora da sua fonte de gás pela convecção dentro do tubo. A solução recomendada foi um “Fisher Burner”, um equipamento de laboratório que possui uma grelha sobre a fonte de calor.

F#

185

1.108

Velocidade do Som (v)

G

196

1.045

v=331.6+6t

G#

207.7

0.987

A

220

0.932

Comprimento Efetivo (L’)

A#

233.1

0.879

L’=L+.3d

B

246.9

0.830

C

261.8

0.783

Comprimento (L) L=((v/f)/2)-.3d 1- Se você entender não deixe de nos informar. 2 - Para determinar a freqüência de uma nota em uma oitava abaixo, divida a nota ao meio. Para aumentar uma oitava, dobre-a. 3 - O Comprimento Efetivo foi calculado usando v = 410 m/s, a média de nossos experimentos.


“Armônica” de Vidro

O Coral Mecânico-Acústico Diabólico de Benjamin Franklin “If Chimes could whisper, if Melodies could pass away, and their souls wander the Earth… if Ghosts danced at Ghost Ridottoes, ‘twould require such Musick, Sentiment ever held back, ever at the edge of breaking forth, in Fragments, as Glass breaks.”

– Thomas Pynchon


Coral de Serafins Diabólicos Apesar de não ser o primeiro cristalofone, Benjamin Franklin leva o crédito pela invenção deste belo instrumento em 1761. É possivelmente o primeiro instrumento inventado por um americano, e antecede a Hharmônica (ou gaita, que apesar do nome parecido é completamente diferente) em 60 anos. O instrumento de Franklin é uma melhora em relação ao Seraphim, um sistema de copos de vinho afinados pela quantidade de água dentro deles. Você já deve saber que se alguém passa um dedo úmido pela borda de um copo de vinho, uma nota musical única e clara é produzida. A coisa mais surpreendente sobre a harmônica de vidro é – ironicamente – a falta de harmônicos. Apesar de alguns músicos terem aprendido a criar notas hharmônicas, vidro em geral dá uma nota impressionantemente pura. Franklin arrumou 37 bacias horizontalmente em um fuso, separadas por uma rolha. Um simples pedal alimentava a roda que girava a todas, e múltiplas bacias podiam ser tocadas ao mesmo tempo, permitindo ao instrumentista criar acordes com a “voz dos anjos”. Ainda assim, apesar do instrumento ter ganhado aceitação – entre outros, Mozart o incluiu em peças orquestrais – ele saiu de circulação por volta de 1810. Veja bem, a Harmônica era mais que um instrumento musical. O Dr. Franz Mesmer (de onde vem o verbo inglês “mesmerize”, que significa “fascinar”) usava as bacias cantantes em seus tratamentos médicos. A coisa começou a degringolar quando as pessoas tiveram a idéia brilhante de que a Harmônica era algo sobrenatural – e, conseqüentemente, maligno. Insanidade, convulsões, disputas matrimoniais, mortes e até mesmo os mortos levantarem das tumbas foram atribuídos a sua voz angelical. Sua popularidade nunca cresceu novamente. A construção de uma Harmônica provavelmente será difícil. A montagem do

aparato para girar as bacias em si não seria complexo, mas casar o tamanho das bacias com as notas específicas seria. Mas nem tudo está perdido: várias harmônicas de vidro originais foram afinadas cortando-se bacias – quanto mais rasa, mais aguda a nota. Não parece um feito impossível pegar várias tigelas de vidro (de segunda mão) a afiná-las dessa forma. Infelizmente, a física de como melhor predeterminar a afinação de uma tigela estão bem além da alçada deste artigo (e deste autor), então sugerimos simplesmente tocar uma tigela em um afinador e ir a partir daí. As Harmônicas originais foram feitas de vidro a base de chumbo, mas Harmônicas modernas são geralmente feitas com vidro de quartzo. Alguns colecionadores insistem que isso muda o tom, mas nós de espírito faça-você-mesmo vamos trabalhar com o que temos disponível.

Benjamin Franklin se recusou a patentear o instrumento, e fez uma poderosa declaração contra as tiranias de propriedade intelectual que temos hoje: “As we enjoy great Advantages from the Inventions of others we should be glad of an Opportunity to serve others by any Invention of ours, and this we should do freely and generously.” (“Uma vez que temos tantas vantagens com as invenções de outros, nós deveríamos ficar felizes com a oportunidade de servir a outros com qualquer invenção nossa, e isso deveríamos fazer de forma livre e generosa.”)



~ ’ A Mãe dos Despossuidos

Uma História Sazonal de Inverno Desenhada para Educar e Ilustrar Ilustrada por Nick Kole 26 de Dezembro de 188?, Nova Iorque no Inverno Dia de encaixotamento era um dia da família, de celebração e de dar presentes - para os ricos, quer dizer. Para os residentes dos muitos lixões de Nova Iorque, este era apenas mais um dia congelante. Os únicos presentes que receberiam seriam aqueles que tomaram para si mesmos. O professor Calamity estava em sua quinquagésima hora sem sono, mas sua companheira meio louca, Mathilda, sabia o que o fazia tremer; não eram as noites sem sono. Ela já o vira trabalhar por mais de quatro dias em Bellevue sem dormir, enquanto ardia o brilho do laudano durante os dias tumultuados das manifestações. Agora ele mal conseguia manter as mãos firmes para remover a carne calcinada das meninas polonesas aterrorizadas que jaziam no chão de sua clínica de terceira. Neal - seu parrudo assistente que trabalhara como ferreiro - distribuiu números para as moças semi-conscientes como se elas estivessem em uma fila de padaria. Ele tentava dar números mais baixos para todos os casos mais graves, mas para seus olhos pouco treinados de trabalhador braçal, cada caso parecia tão ruim quanto os demais. Enquanto o doce gigante distribuía as senhas, Pip, o segundo assistente, verificou as costureiras inconscientes procurando por trocados para comprar o ópio do Professor. Apesar de apreciar os ideais de uma clínica gratuita, Pip sabia que Calamity precisaria de algum aditivo químico para aguentar a longa noite de trabalho. A clínica imunda e abarrotada estava sempre barulhenta, fedorenta e imersa no caos. Incêndios eram sempre os piores eventos e se tornavam cada vez mais comuns no Lower East Side; a maior demanda por tecido durante os anos de guerra criaram demanda por fabriquetas de fundo de quintal por toda baixa Nova Iorque. Agora, com os horrores da guerra imergindo no desespero da Depressão, estas pequenas fábricas se tornavam um barril de pólvora cada vez mais requisitado; donos, desesperados por espremer o máximo de lucro que podiam em vinte e quatro horas, apinhavam o espaço de trabalho com mais e mais máquinas no abarrotado e pouco ventilado pátio. Sempre com suspeitas contra a desonestidade e maquinações dos seus empregados imigrantes, os proprietários passaram a trancar as portas durante o dia para se assegurar de que as meninas permaneciam em suas máquinas e não afanavam nem um trapo. Não havia pausas para fumar e, portanto, as meninas - muitas delas adolescentes - permaneciam enclausuradas dentro dos muros do local de trabalho/prisão, fumando em suas posições. Cercadas pelas núvens inflamáveis de poeira de tecidos as fábricas se transformavam em infernos sufocantes o tempo todo.


Depois do bombeiro voluntário saquear o que pôde enquanto o prédio ainda ardia, os jornais iriam alardear que as costureiras eram culpadas pelas próprias mortes, que era injusto que a cidade tivesse de gastar um dólar e quarenta e cinco para enterrar cada criança em Potter’s Field. Enquanto isso, em suas salas de fumar, no Washington Square, os proprietários esperariam, ansiosos, pelos cheques do seguro. Aqueles que fossem sortudos o suficiente para sobreviver não podiam pagar os custos de médicos particulares e eram forçados a procurar os serviços comunitários do Professor Calamity - um nefasto médico de cabeça viciado em drogas - e seu bando de revolucionários. Três meninos de rua passaram por todo aquele caos da clínica super-populosa sem ser percebidos - uma habilidade aperfeiçoada nos becos sufocantes de Hell’s Kitchen. Puxaram para o lado a cortina rasgada que separava a “clínica” da baia do Professor Calamity. Mathilda se assustou com a intromissão das criança, fazendo um som assustador que congeloulhes o sangue nas veias. Ela ainda usava o luto elegante que sugeria ter sido tirado de algum dos internos do Bowery, mas seus cabelos desarrumados e olhos ensandecidos denunciavam os efeitos de sua insanidade. Ela investiu contra as crianças com as longas unhas afiladas. “Mathilda, meu anjo”, balbuciou Calamity, ignorando a intrusão e esfregando os olhos vermelhos, “Preciso de meu remédio.” O humor de Mathilda mudou instantaneamente de uma defensiva feroz para uma ternura exagerada quando se voltou para ele e enrolou a manga de sua camisa ensopada de sange. Ela achou a marca de agulha e injetou a recompensa do trabalho duro de Pip nas veias endurecidas de seu amante. “Vocês são Runts”, disse o doutor inebriado,

voltando os olhos vagamente para as crianças e dando um tapa na coxa nua de Mathilda, “e estão longe demais de Hell’s Kitchen, devo acrescentar.” Um dos dois rapazes empurrou a garota, o mais alto e mais velho dos três, para a frente. Ela chegou perto da cintura do desajeitado rapaz mas encarou os olhos vermelhos do médico e acalmou os nervos. “É a mãe. Ela está muito machucada”, ela disse, a voz tão suave que era quase eclipsada pelos gritos por detrás da cortina, “Ela precisa de um médico. Ela tem dinheiro.” “Não pode ver que ele está doente?!”, gritou Mathilda, e o médico se empertigou enquanto ela continuava, “Vocês acham, seus cretinos, que podem simplesmente invadir isso aqui?!” “Mathilda”, o professor interveio, “Está tudo bem. Deixe os Runts continuarem.” A garota reuniu sua coragem uma vez mais e cutucou um dos rapazes. “Temos dinheiro”, ela repetiu. O rapaz vestia uma túnica grande demais que caía-lhe sobre o rosto a medida que exibia umas poucas moedas de dentro de um de seus muitos bolsos. Ele as mostrava para Mathilda como se fossem ouro. “Há meninas morrendo lá dentro, e vocês estão perdendo nosso tempo com estas...” Mathilda empurrou a mão balouçante de Calamity para baixo de suas pernas novamente, longe de sua cintura e ajeitou o vestido preto. “Crianças, sinto muito informá-las, mas meu anjo noturno está certa. Houve um incêndio terrível no Wedemeyer Corsettery e não temos condições de lhes prestar ajuda. Mas, se vocês conseguirem convencer sua mãe a vir de West Side


para me ver, digamos em alguns dias, não consigo imaginar por que não a receberia. Tão certo como a chuva eu a veria, lhes prometo, nobres cavalheiros e dama. Peguem suas moedas e vão rápido para o Farmacêutico. Peguem umas pílulas com o Doutor Parker; não há dúvidas de que elas servirão de alento ao sofrimento de sua cara mãe até que ela venha até mim. Eu espero...” O monólogo de Calamity foi interrompido enquanto ele balançava a cabeça cobrindo os olhos com o braço. Mathilda se interpose entre ele e as crianças, empurrando-as para a sala principal. “Haverá um intervalo”, anunciou às costureiras agonizantes. “O médico está consultando seus livros e não verá ninguém por pelo menos mais uma hora.” Ela foi em direção a Neal para consultá-lo sobre os pacientes esperando, enquanto as três crianças desapareceram tão furtivamente quanto surgiram. Andaram por cima das jovens moribundas com queimaduras tão grotescas que mesmo Goya sentiria calafrios, mas suas mentes estavam ocupadas demais com preocupações por sua mãe. Eles já viram coisas piores, a despeito de sua idade. A crianças correram para a esquina do quarteirão, onde Tinder esperava por eles. Tinder era o mais velho dos Runts; ninguém sabia qual sua idade, muito menos ele mesmo, mas um buço começava a sombrear seu lábio superior. Esta penugem era seu maior orgulho. Tinder escutou a descrição que a menina fez de seu encontro com o professor, passando as mãos sujas pela túnica enquanto explicava sem fôlego. “Levaremos mamãe ao médico”, ele disse e então apontou para o magricelo, recém saído das fraldas, que o acompanhava. A criança puxou um

cigarro amassado de seu chapéu de trapos e passou para Tinder. “Ele não vai vê-la”, a menina choramingou, batendo o pé nos paralelepípedos. “Faremos ele atendê-la. Só temos de levar mamãe até ele”. Com isso Tinder terminou a discussão e se virou, tomando a frente das crianças menores pelo beco sombrio e de volta ao seu ninho. Os Runts não eram uma gangue de fato. Os Dead Rabbits, os Plug Uglies, os Mods e os Bowery Boys eram gangues. Os Runts não eram organizados como os Newsies, nem tinham os trejeitos de gangue de adultos como os limpadores de chaminés Five-Point. Não eram tampouco uma irmandade étnica como boa parte de Nova Iorque. Não tinham interesse em grupos políticos como Tammany Hall, os nativistas Know-Nothings, ou mesmos os anarquistas SteamPunk. Estavam mais para uma família, mesmo que uma família grande e pobre - pobre até mesmo pelos padrões da Hell’s Kitchen. Os Runts estavam por ali por pelo menos vinte anos e muitas personalidades famosas nas ruas foram Runts em seus primeiros anos, incluindo o pugilista Copper O’Conner e o herói de guerra Antonio Garlic. Os Runts habitavam - pois “viviam” seria um eufemismo inadequado - uma série de porões conjugados que outrora haviam sido depósito de alfafa dos estábulos da 35th Street. O fogo reclamara para si os estábulos e todas as sessenta e cinco carroças de feno. A Gothan Hack Association levantou dinheiro suficiente para reconstruir os estábulos, mas a previsível corrupção acabou por drenar por entre as salas de mármore de Tammany Hall. O que sobrou da construção foi uma casca calcinada e um porão cheio de órfãos que choramingavam, cresciam e roubavam sob a supervisão benevolente de


Mama Giuseppe. Quando Tinder retornou até os demais que esperavam no porão frio, eles mal haviam tocado as batatas que afanaram do mercado da Fulton Street três horas antes. Estavam todos ansiosos para comer; mesmo Piggy Hovek não havia tocado em nada. “Ela é pesada demais para se mover. Não há como levá-la ao médico”, Tinder explicou para as crianças, sendo racional. Alguns dos mais novos começaram a chorar. “Ela vai morrer?”, inquiriu Piggy, soluçando entre as palavras. “Não. Há alguém que pode ajudar, mas preciso falar com Spinner e Sal primero.” Tinder apontou para os rapazes mais velhos que estava de pé na caótica sala-comum. Tinder e os dois outros entraram no quarto onde Mama estava deitada, o quarto em que Tinder planejava revelar o segredo que guardara por anos, o segredo que quase havia esquecido por amor a Mama. Era um segredo que não pedira para saber, mas Wild Kip teve de partilhar com alguém antes que o ex-Runt rumasse para o oeste. Tinder levantou o casaco barato da Mama enquanto ela dormia sobre o colchão e revelou a verdade para Spinner e Sal. Ele precisava de sua ajuda para localizar este tal “Harlowe”. Chester Harlowe recuperou-se sozinho no estudo formal. Encontrava mais satisfação nos feriados agora que tinha netos, mas ainda ficava aliviado quando as festas acabavam e podia retornar aos seus hábitos despretensiosos da aposentadoria. Seus pensamentos pós-celebração vagavam para a noiva de seu filho mais novo, a medida que bebericava sua club soda ante ao fogo que se apagava, e ao modo como seu corpo parecia bem feito sob seu vestido de veludo amarelo com o qual passara a tarde. O som de vidro se quebrando acordou-o de seus devaneios e sentiu o vento frio do Hudson invadindo seu estúdio mal iluminado.

“O que diabos vocês estão fazendo?”, Harlowe exigiu saber dos três rapazes que invadiam o recinto pela porta meio destruída do jardim. “Ei, você é o Harlowe?”, perguntou Sal enquanto se livrava sua camisa de um dos pedaços quebrados de vidro da porta. Harlow epode notar, pelos muitos piercings de Sal, que o garoto não era de Gramercy. “Esta é minha casa e vocês estão...” Tinder não perdeu tempo e investiu contra o homem mais velho que ele, que caiu de joelhos ainda segurando seu copo. Mesmo em dor lancinante, ele foi cuidadoso em não deixar respingar seu drinque no antigo tapete Ankara. Spinner acertou Harlowe com a perna de cadeira que sempre levava consigo e o velho caiu. A última coisa que Harlowe escutou enquanto mergulhava no tapete fofo de seu estúdio, foi um dos rufiões dizendo para o outro que sua única esperança acabara de ser morta. O dor aguda e profunda forçou Chester Harlowe de volta à inconsciência. Embora estivesse apena a uma milha ou pouco mais de seu estúdio, mas era como se estivesse a um mundo de distância. Seus olhos mal podiam divisar alguma coisa no ambiente sombrio e cavernoso que era o celeiroresidência dos Runts. Ele podia ouvir seus sussurros nas trevas. Eles soavam para ele como seus próprios netos falando uns com os outros tarde da noite no natal, especulando acerca de quantos presentes lhes esperariam sob a árvore. Não podia vê-los, mas não conseguia se livrar da sensação de que seus doces netinhos de alguma forma estavam naquela masmorra com ele. Tinder foi o primeiro a perceber que o velho homem de negócios estava acordado. Ele deitou água fresca em um cantil amassado e estendeu-o à Harlowe. “Sinto muito que tenhamos machucado o senhor. Sabe, nossa mãe está muito doente e você pode ajudar.”, disse Tinder em uma voz mais de


menino que de homem. “Não se preocupe, não vamos acertá-lo de novo.”

vigiavam o estranho bem vestido trafegando em seu meio.

Harlowe só conseguia supor a expressão de Tinder pelo brilho esverdeado da vela de sabão; os olhos penetrantes do menino refletiam uma luz branca suave e fugidia. Ele havia visto aquelas crianças antes, talvez não os Runts especificamente, mas crianças daquele tipo. Vira sua pele tatuada, braços estendidos para dentro de sua lareira enquanto limpavam suas três chaminés. Vira também seu cabelo tingido brilhando na luz dos dias de verão enquanto perseguiam ratos, com varas, na represa. Ele esteve próximo daquelas crianças a vida toda na cidade, mas sempre as ignorou. Como a maior parte de seus colegas, testemunhou estes meninos de rua mas nunca prestou atenção neles de fato. Olhando para eles na masmorra que era sua casa, contudo, não viu apenas pestes, mas seus próprios netos.

Tinha certeza que conseguiria convencer o cunhado, um médico, a ajudar a cuidar da mãe daqueles desafortunados – se é que ela já não estava para além de qualquer ajuda. Ele percebeu que queria ajudar aquelas crianças, crianças pelas quais passou milhares de vezes sem dispensar-lhes qualquer pensamento ou centavo. Talvez fossem as festas; talvez fosse a dor lancinante em sua cabeça. Tudo o que sabia era que iria ajudá-los naquela noite. Deixar que o amanhã esqueça que jamais entraram em sua vida.

Não estava com medo deles. Sabia que não o machucariam novamente. “O senhor poderia olhar nossa mãe? Pode?”, implorou Spinner. Chester assentiu mas estava nauseado pelo cheiro dos cabelos azuis recém pintados quando o menino se aproximou. Ao curvar-se, tentando evitar gaguejar, tentou imaginar o que levara aquelas crianças a mortificar a carne com agulhas, tintura e tatuagens. Tinder ajudou-o a se levantar. “Cuidado com as vigas. Elas são baixas aqui”, avisou Tinder, pegando o homem de negócios pela mão. “Por que fazem isso?”, perguntou Chester enquanto desciam ainda mais no celeiro. “O piercing em sua sobrancelha... as tatuagens em seus braços.” “Está aí algo que não podem tirar de nós”, Tinder respondeu despretensiosamente, “Vão tirar todo o resto, tenha certeza.”

Chester passou por dúzias de crianças deitadas em colchões improvisados, sob colchas de retalhos. Todos pareciam dormir mas, de olhos entreabertos

Quando o homem de negócios e seu acompanhante entraram no quarto da Mama, Spinner e Sal já estavam ao lado dela. Sal segurava a mão sem vida da Mama nas suas enquanto Spinner tentava, em vão, limpar o fluido escuro que escorria de seu pescoço. Chester se assustou com a palidez da mulher sobre o colchão comido por ratos; ela parecia fria como um fantasma, pálida como alguém que jamais tenha visto o céu. Seu vestido era muito velho ostentando franjas ridículas e um espalhafatoso laço. Mais parecia uma cartomante de Luna Park à mãe de vinte crianças vivendo em um estábulo calcinado. Chester ajoelhou-se em frente a mulher e inebriou-se com sua aparência amorosa e confiável; a luz difusa das velas se somava a estranha aura Católica que dela emanava, fazendo-a parecer uma espécie de Madonna boweriana, pacífica e divina. Chester tentou tomar a mão da Mama, que Sal segurava, e este só a soltou após Tinder assentir. Não só estava tão fria quanto lhe parecera, mas também excessivamente pesada. Deixou-a cair, primeiramente, assustado por as textura estrangeira. Timidamente pegou-a de volta e algumas lascas finas de esmalte de unha quedou de seus dedos; ele deu um tapa de leve nas costas de sua mão com seu anel acadêmico, obtendo um som surdo.

“Ela é de metal”, murmurou Chester de si para si, mas todos ouviram.


“Mostre pra ele, Spinner”, pediu Tinder. Spinner lentamente desabotoou o corpete de ossos de baleia que a mãe vestia para então revelar uma armação de ferro. Chester levou uma vela até a boneca em tamanho natural e, sob a luz balouçante, pôde ver a incrível constelação de engrenagens e molas que jamais vira. Pareciam quase naturais, como um musgo metálico, intrincado e interconectado. Ficara maravilhado pelas centenas de reduzidos mecanismos, contrapesos e pêndulos – e já vira muitas máquinas complexas no passado. Fora o presidente da Schneider & Harlowe Metalworks, a maior fábrica de máquinas do Eastern Seaboard. Fizera centenas de milhares de dólares fornecendo peças metálicas de precisão para todo tipo de projeto, incluindo o novo metrô e brinquedos do Steeplechase Fairgrounds. Spinner apontou para a pequena placa presa à frente do peito do autômato: P. A. Schneider & C. D. Harlowe 1856 “É você. Chester Harlowe, certo?”, disse Spinner orgulhoso de si mesmo. “Sim. Não. Digo… é da minha companhia, mas certamente vocês não pensam que... Escutem rapazes. I sou, digo, eu era um homem de negócios, mas estou aposentado. Fui dono de uma empresa que pode ter fabricado algumas destas partes mas, ao que parece, há todo tipo de peças aqui. Esta placa pode bem ter sido de um de nossos relógios de pulso a vapor, mas o resto desta máquina... Posso garantir-lhes que não tenho nenhuma relação com esta... mulher.” “Mas seu nome está escrito aí, você não tem como negar”, interveio Sal, levantando outra vela para lançar mais luz sobre a mãe. “Sim. É um equívoco. Minha fábrica de máquinas pode ter confeccionado esta peça, mas não teve nada a ver com a montagem dela. Seja quem for que fez isto é um gênio. Um gênio absoluto. Isto pertence... não sei a que lugar, mas certamente não a este.” “O que quer dizer?”, disse Spinner, com um tom sombrio em sua voz.

Tinder intercedeu se colocando entre os dois. “Ela é nossa mãe, senhor. É a única mãe que qualquer um de nós já conheceu. Se acha que pode levá-la... Ela ficará aqui, pode ter certeza disso. Você pode concertá-la?” “Não, não posso”, respondeu Harlowe, encarando fascinado a intrincada trama de bronze dos órgãos metálicos da mãe. Tinder cochichou com Spinner, “Temos que encontrar este tal Schneider então.” Harlowe os ouviu sem querer e disse: “Escutem, meninos. Vocês não devem fazer isso. Ele não vai poder ajudar vocês mais que eu. Vocês precisam... Não sei bem de quem vocês precisam. Mas Schneider não vai poder ajudá-los. É muito complicado… todas essas coisas se encadeiam. Vejam, esta mola se desprendeu de seu lugar.” Chester recolocou a mola no lugar e, imediatamente, a mão sem vida em seu colo abriu-se e fechou. A pálpebra esquerda da Mama começou a tremer e ele não pôde deixar de suspirar de emoção. “É realmente bastante impressionante e está tudo em ordem. Esta engrenagem precisa de óleo, isso fica claro. E aqui, provavelmente, está a razão: aquele tubo, próximo ao pescoço, está vazando. O óleo não está conseguindo chegar aqui”, disse ele, apontando para os tubos que se pareciam com veias. “Não estou certo do que isto faz, mas se conecta a uma série de outras engrenagens. Me tragam um pouco de óleo e um pouco de cera para selar este buraco”. Chester perdeu noção do tempo que ficou bulindo com o autômato; estava chocado em encontrar tão pouca coisa com defeito. Na primeira hora ele conseguiu que ela se sentasse e movesse os braços para frente e para trás em movimentos pendulares. Entendeu que aplicando diferentes pressões os membros reagiam de forma diferente: por vezes embalando um bebê fantasma e por outras estendia os braços para alcançar e fazer carinho em uma criança invisível. Ele até


mesmo conseguiu que ela brincasse um pouco, mas “Alguns suspeitam quando ficam mais velhos, mas não conseguiu replicar o feito. E todas as vezes que ele até lá eles já a amam. Ela está sempre ao lado deles consertava algo tinha de realinhar os contrapesos e o com uma música ou um abraço. Mama é a primeira pêndulo. memória para muitos de nós.” Sal e Spinner estavam exaustos, tanto a aventura que foi o sequestro na cidade quanto sua preocupação drenou toda sua disposição. Acabaram saindo para se juntar às outras crianças no salão principal. Somente Tinder permaneceu no quarto segurando a vela para Harlowe.

Chester estremeceu ante o pensamento de que aquelas crianças só conheciam o amor através de uma máquina. Pensou em sua infância, na afeição de sua mãe e da governanta. Sua primeira memória era a de brincar em um cavalo de madeira, seu pai sorrindo por baixo do bigode largo.

Nem mesmo Wild Kip, o Runt mais velho depois de Tinder, sabia toda a verdade por trás da Mama. Na verdade, um relojoeiro italiano a construíra havia muitos anos. O pobre relojoeiro não tinha filhos e – não encontrando trabalho – tinha sido dono de um carrinho com o qual vendia doces. Eventualmente fez amizade com muitas crianças da rua que vinha comprar com ele. O relojoeiro construiu a máquina a partir de peças velhas para que os órfãos pudessem ter contato com o amor que jamais conheceram.

Tinder, percebendo a compaixão estampada no rosto de Harlowe, permanceu orgulhoso. “Ouça, senhor. Estamos muito bem. Melhor que muitos outros. Temos uns aos outros e os Runts mais velhos que foram embora sabem de onde vieram e continuam tomando conta de nós. Além do mais, nós sabemos o que é essa coisa.” Algo mudara em Tinder; foi a primeira vez que se referia a Mama como uma coisa. Com isso ele sabia que não era mais um Runt. Vendo aquele homem rico trabalhando no engenho – a máquina que fora sua única fonte de amor por toda a vida – ele compreendeu que se tratava de uma coisa sem alma, uma cruel paródia da vida. Ele não gostava daquilo, mas sabia agora que nunca mais conseguiria retornar à suas crenças de infância.

Harlowe foi capaz de imaginar partes dessa verdade a medida que identificava peças de incontáveis máquinas diferentes ao investigar a mãe dos órfãos. Encontrou balanças de telégrafo usadas como alavancas de equilíbrio e trancas de jarras de mason torcidas como molas. Encontrou pecinhas velhas de todas as partes da cidade brilhantemente arranjadas, o que fez o homem “Apenas termine o trabalho e o levo para casa. As de negócios em Harlowe se maravilhar pela engenhosiruas daqui não são seguras para um cavalheiro”, disse dade econômica ainda que o autômato resistisse a todas as tentativas desesperadas de reparo com a cadeia Tinder friamente. caótica de maquinetas rebeldes. “Eu gostaria de ver o que mais ela pode fazer, talvez ouvir um destes discos. São cantigas de ninar? São algo Chester era um homem que jamais usou as próprias mãos ou mente para fazer qualquer coisa que não din- mais?”, inquiriu Harlow, cuidadosamente substituindo heiro, mas aquela noite foi testemunha de que ele tra- os discos de cera macia em sua garganta. balhava no reparo de um objeto físico. O suor escorria “Não”, disse Tinder, puxando um cigarro das calças. por seu pescoço no porão úmido e ele podia ver a graxa que dava a cor a ponta de seus dedos, sentindo-se cada Foi a primeira vez que ele fumou diante de Mama, e ele vez mais satisfeito cada peça que se encaixava perfeita- se sentiu frio. Algo havia sido perdido. mente no resto do mecanismo. Gritos crescentes de crianças ressoaram pelo porão, entremeados por gritos de um homem adulto. Tin“Dou como certo que as crianças saibam que isto é uma máquina”, disse Chester para Tinder, retirando der livrou-se do cigarro enquanto saía da sala, deixum dos seis fono-discos da língua italiana que davam ando Harlowe, que se escondeu por detrás do vestido enorme de Mamma. voz e música para o autômato.


“Isso. Acho que eles sequestraram um ricaço. Dentro Depois de muita comoção vinda do salão, dois policiais arrancaram as cortinas, suas feições duras de sua própria casa! Aqueles meninos têm mais colhões avermelhadas e cheias de um regozijo perverso. Har- que bom-senso. Pip, você vem? lowe olhou por detrás do autômato com medo. Pip relutou antes de pegar uma corrente para usar “Senhor Harlowe? Somos da polícia metropoli- como arma. tana”, um dos policiais disse, enxugando o sangue de uma das mãos antes de estendê-la ao cavalheiro acovardado.

O professor cutucou gentilmente Mathilda, que dormia.

“Parece que os tiras estão quebrando umas cabeças lá nos Runts. Neal e Pip vão até lá para se juntar ao “O rosto dele está sangrando”, o mais velho disse tumulto.” para o parceiro, “Está em choque. Leve-o para casa; “Vá se quiser”, disse ela sem abrir os olhos. Temos gente suficiente para perseguir o resto dos vermes.” “So go if you want,” she said without opening her “Vocês não compreendem…”, balbuciou.

eyes. O policial arrancou Harlowe de onde estava, colocando-o de pé, quase arrastando-o pelos corredores “Não é isso… é que… são só moleques. Não sei...” do ex-estábulo, que brilhava com pequenos incêndios uma fumaça densa. Aqui e ali uma figura peque“Todos já foram crianças um dia. Não tem nada dena jazia deitada, algumas ainda buscando um amigo mais nisso”, disse Mathilda sonolenta, “Venha dormir.” ausente. Embora a maior parte dos Runts parecer ter escapado, Harlowe imaginava se ele conseguiria esquecer a noite de forma tão fácil. Este conto nos mostra a verdade perene: que a verdade em si Nas ruas a neve caía em meio a fumaça. Os sinos mesma é superestimada. Da estória de Harlowe e dos Runts, da temporada invadiam suavemente seus ouvidos, in- aprendemos que a desilusão é uma parte importante da matudistinto em sua competição com a agonia e ira que ridade e que a boa vontade pode se manifestar nos lugares mais inundara com gritos Hell’s Kitchen. inusitados. Neal não foi nada cuidadoso ao bater o cabo do martelo contra as pernas dormentes de Pip. Acordado de supetão, Pip esfregou os olhos para ver que Neal estava usando seu traje de combate. “Que idéia é essa…”, disse Pip, se levantando. “Um tumulto”, gritou Neal com entusiasmo infantil, acordando os demais, “aqueles malditos tiras invadiram o ninho dos Runts. Eles estão atrás das crianças a noite toda, batendo neles até que desmaiem. Devíamos ir para lá. Os Dead Rabbits já estão a caminho. Vai ser uma dança e tanto.” “Os Runts?”, perguntou Calamity levantando da cama. Sua voz soou como se viesse do fundo de um poço.


Entrevista Com Michael Michael Moorcock

Michael

Michael Moorcock é, de muitas formas, uma lenda. Autor de mais de 70 novelas e trabalhos jornalísticos, Moorcock fez muito para humanizar a figura mítica do herói. Foi também pioneiro no gênero SteamPunk, antes de receber este nome, com seu romance de 1971 “The Warlord of the Air”, que trafega na esfera política (junto com suas duas continuações como “A Nomad of the Time Streams”). Ele exerceu significativa influência em Hawkwind, uma banda de Rock dos anos 70 com que fez tour ocasionalmente; Hawkwind, em contrapartida foi de grande influência para o gênero movimento Punk. Moorcock foi muito cordial em responder nossas perguntas.


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Moorcock

Muitos atribuem o nascimento do SteamPunk a você; faz sentido para mim, uma vez que você foi uma influência para o início do movimento Punk. O que tem a dizer acerca do atual estado do gênero que ajudou a inspirar e o que acha que ele poderia vir a ser? Como inovação em um tipo particular de ficção Eduardiana me parece que [o protagonista de “A Nomad of the Time Streams”, Oswald] Bastable fez o seu melhor. Eu nunca esperei, contudo, que se tornasse um subgênero. Soube que você editava uma revista chamada “New Worlds”, com algumas outras pessoas nos anos 60. Em uma versão da história que ouvi, vocês foram condenadas por propaganda de esquerda e, em outra versão, por obscenidade, e que, em ambas versões, houve risco de perda dos fundos fornecidos pelo Conselho de Arte. Você pode esclarecer o que houve para mim?

Não fomos condenados diretamente. A imprensa de direita, de tempos em tempos, atacava-nos nos dando como exemplo do que o governo de esquerda estava permitindo. O Daily Express perguntara “Senhor Moorcock: Você gostaria que seus filhos lessem este tipo de coisa?”, ao que respondi, rindo, “Eles têm cinco e seis anos”, e continuei, “Ficarei muito feliz quando souber que eles podem ler qualquer coisa!” Os grandes distribuidores estavam mais preocupados com “pornografia”, embora nada houvesse de visual em nossa revista que não fosse considerado belo. Não

está vamos interessados em “derrubar tabús”. Estávamos interessados em escritores e artistas gráficos que quisessem se expressar tanto quanto possível. Li certa vez que Hawkwind era o tipo de banda que iria a um bar com a audiência em seu encalço e, pelo que li você se refere a audiência de seu livro como “leitores” e não como “fãs”. Você acha importante desmistificar o proverbial palco para aproximar artista e espectador? Se é, como pode ser feito? Há muitas formas de fazê-lo – beber com a audiência é uma boa maneira de conseguílo, com certeza. Não há distância entre você e a audiência contanto que você não deixe que essa distância aumente. Tudo tem a ver com sua disposição mental. Se você quer ser um “Rock Star” então você provavelmente será um... e é para isso que existem os guardacostas. Em entrevista você mencionou que “A medida que o Punk afundou, como os Hippies, na categoria de Modismo, perdi o interesse”. Me inseri no contexto anarcho-punk por volta de 2002 e tenho de dizer que, apesar de o ritmo ter perdido um pouco de sua força, o Punk no momento pode ser bem mais que uma moda. Que aspectos do Punk o atraíram? O Punk mantinha o mesmo idealismo de qualquer movimento boêmio que surgiu antes dele. Dei as boas vindas ao Punk por conta de dar boas vindas a este idealismo. Os Punks gostaram do Hawkwind por conta de presumir que estávamos nos atendo aos ideais e não às negociatas da indústria, ao dinheiro e tal. Nos víamos mesmo como uma banda “do povo” e, por conta disso, não tínhamos qualquer problemas com mudanças na audiência assim como eu mesmo não tinha. Eu escrevi “The Great Rock N Roll Swindle” em 1980. Poucos de nossos leitores estão cientes de que você concebeu o símbolo do caos, que prevaleceu na cultura Punk e Traveler até hoje. Muitas pessoas associam sua história com a TSR e com o D&D (Dungeons&Dragons), mas tudo começou com você. Você tem noção de que talvez milhares de pessoas que usam o símbolo tatuado vivem viajando em trens

de carga e lutando contra a degradação ambiental? Como você se sente sobre o novo estilo de vida fundado pelo símbolo? Uma vez que eu o desenhei na mesa da cozinha quando tentava pensar em um signo que simbolizasse “Entropia”, eu não tinha idéia que seria adotado por tantos. Não é de se espantar, no entanto, já que os jogos [de RPG] são tão firmemente baseados nas fantasias heróicas. Tantos conceitos foram alçados, especialmente de mim e de Tolkien. Eu prefiro a versão assimétrica, primeiramente desenhada por Walter Simonson e cada vez mais adotada! É bacana ver o signo se sofisticando e mudando para se adequar aos novos tempos. Fico me perguntando se você tem alguma opinião sobre o atual debate em acerca de propriedade intelectual. Conceitos como o Creative Commons estão ganhando terreno dentre tantos escritores e artistas contemporâneos enquanto as leis de Propriedade Intelectual cada vez mais restritivas estão sendo aprovadas. Tenho acompanhado a transição da maior parte de minhas idéias para a condição de “domínio público” e me atido a observar uma ou duas das mais equivocadas. É lisonjeiro, ao mesmo tempo, decepcionante. Você imagens específicas com metas específicas, tanto metas filosóficas quanto criativas e, quando estas imagens são cooptadas na direção de uma idéia estúpida, a gente tende a ficar sem fôlego. Mas é isso aí.

Nos atínhamos a nossos ideais no lugar de nos concentrarmos em ganhar muito dinheiro.


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