O LACRE

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NEGRITUDE GAY EXISITE NEGRITUDE G

LACRAÇÃO

BAFRO

Negritude Gay (R)Existe e ocupa espaço acadêmico

Estudantes falam sobre discriminação, luta e resistência

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DEU PINTA

Professor e técnico contam experiências de vida e preconceito P. 90


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EDITORIAL

Direitos pelos quais devemos lutar

Revista O Lacre vem sendo gestada há meses. A ideia desta publicação começou em sala de aula, quando os alunos Leo Barbosa e Armando Júnior iniciaram uma investigação para uma reportagem sobre a negritude gay no espaço acadêmico. Ao principiarem as apurações, os jovens perceberam que o tema precisava ser desvelado porque havia muito mais a se falar, muitas vozes a serem ouvidas, muitos atos discriminatórios a serem vencidos e muitas bandeiras e políticas afirmativas a serem defendidas em um país no qual a onda de conservadorismo se coloca como uma ameaça diária. Era preciso criar um espaço diante da falta de publicações na área. A Revista O Lacre chega não só para problematizar questões, mas para estimular o debate e buscar formas de combater preconceitos. Para mostrar que, para além das políticas afirmativas, como a criação das cotas nas universidades, é necessário que se dê suporte e apoio para que as minorias sociorraciais se mantenham fortes nas instituições públicas, evitando, por exemplo, as evasões. Ao se preocupar com o destino destes grupos, pensamos que estamos

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Por Marise Baesso

colaborando para publicizar este debate e tirar os negros gays da invisibilidade. O Lacre quer ajudar na promoção de ações de combate ao racismo e homofobia na educação brasileira, por meio de textos e reflexões que tragam informações e conhecimentos estratégicos para o enfrentamento destes problemas, muitos deles que se estendem de gerações a gerações. Nesta edição de estreia, a revista traz como reportagem central a questão da negritude gay que existe, resiste e ocupa o espaço acadêmico. A reportagem leva a uma reflexão sobre as muitas negritudes e as muitas homossexualidades existentes e traz estatísticas sobre a violência contra a população negra e a LGBT+ no Brasil. O Lacre traz ainda depoimentos de gays negros, histórias, crônicas e o ensaio fotográfico BAfro. Lembramos que os direitos humanos são construídos, não são um dado, como ressaltou a filósofa e pensadora da liberdade, Hanna Arendt. Portanto são direitos pelos quais devemos lutar e que estão em constante processo de construção e reconstrução. É hora de conquistar espaço e de deixar de naturalizar preconceitos!

XPEDIENTE

Editora-geral Editor de conteúdo e reportagem Marise Baesso Tristão Leo Barbosa marisebaesso@hotmail.com lsb.leobarbosa@gmail.com Editor de arte e diagramação Colaboradores Armando Júnior Davidson Santos junior.armando@outlook.com Renée Thomás da Silva Oliveira Agradecimentos Griot Linn da Quebrada


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Afirmo, reafirmo e reivindico Por Leo Barbosa


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Liberdade de ser eu ou a morte

Por Renée Thomás da Silva


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Afirmo, reafirmo e reivindico LEO BARBOSA É ESTUDANTE DE JORNALISMO NA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO (FACOM) DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA (UFJF); BOLSISTA DO GRUPO DE PESQUISA E COLETIVO FLORES RARAS E UM DOS IDEALIZADORES DA REVISTA O LACRE. ENGAJADO COM OS MOVIMENTOS SOCIAIS POPULARES, O ACADÊMICO SE DEFINE COMO UM ATIVISTA GAY NEGRO.


LEO BARBOSA

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Nunca pensei que algum dia eu teria que reivindicar a minha negritude. Justamente porque foi um longo processo até que eu pudesse me reconhecer enquanto tal. Hoje, empoderado e consciente do meu papel na sociedade, afirmo e reafirmo constantemente que sou negro. Não tenho nenhuma vergonha de dizer com todas as letras: SOU PRETO. Nem sempre as coisas foram assim, a busca por uma identidade racial começou na família e na escola, ainda na

adolescência. Mas só fui ter essa convicção nos primeiros períodos da faculdade. Até o final do ensino fundamental eu era um “quase branco”, preto de mais para ser branco e branco de mais para ser preto. Ainda na escola, ouvia moreno, mestiço, mulato, mas nunca negro ou preto. Às vezes era chamado de índio, o que até poderia ser apropriado se eu tivesse algum ancestral indígena. Até onde sei, não tenho. A verdade

é que as pessoas com quem convivi tinham receio de nos chamar daquilo que sou, negro. No fundo, é como se a negritude fosse algo ruim. Logo, se referir às pessoas de pele escura como moreno é uma tentativa de suavizar o que poderia ser uma “ofensa” ou de embranquecimento. Em nossa sociedade, as branquitudes são lidas de maneira positiva sempre e as negritudes postas à margem. Exemplo disso são os personagens negros em filmes


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e novelas, quase sempre em meu nariz largo e minha boca características de cada pessoa. i posições marginalizadas ou carnuda jA nAo sAo mais motivo Passo referências acadêmicas, de vergonha subalternizadas. Outro exemplo artísticas, culturais, políticas é o cabelo. Ninguém se refere e outras disponíveis para elas. feministas negras e conforme eu ia ao cabelo liso como ruim ou faz conversando com outras pessoas Acredito que o empoderamento piadinhas sobre, mas ao crespo pretas, ia me apropriando daquilo também é uma potente forma de sim. E em qual raça a incidência que eu sou. Comecei a valorizar militância. Nas conversas com de cabelo crespo é maior? mais minhas características, pessoas próximas, quando digo Por ser de uma cidade pequena meu nariz largo e minha boca o óbvio (Sou negro) costuma ser (Campo Belo, MG) e com carnuda já não são mais motivo controverso. Aí tenho que ser bem pouquíssimos debates à respeito, de vergonha. didático e explicar que o termo fui ter contato com o assunto Hoje tento fazer o mesmo moreno é preconceituoso e que tardiamente. Ao chegar no com as minhas amizades, negro é o mais apropriado para Ensino Superior, tive contato com sempre enalteço e valorizo as identificar pessoas pretas e pardas.


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Dar pinta e meu sobrenome

Um fato curioso nisso tudo é que ninguém questiona a minha sexualidade, até porque sou muito enfático em dizer que sou gay. Embora nem sempre isso tenha sido nítido para mim, de uma coisa eu sabia: A heterosexualidade era um lugar que não me cabia. Apesar de em alguns momentos sentir atração pelo sexo oposto, eu continuava sendo mais atraído pelo mesmo sexo. Entre os 12 e os 14 anos, iniciei a minha odisseia do desejo sexual. Na medida em que fui me aventurando, as certezas foram ficando mais concretas. Depois que chutei as portas do armário de vez, a homossexualidade deixou de ser uma angústia para se tornar um motivo de orgulho. Comecei a falar abertamente sobre isso e a me posicionar pela conquista dos direitos LGBT+. Quando passei pela igreja evangélica, tinha convicção de não pertencimento a heterossexualidade. Quando perguntado se eu havia “virado homem”, respondia: Sempre fui, mas desejando outros homens. Não estou vivendo minha sexualidade por que não sinto necessidade; porém, minhas vontades continuam as mesmas”. Era quase um mantra, repetido exaustivamente. Mas aí me pego pensando: Porque uma coisa que poderia ser omitida (sexualidade) parece mais presumível do que algo que é explícito (raça)? Talvez as respostas sejam mais complexas do que a pergunta. No meu caso,

antes mesmo de me assumir as pessoas já me identificavam como gay. Ser negro se tornou uma identidade para mim, quando ouvi uma pessoa de pele mais clara se dizer negra. Os traços parecidos, o cabelo mais cacheado e o orgulho de se afirmar, me fizeram perceber a necessidade de me colocar como tal. Todo esse processo de aceitação e reconhecimento me levou a perceber outros padrões plásticos e estéticos masculinos possíveis, além da pele branca. Continuo achando as pessoas lindas em suas variadas maneiras, mas tenho me atentado mais para beleza negra e fora da norma. Nunca fiz questão de aparentar uma masculinidade forçada que me era exigida; por isso, o discurso heteronormativo nunca me seduziu. Não quero e não faço questão de aparentar ser heterossexual ou mais másculo só para me relacionar com outros caras. Às vezes me taxam de afeminado e/ou escandaloso. Se fugir às regras, quebrar os padrões e falar daquilo que eu sou é ser isso, então sou isso sim. Sabe aquele clichê: discreto, fora do meio, não afeminado e com local? Então, se antes eu já dava pinta, hoje eu dou dois daumatas e uma onça. Brincadeiras à parte, o fato é que quando a gente descobre que tem voz e que ela ecoa, a gente passa a querer gritar e gritar mais alto. Gritar por respeito, pelos nossos direitos e pela conquista dos espaços. A gente passa a querer que nossa voz seja ouvida. Por isso, sou GAY NEGRO, DAR PINTA é meu sobrenome.


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Liberdade de ser eu ou a

morte

RENÉE THOMÁS DA SILVA, NATURAL DE VALÊNÇA, RIO DE JANEIRO, ESTUDOU ATÉ O SEGUNDO PERÍODO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO (FACOM) DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA. POR MOTIVOS DIVERSOS, RENÉE PRECISOU TRANCAR O CURSO NO INÍCIO DO ANO. O JOVEM AGUARDA SUA SITUAÇÃO SE NORMALIZAR PARA RETORNAR À GRADUAÇÃO.


Foto: Vitória Sampaio / Divulgação

RENEE silva

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Vamos falar sobre solidao Desde pequeno eu sabia que era gay, e isso não me incomodou até que os coleguinhas de escola soubessem. Aí se instaura o marco zero da autoobservação constante, acompanhada de uma castração obrigatória de trejeitos e pequenas atitudes que pudessem agravar o bullying sofrido ou despertar ainda reações mais enérgicas, como as surras dadas nos “viadinhos” para deixarem de ser o que são e se tornarem homens. A partir deste ponto, a minha vida se tornou uma mistura de vontade de ser quem eu era e quem eu deveria ser. No ensino fundamental, a luta era constante, e eu vivia entre mim (quem eu realmente era) e um “eu social” (polido, educado, de fala bem articulada e masculinizado ao máximo). Já no ensino médio, com

mais coragem, fui capaz de ir me libertando aos poucos disso, até me tornar o que sou hoje. Foi uma fase tanto boa quanto ruim; não é fácil ter coragem de se assumir e enfrentar possíveis agressões, mas era inevitável que eu o fizesse. Era a liberdade de ser eu ou a morte. A depressão é grande companheira dos jovens LGBTs, e comigo não era diferente. Passei por inúmeras situações, desde homofóbicas à racistas durante todo esse período, mas de forma velada e perversa. Horrível perceber que, na época, eu podia jurar que eram coisas naturais. O racismo me acompanhou por todo esse tempo. Mesmo sendo socialmente lido como pardo, eu carrego comigo o nariz largo e o cabelo duro, a boca grossa… Isso não ajuda, acreditem! O racismo é tão bem engendrado que acontece de mãe para filho sem

ser percebido, pois até os meus 15 anos eu não sabia que era negro. Me achava pardo e tudo bem. Nesta época, entrei em contato com os movimentos sociais e também deixei o cabelo crescer, descobri a religião que hoje sigo (umbanda) e fui me remontando aos poucos. Percebendo onde fui afetado e tentando consertar o que podia e mudar o que precisava. Fui olhar para o meu passado com uma ótica diferente da que tinha durante tudo que vivi naquele tempo. Descobri que não era másculo como me forcei a ser, que o medo das surras até hoje me segue quando ando sozinho de noite pelas ruas, não só por ser gay, mas também por conta da minha cor. Vi como isso afetou minhas amizades, estas que eu não tive até o ensino médio quando estava já em fase de redescoberta.


Foto: Vitória Sampaio / Divulgação

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Como fui solitário por não me encaixar nos critérios sociais de amizade. Vi como fui burro em me deixar vivenciar dois ou três relacionamentos abusivos... Pude perceber que os caras padrão me viam como buraco pra aliviar o próprio tesão. E isso me entristece, porque eu deixava rolar… E nem um “oi” no dia seguinte eu recebia, e tudo bem, naquele tempo, em minha mente, essa era a ordem natural das coisas. Vi que quanto mais me feminilizava, mais aceitava que era uma pessoa inferior; isso abriu portas para tantos outros abusos e uma distorção horrível da minha autoimagem e autoestima. “E você sabe, viado afeminado não é para casar, é só pra comer”. Saca? Assim, fui aceitando que nunca teria ninguém ao meu lado, e isso não está certo. Olhei também os antigos colegas, todos brancos, eu

mesmo não me dava ao trabalho de me envolver com mais negros além de mim. Afinal, pra que mais uma complicação? Hoje tenho um grande círculo de pretos lindos à minha volta, amo todos e nos fortalecemos uns aos outros. Mas mesmo depois de toda essa reforma interna e essas observações, ainda sim, me pego sempre me monitorando. Tentando ser amável, ou pelo menos suportável, já que não sou o que esperam de mim. Todos esses processos me levaram a ser tudo o que precisava e a me abrir para que as pessoas certas me fizessem companhia, fossem meus amigos, talvez até um amorzinho. Vivo sempre tentando me acertar, mesmo sendo quem eu realmente sempre quis ser, e não é fácil, mas sigo tentando parar com isso. Levar uma vida sem

toda essa pressão que me cerca na sociedade. Tudo isso me levou até a universidade já bem decidido, com força para frequentar um ambiente em que isso tudo era “normal”, porém visto com algum receio. A verdade é que esses processos me fizeram perceber quem sou e, na universidade, encontrei mais pessoas como eu. Fui capaz de trocar vivências e me reafirmar ainda mais. Saber que não estou sozinho, e muita gente passou pelo mesmo, isso dá força, fornece um apoio tamanho para todos nós que precisamos, de alguma maneira, nos encontrar. Seja nos coletivos, nos Diretórios e Centros Acadêmicos, ou nas rodas que sempre rolam. É muito importante que tenhamos essa união. Isso nos fortalece e ajuda na batalha de ser quem você é nessa sociedade.


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Enquanto bicha, preta e afeminada, eu raramente me pego em situacoes de total i conforto. Nao que eu esteja sempre com dores i ou algo do tipo, mas e “natural” que esteja sempre observando minha postura, jeito de falar e vestir, o andar, o tom de voz... i


Foto: Vitória Sampaio / Divulgação

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Batam palmas para as travestis que lutam para existir Por Leo Barbosa


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Foto: Laconga Rosa/Divulgação

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Em tempos de e “Dedo Batam palmas para a travestis caça às bruxas, Nocué”, Mc que lutam para existir censura às Linn faz dueto, exposições de respectivamente, arte e boicotes às temáticas de vir em espaços como Estúdio com a rapper Glória Groove e a gênero; o álbum visual Pajubá de Show Livre; onde apresentou funkeira Mulher Pepita. Na inédita Mc Linn da Quebrada é um novo seu repertório ao lado da equipe, “Serei A”, a cantora travega, ou fôlego para amantes da cultura formada pela backing vocal Joop melhor, traveca com Liniker por subversiva das favelas, dos guetos do Bairro, pelo percussionista uma sonoridade que remete ao e das periferias. É sonoridade em Valentino Valentino e pelo DJ aconchego de um banho, em uma forma de resistência, militância, Pininga. Boa parte das músicas letra que motiva a persistir de potência e empoderamento. O já eram conhecidas dos fãs, cabeça erguida, aconteça o que disco foi lançado no último dia 6 caso de “Talento”, “A Lenda” e aconteça. Uma forte mensagem de novembro, com 14 videoclipes “Enviadescer”, que em Pajubá às milhares de mulheres trans e de cada uma das faixas para tirar ganharam uma roupagem nova e travestis, que sofrem todos os dias qualquer ouvinte da zona de arranjos mais potentes. com a violência simbólica, verbal conforto. Outra novidade do disco são e física no país à fora. Desde o início do ano Linn já as parcerias com outras artistas A artista também surpreendeu dava pistas do que estava por LGBTs, nas faixas “Necomancia” ao deixar “Bixa Preta” e “Mulher”


Foto: Vivi Bacco/Divulgação

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fora do álbum. A primeira fala do orgulho de ser negra e gay afeminada (“A minha pele preta é meu manto de coragem, impulsiona o movimento, envaidece a viadagem”) e afronta qualquer posição racista e homofóbica. Já a segunda é uma nítida referência a “Geni e o Zepelin” de Chico Buarque. Na melhor das apropriações possíveis, Linn faz refletir: precisa ter vágina para ser mulher? A ausência dessas potentes canções não afetou a qualidade da produção. Fortemente influenciado pelo funk, porém mais próximo do rap e com um pé no samba, o disco de Linn é

uma celebração do corpo negro e da própria sexualidade. Com letras sagazes como “Tomara” e “Pare Querida”, a artista critica a heteronormatividade nas relações sexuais entre LGBTs. Em “Bomba pra Caralho”, Linn fala de violência policial contra pessoas negras. Nas faixas “Bixa Travesty”, “Pirigoza”, “Submissa do 7º Dia”, “Trasudo” e “Coytada”, a artista aciona sua travestilidade e descentraliza o pênis do trono simbólico do poder sexual. Como bem diria a artista em “Enviadescer”, Pajubá “não tem nada a ver com gostar de rola ou não. Cola todas juntas, as transviada e as sapatão”. O

material é uma ode à liberdade de ser quem se é um grito poderoso a favor de LGBTs e de negros e negras. Terrorista de gênero, como se identifica, MC Linn da Quebrada tem no próprio corpo uma ferramenta de experimentação artística e na arte um objeto de transformação social. O disco de Linn consegue tirar não só as pessoas enrustidas e heteronormativas do armário, mas também os LGBTfóbicos, racistas, machistas e preconceituosos de plantão. Mais do que isso, a produção é um arsenal políticocultural contra todo e qualquer tipo de discriminação.


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E agora macho alfa? Nao tem mais para i onde fugir. Enviadesci, enviadesci! Ja i quebrei o meu armario, agora eu vou te destruir. Enviadeci, enviadeci! Antes era viado, agora eu sou travesti

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(Enviadescer, Mc Linn da Quebrada)


Foto: Laconga Rosa/Divulgação

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Negritude gay espaco i


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e ocupa i i academico

Os dados sobre violência utilizados durante essa reportagem são referentes à toda a comunidade LGBT e à comunidade de negros e negras. Com o objetivo de tematizar melhor o assunto, O Lacre ouviu estudantes, técnicos e professores homens gays e negros. Por isso, todos os termos aparecerão no plural masculino.


32 A manutenção de políticas, como o sistema de cotas sócioraciais para o ingresso no ensino superior público é uma alternativa para que mais pessoas possam conquistar seus direitos. Apesar de os números serem tímidos, tal medida aponta algum resultado e se mostra extremamente necessária. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o percentual de negros no ensino de nível superior deu um salto e mais que dobrou entre 2005 e 2015. Em 2005, um ano após a implementação de ações afirmativas, como as cotas, apenas 5,5% dos jovens pretos ou pardos na classificação do IBGE e em idade universitária frequentavam uma faculdade. Em 2015, 12,8% dos negros entre 18 e 24 anos chegaram ao nível superior, segundo pesquisa divulgada em dezembro do ano passado. Comparado com os brancos, no entanto, o número equivale a menos da metade dos jovens brancos com a mesma oportunidade, que eram de 17,8% em 2005 e chegou a 26,5% em 2015. Mas, além do acesso, como é a permanência no ensino superior de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgênero? Carregar essas duas identidades

De que maneiras é possível combater os preconceitos dentro das instituições públicas?

sociais (negra e LGBT) faz com esses indivíduos estejam mais expostos às violações. No Brasil - apesar dos avanços, como a conquista do casamento igualitário para homossexuais e lésbicas e o direito ao uso de nomes sociais para pessoas trans -, não há nenhuma política pública que promova igualdade para pessoas LGBTs. Com a aprovação de planos de educação pelo país que excluem termos como gênero e/ou limitam o uso da palavra diversidade, está sinalizado que conquistar esse solo só será possível por meio de muita luta. Se nas instâncias do poder público a promoção de ações que valorizam a comunidade LGBT são diminuídas, em espaços como as universidades, ainda que de maneira indireta, há medidas que promovem a existência das diversidades através de debates, eventos e ações dentro do espaço acadêmico. As campanhas promovidas pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) evidenciam um posicionamento de abertura da Instituição em relação às minorias sociais. Entre elas, destacamse a “Por que eu te incomodo?” feita com alunos e alunas LGBts; a do Dia das Mães, que trouxe um casal de professoras lésbicas como personagens; a “Quantos professores negros você tem?”, além da mais recente, iniciada em agosto de 2017, chamando atenção para alunas, professoras


CAMPANHAS

“Por que eu te incomodo?” traz as estudantes Lia Manso e Camille Roberta em uma das peças

“Quantos professores negros você tem?”, com o professor Marcone Augusto Leal de Oliveira

Campanha do Dia das Mães com as professoras Daniela Auad e Cláudia Lahni com sua filha, Leila

Campanha da visibilidade lésbica contou com professoras de diversas orientações sexuais

Fotos: Arquivo pessoal / Arquivo pessoal / Campanhas - UFJF /Reprodução

e servidoras lésbicas da unidade para qual caminhamos Universidade. nossas pautas e demandas.” O estudante de Jornalismo, De acordo com o diretor de Lucas Gonçalves, milita de Ações Afirmativas da UFJF, Julvan maneira mais direta pelas causas Moreira, as cotas fazem parte LGBTs, mas também se empodera das diversas ações afirmativas com o movimento negro. “Sou que a Universidade criou nos filho de uma mulher branca e um últimos anos. Elas têm uma homem negro e não apresento importância fundamental, porque todos os fenótipos paternos. No viabilizaram não só a entrada, Brasil, o racismo vê mas a permanência cor de pele, em outros desses estudantes na lugares do mundo Universidade para eu seria considerado que eles possam se negro. Embora formar. “Com relação compactue com as à comunidade LGBT, pautas e saiba que o uma das políticas racismo me atinge que também pode Lucas Gonçalves, em alguns quesitos, contribuir para estudante de 23 anos minha militância a permanência nesse período da desse público na universidade foi junto Universidade é, por ao movimento LGBT”, exemplo, a adoção do explica. nome social feita em Para o acadêmico, 2015 e ampliada neste “a Instituição se ano para todos os esforça na tentativa de documentos em que integrar as minorias, a população Trans Julvan Moreira, mas essas ações ainda queira usar o nome diretor de Ações Afirmativas da UFJF são muito pontuais, social”, exemplifica. faltam políticas para “Não são apenas nós. Participei ativamente de um palavras, mas um posicionamento coletivo LGBT dentro da UFJF e político da UFJF no compromisso atuei nas campanhas “Libera meu de valorizar a diversidade e xixi” (que permitiu o uso livre dos promover a equidade por meio de banheiros independentemente diversas ações que possibilitam do gênero) e do uso do nome a construção de uma sociedade social para pessoas trans. Essas justa e equitativa, principalmente campanhas surgiram a partir na defesa dos direitos dos setores de uma demanda popular da mais vulneráveis e discriminados comunidade acadêmica e foram da sociedade como a população encaminhadas para Diretoria negra, LGBT, mulheres e de Ações Afirmativas, que é a indígenas”, pontua Julvan.

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NÃ EXISTIMOS OF

Essa página foi reservada pa GAYS e NEGR

Não existe nenhum dado sobre a comunidade LGBT+ na UFJF (professor@s, alun@s ou funcionári@s)


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ÃO FICIALMENTE!

ara o número de estudantes ROS da UFJF

não tivemos acesso ao número de pessoas negras que trabalham e estudam na Universidade.


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GAYS E NEGROS ainda são as

MAIORES VíTIMAS das violências

NO BRASIL Os números da violência contra a população negra no Brasil são alarmantes. De acordo com o Mapa da Violência 2016 – produzido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) -, a taxa de homicídios de negros aumentou, entre 2003 e 2014, passando de 24,9% para 27,4%. Apenas em 2010, 26.854 jovens entre 15 e 29 foram vítimas de homicídio, 74,6% dos jovens assassinados eram negros e 91,3% das vítimas eram homens. Pela pesquisa, a vitimização negra, que em 2003 era de 71,7%, mais que duplicou até 2014, o que significa que morrem 2,6 vezes mais negros que brancos. A população LGBT (Lésbicas,Gays,Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) é outro grupo social que sofre com a violência no país. Segundo um levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia, 340 pessoas foram mortas em 2016 por “LGBTfobia” (quando uma pessoa lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual ou transgênero sofre algum constrangimento, discriminação ou qualquer tipo de violência por um preconceito contra a diversidade sexual do outro). São 11 mortes a mais do que no ano anterior. Um assassinato a cada 28 horas. A maior parte das mortes ocorreu em via pública por tiros, facadas, asfixia, espancamento e outras causas violentas. Se os dados das duas pesquisas forem cruzados, é possível que pelo menos 12,6% das vítimas sejam negros e LGBTs. Contudo, a violência não é apenas física; é verbal e moral. Ela não só abrevia vidas, como também afeta o modo de essas pessoas exercerem seus direitos básicos, como a educação. Um estudo realizado em 2011 por Yan Faria Moreira, na época aluno do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (Ifes), do Espírito Santo, ouviu 226 LGBTs na região metropolitana de Vitória e mostrou que 56% já haviam sofrido alguma forma de agressão (física, moral ou ambas) dentro das escolas. Outro dado levantado pelo pesquisador mostra que 22% das pessoas entrevistadas continuam estudando mesmo sofrendo alguma forma de preconceito por sua orientação.


The Bi Guy Chronicles / Reprodução

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e x a l t a r Empoderar valorizar enaltecer estimular fortalecer reconhecer reafirmar engrandecer d e s t a c a r evidenciar prestigiar reverenciar a p l a u d i r

O Lacre procurou cinco personagens que representassem esse universo de alunos da UFJF. Para tanto, optamos por um recorte que se atentasse para a multiplicidade de gays negros, primeiro para focalizar melhor o assunto e segundo porque a temática diz respeito aos repórteres que constroem essa matéria. Neste contexto, nasce o ensaio fotográfico BAfro, que conta com depoimentos e imagens dessas pessoas interagindo com os espaços de intervenção artística, presentes na Universidade. O termo Bafro vem da união das palavras “bafo” ( vem de “bafão’, algo surpreendente, uma notícia muito boa) e afro (tudo que remete à descendência negra: beleza, cultura, som, movimento, etc.) O verbete é muito usado pela “geração tombamento” que é uma das facetas que alguns e algumas jovens do movimento negro aderiram. O “afrotombamento”, como também é conhecido o movimento dessa juventude, atua no combate dos sistemas de opressões (racismo, machismo, LGBTfobia) e tem, no uso de acessórios, tranças, roupas e maquiagens de cores vibrantes, além de uma atitude de autoconfiança, um processo de beneficiamento estético e político, de autoaceitação e superação de estereótipos. Marcada pela inovação, arte, dança e música, essa geração tem em nomes como Karol Conka, MC Linn da Quebrada e Liniker suas referências artístico-culturais brasileiras.


BAFRO

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aceita que doi menos

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AUGUSTO HENRIQUE AOS 23 ANOS DE IDADE, CURSANDO BACHARELADO INTERDISCIPLINAR DE ARTES E DESIGN, AUGUSTO HENRIQUE LOPES CONTA QUE, DURANTE A ADOLESCÊNCIA, FOI MEMBRO DE IGREJA EVANGÉLICA, EM CORONEL FABRICIANO, NO INTERIOR DE MINAS. SEGUNDO ELE, A DESCOBERTA DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL ACONTECEU NA PUBERDADE, MAS A AUTOACEITAÇÃO SÓ OCORREU QUANDO ESTAVA NO PRIMEIRO ANO DO ENSINO MÉDIO.


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Minha verdadei de verdade “Eu tinha algumas responsabilidades dentro da congregação e sempre tive desejos por homens. De certo modo, isso me atormentava, porque não entendia o que estava acontecendo comigo. Ainda tinha que lidar com toda a repulsa que a igreja tem por eu ser quem eu sou.” O acadêmico segue relatando: “Eu via @s amig@s na igreja namorando e sempre pensava: será que vou ter isso um dia? Mas onde estou isso é totalmente recusado. Chegou um determinado dia em que eu decidi acabar com aquilo e, assim, fui viver minha verdade de verdade, sendo honesto comigo mesmo. Assumir para a família não foi uma tarefa fácil, entretanto, uma tia lésbica já havia aberto as

portas para o assunto. Assim, foi bem mais fácil eu me revelar. Há parentes que não entendem bem, mas tod@s sempre respeitavam as decisões uns e umas d@s outr@s. Quando contei para minha mãe, ela não demonstrou surpresa, nem desapontamento, apenas perguntou se eu tinha certeza do que estava afirmando e se me sentia bem com isso. No fim nos abraçamos, e ficou tudo bem!”. “Com as outras pessoas, eu fui demonstrando aos poucos, porque não havia necessidade alguma de convocar uma reunião para assumir a homossexualidade ou simplesmente jogar isso no meio do churrasco de família. Deste modo, as pessoas se sentiram mais à vontade de perguntar, e eu de me abrir. Ainda hoje, alguns fingem que não sabem ou não têm interesse em saber, portanto,

estes não merecem nem menção. Família é quem está presente no seu cotidiano e que se importa com você. Acredito, que com o passar do tempo, você pode constituir um modelo de família que foge daquela que é imposta.” Um espaco para i poucos De acordo com Augusto, a universidade é um espaço onde há o encontro de diversas tribos e classes, em suma, um lugar em que há diversidade de pessoas. “Ela se torna ainda mais interessante quando um indivíduo identifica a que classe pertence. Ser negro, gay e estar na universidade, de um certo modo, me coloca em uma situação de privilégio à medida que a realidade no Brasil não é tão favorável a essas minorias. Estar


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em um ambiente dominado por classes que não são as de minorias sociais é complicado. Estar junto delas, revela que somos todos cidadãos e, que sim, temos o direito de frequentar o mesmo espaço, que é público”. “É preciso saber, ou pelo menos tentar entender, o que a nossa presença neste espaço pode causar. Isso traz consciência de que este espaço deve ser ocupado, cada vez mais, pelas minorias. Entendo o meu lugar e por isso tento me colocar de um modo que eu não desconsidere o número de outras pessoas que não possuem essa oportunidade. Infelizmente corremos riscos sérios de perder o pouco de direitos que conseguimos conquistar devido à atual crise política no país. Apesar de ter consciência desta responsabilidade, muitas vezes,

sinto-me impotente e até perdido o acadêmico, que ingressou na dentro da universidade, no sentido instituição em 2013. de lutar por políticas de ações “Não sei se minha vivência afirmativas”, alerta. empodera outras pessoas; se isso acontece, sinto-me muito feliz de Enfrentamentos i ajudá-las a serem o que são. Se i i militAncia e com o meu modo de agir e vestir, i autoconhecimento eu crio um diálogo empoderador com outras pessoas, me sinto bem “Estamos num lugar conhecido com isso. Nunca havia pensado por sua pluralidade e diversidade, o meu comportamento como logo, o mínimo que todos uma forma de militância. Com deveriam praticar é o respeito ao o passar do tempo, entendendo outro. Nunca sofri discriminação o meu lugar e indo em busca do por parte dos alunos diretamente, autoconhecimento, fui tomando apesar de saber de casos que certa consciência de que sim, aconteceram com outras pessoas. posso usar o pensamento e o ser O que ocorre, muitas vezes, de artístico para militar. Estou em maneira disfarçada, são aqueles busca de um autoconhecimento. olhares seguidos de cochichos. Só assim conseguirei ajudar os Algumas vezes, eu respondo outros e poderei lutar afetiva e a estes atos de preconceito efetivamente: me conhecendo”, encarando, e eles cessam”, relata conclui Augusto.


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FAZ A BEYONCE

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Arthur Ribeiro NASCIDO EM LAGOA DA PRATA, REGIÃO CENTRAL DE MINAS GERAIS, O ESTUDANTE DO CURSO DE TURISMO, ARTHUR RIBEIRO, 18, FALA DA REAÇÃO DE SUA MÃE AO SABER DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL, DE HOMOFOBIA E DA NEGAÇÃO DE SUA SEXUALIDADE EM SUA VIDA ESCOLAR


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Baquei nao reconhecimento e negacao da sexualidade i i

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“Quando me assumi para a minha mãe foi um baque, mas ela sempre deixou claro que o amor dela por mim não mudaria, independente da minha sexualidade. Sempre me achei diferente dos meninos da escola. Nunca fui de fazer amizade com garotos e nunca gostei das coisas que eles faziam. Eu sempre fui amigo das meninas e escondia a atração que sentia pelo mesmo sexo”. “Eu sofri homofobia ano passado, quando concluí o ensino médio. Isso afetou muito meu desempenho nas matérias. Foi ridículo, os garotos que estudavam comigo tinham um ar de superioridade por serem héteros e, quando eu me impus e falei que era gay, eles já começaram com risadas e a me observar com olhar de deboche. Aprendi a conviver e a ignorar, porque isso fez parte de toda minha vida letiva”. Tombamento i i para alem de um mero registro “Por aparecer em fotos de festas nas redes sociais e sempre cercado de gente bonita, às vezes, sou visto como “a mana tombamento”, mas a minha realidade é bem mais profunda que esse mar de rosas, ela é bem mais que um mero registro. Ser negro, gay e afeminado na sociedade em que estamos não é fácil. Os olhares tortos, as risadinhas e os deboches são frequentes; às vezes, essas ações partem até mesmo de outros gays, os heteronormativos”, afirma. Dono de um visual marcante, Arthur ressalta a importância do cabelo para a formação da sua personalidade e sua importância como sinônimo de aceitação. “Sempre achei que meu cabelo é minha identidade e o jeito que eu me expresso


também. Conheci várias pessoas aqui que puxaram assunto comigo justamente por isso e também pelo jeito que eu sou; sempre com olhar confiante e andar forte. Já recebi alguns comentários como “nossa você é minha inspiração”, “eu amo esse seu jeito de andar, o jeito que você se veste e se porta nos ambientes”. Ando como se estivesse no clipe de Crazy In Love, sou fã da Beyoncé, né amore?”. i

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Inspiracao mutua e i motivacao i “Eu visto aquilo que me faz bem, uma roupa que eu possa olhar no espelho e gostar do que estou vendo. Não vejo porque omitir minhas características; se tem uma coisa de que eu tenho muito orgulho é de ser negro e gay, isso é resistência, e eu amo. Me visto para me sentir bem, mas também me imponho e mostro que eu tenho meu valor e tenho voz. Assim como vi várias gays negras aqui se vestindo como querem e sendo quem elas realmente são o que me trouxe uma confiança muito grande - , acredito que o contrário também aconteça”, ressalta .O universitário destaca, também, a diferença entre sua vivência no ensino médio e no superior. “Me senti extremamente abraçado quando entrei para a UFJF. Independente de sexualidade ou cor, aqui não sou tratado como anormalidade. Fiz amizade com pessoas das mais diferentes opiniões, e são todas maravilhosas! É muito diferente do ensino médio, onde eu era tratado como a gay que só sabia dar dicas de moda e ajeitar garotos para as meninas ou a bichinha que ninguém podia chegar perto porque senão seria viadinho. Eu acho que pequenas ações nos empoderam e empoderam várias pessoas todos os dias. Estar aqui me dá forças para querer sempre mais e também para que, assim como eu, outras pessoas do meio (LGBT e negro) estejam nesse lugar”, finaliza Arthur.

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monstro

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choque de

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italo pereira

NATURAL DE JUIZ DE FORA ÍTALO PEREIRA, 20, FALA SOBRE O MEDO DA EXCLUSÃO SOCIAL DURANTE A INFÂNCIA E A SAÍDA DO ARMÁRIO. O ESTUDANTE DE MEDICINA FAZ UM RELATO SOBRE O RECONHECIMENTO DE RAÇA, CLASSE E ORIENTAÇÃO SEXUAL.


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Afeto e amor em i Ultimo plano

tornando-me um aluno muito dedicado. Passei a colocar minha vida afetiva e amorosa em último “Desde os meus seis, sete anos, plano, como uma questão que eu me sentia diferente dos amigos, não queria resolver.” porém não entendia muito bem como e nem o porquê. Sempre Heterossexualidade tentei me enturmar ao máximo compulsOria e saida do nas brincadeiras e conversas armario com os meninos, temia me sentir excluído. Por volta dos dez anos “Foi apenas no primeiro descobri minha orientação sexual período de minha graduação que devido, principalmente, à atração me aceitei, livrando-me de todos que sentia por propagandas que os esforços de me mostrar como expunham o corpo masculino. heterossexual, principalmente Porém, mantive isso como segredo durante o ensino médio. O por muito tempo.” ambiente universitário me trouxe “Durante anos fui muito ativo muitas novidades e oportunidades dentro da Igreja Católica de de viver tudo o que havia meu bairro, sendo muitas vezes reprimido em mim e em poucas indicado ao sacerdócio. Como semanas resolvi me assumir para forma de expulsar pensamentos minha família. Minha mãe é muito sobre minha orientação sexual companheira e sempre me apoiou de minha mente, direcionava em todas minhas decisões. Após muito de minha energia e foco uma conversa longa e de algumas para atividades de evangelização e lágrimas, ela me abraçou e tudo também a meus estudos na escola, ficou em paz. Já meu pai, após i

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minha revelação, silenciou-se e até hoje não me aceita, evitando ao máximo qualquer assunto que remeta ao tema e por vezes me ofendendo verbalmente quando embriagado.” Com bom humor, Ítalo achou uma maneira criativa de romper com o silêncio. “Em relação ao resto da família e até mesmo amigos da igreja, criei grupos no Whatsapp com estas pessoas, em que contava sobre e saía em seguida. Estes grupos se chamavam “Armário”, e ao sair, aparecia “Ítalo saiu do Armário”. Vi essa ideia na internet e achei interessante a abordagem. Por mais que eu sentisse que não devia satisfações, preferi me assumir para poder bater de frente com quaisquer indiretas ou comentários maldosos. Na mesma época me afastei da Igreja Católica, por divergências de credo e também por medo de nãoaceitação. No fim, quase todos me aceitaram”, continua.


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percepção sobre o racismo do qual eu era vítima; fechando meus olhos para situações em que hoje O universitário conta que tenho ciência que fui discriminado teve o apoio da mãe para lidar devido minha cor de pele”, explica com o preconceito. “Durante boa parte de minha vida fui uma Classe e raca: ainda i pessoa extremamente tímida e alvos de discriminacao e i que temia a todo custo qualquer segregacao i discriminação. Meus hábitos, falas, eram sempre os mais homogêneos Assim como muitos jovens, possíveis. Durante a vida escolar, Ítalo já tentou se enquadrar nos ouvia ofensas principalmente em padrões do meio em que vivia. relação a meu modo de andar e “Quando ingressei no ensino minha voz. Minha mãe sempre me médio numa escola pública ensinou a ignorar ofensas e não federal, muito elitizada na época, contra-atacar.” comecei a ver como o racismo “Seguia os conselhos, mas sutilmente se apresentava para isso me machucava bastante, mim, atrelado à minha baixa principalmente quando percebia condição social. Frequentemente que sempre iriam me criticar de questionavam minhas conquistas alguma forma. Por muito tempo e capacidade de realizar certas eu era lido pelos outros como tarefas. Minha reação era me alguém “quase branco” e eu esforçar ainda mais para ter um acabava absorvendo isso, apesar bom rendimento escolar e evitar de me deixar muito confuso. que isso não ocorresse.” Isto acabou alterando minha “Além disso, tentava esconder Era lido como alguem quase branco

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minha condição social e buscava me enquadrar ao máximo aos padrões das pessoas que passei a conviver majoritariamente: brancos de classe média-alta.Isto permaneceu até meus primeiros meses na universidade, local que se mostrou ainda mais elitizado para mim,” continua. “Por ser cotista, sentia uma obrigação moral de ter um alto índice acadêmico para provar que era capaz de me manter onde estava. O ambiente universitário, principalmente o do meu curso (medicina), mostrou-se rapidamente muito competitivo e sufocante. Isso impactou negativamente minha saúde mental, até eu perceber que não precisava me mostrar “melhor” devido a minhas origens e características e que eu poderia ser um universitário comum como qualquer outro. Hoje entendo melhor meus limites, meu ritmo, sou muito mais feliz.”


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Orgulho de ser negro, gay e pobre De acordo com Pereira, LGBTs e negros ainda são minorias no ambiente universitário, e se falar de cursos como o de Medicina, estamos em menor número ainda. “Sei que tenho uma posição privilegiada por estar aqui; um ambiente que muitos outros iguais deveriam estar, mas não possuem acesso. Até hoje, não conseguimos ocupar os lugares que são destinados a nós negros por lei, o que me indigna bastante”. O estudante continua: “Assim, tenho ciência da importância de estar onde estou, fazendo o que faço. Hoje, ser gay, negro e de origem pobre são as coisas que mais me deixam orgulhoso. Por vezes sinto que a minha presença incomoda muitos, principalmente por estar cada dia mais negando os padrões brancos ao meu redor. É

preciso lutar e fazer barulho para que a cor da pele dos pacientes que temos contato seja representada também nas pessoas que estão sob o jaleco. Creio que buscar por mais representatividade é o dever de todas as minorias que aqui estão.” i

Quebra de estereotipos e preconceitos internos Para o juiz-forano, ingressar no ensino superior foi um divisor de águas em sua vida. “Foi aqui que minha visão de mundo se ampliou, o que me possibilitou conhecer pessoas tão semelhantes e, ao mesmo tempo, tão diversas a mim. Quando entrei aqui, pude ter orgulho de quem sou e me livrar de muitos pensamentos embranquecidos e padronizados que possuía. Conheci pessoas super empoderadas que admiro muito e são referência para mim. Também tive acesso a

um conhecimento até então indisponível e, com certeza, isso me empoderou e empodera muito.” “Não posso afirmar se minha presença no ambiente acadêmico empodera outras pessoas, mas sei que sirvo de motivação para muitos conhecidos e amigos negros e isto é muito bacana. Acredito que consigo expressar bem o que sou, seja através das roupas ou das atitudes. Estou em um processo de experimentações, numa luta constante de quebra de estereótipos e preconceitos internos. Minhas roupas coloridas, por vezes apertadas, e outros acessórios geram certo desconforto; estudo em um ambiente onde a formalidade é o padrão. Mas simplesmente me manifesto do modo que acho confortável e que me deixa feliz. Isso vem gerando muitos resultados positivos em mim,” pontua Ítalo.


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#ECOISAdepreto

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AssunCAo i GRADUANDO DO INSTITUTO DE ARTES E DESIGN, MATHEUS ASSUNÇÃO, 23, CONTA QUE SEMPRE SOUBE DE SUA HOMOSSEXUALIDADE. SENTIR ATRAÇÃO POR PESSOAS DO MESMO SEXO FEZ PARTE DE SEU PROCESSO DE CRESCIMENTO. MATHEUS FALA SOBRE FAMÍLIA, CORPO, DESIGUALDADES E PRECONCEITOS

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Discriminacao i sutil: carregada de preconceitos e i estereotipos “Apesar de religiosa, ela sempre se mostrou muito aberta para me amar e me dar liberdade para ser quem sou. Acredito que se, em algum momento, eles me reprimiram tenha sido pelo local em que eles estão inseridos e por circunstâncias que não dependiam deles. ” “A discriminação na sociedade brasileira se dá de maneira sutil; carrega estereótipos e preconceitos. Existem olhares constantes, alguns com objetivo de exotificar, outros por estranhamento mesmo. Em outra universidade, uma professora

dizia que eu tinha “cara de que não gostava de estudar”, sem sequer me conhecer. Já aqui, também encontramos dificuldade para inserir conteúdos afros nas disciplinas. Isso ainda assusta muitos professores”, exemplifica. “Não sou um negro embranquecido, pelo contrário, valorizo aspectos da minha negritude mais que tudo. Por não me enquadrar em um ideal de masculinidade, sei que esses olhares se tornam mais intensos. Piadas ouço constantemente, mas nada que eu dê importância ou que me incomode. Um dia desses gritaram de uma sala de aula para eu e mais dois colegas negros e gays. Não há espaço para pessoas medíocres na minha vida. Tenho outras lutas!”

Desigualdades e disparidades naturalizadas Segundo Matheus, gays e negros ainda não são maioria no ambiente acadêmico. “A construção do atual projeto de universidade é eurocêntrico, da bibliografia à arquitetura dos espaços, nada é feito para nós. Sei que esse modelo não foi pensado para minorias. Todos os espaços deveriam ser para quem quisesse estar neles, independentemente de condições sociais, econômicas ou culturais. Tem sido uma experiência de combate, reflexão e aprendizado.” “Para ocupar este espaço e estar aqui, houve todo um processo de lutas de ambos os movimentos, o negro e o LGBT. Estamos criando


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espaços e ocupando os já existentes com saberes orgânicos que vão de encontro aos saberes acadêmicos. Em um país onde mais de 50% da população é negra; não é aceitável que ainda ocupemos mais postos nos serviços subalternizados das instituições do que no banco das salas de aula. Essas disparidades estão bem à frente de nossos olhos e precisamos questioná-las. As desigualdades são naturalizadas! Não posso fingir que nada está acontecendo!”, completa indignado.

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necessária uma consciência das lutas que se deram para que ele estivesse aqui e a valorização dessas identidades. “Há muitos negros na universidade que não têm essa consciência e compactuam com a desigualdade, aceitam opressões. Um negro na universidade servindo à casa grande pouco ajuda na luta, só serve para perpetuar a desigualdade. É necessário se unir, articular para trazer nossas questões em pauta nos espaços universitários. Uma andorinha só não faz verão”. i Matheus acredita que, apesar Consciencia, valorizacao i de inspirar outras pessoas, seu e experimentacoes com o i visual também pode causar um corpo certo desconforto, mas eles não se Para o acadêmico, mais do que veste com o objetivo de afrontar ser negro, gay e universitário, é ninguém, muito menos d e i

parecer uma mulher. “Espero que sim, que elas se sintam inspiradas a ser quem elas são e se sintam orgulhosas disso. Mas que esse empoderamento não se resuma a uma questão estética”. “Minhas identidades se expressam de diversas maneiras em várias fases. Estamos em constante transformação, hoje me visto assim e amanhã pode ser que não. Simplesmente uso aquilo que me sinto confortável, como uma unha pintada, por exemplo. Pode causar um certo estranhamento pelo fato de ser homem; acredito que o feminino não está nesses signos. São experimentações com meu corpo, por atuar também no campo da arte de performance, acredito nesse potencial. Quero explorá-lo!”, termina Matheus.


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F#CK OS PADROES

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mare das flores

AOS 21 ANOS, MARÉ DAS FLORES É NATURAL DE SÃO PAULO E ESTUDA NA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UFJF. MARÉ CONTA SOBRE A ACEITAÇÃO DA FAMÍLIA, A NÃO BINARIDADE, OS PRECONCEITOS E A RESISTÊNCIA


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‘‘Sou gay, desde o nascimento! Nunca me identifiquei com a heterossexualidade. Antes de me assumir, confesso que tinha muito medo de como minha família reagiria, mas, para o meu alívio, as coisas dentro de casa fluíram de forma muito leve. Falar sobre isso com eles me trouxe muito conforto. A reação geral foi de acolhimento, acho que isso me fortaleceu muito.” “Minha mãe chorou bastante, acho que por medo das coisas que eu teria que enfrentar perante a sociedade. Lembro até hoje quais foram suas primeiras palavras: ‘Eu te amo!’, seguidas de: ‘Por que você não me contou antes? Eu jamais deixaria de te amar. Eu quero te ajudar a se proteger do mundo, não quero que você sofra sozinho!’. Com a aceitação de todos eles, eu passei a me aceitar e a me livrar das amarras que me prendiam”, revela.

Orientação sexual e identidade de gênero são coisas distintas, é o que conta Maré. “Me considero uma bicha não binária, e isso se dá por eu não conseguir me identificar com o binarismo de gênero que é imposto pela sociedade. Nunca consegui me ver nem menina, nem menino. Acho que muitas pessoas no mundo também se sentem assim, mas, muitas vezes, não conseguem colocar isso para fora, devido ao que a sociedade espera da gente. Antes de nascermos, já idealizam quais serão os papéis que esperam que a gente exerça, muitas vezes, isso não é compatível ao que a gente é e deseja.” “Eu nunca me identifiquei com o que esperavam que eu fosse. Nunca me vi performando esses papéis, e isso me fez buscar ser o que eu queria ser. Hoje eu consigo enxergar em mim a pessoa que eu sempre desejei e espero continuar

me transformando e melhorando dia após dia. Em contrapartida, acho que existe uma grande problemática em tudo isso: quando cobramos de forma agressiva que todos saibam nos ler dessa forma”, continua. “Diferente do que muita gente prega por aí, é necessário ter didática para dialogar e se fazer entender pelas pessoas que não têm acesso a esse tipo de reflexão. “Compreendo que esse tipo de conhecimento não é acessível para todos. Para muitas pessoas, desconstruir isso é muito difícil, justamente pela falta de contato com essas realidades. Gostaria que as pessoas me enxergassem, acima de tudo, como um ser humano. Quero ser respeitado e poder andar livremente sendo quem eu sou, sem medo de ser xingado ou apanhar. É por isso que eu luto todos os dias!” i

Didatica para dialogar sobre nao binaridade i

Aceitacao, acolhimento e i fortalecimento

Olhares de reprovacao i pelo agir e vestir


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Maré fala da dor que o sentimento de exclusão causa. “Muitas vezes, fui discriminado por essas duas questões, ser negro e gay. Nas ruas, em alguns rolês que eu dava e nas rodas de pegação, quando todo mundo se beijava, eu ficava de vela ouvindo coisas do tipo ‘Nossa Maré, como você deu azar, além de nascer preto ainda é gay?! Por isso não pega ninguém’... eu sempre me senti o pato feio, e isso me doía muito.” “Todos os dias eu sofro preconceitos. Atravessando as ruas, indo para a faculdade ou até na padaria. Em todos os ambientes que eu piso, percebo olhares de desaprovação, principalmente quando estou com alguma roupa considerada “feminina” e isso dói bastante. Eu só gostaria de poder andar sossegado, sem ouvir piadinhas e xingamentos por eu simplesmente agir e me vestir da forma que realmente sou.” “Eu, com certeza, expresso as minhas identidades através

da maneira que me visto e ajo. Procuro sempre expor quem eu sou por dentro através das minhas vestimentas e atitudes. Fazer isso me dá a sensação de que realmente estou sendo eu. Quando vou escolher uma peça de roupa sempre faço uma reflexão de como eu estou me sentindo no dia e tento exteriorizar isso!”, segue. Pessoas em busca de fortalecimento “Me lembro de diversos momentos em que as pessoas se juntavam para ficar me apelidando com nomes ofensivos. Eles faziam rodas para me zoar e rir da minha cara e eu tinha que aguentar com muita força. Se eu derramasse lágrimas (o que muitas vezes era a minha vontade) eles me achincalhavam ainda mais. E isso quando não tentavam me bater para ficar mais ‘engraçado’.” Para @ discente “só de pisar no espaço acadêmico, já

somos discriminados por essas estruturas que sequer fazem questão de nos reconhecer enquanto sujeitos. Acho que falar que a universidade empodera não é muito adequado. Dentro da universidade existem pessoas que compõem esse quadro e que estão em busca de se fortalecer e de fortalecer o coletivo. Isso acaba nos ajudando em alguns aspectos, porém, a maior parte do meu empoderamento vem de fora dessas estruturas.” “Os meios que eu frequento, as pessoas que conviveram e convivem comigo, a minha própria vivência; tudo isso contribuiu para eu ser o que sou hoje. Lógico que tive ótimos professores que também contribuíram para isso através de incentivos, referências, caminhos novos e etc. Mas a maior parte desse processo veio das minhas próprias vivências que me fizeram refletir sobre várias coisas e que acabaram fazendo com que eu me amasse mais e mais”, finaliza Maré.


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DEU PINTA

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NĂŁo me sinto bem em caixas Entrevista com o professor Cristiano Rodrigues


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Espaços nas universidades estão sendo conquistados Entrevista com o técnico Mauro Leopoldino


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93 Tracos de ancestralidade: i a negritude em mim

CRISTIANO RODRIGUES

Sempre tive uma fascinação pela cultura afro-brasileira de modo geral. Já dancei, fiz balé e adorava a dança afro, mas não entendia bem isso. Eu sempre gostei de todas as questões ligadas à raça, à história, à questão escravocrata. O preconceito racial, a beleza negra sempre me chamaram muita atenção, mas nunca entendia de onde vinha esse fascínio. Meu avô materno era retinto, tenho parentes por parte da minha mãe que são mais escuros. Eu possuo o tom de pele um pouco mais claro; mas toda a minha família apresenta traços de negritude. Como o meu avô morreu muito cedo, e eu não o conheci, eu senti que a coisa de raça negra na minha criação se perdeu muito, eu demorei muito a me ver como negro. Meu pai era motorista e minha mãe professora de biologia, então eu não tive essa formação humana em casa. Essa percepção foi acontecer no tempo em que eu fiquei estudando na Espanha, durante o doutorado. Na Europa, eu era muito diferente, porque a maioria das pessoas de lá são muito brancas. O meu tom de pele é parecido com o de um indiano e, na época, eu usava barba. Eu sempre levava geral em aeroporto por causa da minha cor. Uma vez comentei isso com o meu orientador, e ele disse: “Mas também, com essa cara de muçulmano”. Foi aí que eu entendi, era preconceito racial mesmo. Depois dessa temporada na Espanha, eu me vi como diferente. “Eu sou mais escuro que a maioria dos meus amigos aqui, então numa perspectiva, talvez eles me olhem como negro.” Comecei a entender, conversei muito com os meus irmãos mais velhos sobre as histórias do meu avô, porque os meus tios mais antigos falam que eu me pareço muito com ele. Meu avô gostava de música, arte, dança, e eu sempre gostei das artes de modo geral. Minhas tias diziam que isso era coisa dele, e eu acho que pode ser sim. De certa forma, os antepassados vivem em nós e essa história familiar está em algum lugar em mim.

Há dezenove anos, Cristiano Rodrigues é professor titular da Faculdade de Comunicação (Facom) da Universidade Federal de Juiz de Fora. Formado em Comunicação Social pela instituição, Rodrigues possui mestrado em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas e doutorado pelo Programa de Pós Graduação em Educação (PPGE) da UFJF, com participação no Programa de Doutorado Sanduiche (PDSE) da CAPES na Universidade de Barcelona. O docente conta para O Lacre como era preconceito nas gerações anteriores.


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NAo me sinto bem em caixas

Entrevista com o professor Cristiano Rodrigues O Lacre: Como era o preconceito na sua época de estudante? Cristiano: Eu nunca me vi vítima de preconceito; apesar de existir, ele nunca chegou até a mim. Nunca estive no armário, nunca me escondi de ninguém, nem no trabalho e nem na família. Então as pessoas tinham até receio. Apesar de nunca esconder, eu não saía gritando para o mundo que eu era gay. Eu nunca levantei bandeira, mas nunca me senti no armário, muito menos ocultei o que sou. A geração do meu parceiro, que é mais velho que eu, sofreu muito mais para se aceitar, se assumir e namorar na rua. Da minha geração para a atual, sinto uma diferença muito grande. O que eu acho legal nessa geração é que se fala, a coisa é dita, e isso é muito bom. Não quero que me tolerem ou me aceitem, eu não preciso disso. Eu quero ser respeitado, quero falar e ser ouvido e quero saber e entender. Na minha, mesmo as pessoas que aceitavam ou não tinham problema com gays e até em família, elas não falavam do assunto. Durante a faculdade,eu

tive um namorado, havia heteros que conviviam com a gente, sabiam que éramos namorados e não conversavam sobre. Acredito que nem era só por preconceito, mas também por respeito. Muita gente não sabia qual era a melhor forma de conversar: “Será que a pessoa vai ficar ofendida?” Eu levava o namorado em casa, minha família percebia, mas não tocava no assunto. Era como se não existisse. Isso me incomodava bastante. O Lacre: Você falou da necessidade que essa geração tem de se reafirmar. Você acredita que falar desses temas ajuda a contribuir para que as discussões avancem? Cristiano: Eu acho que acaba contribuindo porque coloca na luz, as pessoas falam, gritam, mostram. Quer dar pinta, dá. Quer gritar, grita. Agora, tem que respeitar quem não quer, e isso é muito relativo. Às vezes, até as bichas assumidas coagem os colegas a se assumirem. E tem pessoas que vivem em situações familiares, e aquilo vai acarretar coisas que elas não estão preparadas para viver no momento. Então quem sabe da situação do


95 outro? Uma vez um ex-aluno veio até mim e disse que queria se assumir para turma. Perguntei se ele sentia essa necessidade ou se estava sendo pressionado. Ele disse que tinha uma relação de cumplicidade com a turma, que eles viajavam, acampavam juntos e não achava honesto esconder que era gay. Nas palavras dele: “Se eu me descobri gay, eu acho bacana eles saberem, eu quero compartilhar isso. Eu não tenho vergonha, estou orgulhoso de descobrir e de me assumir, então eu quero dividir isso com eles.” Então eu disse: “Aí você está certíssimo, te dou o maior apoio se você precisar de ajuda. Mas não se sinta coagido”. Eu tenho um amigo que dá aula em um colégio católico e para ele a situação é mais complicada, há um preconceito institucionalizado. Ele não tem garantia nenhuma, pode ser demitido a qualquer momento, enfim, uma série de coisas. Então, existem algumas situações profissionais, sociais e familiares que a gente tem que respeitar. Quando eu era mais novo, eu pensava

diferente. Mas não é bem por aí, as histórias e as circunstâncias são bem diferentes. A gente vive em um ambiente plural na universidade. O próprio nome já diz, é universidade: um universo de ideias, ações e atitudes diferentes, onde as pessoas se respeitam. Mas nem todos os lugares são assim, há ambientes muito cruéis em todos os sentidos: políticos, sexuais, raciais, etc. Nós jornalistas, artistas e produtores culturais vivemos em um nicho de relações sociais muito aberto. Na nossa área, as pessoas são mais tolerantes, no sentido de respeitar as diferenças. Dentro do sistema, às vezes, você tem mais possibilidade de lutar contra ele. Às vezes, lá dentro, você tem como corroer o sistema, mostrar para as pessoas com o seu trabalho. Não é porque você aceita determinadas coisas e cria formas para conviver com isso que você está sendo pelego. A vida não é tão maniqueísta assim, as coisas são mais complexas. Você administrando essas diferenças, você contribui muito mais para o respeito a elas, do que o enfrentamento puro e explícito.


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99 O Lacre: Tanto a rejeição, quanto a objetificação do corpo negro é algo que nos atinge. Você já sentiu as marcas desses estereótipos na pele? Cristiano: Nunca senti a rejeição do meu corpo, mas senti a objetificação. Nós negros somos vistos como bem dotados e máquinas sexuais. “O cara é maludo, é pintudo, transa muito”. Isso é uma coisa louca, as pessoas têm essa mítica. O que é horrível, porque elas já esperam algo da caixinha, do padrão. O foda desses rótulos é que eles aprisionam. Eles incomodam, não só o rótulo sexual, mas qualquer um deles. Porque eu não sou uma só coisa formatada, eu sou um ser humano em progresso. Eu adoro mudar de ideia, hoje eu posso querer uma coisa e amanhã outra, não tenho problema nenhum com isso. Nós estamos em trânsito, então a vida é uma eterna negociação minha com o universo e com as pessoas que eu convivo. O problema do rótulo é esse, aquela coisa das caixas. A caixinha de “bicha fechativa”, “heterossexual”, “bissexual”… Eu não me sinto bem em caixas! Aqui na UFJF, os técnicos administrativos em educação têm a mania de me chamar de professor. Meu nome é Cristiano, antes de ser professor, eu sou uma pessoa. Eu sou o Cristiano e aqui eu sou professor, mas eu sou uma série de outras coisas e a “caixa professor” anula todas. O que me incomoda não é o que a caixa diz de mim, mas o que ela deixa de dizer. Eu não tenho

problema nenhum de dizer que eu sou professor, gay ou negro, que eu sou tudo isso, mas eu não sou só isso. Aí te jogam numa caixa e parece que você é só aquilo e que você não pode sair daquilo; e eu quero sair o tempo inteiro. O Lacre: E quais outras caixas (estereótipos) não te/ nos cabe? Cristiano: Existe uma mítica de que gays possuem vários parceiros sexuais, não são monogâmicos, não se relacionam com a mesma pessoa por muito tempo; um ar de promiscuidade. Pelo contrário, eu vejo que muitos gays têm o sonho de viver uma relação duradoura, mas não encontram o parceiro ideal. Toda relação homo ou hetero depende muito da pessoa. Tem gente que tem o comportamento casal e gente que não. Acho que eu tive a sorte de encontrar alguém assim. Na verdade, nós nos encontramos. Estamos juntos há mais de 20 anos e, no começo, se você me perguntasse se a relação ia durar três meses ou um ano, eu não tinha ideia, mas,desde o início, eu sabia que era sério. O mais interessante é quando você respeita e gosta da pessoa e vai construindo uma relação ao longo dos anos. Aí vai ficando bom, ao invés de desgastar ou ficar ruim -como em muitos casamentos - vai ficando melhor. Agora, é uma construção diária, não é fácil dividir a vida com alguém. Tem os lados ótimos, tem compensação, mas também tem muita dificuldade, e isso junto e diariamente.


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Olha la voce: O preconceito nas entrelinhas

MAURO LEOPOLDINO

Na época, eu estava com o cabelo comprido e alisado, mas tentando voltar ao natural, aí teve o trote, e eu resolvi mudar. Durante a graduação, eu deixei o meu cabelo black power crescer de novo e, às vezes, as pessoas brincavam, falando “o cabeludo”. Então as pessoas faziam observações nesse esquema e, pelo tipo de comentário, havia uma certa carga pejorativa. Isso não chegou a afetar a minha autoestima, porque são pequenas coisas que vão perdendo o sentido, e você acaba relevando. Quando eu comecei a advogar, eu resolvi cortar meu cabelo para ter uma apresentação um pouco mais abrandada. Mas me arrependi muito porque eu só queria me encaixar no padrão que era o da minha profissão. No direito é assim, você tem que usar terno, estar sempre de roupa social e bem alinhado. É aquela ideia: “Ah você vai ser advogado, então não pode”. Até minha mãe mesmo falava: “Corta esse cabelo, ele não combina com advogado.” Percebi isso com as minhas irmãs, minha mãe alisava o cabelo delas. E elas com os meus sobrinhos não fazem isso. Elas deixam o cabelo deles crespo. Muitas vezes, essas coisas são repassadas para as crianças e, quando não há uma reflexão, isso vai sendo naturalizado. Agora comecei a refletir sobre mim, sobre o meu cabelo, sobre mim como homem negro. Então, eu comecei a me aceitar mais. Se quero ter o cabelo comprido, vou deixar crescer como ele é. Eu não vou precisar ter um cabelo que se adeque ao que a sociedade espera. Mas o que eu acho interessante é essa reflexão. Você começa a tentar ler as entrelinhas. Começa a perceber que algumas coisas que você falava, conformava ou ria, não são naturais, legais ou aceitáveis e que não é bem por aí. Hoje em dia as pessoas já refletem sobre isso. Até outro dia o meu namorado fez um comentário: “Olha lá, para de fazer baianada”. Aí eu disse: “Olha lá você”. Ele não havia percebido que essa expressão se referia a baiano e que havia um preconceito em cima disso.

Formado em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Mauro Eduardo Leopoldino trabalha como técnicoadministrativo em educação na Central de Atendimento da Instituição. Leopoldino possui duas especializações pela UFJF, sendo uma em Direito do Consumidor e outra em Direito Empresarial, Relações do Trabalho e Inovações Te c n o l ó g i c a s . Atualmente, o servidor cursa o Mestrado em Administração Pública, também na Instituição. Em entrevista à revista O Lacre, Mauro fala da sua relação com a universidade e dos preconceitos que gays negros estão espoxtos.


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ESTaO SENDO CONQUISTADOS Entrevista com o técnico Mauro Leopoldino

O Lacre: o cabelo também é um símbolo da identidade negra. Que tipo de relação você estabeleceu com ele? Mauro: “Na época do colégio, eu era um pouco CDF, então havia uma certa implicância com isso e, também, com o meu cabelo e com a minha cor. Quando a gente é criança, acaba rindo daquilo como um mecanismo de defesa, para tentar suavizar. Teve uma época que eu quis deixar o cabelo crescer, e o padrão que se passava não era o do cabelo grande crespo, então, eu fazia tratamento químico. Chegou uma hora que eu me cansei, cortei, fiquei careca e resolvi deixar crescer crespo, ficar black power. Eu fui me construindo em cima disso também. Atualmente, está na moda homens com cabelo grande, com o corte samurai, por exemplo. Aí eu fico me perguntando: Se meu cabelo fosse liso e desse jeito, será que minha mãe ia ficar falando para cortar? Então as pessoas começam a repensar essas coisas e veem que há um preconceito imbuído nisso, que está subjacente e é repassado. Aí

você começa a pensar que aquele comentário que está tentando dar luz a alguma coisa, na verdade, não dá. Isso acaba gerando mais preconceito. Às vezes, você acaba aceitando as coisas por achar que um padrão é correto e, na verdade, não é. O Lacre: na época da sua graduação, qual era o espaço das pessoas negras na Universidade? Mauro: Quando eu entrei na UFJF, em 2006, era o primeiro ano do sistema de cotas sociorraciais. Mas não entrei por ele, não cheguei a ler o edital e não sabia desse sistema. Na minha turma, de negros éramos eu, o George, a Mariana, que acabou não se formando, e uma outra menina que ficou pouco tempo. Então éramos quatro num universo de 30 pessoas. Como a gente era a primeira turma, a cara da Universidade e da Faculdade de Direito não era tão diversificada quanto é hoje. Ainda é pouco, mas antes não tinha essa pluralidade, e as pessoas acabavam desistindo e não se formavam. O Lacre: Quando um gay negro encontra pessoas iguais a ele na comunidade acadêmica


103 (docentes, discentes, técnicos e funcionários), existe um sentimento de representatividade e reconhecimento? Mauro: Quando você vai a um lugar em que você não se sente espelhado em nada e ninguém e vê que é muito diferente daquele lugar, causa um estranhamento. Os mecanismos das pessoas caem, porque elas vão se sentir totalmente à parte do ambiente que as recepciona, que não há nenhum padrão em que elas se sintam seguras, acolhidas e abraçadas. Se eu tivesse entrado na universidade como um TAE em um ambiente machista, retrógrado e cheio de preconceitos, provavelmente eu não seria a pessoa e o profissional que eu sou hoje. Talvez eu não tivesse a tranquilidade que tenho. Quando eu cheguei e percebi que meu chefe também era gay, foi uma preocupação a menos. Pluralidade de aspectos sociais é importante, principalmente para a universidade. O Lacre: você já sofreu/ sofre preconceito? Como você percebe isso dentro e fora da universidade? Mauro: Eu percebo o preconceito mais fora da

Universidade, quando estou com o meu namorado. Quando eu faço algum carinho, um toque, um beijo. Às vezes, há uma reação não natural das outras pessoas; com um casal hétero isso não acontece. Quando eu saía a noite com ele, às vezes, passavam pessoas de carro e faziam comentários preconceituosos. De um tempo para cá, isso não tem acontecido mais, mas também eu tenho saído menos. No meu trabalho como técnico administrativo na Central de Atendimento da UFJF, também não tive problemas. Até porque o meu chefe e o superior dele são gays. Como eles nunca se esconderam, eu também não precisei pisar em ovos ou ter uma postura mais discreta. Talvez eles tenham vivido algum tipo de opressão porque chegaram primeiro. No meu setor, eu nunca presenciei situações de opressão, como racismo e homofobia, mas na universidade, como um todo, às vezes, a gente percebe. Espaços estão sendo conquistados, então as pessoas estão revendo as ideias sobre o gay e o negro. Algumas pessoas ainda não


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105 enxergam com naturalidade, e elas não têm que definir o que é ou não, cada um define a sua normalidade. Dentro da academia eu não me recordo de alguma situação nesse sentido que eu tenha guardado. No curso que eu fiz (Direito), as pessoas com quem eu interagia não tinham essa maldade. Então não tive aqueles momentos de atrito. Quando eu apresentei meu namorado, a reação de todos foi super natural. Já no meu ambiente de trabalho, não existe muito disso, seja com os bolsistas ou com os funcionários. Nas faculdades que eu frequento, as pessoas acabam sendo um pouco padronizadas, então eu não sinto isso de cara. Mas em ambientes mais pluralizados, como no RU (Restaurante Universitário), em que transitam pessoas de todos os cursos e de todos os gêneros, às vezes, eu percebo entre acadêmicos e funcionários que há pessoas mais abertas e receptivas, mas há outras que se pudessem recusar determinadas pessoas, recusariam. O Lacre: Alguns gays negros se queixam da objetificação e da rejeição de seus corpos. Você se identifica com essas

queixas? Mauro: Sim. A gente sofre tanto com a objetificação, quanto com a rejeição. Meio que você percebe que as pessoas em algumas situações te querem, mas não te querem. Algumas vezes querem aproveitar de você, querem mais te usar do que te ter como pessoa, te querem mais como um objeto. Vivi isso mais intensamente quando eu era solteiro. Eu já estou há quase oito anos em relacionamento, então eu não percebo isso atualmente, mas aqueles comentários acabam existindo. O Lacre: Qual discriminação é mais difícil de ser enfrentada, a homofobia ou o racismo? Mauro: Talvez o racismo, porque é o que a pessoa já te vê. Se você está sozinho, parado é o que ela vai te identificar primeiro, pela cor da sua pele. Depois você começa a falar, agir e até interagir com a pessoa, aí pode vir o outro. Então, dependendo da sua apresentação, do jeito que você está, vai ser a primeira coisa que a pessoa vai ver. O racismo seria o carro chefe, mas os dois são muito complicados, ainda mais quando são aliados, isso é, estão interligados.


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Davidson Santos compartilhou

com O Lacre três crônicas “A Festa, O Quarto” e “O Banheiro” que fazem parte da coletânia de dez crônicas “Vidas desviadas”


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VIDAS DESVIADAS VIDAS DESVIADAS É UMA COLEÇÃO DE 10 CRÔNICAS QUE RETRATA AS VÁRIAS REALIDADES DE PESSOAS LGBTS, ESCRITA POR DAVIDSON SANTOS. O AUTOR É FORMADO EM LETRAS E MESTRANDO EM LINGUÍSTICA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA. OS TEXTOS DA COLEÇÃO, UTILIZADOS PELA REVISTA, NA VERSÃO DE DAVIDSON SÃO ENUMERADOS COMO 3,5 E 7 E AQUI RECEBEM OS TÍTULOS: “O QUARTO”, “O BANHEIRO” E “A FESTA”.


Foto: Arquivo pessoal / Divulgação

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O QUARTO

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Do outro lado, ele grita. Nossos quartos são separados por finas paredes pintadas de branco. Ele ainda tem 16 anos e vive com os pais. A religião nunca me pareceu um grande problema até o dia em que sua mãe, em nome de deus, lhe deu a primeira porrada. A gente era bem igual, os trejeitos, a voz mais aguda, o gosto pelo vizinho que insistia em desfilar sem camisa e que encarava nosso olhar pela janela. Dela nos víamos. Toda vez que ele, no final da tarde, caminhava, a gente trocava o

mesmo tipo de olhar: eu sabia dele e ele de mim. A diferença talvez fosse o fato de todos saberem de mim e somente eu saber dele, além, claro, do vizinho sem camisa que insistia em se exibir para nós. Faz um ano que, às noites, escuto o choro dele. Às vezes dói em mim. O grito, por vezes, é estridente e sai cortando a noite, antes silenciosa. Ele e o vizinho sem camisa foram pegos juntos, em um desses cantos que nos escondemos pelo medo do julgamento e pela não possibilidade de mostrarmos nossas caras e afetos. Depois disso, a gente não troca olhares comprometidos e empáticos pela janela. São quase seis da tarde. A chegada dos pais dele é sempre pesarosa, parece que sobre a

rua instaura-se uma pequena nuvem negra. Talvez seja a percepção que eu tenha com a chegada deles porque o silêncio da rua é quebrado. Em poucos instantes, o primeiro xingamento se quebra no ar, viado, a voz é grossa. A voz mais fina insiste em pedir a deus, o seu estranho deus, que tire de seu filho esse problema, mas não ouço nenhum pedido para que o ódio, esse instaurado no peito, também saia. Enquanto a voz fina insiste a deus que o demônio do “homossexualismo” não esteja mais em seu filho, ele confronta a deus com seu singelo pedido de libertação da sua própria família. Eu, aqui do lado, escuto impotente, cada reação. O pai grita, a mãe ora, o filho


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chora. Ouço o barulho do cinto, enquanto sinto em mim a sensação da dor de receber o que não se quer. O choro e o grito que saem de seu corpo é, talvez, sua única sensação de liberdade. Mais ofensas da voz de tom forte, eu não aceito um filho bicha. Filho meu não dá o cu. O tapa estala na cara, sua cabeça bate contra minha parede. Do lado de cá, escuto e a toco na tentativa de segurálo nos braços e dizer que está ok ser o que ele é, que do lado de cá as pessoas falam sobre isso e, à sua maneira, respeitam o que a gente é. O tempo ali é interminável e aqui é intocável. Por algum tempo, ouço apenas o ruído baixo de um choro que tenta se conter. Imagino-o deitado sobre a cama, o corpo

marcado pelas mãos imundas de um alguém que insiste em ver humanidade na violência e perverte o olhar sobre uma forma de amar. Bato de leve na parede na esperança de que ele entenda que estava com ele. Ele bate de volta. Deito na cama triste com o ocorrido e com a minha não ação. Por hoje acabou, mas amanhã o mesmo ritual se repetirá, penso. O choro estranhamente cessa. O silêncio retorna a rua. Fato pouco comum. Escuto-o chorando sempre por toda noite. Faz dias que ele não dorme. Faz dias que eu não durmo. Amanhã, talvez eu tome coragem e chame a polícia. O silêncio permanece. Do lado de fora das nossas casas, uma coruja espreita e se delicia com a sensação

de vazio. Faz frio lá fora. O silêncio agora só é cortado pelo chiar forte da coruja que insiste em encarar a casa. Parece uma condenação, a minha e a dele. Resolvo bater na parede outra vez. Nenhuma resposta. Insisto no toque que não vê retorno. Passo a noite outra vez em claro, pensando que talvez o cansaço e a dor o tenham consumido, fazendo-o cair em um sono profundo. Sete da manhã. Um grito estridente ensurdece e faz despertar os que na rua vivem. Era a voz fina que clamava a deus, o seu estranho deus, pedindo que trouxesse à vida o filho que não suportou a dor da violência do último ano e deixou-se ir silenciosamente para onde a culpa de ser o que é já não importava mais.


O BANHEIRO

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Gritaram: bichinha! Abaixou a cabeça e seguiu até o banheiro. Choro. O aperto no peito. A incompreensão. A palavra cortava pele, corpo, alma. O choro em soluços. A dor. Ele não sabia que sentir era isso: o aperto que purga e faz bater forte coração e cair lágrima quente. Repetia para si, viadinho, bichinha. A palavra. As palavras. E se eu fosse. E se eu for. Mas as palavras carregavam a não aceitação. Ali, fechado, temia a entrada de alguém. Ele, sentado, no chão sujo do banheiro da escola. Soluços. Sentia a palavra em si. Ele era a palavra. Bichinha! Viadinho!

Chorava. Calça azul marinho, camisa azul clara. Escola Municipal do Bom Jesus. Todos estavam assim também, mas o apontavam. O tênis preto também era igual. Não entendia. Viadinho. A palavra. A agressão. O sentido. Ele estava só agachado chorando no banheiro com as mesmas roupas que os outros. Não entendia. Doia o peito. Respirava fundo. Entrou alguém. Silêncio, disse para si. Escuta: onde está aquela bichinha fresca. Se cala e teme. Outro grita. Vasculha cada banheiro. O corpo contrai. Eles me acharão. Eles, que vestem a mesma roupa que eu, que estão na mesma escola que eu, na mesma série, na mesma merda diária de acordar e levantar e acordar e levantar. Respiro


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alto. Pequena indicação da localização de quem tanto se busca. Eles e eu. Batem na porta. Eu contraio o corpo. Silêncio. Saia viado, esbravejam. Eu sigo encostado no canto do vaso. Abra a porta, insistem. Esmurram a porta branca de madeira que quebra. Os joelhos dobrados quase encontrando a boca. Os olhos fechados esperando a primeira porrada que viria em momentos seguintes, pensei. Gritam. O chute termina o processo. A porta quebrada, eles me olham agachado, recolhendo o medo do próximo tapa. Encaram-me, percebo. A cabeça abaixada só consegue ver o corpo magro e trêmulo. A lágrima cai. Caminham até meu corpo. Espero. Quem dará o

primeiro golpe? Não tarda. O rapaz também de tênis preto inicia. De cima para baixo. Acerta a minha cabeça que bate contra minhas próprias pernas. Recebo outro golpe, agora do lado. Aguento a dor. Insultam. Outro porrada. Percebo que cai sobre o uniforme azul pequenas gotas de sangue, sem identificar de onde vinha. Encolhido em mim, arrastam-me do pequeno cubículo que me encontrava. Rasgam minha roupa. Mantenho-me calado, sentido cada pontada. Doi e não era só físico. Não experimento a fala. Um. Dois. Três. Quatro. Soco. Chute. Grito. Cinco. Seis. Sete. Soco. Grito. O lado esquerdo dolorido. O direito também. O sangue. É o rosto que sangra. É o nariz que

sangra. É o peito que sangra. A cabeça. Não param. Gritam. Viado. Viado. Viado. Oito. Nove. Viado. O soco. O chute. O soco. O Chute. Bicha. Viado. O sangue. O soco. O chute. Bicha. O sangue. O sangue. A dor. Dez. O chute. Os gritos. Viado. Viado. Viado. Viado. O sangue. O chute. E meu corpo deixa se levar. Não dói mais. Eu sangro. Chutam a cabeça. Viado. Barriga. A sola do pé na barriga, a minha. Bicha. O sangue. O estalo do osso. O estalo do corpo que quebra. Pisam. Escuto um último ruído do chute: o tênis preto se movimenta rapidamente e explode a ponta no meu ouvido. Vejo a última imagem. Durmo silenciosamente no banheiro da Escola Municipal do Bom Jesus.


A FESTA

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O rosto vago, sorriso amarelo. Antes da ida, um pequeno aquecimento. R o u p a s coloridas, vodka na mesa. Conversas sobre possíveis possibilidades. A noite é sempre uma criança malcriada que se nega a dormir cedo. Eles, no apartamento classe média, iniciavam ali mesmo o processo. Ei, essa noite será “fébulus”, todas as divas pops prestigiarão a festa. Aquele rapaz, o do aplicativo rostocarne-mercado-de padrões baratos, estará por lá. O ex

de fulaninho, aquela bicha afeminadíssima, confirmou presença no evento (sabia que não daria certo mesmo). Espero que “as pão com ovo” daquela favela de cima não desçam. Essa camisa tá linda, é calvin Klein, garota, porque não estaria. Ritual. Mais copos de vodka com energético barato. Mais um cigarro aceso. Mais algumas conversações. Eu, ali, rosto vago, sorriso amarelo. Alguém sugere uma brincadeira. Propósito: estar mais alto até a nossa saída. Encaro aquilo como a possibilidade de me desgarrar da realidade e ocultar minha indignação. Um copo. Outro copo. Lucidez. Mais um copo. A vodka desce amarga e queima. Outro copo. Hora de sair. Minha expressão de espanto espanta os demais

componentes do grupo. Que houve?, perguntam. Respondo sem pressa: vocês me dão nojo. Espanto. Agora são eles que carregam o sorriso amarelo. A testa franze. Pergunto: que diabos está acontecendo com vocês? Eles sem entender sugerem que é melhor eu ficar em casa, já estava demasiadamente alcoolizado. “Somos, para eles, essa ferida aberta cheia de pus que purga”, “temos, para eles, cheiro de cu”, “somos apenas bichas, seja preta, branca, passiva, ativa, efeminada ou não”. “Somos todos bichas”. Olham-me estranho sem entender. Ainda na sala, observo cada um com suas roupas de marca, seus cabelos redesenhados em gel, seus perfumes de marca importada, suas


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máscaras da mary kay. Cuspo no chão da sala. Bêbada, me chama um. Cuspo outra vez. Acendo um cigarro e, no silêncio que agora paira sobre nossos corpos, repito vagarosamente: gay, pobre, preto, gay, pobre, preto, gay, pobre e preto. E o cheiro de bosta. Nos contam demasiadas asneiras: histórias cinematográficas de ricos-homossexuais-bem sucedidos-de Nova York city ou São Francisco. Como seja. Vidas perfeitas que nada se parecem a nossa. Essa bonita história é apenas imaginações perfeitas do que poderia ser e não é. Sexta-feira. O silêncio permanece enquanto olhares acompanham minha boca. Gay, pobre, preto, gay, pobre e preto. Olham-me confusos, agora, gay pobre e preto. O

cheiro insuportável deles e o meu. A vodka. A merda. Eles e eu. Um deles, numa tentativa de terminar o incômodo, sugere que a ida seja realizada. Eu continuo gay, pobre e preto. A gente continua tendo lugar e hora e data marcados para demonstrar carinho. A gente ainda solta as mãos na rua com medo da noite escura. A gente continua se desencontrando porque a bicha cheira a cu, porque a bicha dá o cu. Não nos conhecem e nos reduzem a cu e a cheiro de bosta. Eles resolvem descer e chamar um táxi. Eu grito num só espasmo: Bichas, é isso que todo somos. Somos feridas abertas dessa sociedade doente. Talvez nos encontrem em uma dessas esquinas sujas, onde costumam nos jogar. Ali na

sarjeta. Ali na escuridão. Ali onde não nos veem. Quem sabe ali nos deixem viver em paz ou nos dão ali, na esquina escura, o descanso eterno. Eu continuo sentado, cigarro aceso. Eles fazem o movimento de quem quer sair. Um incômodo. Um tormento. O meu grito. Eles descem. Eu sentado. O táxi chegou. Respiro e repito mentalmente: gay, pobre e preto. O Cheiro de merda. Nosso cheiro de bosta. Trago forte e reparo sozinho na sala os copos de vodka que tomam conta de toda a mesa, o cigarro já quase apagado, a noite silenciosa. Meu corpo só, cuspo no chão outra vez na tentativa torpe de não enganar-me: não é preciso compactuar com a dor. Eles não percebem que o corpo que aponta é corpo apontado.


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Ocupar o ambiente universitário e estar em contato com movimentos sociais populares, dentro e fora da academia, fortalece as identidades sociais de jovens e de outras pessoas que pertencem à minorias sociais, especialmente negr@s e LGBTs. Todavia, é necessário que os debates em torno dessas causas não se restrinjam aos muros do meio acadêmico e do discurso de alguns movimentos. Essas formas de conhecimento não devem ser privilégios, mas direitos. Isso é, toda a população precisa se reconhecer e se reafirmar. É preciso pintar a universidade de povo, mas também é preciso pintar o povo de universidade. (O Lacre, 2017)


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