DEZEMBRO 2014
Moçambique
E N T E NDENDO AS MASCULINIDADES
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"É P R ECIS O Q UE OS HO M E NS FAÇAM O M ES M O QUE AS M U LH E RES F I ZE R AM" Entrevista com Joaquim Chissano
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ÍNDICE -
OS CAMINHOS E DESCAMINHOS DO SER HOMEM EM MOÇAMBIQUE Manuel Macia
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OS TERMOS B’AVA, MULUMUZANA, NKOSIKAZI E DZA’NWA’NWA E SUA RELAÇÃO COM O MITO DE SUPERIORIDADE MASCULINA NA CULTURA TSONGA Percida Langa
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MOÇAMBIQUE: COMO ALGUMAS CANÇÕES PERPETUAM O PATRIARCADO Bayano Valy
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MASCULINIDADES E AS NOSSAS TRADIÇÕES – URGENTE REPENSAR! Gilberto Macuacua COMO O HOMEM INTERFERE NOS DETERMINANTES SOCIAIS DE SAÚDE? Diogo Milagre MASCULINIDADE, PATRIARCADO E REFORMA DO CÓDIGO PENAL Maria José Arthur MASCULINIDADES??? Ondina da Barca Vieira ACTIVISMOS FEMINISTAS E INTERROGAÇÕES SOBRE MASCULINIDADES EM MOÇAMBIQUE Isabel Maria Casimiro MASCULINIDADES DESCOBERTAS Gary Barker JOAQUIM CHISSANO - ENTREVISTA Julio Langa e Cremildo Churane MASCULINIDADE, PAZ E CRIMINALIDADE EM SOFALA: UM OLHAR SOBRE A DOMINAÇÃO MASCULINA Bayano Valy e Arsenio Manhice UM PAI DE BÉBÉ NA PEDIATRIA Pedro Muiambo
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PALAVRAS DO EDITOR -
texto, bastante reduzida, não tem oferecido muitas promessas. Apesar dos esforços para promover debates críticos e da existência de evidências contundentes sobre os impactos negativos de determinadas formas e manifestações de masculinidades na saúde pública e no desenvolvimento, consequentemente na melhoria da situação dos direitos humanos, parece-nos que ainda não tem sido atribuída uma atenção suficiente a este assunto, principalmente ao nível de políticas públicas de educação, saúde e justiça.
Julio Langa
Nos últimos anos, temos procurado fortalecer as discussões públicas sobre a temática das masculinidades em Moçambique com recurso aos meios de comunicação social tradicionais bem como a media social. Temos insistido na necessidade de criação de mais espaços para realização de reflexões (auto) críticas sobre masculinidades e as sérias implicações que estas tem para os direitos humanos de mulheres, homens e crianças. Entre diversas questões, inquietantes, perguntamo-nos constantemente o que significam masculinidades? O que há de errado nas maneiras de ser homem que predominam na nossa sociedade? Que tipo de masculinidades desejamos para a nossa sociedade? Como viabilizá-las? Enquanto activistas pelos direitos humanos, igualdade de género e masculinidades positivas assumimos o risco de nos tornarmos “estrangeiros dentro da nossa própria cultura.” Ao mesmo tempo que questionamos as masculinidades e encorajamos o debate sobre estas, principalmente no seio da população masculina (mas não só), submetêmo-nos a olhares suspeitos e interrogações constantes. Nossas próprias “masculinidades” se tornaram “duvidosas”. Estamos certos de que existem neste campo muitas questões por desvelar. A pesquisa antropológica sobre esta matéria no nosso con-
Esta publicação pretende ampliar o debate e compreensão sobre as masculinidades e os problemas que lhes estão associados em Moçambique. Contamos com contribuições críticas de activistas pelos direitos humanos e outros, jornalistas, académicos, artistas etc. O surgimento ou afirmação de versões de masculinidades desassociadas da agressividade, conflitos e exposição a riscos, o aumento da responsabilidade dos homens na construção da igualdade de direitos e de uma paz sustentável e a melhoria da saúde são uma parte importante da agenda de discussões desta revista. Os problemas associados às masculinidades são imensos e alguns deles serão descritos nesta e em futuras edições desta publicação. A sua nocividade para os direitos das mulheres e crianças será objecto de contínua reflexão. Também serão debatidos os impactos sobre os próprios homens, a quem muitas vezes é atribuída a responsabilidade de liderar a concretização das construções sociais de masculinidade através do exercício de poder no dia a dia etc. Partilhamos o entendimento de que igualdade de direitos entre homens e mulheres, incluindo a necessária transformação de papéis sociais de homens e mulheres que a acompanham, a não discriminação com base em noções arbitrárias do masculino e do feminino e a inclusão social são inadiáveis assuntos de interesse público!
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OS CAMINHOS E DESCAMINHOS DE SE SER HOMEM EM MOÇAMBIQUE: UM CONVITE PARA REFLEXÃO Manuel Macia, PhD*
Numa situação normal em realidades socioculturais africanas, incluindo Moçambique, quando um casal acaba de se constituir tem, normalmente, como um dos seus desejos, seja a curto ou médio prazo, ter filhos. E, ao tê-los, como resultado de um projecto social, e não apenas de simples produto fortuíto de procriação, o casal imediatamente começa a formar um conjunto de expectativas do que estes filhos devem ser no futuro. O que é muito interesse ainda é que o conjunto de tais expectativas irá depender, em grande medida, do facto de os filhos serem ou do sexo masculino ou do sexo feminino. Em outras palavras, um dos primeiros
critérios usados na formação de tais expectativas, ou seja, do que os pais esperam dos seus filhos quando estes forem adultos é, normalmente, dependente do facto de estes serem rapazes ou raparigas. Como é sabido, no ciclo da vida, rapazes e raparigas tornam-se homens ou mulheres. E ser homem ou mulher é mais do que alguém ter barba ou seios! Ser homem ou mulher é uma forma de ser e de estar. No entanto, as expectativas que se formam perante os filhos não são, normalmente, produto de mero desejo do casal. Isto só não basta! Tais expectativas devem res-
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ponder a perfis identitários que os grupos primários de pertença (normalmente a família mais alargada e etnia) definem como o mais esperável num homem ou numa mulher. Estudos antropológicos e sociológicos já convencionaram este tipo de reflexão no que se designa por estudos de género – um campo de reflexão e debate intelectual sobre o espaço das relações sociais entre pessoas qualificadas como homens ou mulheres. Nos dias de hoje, precisamente por causa do modo como homens e mulheres se relacionaram no passado, mesmo antes de Cristo, e das consequências práticas que tais relações sempre implicaram nas diferentes regiões do mundo, incluíndo a violência baseada no género, onde as mulheres, infelizmente, têm sido as maiores vítimas, tem suscitado maior interesse e questionamento. Os questionamentos não só ocorrem no espaço académico como também no espaço da advocacia, em particular sobre as experiências comportamentais, emocionais, cognitivas, psicológicas e socioculturais do que significa, afinal, Ser homem. Durante as últimas duas ou três décadas, os estudos de género no país e no mundo, por tanto se preocuparem com a condição social e específica da mulher, levaram, inclusive, a uma distorção conceptual do que se entendia por “género”. Começou-se a associar literalmente o conceito de género a assuntos da mulher. Claro, um grande equívoco! Exercícios analíticos posteriores e estudos empíricos têm demonstrado que os problemas da mulher derivam, em parte, da natureza e tipo de relações que esta tem tido com o homem. Mas, mais importante
ainda, o que resulta desta arqueologia social é que se tem chegado à triste conclusão de que, afinal, pouco ou quase nada se sabe do homem com o qual a mulher se relaciona, enquanto produto social. Desta perplexidade, têm surgido perguntas óbvias do tipo: Afinal, o que é ser homem? ou O que significa ser homem em contextos históricos concretos? Tentativas de responder a esta e outras perguntas fazem parte do que se chama na literatura sociológica especializada de “estudos das masculinidades”. Pessoalmente, tenho também um interesse especial sobre o assunto. Na verdade, parece legítimo considerar ter chegado o momento de perguntar como se processa a construção das masculinidades no contexto moçambicano. Ou, mais especificamente, o que siginifica ser homem no Moçambique
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SER HOMEM OU SER MULHER É MAIS DO QUE ALGUÉM TER BARBA OU SEIOS! SER HOMEM E MULHER É UMA FORMA DE SER E DE ESTAR.
contemporâneo, tendo em conta a noção dos espaços plurais que fermentam a nossa moçambicanidade. Obviamente que estas pequenas notas não vão responder a estas ou outras perguntas,
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mas, com certeza, podem servir de convite para estudos científicos mais aprofundados e abrir uma oportunidade para um debate mais informado. Perguntas como as colocadas acima demandam respostas que devem ter em conta o contexto histórico, social, cultural, económico e político em que elas são feitas. Parte dos meus estudos empíricos sugerem que são vários os critérios que pessoas de comunidades específicas usam para definir ou traçar um padrão do que significa, para si, ser homem. Parte desses critérios in-
cluem elementos como (i) ser a referência da economia da família, isto é, a capacidade de o homem ser provedor da sua família; (ii) a virilidade ou a capacidade de o homem gerar filhos; (iii) a capacidade de formar a própria família, o que significa ter a sua prória casa e ter sua própria mulher; (iv) ter ou demonstrar ter e exercer poder sobre a sua mulher, incluíndo a capacidade de controlar o corpo e a vontade da mulher, impondo-se sobre ela, mas também sobre qualquer que seja a mulher, caso isso seja necessário, entre outros elementos. Como se pode ver, com a nossa diversidade
Foto de Mario Macilau
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cultural e social, não espanta que existam muitos mais aspectos que só a investigação científica pode revelar. Dos poucos elementos arrolados aqui fica a grande questão das consequências práticas de cada um deles na vida dos próprios homens e das mulheres, suas parceiras nas relaões sociais quotidianas. Uma dessas consequências práticas tem a ver com a obsessão dos homens em ter e demonstrar que são capazes de evidenciar, entre seus pares e sociedade em geral, que conseguem preencher este modelo. Daqui
se pode imaginar, entre outras hipóteses, as pressões de natureza psicológica e social que o homem tem de suportar. A outra, e talvez a mais importante, pode ser o lugar que a violência sobre as mulheres tem nesse quadro. Fui convidado a que tentasse colocar o problema para que cada homem comece a pensar e a fazer perguntas sobre si e seus pares. Espero te-lo conseguido. Até ao próximo convite. Manuel Macia;Sociólogo, PHD
Foto de Amilton Neves
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OS TERMOS B’AVA, MULUMUZANA, NKOSIKAZI E DZA’NWA’NWA E SUA RELAÇÃO COM O MITO DE SUPERIORIDADE MASCULINA NA CULTURA TSONGA Percida Langa
“…então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher…” (Génesis 2, 21-22) Em todas as sociedades humanas existe a ideia de que o homem é superior à mulher, sendo que cada uma tem os seus mecanismos de reproduzi-la, em termos sociais e culturais que, muitas vezes, se reflectem, também, nas diferenças de comportamento linguístico/comunicativo adoptado por homens e mulheres. Nesta breve abordagem
pretende-se mostrar a forma como, através da socialização e do lobolo, se constrói o mito de superioridade masculina e como este se traduz no uso da língua através de expressões como b´ava, mulumuzana, nkosikazi e dzan’wa’nwa, entre outros comportamentos linguísticos, bem como o seu significado na cultura Tsonga. A observação do quotidiano da sociedade Tsonga permite assumir que a forma como se educa rapazes e raparigas não é a mesma, embora ambos sejam educados a obedecer aos mesmos princípios de ética e moral. Tal como já escrevera Junod (1996), os rapazes
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são, principalmente, educados pelo pai e aprendem a ser homens e as raparigas pela mãe, aprendendo a ser mulheres. Nesse processo os rapazes aprendem “trabalhos de homem”, como cortar estacas, pastorear o gado e construir casas; as meninas, por sua vez, aprendem “trabalhos de mulher” como cozinhar, cuidar da casa e acarretar água. As meninas aprendem também a “ter medo” (entendido como respeitar ao marido) quando estiverem no lar. Ao longo deste processo, os rapazes interiorizam a ideia de que são superiores às meninas, pois são educados para ser chefes de família e as meninas aprendem a ser submissas aos rapazes em geral, e mais tarde ao marido, em particular, a quem devem temer, tratando-o com deferência. Elas aprendem que o homem, no geral, é b’ava (Senhor). Ou seja, o homem e a mulher são socialmente diferentes e, linguisticamente, essa diferença traduz-se no uso de termos como mulumuzana (chefe importante), o homem, nkosikazi (chefe subalterno), a mulher em que a mulher expressa a sua posição subalterna pelo uso de um tom de voz mais baixo que o do homem, referindo-se a ele (desde o irmão mais novo ao marido) como b’ava, o que, geralmente, é acompanhado pelo acto de se ajoelhar diante do homem. Isso explica-se pelo facto de, a educação que os homens e mulheres recebem em criança preparar-lhes para reconhecer a suprioridade do homem perante a mulher e a sociedade espera de todos os seus membros, homens e mulheres, um comportamento (o linguístico incluído) de acordo com esses ensinamentos. Um aspecto que desperta particular intere-
Foto de Mario Macilau
sse entre os Tsongas é que mais tarde, a mulher aprende que o homem é mulumuzana e, quando casada, nunca deve tratar ou referir-se ao marido pelo nome próprio, principalmente em público, sendo obrigada a usar os já referidos termos mulumuzana e b’ava como expressão sublime de respeito e submissão ao homem. Isto não significa que o homem não deve respeito à mulher. Deve-o como a qualquer membro da sua sociedade e também pode empregar termos como mamani (mãe) em referência a ela mas, ao contrário da mulher, o homem não é obrigado a tal e nunca se ajoelha diante de uma mulher. (salvo em casos muito específicos como se, por exemplo, a mulher em causa for curandeira) Ele pode decidir que forma adoptar para dirigir-se ou referir-se à mulher, evidenciando isso que o homem tem poder e é superior à mulher, ideia essa que é transmitida às crianças ao longo do processo de socialização. Na idade adulta, e sobretudo com a prática do lobolo, os homens e mulheres reproduzem os ensinamentos adquiridos em infância.
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Na cultura Tsonga, o lobolo é um aspecto interessante de se observar, pois contribui, em grande escala, para legitimar a superioridade masculina e construir estereótipos sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. É que, ao mesmo tempo que esta prática cultural serve para legitimá-lo como genro, (cf. Granjo, s/d) confere ao homem um “título de propriedade” sobre a mulher, que passa a dever-lhe satisfação, obediência e respeito acrescidos e, acima de tudo, submissão. O homem “adquire” também o direito de ser o mulumuzana. O mulumuzana é o chefe da casa, aquele que tem o direito de mandar e de ser obedecido e respeitado. Isto porque, no acto do lobolo, a mulher recebe instruções sobre como se deve comportar com o seu marido. Isso implica que ela deve submeter-se a ele. Linguisticamente isso traduz-se no uso das já referidas expressões mulumuzana e b’ava e de um tom de voz que mostre a sua inferioridade, em relação ao homem. Uma mulher que use um tom de voz alto para com o marido é socialmente condenada e o seu marido é desvalorizado. A mulher também não deve usar actos de fala imperativos para com o marido, esse direito é única e exclusivamente reservado a ele pois ele é o “chefe”, o mulumuzana. A mulher deve ainda ajoelhar-se para falar como o seu marido. Isso revela a forma como normas e convenções sociais regulam não só o comportamento social, como também o linguístico (cf. Competência Comuicativa, Hymes, 1922), particularmente a forma como este se torna diferente entre homens e mulheres.
A socialização e o lobolo constituem mecanismos de diferenciação entre homens e mulheres, concorrem para a diferenciação dos seus comportamentos sociais e para uma cada vez maior crença no mito de superioridade masculina, traduzida, linguisticamente, pelo uso de determinado tipo de expressões e comportamento verbal que, por sua vez, levam à criação de estereótipos do que é (ou deve ser) um homem ou uma mulher na sociedade Tsonga, em particular, sobretudo se se pensar que uma mulher deve reservar ao homem um respeito como o que se reserva a um deus. Aliás, há quem use o argumento de que Deus primeiro criou o homem e só mais tarde a mulher, a partir da costela do homem, daí que o homem seja superior, o que justifica a citação feita a Génesis 2, 21-22 no início do presente texto.
Ao agir contrariamente a isso o homem e, sobretudo a mulher, violam, não só normas
Pércida Langa, Docente do Departamento de Linguística e literatura da Universidade Eduardo Mondlane
sociais como também linguísticas que regulam o uso da língua. No caso da mulher ser a violadora, falando alto, gritando com o marido e usando actos de fala imperativos, ela é conotada com o uso de drogas para dominar o marido e, geralmente, é convocada para “ser aconselhada” a mudar de comportamento, sob pena de envergonhar, não só a sua família, como também ao marido. É que quando a mulher fala mais alto que o homem e "manda" nele, este é qualificado como dza’nwa’wa (matreco, homem sem voz “activa” sobre a mulher) ou ndhzava (cesto) e outros termos que rebaixam a sua posição social perigando o seu estatuto de mulumuzana,
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MULEIDE Associação Mulher Lei e Desenvolvimento
Oferece aconselhamento e patrocínio jurídico legal e assistência psicológica a mulheres economicamente desfavorecidas.
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MOÇAMBIQUE: COMO ALGUMAS CANÇÕES PERPETUAM O PATRIARCADO Bayano Valy
Essa dama é uma goya, xipixi xa nova xa kufana ni lexiya (gata selvagem parecida com a outra…). Este é o trecho de abertura de uma pretensa canção do pretenso género musical Pandza, que a partida parece pretender criticar o comportamento considerado promíscuo de certas mulheres. A tal pseudo-canção é da autoria dos Cizer Boss, com a participação de um tal de Dey. Portanto, são jovens do sexo masculino que talvez pretendam interpretar o social através das suas pseudo-canções. E no vídeo aparecem moças, as tais goyas, a dançarem com movimentos obscenos. Obviamente que tanto a canção como o vídeo são a representação de uma subcultura musical eivada de violência e
sexismo à la “gangster rap” norte-americano. O conteúdo resume-se à objectivação sexual da mulher e seu corpo – nos Estados Unidos, alguns pesquisadores têm vindo a fazer estudos muito interessantes que até certo ponto estabelecem uma correlação entre os “raps” violentos e desumanizantes e a alta do crime, especialmente dos casos de estupro. Talvez em Moçambique precisemos de fazer estudos para ver até que ponto as mensagens e conteúdos (?) Pandzas não estejam a perpetuar os estereótipos do género, e ajudar na manutenção do sistema patriarcal que insiste em querer controlar o corpo da mulher, isto é, a mulher não pode decidir por si o que pode ou deixar de fazer com o seu corpo.
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Quando uma mulher aparentemente adopta “comportamentos masculinos”, é logo etiquetada com as mais violentas e negativas etiquetas. É só ver, por exemplo, que diz-se popularmente que “mulher que trai é uma puta, mas homem que trai é macho”. Existe pois uma grande dualidade de critérios na adjectivação. O mesmo comportamento quando praticado por uma mulher assume uma conotação negativa e quando praticado pelo homem, adquire uma conotação positiva. É preciso vermos que isso enquadra-se dentro duma lógica dominante cuja raiz é o sistema do patriarcado. Sendo que, o patriarcado é um sistema social no qual o homem é que organiza o social e exerce a autoridade sobre as mulheres, os filhos e bens materiais e culturais. Sendo por isso sintomático que uma das fortes características do patriarcado é o controlo da sexualidade feminina. No que toca à sexualidade masculina, ensina-se o modelo do homem macho e viril como tipo ideal para garantir a continuidade da dominação masculina sobre a mulher. Não foi por acaso que Thaddeus Russell no livro “A Renegade History of the United States” disse que: “No século XIX, uma mulher que tivesse uma propriedade, ganhasse altos salários, fizesse sexo fora do casamento, tivesse realizado ou recebido sexo oral, usado métodos contraceptivos, convivido com homens de outras raças, dançado, bebido ou tivesse o hábito de caminhar sozinha em público, além de usar maquilhagem, perfume, roupa de estilo - e não se envergonhasse – era, provavelmente, uma prostituta”.
E esta forma de olhar para uma mulher senhora de si e do seu corpo ainda persiste nos nossos dias. Portanto, a pseudo-canção do Cizer Boss não existe num vácuo. Ela existe dentro desse contexto do patriarcado e da sua perpetuação. Por outras palavras, a mulher deve se guardar e o homem deve se espalhar. O interessante é que sem a existência das tais mulheres consideradas “goyas”, os homens não teriam sítio por onde se espalhar. O que torna qualquer crítica masculina às mulheres que não conformam ao tipo modelo definido pelo patriarcado um tanto a quanto irónica senão hipócrita. Essas pseudo-canções ganham expressão com a introdução do Pandza. O Pandza tem mesmo o condão de ser praticado por jovens e com um cunho de agressividade à mistura. O sociólogo Elísio Macamo disse há anos que o que o deixava intrigado “… nessa música jovem é a sua natureza lacónica. Não é nem sequer a temática sexual que essa é previsível, mas sim a forma bruta e agreste como ela é apresentada.” Lacónica, sexual, bruta e agreste. O que me chama a atenção é a semelhança do nome “Pandza”, enquanto pretenso género musical, e “Panzer”, enquanto tanque alemão. Acho que ainda nos lembramos dos tanques tipo “Panzer” de Rommel. Verdadeiras máquinas de guerra; brutas e assassinas. Socorrendo-me do “Xirhonga” da minha mãe, detenho-me na palavra “pandza”. Penso eu que vem da raiz “kuPandza”, isto é, rasgar, despedaçar, estilhaçar, rachar (por exemplo, nipandza ti hunye – racho a lenha). Como podem ver essas palavras
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todas têm um de violência nelas. O “Pandza”, pois, é violento. Violento no seu conteúdo; violento na sua instrumentalização. E é esta violência que consumimos passivamente no nosso dia-a-dia; e para além de, como homens, continuarmos a violentar fisicamente as nossas mulheres, usamos o Pandza para as violentarmos psicologicamente e perpetuar a noção de que a mulher não pode ter o controlo da sua sexualidade. Bayano Valy, Jornalista Independente
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É ESTA VIOLÊNCIA QUE CONSUMIMOS PASSIVAMENTE NO NOSSO DIA-A-DIA; E PARA ALÉM DE, COMO HOMENS, CONTINUARMOS A VIOLENTAR FISICAMENTE AS NOSSAS MULHERES, USAMOS O PANDZA PARA AS VIOLENTARMOS PSICOLOGICAMENTE E PERPETUAR A NOÇÃO DE QUE A MULHER NÃO PODE TER O CONTROLO DA SUA SEXUALIDADE.
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Foto de Amilton Neves Homens dançando juntos de tronco nu.
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MASCULINIDADES E AS NOSSAS TRADIÇÕES –URGENTE REPENSAR! Gilberto Macuacua
Vários autores escreveram sobre masculinidades, eu decidi tomar como ponto de partida a seguinte conceptualização: masculinidades referem-se a características socialmente construídas que são atribuídas ou se acredita serem convenientes para os indivíduos de sexo masculino. Frequentemente se opõem as características sociais consideradas tipicamente femininas (eg. “agressivo— afectuosa”; “racional— emocionada” etc).
Delgado e Niassa, uma das formas que reflecte melhor a relação entre a construção das masculinidade e as tradições, são os rituais de iniciação, pois, são uma componente cultural importante no processo de definição da identidade naquela região. É durante este processo que são transmitidos os valores que definem como os rapazes irão comportar-se no futuro, não só ao nível social, mas também como vêem a sua sexualidade.
As masculinidades reflectem de forma incotornável, valores e normas culturais adquiridas através do processo de socialização desencadeado por diferentes agentes; interage com outras dimensões tais como classe social, raça, religião, sexualidade, idade e etnicidade; é variável e muda ao longo do tempo e espaço.
A maior parte das famílias, faze questão que os filhos sejam submetidos a estes rituais, como uma forma de perservar a tradição.
No norte de Moçambique, nomeadamente nas províncias de Nampula, Cabo
Porém, durante este processo, algumas práticas que incentivam as violações sexuais contra mulheres quando estas, transgredirem uma determinada norma localmente estabelecida que proibe-as de atravessar ou caminhar num perímetro de cerca de
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quinhentos metros do acampamento dos ritos de iniciação masculinos, contrariam todo o discurso de respeito e integridade, que se tem deixado transparecer quando se fala de alguém que passou pelos rituais de iniciação. A iniciação masculina, parece corresponder a iniciação da virilidade que contém um exercício de dominação no campo da sexualidade. Por outro lado, a aprendizagem da sexualidade nos ritos de iniciação e o papel que desempenha, mostra que o prazer masculino é uma ordem dominante e espécie de uma obrigação cultural porque, se o parceiro da vitima estiver no grupo dos homens que estão em ritos de iniciação, é obrigado a participar do acto de violação, sob pena de não ser considerado um homem de verdade caso se recuse. Isto, por um lado mostra o nível de crueldade e por outro, o quão as mulheres não só, mas também os próprios homens são vítimas da tradição que elas e eles mesmos construiram.
dos direitos humanos. A violação sexual é crime e punível na República de Moçambique à luz da Lei 29/2009. Uma outra forma de entre as várias de preservar esta tradição e talvez perpetuar uma ordem de género que vai sempre subalternizar a mulher e tornar mais vulneráveis consciente ou incoscientemente os rapazes e homens, é proibir as pessoas, tanto homem assim como as próprias mulheres, de falar sobre as violações sexuais que tem ocorrido, fazendo-lhes acreditar que, caso exponham algum segredo deste ritual, algo terrível pode lhes acontecer. Por isso, muitas mulheres sofrem em silêncio e muitas das vezes não podem nem contar com o apoio dos seus parceiros uma vez que estes na maioria das vezes, culpabilizam-nas porque no
Actualmente, num contexto da pandemia da SIDA, onde em Moçambique, segundo últimos dados do CNCS (www.cncs.org. mz), estima-se que um total de 1.6 milhões de pessoas estão infectadas pelo HIV/SIDA e 120 mil novas infecções acontecem por ano e que, esta situação coloca o país entre os 10 mais afectados por esta pandemia a nível mundial, existe um risco enorme de transmissão desta doença decorrente destas práticas uma vez que, as relações sexuais mantidas naquele momento são geralmente desprotegidas, isto é, sem o uso do preservativo. Para além das violações sexuais causarem danos incalculáveis às mulheres vítimas, constituem uma grave violação Foto de Mario Macilau
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entender deles, elas sabiam que ao sairem de casa mesmo que seja para buscar água ou alimentos para a familia durante os ritos de iniciação, poderão encontrar homens que lhes podem violar.Assim, ao acontecer significa que estas mulheres consideram fraco o desempenho sexual dos seus parcei ros ou por outra, as masculinidades destes são postas em causa e considerando-as sagradas dada a hegemonia, é um problema grave, dando maior importância a isso em detrimento da dor da vítima. As mulheres não procuram os serviços de instituições apropriadas tais como Justiça, Saúde e Acção Social porque a grande maioria opta em procurar os médicos tradicionais, alguns deles lhes fazem acreditar que foram vitimas de um espírito mau. A equipa do programa Homem que é Homem da Rede Homens Pela Mudança, enquanto pesquisava sobre a matéria no ano de 2013, encontrou 11 mulheres violadas e que viviam no silêncio. Estas mulheres residem no posto administrativo de Anchilo, província de Nampula. Elas demoraram muito para falar mas, depois decidiram perante as câmeras de televisão, quebrar o silêncio. Esta matéria está evidenciada no documentário intitulado: “Ritos de Iniciação – O Lado Escuro” produzido por esta equipa.Esta, é uma das várias formas de demonstrar o quanto as tradições podem influenciar negativamente as masculinidades.
sul (que consistem em a viúva obrigatoriamente casar-se com o irmão do malogrado), os casamentos prematuros que de uma forma geral acontecem em todas as regiões de Moçambique não obstante os maiores indices apontarem para Zambézia, Niassa, Cabo Delgado e Nampula. Existe toda uma necessidade de se fazer uma reflexão muito profunda e tomar-se medidas concretas, não para eliminar as tradições mas sim, para encontrar formas alternativas mais saudáveis de as praticar tendo em conta que elas foram construidas pela sociedade e que a mesma sociedade pode também descontrui-las e construir outras. Esta reflexão deve observar todo um modelo ecológico o qual tem em conta os indivíduos, famílias, comunidades envolvidas, instituições sociais (media, instituições religiosas, grupos de amigos, etc... que têm influência sobre os indivíduos, familias, comunidades) e a nível das políticas públicas onde o estado tem a obrigação de criar mecanismos de proteger os cidadãos e cidadãs deste pais. Gilberto Macuacua, Apresentador de televisão e Gestor de Programas na Rede HOPEM
Existem em outras regiões deste extenso país, outras práticas tradicionais que tornam homens e mulheres vulneráveis a várias situações nocivas tais como “O pita Kufa” no centro do país ou “Kutxinga” no
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COMO O HOMEM INTERFERE NOS DETERMINANTES SOCIAIS DE SAÚDE? Diogo Milagre
Ao procurar-se dissecar o tema acima cuja formulação sugere uma pergunta, antes impõe-se aclarar alguns termos e, sobretudo, estabelecer balizas que possam melhor situar o âmbito e magnitude do tratamento do mesmo. O homem aqui referenciado surge em inicial minúscula, uma vez estar-se unicamente a tratar do género masculino. Afinal, a despeito de a HOPEM olhar para o contexto onde o homem e a mulher se inserem e reconhecer a justiça de género, tem enfocado a sua actuação no homem. Enquanto isso, assume-se a expressão determinantes socias de saúde aos factores sociais, económicos, culturais, éticos/raci-
ais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus factores de risco na população (CNDSS, 2006). O âmbito deste artigo gravita em torno da construção social da identidade masculina e como ela pavimenta no seu ego valores e identidades que lhe atraiçoam e a torna não só vulnerável, mas acima de tudo frágil em matérias de saúde em geral, mas também do bem estar. A CONSTRUÇÃO DA MASCULINIDADE A masculinidade é basicamente uma construção social. Entendida num contexto valorativo e de expectativas colocadas pela
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sociedade, assentes da cultura, sobre o ser homem ou o ser masculino, ela evolui, modifica-se, molda-se e aprimora-se. A masculinidade, assente na dominação patriarcal e constuída a partir da agregação de todos os caracteres convencionados socialmente como intrínsecos ao comportamento do que é macho no percurso socializador do indivíduo, tem exercido sobre o ego masculino e também femenino uma influência estruturante do comportamento que interfere e influência sobremaneira as variáveis sociais deterministicas da saúde. Basta referir-se que ao inculcar desde a tenra idade ao homem a resistência à dor e ao álgido, invocando-se e procurando-se salvaguardar a dureza e opulência do género masculino, este é afastado, por um lado, de toda a busca de antídotos preventivos da doença e, por outro, quando esta penetra no seu ser psiquico e somático, da busca quanto antes dos argumentos da cura ou dos meios terapêuticos exterirores. É que fazendo-o a interpretação impregnada na consciência social desse comportamento situar-lhe-á num patamar reducionista, revelando fragilidades que no contexto da socialização patriarcal são típicas do género feminino. A masculinidade, assim, longe de ser apenas um traço distintivo de quem tem um órgão genésico saliente e detentor de uma fisionomia, à partida, que se destaca por uma estrutura esquelética mais robusta e musculada, será também o somatório de expressões e representações que se traduzem na assumpção do risco, na bravura e, acima de tudo, na resistência à dor.
MAS ATÉ QUE PONTO A MASCULINIDADE ASSIM VISTA SE TORNA PREJUDICIAL À SAÚDE DO HOMEM? Estudiosos que se ocuparam já da saúde do homem têm repetidas vezes aflorado e reconhecido a prevalência de determinantes sociais que resultam na vulnerabilidade da população masculina aos agravos à saúde. Por exemplo, estudiosos no Brasil reconheceram que “ representações sociais sobre a masculinidade vigente comprometem o acesso à atenção integral, bem como repercutem de modo crítico na vulnerabilidade dessa população à situação de violência e de risco para à saúde.” È já um dado adquirido que os homens são mais vulneráveis às doenças, sobretudo às enfermidades graves e crónicas, e morrem mais precocemente que as mulheres. Mas, mais importante ainda é que a experiência social que, usando da teoria da tábua rasa, se encarrega de preencher a sua consicência individual, ao inculcar-lhe valores de reconhecimento social – como, por exemplo, ser resistente à dor, não chorar, não expressar publicamente suas emoções mais íntimas e deprimentes e reagir com violência e/ou agressividade à “invasão externa” ao seu “cosmus” pessoal – afastam-lhe de todo o exercício de “descarga” psicológica e emocial que propicia melhor qualidade de vida e, por conseguinte, melhor saúde. Já estudiosos e praticantes da psicanálise que remontam desde o tempo de Sigmund Freud reconheceram a influência negativa para a saúde individual exercida por
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esta carga valorativa e expectante sobre a manifestação da masculinidade, o que é muitos casos ia gerando psiconeurosses cujo tratamento incidia na catarse1. Deste modo, é um dado adquirido que o Homem, com inicial maiúscula e vinculativo dos géneros marculinos e feminino, com a sua cultura e identidade, com as suas normas e valores, com as suas expectativas socias no ser homem e no ser mulher influencia sobremaneira os determinantes sociais da saúde. O homem, com inicial minúscula, torna-se vítima desse legado socializador que a humanidade lhe confere, ainda que possa com a sua consciência influenciar e mudar esse rumo que não passa de mera construção social. Diogo Milagre, Presidente do Conselho de Direcção da Rede HOPEM
Entendido como processo de trazer à consciência do ser as emoções ou sentimentos reprimidos, em seu próprio inconsciente, fazendo com que ele seja capaz de se libertar das consequências ou dos problemas que esses sentimentos lhe causam.
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Foto de Mario Macilau
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É JÁ UM DADO ADQUIRIDO QUE OS HOMENS SÃO MAIS VULNERÁVEIS ÁS DOENÇAS, SOBRETUDO ÁS ENFERMIDADES GRAVES E CRÓNICAS, E MORREM MAIS PRECOCEMENTE QUE AS MULHERES.
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MASCULINIDADE, PATRIARCADO E REFORMA DO CÓDIGO PENAL Maria José Arthur
Está cada vez mais na ordem do dia discutir a masculinidade, sobretudo numa altura em que os direitos das mulheres e o feminismo se vêm afirmando na sociedade. As mulheres reclamam direitos e o feminismo usa a estratégia da desconstrução para revelar e mostrar que é a ordem cultural e social e não a natureza que determina os lugares e o poder de homens e de mulheres na sociedade. Considerando que a masculinidade é construída de maneira relacional e hierárquica com a feminilidade, não é de espantar que seja cada vez mais questionada e interrogada. Concebemos a identidade masculina, tal como a feminina, como um processo de relacionamento entre a pessoa e o seu ambiente social e cultural. Ou seja, quando nascem pessoas do sexo masculino ou feminino, elas devem aprender a ser homens ou mulheres, na interacção com o seu meio social.
Este processo de aprendizagem, que começa com o nascimento e continua ao longo de toda a vida, consubstancia-se através de ideias, valores crenças e na própria visão que temos do mundo e na maneira como o interpretamos e dele nos apropriamos. O sistema patriarcal pode ser apreendido nas suas práticas de desigualdade, mais visíveis, mas ele não tem possibilidade de existência sem os sistemas de conhecimento que o legitimam e o reproduzem. Por isso é que a “justeza” do patriarcado é aceite tanto por homens como por mulheres, e para modificar o que se poderia chamar “a ordem das coisas”, não é suficiente mudar as práticas de desigualdade, sem que se contestem as ideias e valores (que também cabem no que designamos de cultura) que colocam as mulheres como seres humanos nascidos para a subordinação e para aceitar o mando masculino. E por força desta ordem, a cultura do patriarcado é vista e
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percebida como a cultura de todos e de todas. Ora, quando se olha para a situação do país e se pega num dos principais pontos da agenda de direitos humanos, que é a revisão do Código Penal, não podemos deixar de pensar o quanto os problemas e obstáculos com que nos deparamos são devedores das ideias e concepções patriarcais vigentes, apesar de formalmente Moçambique ser um Estado de direito e defender princípios de igualdade. Dentro de uma óptica de direitos humanos, há três problemas fundamentais na proposta de Código Penal, de acordo com a última versão de 2 de Maio de 2014, e que se tem vindo a discutir com o Parlamento:
1. O Código Penal em revisão vem do século 19, encontrando-se pleno de preconceitos contra as mulheres; 2. O Código Penal falha em reconhecer os direitos das crianças e dos homossexuais, categorias que no século 19 não eram vistas como sujeitos de direitos, sendo que a homossexualidade era encarada como algo contranatura e criminalizada como atentatória da ordem; 3. O Código Penal, sob uma aparência de neutralidade, ao não considerar as diferenças entre homens e mulheres na sociedade, tem como resultado a discriminação. Há que ter em conta que as leis reflectem
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... EMBORA COMPROMETIDOS COM OS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICOS PORQUE SE REGE O PAÍS, HÁ LEGISLADORES QUE TÊM DIFICULDADE EM DESCONSTRUIR E NEUTRALIZAR OS VALORES, AS CRENÇAS E A VISÃO DO MUNDO DO SISTEMA PATRIARCAL, COM QUE CRESCERAM E QUE CONSIDERAM FAZER PARTE DA ORDEM DAS COISAS. TÊM DIFICULDADE EM IMAGINAR O MUNDO DE OUTRA MANEIRA, PORQUE A APLICAÇÃO NA ÍNTEGRA DOS NOVOS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICOS LHE PARECE PODER TRAZER A DESORDEM E A ANOMIA, PELO ROMPIMENTO COM A CULTURA E A TRADIÇÃO.
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a consciência social sobre o que é considerado justo e injusto e, portanto, em pleno século 19, algumas das normas que mais têm revoltado a sociedade, estariam de acordo com o espírito da época. Mas a questão permanece: porque é que hoje, em Moçambique, com uma Constituição que reconhece o princípio da igualdade e da não discriminação e com compromissos internacionais assumidos relativamente ao respeito dos direitos humanos, os legisladores não eliminaram completamente todas as normas discriminatórias e que veiculam preconceitos inadmissíveis actualmente no século 21? Por um lado, certamente porque alguns legisladores são conscientemente contrários aos princípios democráticos do país. Embora pareçam respeitar as instituições democráticas, na realidade opõem-se à democracia e mais concretamente à igualdade de direitos entre homens e mulheres e não aceitam a emergência de novos sujeitos de direitos, como as crianças e os homossexuais. Embora com um discurso democrático, eles são profundamente antidemocráticos ao defender um sistema tão autoritário e excludente como o patriarcal. Por outro lado, embora comprometidos com os princípios democráticos porque se rege o país, há legisladores que têm dificuldade em desconstruir e neutralizar os valores, as crenças e a visão do mundo do sistema patriarcal, com que cresceram e que consideram fazer parte da ordem das coisas. Têm dificuldade em imaginar o mundo de outra maneira, porque a aplicação na íntegra dos novos princípios democráti-
cos lhe parece poder trazer a desordem e a anomia, pelo rompimento com a cultura e a tradição. Uns e outros usam a cultura como arma para travar mudanças, sobretudo quando estas dizem respeito aos direitos de mulheres, crianças e homossexuais. Invoca-se a necessidade de preservação da identidade, ganhando desta maneira o suporte das elites tradicionais em busca de reconhecimento. Por isso, quando analisamos os recentes processos de mudanças legais que buscam o reconhecimento de direitos antes negados, se pode constatar a necessidade premente de lutar para contrariar a visão do mundo e as estruturas de conhecimento herdadas do sistema patriarcal. A começar pelo que se entende como masculino e feminino, a masculinidade e a feminilidade. Que tal se pudéssemos procurar o nosso lugar na vida e no mundo sem as visões espartilhadas que nos impõem, descobrindo outras maneiras de ser homem e de ser mulher, usufruindo de todos os direitos que nos cabem como seres humanos e sem que ninguém atente contra a nossa dignidade? Só desta maneira conseguiremos romper com um dos sistemas mais autoritários e cruéis, como o patriarcado. Maria Jose Arthur, Investigadora na WLSA Moçambique
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Foto de Carlos Uqueio Mulher em frente de policia com arma durante protestos sobre a reforma do código penal.
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MAS CULI NIDA DES ??? -
Tanto a masculinidade como a feminilidade desumanizam as pessoas, sejam homens ou mulheres. À uns, homens, concede poder de se sobreporem e a outras, mulheres, o dever de se submeterem. Impede as pessoas de “não fazer aos outros aquilo que não queremos que nos façam”. Por isso prefiro falar em racionalidade e sensi-bilidade que acredito serem inerentes a qualquer ser, especialmente os humanos. Assim consigo concentrar-me nas pessoas e não nos atributos e na forma como a sociedade os usa para enquadrá-las.
Ondina da Barca Vieira
Quase todos os dias me pergunto sobre o signi-ficado da igualdade de género, isto é, igualdade entre homens e mulheres. Dentre as muitas respostas, há uma que nunca falta, que é a seguinte: sentir-me, ver e tratar outrem, homem ou mulher, como pessoa e ser vista e tratada apenas pessoa. Nem mais nem menos. O que é que a masculinidade ou feminilidade têm a ver com esta reflexão? Os dois conceitos obrigam a categorização das pessoas em dois grupos – de fortes e fracos ou melhor fracas. É uma tarefa impossível para quem se desafia continuamente a perceber os limites entre os ditos fortes e fracos.
Em todas as pessoas, homens e mulheres, com quem me fui cruzando, a racionalidade e sensibilidade coexistem. Quando abstraídas das convenções estabelecidas pela sociedade sobre masculinidade/força como atributo de homens e a feminilidade/ fraqueza, de mulheres, as duas se manifestam naturalmente consoante a situação ou o momento. Na medida certa. Nem mais, nem menos. Os homens se permitem chorar de alegria, de tristeza ou de dor; ser gentis, cuidar dos filhos enfim, ver e tratar as outras pessoas em particular as mulheres como iguais. Tornam-se simplesmente pessoas eles mesmos, exprimindo suas emoções. Mas as amarras da sociedade são tão fortes que obrigam a maioria dos homens que conheço a exercícios extremos de supressão da sua sensibilidade. A negar a sua feminilidade. Na verdade os homens são assim moldados desde tenra idade. Às mulheres a sociedade impõe e exalta a sensi-bilidade. E, desaprova e reprime a racionalidade principalmente quando esta é vista como estando a pôr em perigo a do homem. Quando desafia a submissão.
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Somos desafiadas a encontrar sozinhas o equilíbrio para manter a masculinidade/de força sob control. Tarefa não poucas vezes inglória. Noto com esperança alguns sinais de transformação da percepção de masculinidade e feminilidade. Vejo homens aceitando a sua feminilidade em coisas bem pequenas como vestindo belas peças cor de rosa e outras roupas de cores ou tratando de detalhes da sua aparência como as unhas, antes tabu, com a cumplicidade das mulheres. Deixando para trás por exemplo o insonso preto e branco, para mim um dentre os muitos símbolos da masculinidade/força e de frieza. Alguns homens já se aperceberam que é mais do que uma mudança de cor! Vejo mulheres abraçando a sua racionalidade, definindo e perseguindo objectivos de vida como carreiras profissionais tendo homens como cumplices através do exercício da sua própria sensibilidade. O que está em questão não é supressão de uma parte de si mas deixar que cada uma delas emerja e se desenvolva por si só.
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TANTO A MASCULINIDADE COMO A FEMINILIDADE DESUMANIZAM AS PESSOAS, SEJAM HOMENS OU MULHERES. À UNS, HOMENS, CONCEDE PODER DE SE SOBREPOREM E A OUTRAS, MULHERES, O DEVER DE SE SUBMETEREM. IMPEDE AS PESSOAS DE “NÃO FAZER AOS OUTROS AQUILO QUE NÃO QUEREMOS QUE NOS FAÇAM
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A masculinidade e feminilidade como a conhecemos hoje nos tolhem. Fazem com que nos vejamos e tratemos como desiguais quando somos simplesmente pessoas, diferentes e complementares. Se fosse ajudante de Deus, proporia uma poção para despertar mais rapidamente nas pessoas, homens e mulheres, a sua sensibilidade e racionalidade em proporções iguais. Ondina da Barca Vieira, Activista pela Igualdade de Gênero
Foto de Mario Macilau
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ACTIVISMOS FEMINISTAS E INTERROGAÇÕES SOBRE MASCULINIDADES EM MOÇAMBIQUE Isabel Maria Casimiro
O avanço dos movimentos feministas no mundo impulsionou o estudo das masculinidades a partir de finais dos anos 80 do século XX, sobretudo nos Estados Unidos, Canada, Inglaterra e Austrália, assumindo destaque especial durante a Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, em 19941. A responsabilidade masculina transformou-se em envolver os homens: sobre si mesmos, sobre a sua sexualidade, sobre a sua saúde e a das suas parceiras; sobre a violência exercida contra as mulheres, contra outros homens e sobre si mesmos (a tríada da violência dos
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Homens analisada por Michel Kaufman). Em Moçambique verificou-se um caminho semelhante ao de outros países uma vez que foi no âmbito das actividades, debates e interrogações do e no Fórum Mulher e das suas organizações membros que foi surgindo a necessidade de interrogar as masculinidades dominantes em Moçambique, a partir igualmente do que se vem fazendo em países da África Austral, nomeadamente a África do Sul. Neste processo de reflexões de mulheres e homens surgiu a Rede HOPEM, Homens pela Mudança.
A investigação sobre a masculinidade estendeu-se a outros países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento a partir dos anos 90.
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Os movimentos feministas têm trazido interrogações sobre a sociedade em que vivemos baseada no modelo Homem, na violência, na hierarquia e na guerra como forma de resolução de conflitos, na discriminação entre os seres humanos, sobretudo das mulheres, apenas pelo facto de serem mulheres, para além de outros factores, como a cor da pele, a etnia, a região, o rendimento, a religião, a opção sexual, etc. Estas interrogações são no sentido de entender a razão destas discriminações, trazendo como proposta uma sociedade solidária para todos os seres humanos, baseada no respeito, igualdade no reconhecimento das diferenças, justiça, partilha. Nos seus grupos de reflexão e estudo as mulheres conversam sobre a sua vida, sobre o que é ser mulher em diversas regiões e espaços de Moçambique, as suas relações com outras mulheres, e com os homens, com membros da sua família. As mulheres interrogam-se sobre o que se espera de si na sociedade – ser mulher, mãe e esposa obediente, realizar as actividades domésticas sem apoio de outros membros que não as do sexo feminino, dar primazia aos homens, qualquer que seja a idade, não ter vontade própria e fazer o que outros decidem para a sua vida, ser preterida nos estudos, suportar todas as injustiças e violências da parte dos papás, “dos que mandam”, ser considerada inferior e fraca, chorar por tudo e por nada, aceitar as uniões forçadas e ser entregue a homens para pagamento de dívidas. Reflectem que ser homem é ser forte, viril e macho, violento, ter muitas mulheres, que “homem que é homem não chora”, que o homem é o chefe de família e o provedor da casa.
A domesticidade para a mulher, a iniciativa e a criatividade para o homem. Os grupos de reflexão alimentam-se dos acontecimentos do quotidiano, das pesquisas realizadas, das práticas de resolução de conflitos. Quando em 2000 o Fórum Mulher aderiu à Marcha Mundial das Mulheres, sob o lema Contra a Violência e a Pobreza, iniciou de forma sistemática a elaboração da proposta de lei contra a violência de Género, à responsabilidade dum grupo constituído por membros seus. Esta caminhada permitiu entender que não basta a libertação das mulheres se este processo não for acompanhado pela libertação dos homens e da sociedade no global. Estamos a falar dum longo processo porque toca no mais fundo das nossas vidas, no modo como nós e os homens somos socializados e, sobretudo como naturalizamos a socialização, a desigualdade e a diferença sem a questionar. A ordem social masculina está tão profundamente arraigada que não necessita de justificação, impondo-se a si mesma como auto-evidente, sendo tomada como “natural”, graças a um acordo “quase perfeito e imediato” conseguido, por um lado, através das estruturas sociais como a organização social do espaço e do tempo e a divisão sexual do trabalho e, por outro, através de estruturas cognitivas inscritas nos corpos e nas mentes3 (Pierre Bourdieu, 1999, A Dominação Masculina, Celta Editora, Lisboa). Os estudos e pesquisas que se vêm realizando têm procurado retratar as masculinidades e as relações de género para poder
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entender os factores que influenciam a prática ou não da violência pelos homens, no espaço familiar e noutros espaços, e o que origina a sua ou não aceitação por parte das mulheres; entender os factores de socialização primária e secundária que permitem traçar trajectórias de adesão ou recusa da violência e da desigualdade de género. Outros aspectos pesquisados têm a ver com o impacto da guerra e dos processos no período pós-guerra para as trajectórias de construção das masculinidades – homens nas frentes de combate e mulheres na rectaguarda assumindo a continuação da família. É importante referir que as reflexões feministas e os estudos sobre as masculinidades têm permitido reconhecer identidades masculinas fora do modelo androcrático e outras sexualidades de prazer compartido tanto para os homens como para as mulheres, e entender os factores que influenciam práticas mais igualitárias dos homens em termos de vivências das relações íntimas, práticas relacionadas com a saúde e a prestação de cuidados, promovendo-as. Práticas que contribuirão para libertar as mulheres e os homens das diversas cadeias que os encerram e cercam.
Isabel Maria Casimiro, PHD, Docente e investigadora do Centro de Estudos Africanos, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo. Presidente do Conselho de Direcção do Fórum Mulher – Coordenação para Mulher no Desenvolvimento, Moçambique.
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Foto HOPEM
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OS MOVIMENTOS FEMINISTAS TÊM TRAZIDO INTERROGAÇÕES SOBRE A SOCIEDADE EM QUE VIVEMOS BASEADA NO MODELO HOMEM, NA VIOLÊNCIA, NA HIERARQUIA E NA GUERRA COMO FORMA DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS, NA DISCRIMINAÇÃO ENTRE OS SERES HUMANOS, SOBRETUDO DAS MULHERES, APENAS PELO FACTO DE SEREM MULHERES, PARA ALÉM DE OUTROS FACTORES, COMO A COR DA PELE, A ETNIA, A REGIÃO, O RENDIMENTO, A RELIGIÃO, A OPÇÃO SEXUAL, ETC.
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MASCULINIDADES DESCOBERTAS: PROMESSAS E RISCOS Gary Barker
O conceito de masculinidade – referindo-se às formas como “ser homem” ou “macho” são socialmente construídas, os significados do que é ser um homem, e as dimensões de poder de algumas de suas versões em relação às outras, e estas por sua vez em comparação com as mulheres – estão ganhando cada vez maior atenção e visibilidade. Para alguns homens, que já sentiram em suas vidas as restrições e limitações das versões tradicionais do que significa ser um homem, a afirmação de que as nossas noções a esse respeito são socialmente construídas e mutáveis, é libertadora e emancipatória. Faz muito tempo que algumas feministas e activistas dos direitos das mulheres, compreenderam que “ser homem” é uma construção de género. Mas algumas delas ainda estão, compreensivelmente, preocupadas com o facto de que, um novo foco nos homens pode levar a um desvio da inacabada agenda global, que visa
conseguir plenos direitos e igualdade para as mulheres e raparigas. À medida que se aproximam os 20 anos desde a Conferência de Pequim sobre a Mulher, e da Conferência Internacional do Cairo sobre População e Desenvolvimento – ambos eventos de carácter global, e que foram um marco para a igualdade de género, a questão sobre o que os homens têm a ver com a igualdade de género se torna mais importante do que nunca. Então, onde nos encontramos entanto que “campo” na luta pela igualdade de género e compreensão de género com esta inclusão de “homens” e suas masculinidades? Quais são as promessas e quais são os riscos? O CONCEITO DE " MASCULINIDADE " TEM SIDO EMANCIPATÓRIO PARA ALGUNS HOMENS. Para os homens que têm reflectido, lido,
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estudado, ou até mesmo trabalhado na área de género, a noção de que nós, como homens somos uma construção de género, é nada menos do que emancipatória. Procurar os meios e ter a liberdade para questionar as formas restritas em que muitos de nós, se não a maioria, foram educados para ser homens, é um processo que muda a vida de muitos. Na verdade, as "masculinidades" tornaram-se um espaço social para alguns homens – ainda que em número reduzido para ser mais preciso – que querem questionar a masculinidade, que sentiram ou experimentaram a “camisa de força” de certos aspectos que definem o “ser homem”, que questionaram a fragilidade ou mesmo a violência experimentada em outros homens, ou até mesmo que, viram os danos causados às mulheres por causa da versão valorizada de masculinidade.
lantes”, ou poços de estereótipos violentos e misoginia. Com essa simples mensagem, nós entanto que homens, encontramos um espaço para questionar o que as feministas há muito tempo vêm questionando.
Para aqueles que têm lido Connell, Kimmel e outros estudiosos de renome na temática sobre masculinidades, de primeira têm uma sensação inebriante de liberdade. O conceito encontra eco em nossas vidas. Finalmente, encontramos palavras para expressar esse sentimento de incapacidade em viver a versão de masculinidade dominante, uma versão que se nos apresenta como estranha. Isso nos deu uma lente para ver como o poder e as desigualdades são construídas, e como nós homens, por sua vez somos afectados por elas. Se as feministas há muito tempo afirmaram que o feminismo não é nada menos do que a crença radical de que, mulheres são seres humanos, então, masculinidades como um conceito que nos permite ver que nós, como homens, também somos seres humanos e não “pénis ambu-
O conceito de masculinidade também ajudou a impulsionar a criação e o crescimento de um campo de ONG´s e iniciativas da ONU para trabalhar com os homens na prevenção do HIV, violência baseada no género e paternidade, entre outros tópicos, como um espaço para programas de intervenção e activismo. Já se tem quase 20 anos de experiência em programas, e avaliação de impacto de alguns destes, mostrando que o envolvimento de homens para a transformação de normas sociais, pode levar a mudanças de atitudes e práticas dos mesmos. Essas experiências confirmam ao nível dos programas de intervenção – campanhas, formações de grupos, treinamento, aconselhamento a trabalhadores do sector público para alcançar outros homens, etc. – que os homens podem e realmente mudam.
O problema é que alguns homens param por aí, em sua auto-reflexão, pessoal, ou às vezes se vêem como as "vítimas de género" – sem olhar para os vários níveis dos nossos privilégios como homens, mesmo quando eles podem ser limitados e venham com um custo. O CAMPO DO "ACTIVISMO DOS HOMENS" É UMA EVOLUÇÃO NECESSÁRIA NA LUTA PELA IGUALDADE DE GÉNERO, MAS CORRE-SE O RISCO DE CONFUNDIR OS MEIOS COM OS FINS.
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Todavia, o desafio aparece quando o "activismo dos homens" é separado do trabalho de “empoderamento” de mulheres e raparigas, assim como do trabalho de promoção do respeito e igualdade de direitos em relação à orientação sexual, e quando ele se separa também da luta pela justiça social no geral. Como qualquer campo de trabalho, muitas vezes há uma tendência a se profissionalizar, criar-se um jargão típico, celebrar os sucessos, e buscar financiamento para expandir as acções. Por um lado, isso é encorajador para o campo de actividades, por outro, há o risco de que o trabalho com os homens – se não for feito em conjunto com as mulheres – poderá criar uma "indústria" separada dentro do campo da igualdade de género, e do desenvolvimento internacional.
que não estamos fazendo isso como heróis ou salvadores. Fazemos isso apenas como homens activistas em prol da causa feminista, porque este trabalho é intrinsecamente justo e necessário para alcançar os Direitos Humanos. Da mesma forma, se criarmos um campo de "homens activistas" corremos o risco de repetir a bipolarização do trabalho dos homens separados das mulheres, justamente o que se pretende combater.
Há também o risco de que ele se torne o novo tópico ou a novidade do momento, a suposta maneira para completar a revolução que o movimento feminista iniciou. E, finalmente, há o risco de que o "activismo dos homens" se torne um fim em si mesmo, e não o que ele deve ser – um caminho para alcançar a justiça social e de género.
E mais, enquanto lutamos para honrar e apoiar o feminismo, podemos e devemos também reconhecer que existem homens vulneráveis e que precisam de ver seus direitos protegidos— para o seu próprio bem. Muitas vezes, vem à tona a questão de se o activismo dos homens é pelo bem das mulheres apenas. Podemos e devemos afirmar que ele pode ter duplo sentido: alguns homens, ou até a maioria dos homens, deve abdicar de alguns privilégios resultantes do conceito de masculinidade. E ao mesmo tempo, podemos falar sobre como os homens se tornam vulneráveis devido às formas que estes são socializados, e como alguns homens são “desempoderados” em comparação com outros homens.
Além do mais, com todo o mérito do trabalho com os homens para a igualdade de género, também há que ter em mente que a justiça de género, não significa os homens resgatando as mulheres, independentemente do seu compromisso com a igualdade de género ou com a causa feminista. Como homens activistas para a igualdade de género, importa lembrar que nascemos dentro da agenda feminista, honramos sua agenda e nosso trabalho não pode ser separado da causa feminista, e
Na verdade, a impotência de muitos homens é muitas vezes ignorada nas discussões sobre poder. O patriarcado cria desigualdades de poder entre as mulheres como um grupo, e os homens como outro grupo, mas também entre grupos diferentes de homens. O patriarcado significa que alguns homens, geralmente uma minoria, têm poder sobre outros homens (geralmente os de baixa renda). Agora percebe-se melhor como homens de baixa renda também são “desempoderados”, e vítimas do modelo neoliberal de
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mercado mundial, à semelhança das mulheres. Em suma, enquanto os homens no geral têm maior poder económico do que as mulheres, e muitas vezes mais mobilidade, os homens de baixa renda, em especial, são também muitas vezes impotentes. E quando olhamos para os dados relacionados à violência, encarceramento, longevidade e outros dados, vemos que muitos homens são vítimas, com taxas alarmantes de doenças que podemos atribuir à masculinidade e exclusão social. Eles estão, para usar o título do livro que escrevi sobre o tema, "morrendo para ser homens." Eles são, literalmente e figurativamente morrendo por tentar viver de acordo com algumas versões de masculinidade. O FOCO EM MASCULINIDADES PROBLEMÁTICAS DO SUL GLOBAL (HEMISFÉRIO SUL) Outro desafio no campo masculinidades é que, tanto de forma promissora ou problemática, muito do foco ou da discussão, sugere que os homens ou que as masculinidades são um problema nos países do hemisfério sul. As agências de desenvolvimento, e as Nações Unidas também descobriram a temática sobre as masculinidades. Muitas vezes, porém, o foco se debruça sobre aqueles "homens problemáticos" do Sul. Têm sido "estes homens", os quais estão longe dos corredores do poder onde o financiamento para o desenvolvimento é planeado e aprovado, cujas masculinidades são vistas como um problema. Por exemplo, os colegas na Holanda recentemente nos lembraram que o seu governo gasta mais com o "activismo dos homens" visando transformar as normas de género e masculinidades no Sul global, ao invés de
olhar para o que está acontecendo com os homens na Holanda. Por vezes, há também uma tendência de que aqueles no norte global, ou aqueles que são de classe média devem mudar os homens "problemáticos" do sul global, sem buscar entender, como modelos cristalizados e violentos de masculinidades afectam-nos a todos. NÃO DAR MUITA ÊNFASE NAS MASCULINIDADES E NO GÉNERO, MAS USÁ-LOS COMO FERRAMENTAS PARA ALCANÇAR A JUSTIÇA SOCIAL Finalmente, se é encorajador que temos uma melhor compreensão de como o género afecta os homens e como estes são parte responsável pela desigualdade de género, é importante que não se dê ênfase exagerada nas masculinidades e no género. Todavia, temos que usar as lentes do género e das masculinidades para prevenir o HIV e reduzir a violência baseada no género e promover a saúde pública. Temos que envolver homens e rapazes para transformar normas injustas, prejudiciais ou violentas assim como as desigualdades de poder. Mas devemos evitar ver o "activismo de homens” como a nova panaceia, ou uma estratégia rápida de desenvolvimento. Vimos incríveis histórias individuais de mudança, a nível individual e comunitário, e às vezes até conseguimos as políticas adequadas e os fazedores de políticas dispostos a assumir a causa do "activismo dos homens". Mas isto não melhora as infra-estruturas de saúde, não resolve os problemas de saneamento que afligem os pobres na Índia (e deixam as mulheres mais vulneráveis à violência sexual, só para citar duas questões concretas), e
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nem mobiliza exércitos a abandonar as suas armas. As questões básicas de justiça social e económica que criam e sustentam a pobreza bem como a violência exigem muito mais do que o simples "activismo dos homens”. Usar as lentes ou as abordagens das masculinidades nos ajuda a entender tudo isso, e talvez oferece algumas maneiras de tratar os problemas, mas é apenas uma lente necessária para a verdadeira mudança social. QUE CAMINHOS SEGUIR? Em suma, masculinidades como um conceito e lentes nos permitem ver os homens como uma construção de género, como sujeitos vinculados por regras e normas em torno deles, forçados a reproduzir versões de masculinidades e, muitas vezes, nem mesmo cientes disso. O conceito e a atenção nos homens como construção de género, nos permite ver os homens para além do dano que alguns (ou muitos) causam às mulheres e crianças, mas também para vê-los como indivíduos com suas próprias necessidades e realidades de género.
estruturas que moldam a vida de mulheres e homens, e perpetuam a pobreza e a desigualdade. Temos de olhar para além do engajamento dos homens a curto prazo – enquanto desenvolvemos o trabalho diário dos programas. E temos de encontrar um ponto de equilíbrio: que o género significa mulheres e homens, que os homens têm que questionar alguns aspectos dos privilégios do grupo, e que como homens são fragilizados pelas próprias normas de género. Podemos avançar se trabalharmos conjuntamente com as mulheres e com os parceiros de LGBT, quando encontrarmos e insistimos sobre uma base comum. E só então poderemos evitar as armadilhas em se pensar que "activismo dos homens" e as masculinidades são suficientes em si mesmas. Estamos juntos na causa, como o termo género sempre significou. Gary Backer, PHD, Director Internacional, PROMUNDO, US
Mas, enquanto nós olhamos para os homens, devemos manter o nosso olhar sobre a natureza relacional de género. De forma simples, isso significa que podemos ver como os homens e mulheres constroem o género em suas interacções uns com os outros. Temos a sorte de viver numa época em que o feminismo tornou possível para nós, como homens e mulheres, questionar noções rígidas de género que nossos pais e mães tomaram como dados. Nosso desafio como activistas homens pró-feministas e pesquisadores no campo das masculinidades, é manter o foco nas
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JOAQUIM CHISSANO -
Julio Langa e Cremildo Churane
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O PRESIDENTE CHISSANO ACREDITA NA IGUALDADE DE GÉNERO? Eu acredito que a mulher tem todas as capacidades que o homem tem, intelectuais e até força física. Nós costumamos dizer que a mulher é fraca fisicamente mas é a mulher que faz os trabalhos pesados: acarretar água, carregar lenha na cabeça, cavar nas machambas etc Quando lhe é dada oportunidade a mulher mostra que mesmo a força física ela tem. Nós somos enganados porque temos músculos redondos e as mulheres têem músculos longos que não parece ter força para carregar nada. Mesmo uma mulher magrinha carrega um peso tremendo e ai é que a gente percebe que aquela pessoa tem força. Portanto, ela tem capacidades, sobretudo capacidades intelectuais, que é o que mais conta. As mulheres podem estar muito mais avançadas que muitos homens. E às vezes mais avançadas porque o homem é pretencioso, pensa que ele é feito para raciocinar melhor não sei quê... e então comete erros graves.
SE AMBOS TÊEM CAPACIDADES IGUAIS O QUE DEVÍAMOS FAZER PARA ATINGIR UMA SITUAÇÃO DE IGUALDADE NO DIA-A-DIA? Temos que trabalhar muito. Não é só aqui no país, mas também, por exemplo, em alguns países árabes a gente sabe como é que os homens vivem. Como é que as mulheres vivem, como é que elas devem se comportar perante os homens. E aqui mesmo na África Austral ainda temos os hábitos antigos que as mulheres têem que ajoelhar e rastejar de joelhos para se aproximar ao homem para lhe servir comida. É portanto, uma atitude de submissão. Claro que nas mesmas tribos também rapazes mais novos têem que ajoelhar e rastejar mesmo para ir até ao chefe. São tradições que a mim não faz mal que sejam mantidas ou que sejam praticadas desde que isso não implique uma degradação do respeito que se deve ter pela mulher, etc. Agora, é preciso que haja uma con-
tínua educação para que todos compreendam esta igualdade. Vamos lá dizer se eu estou na minha casa com a minha irmã e estamos para comer e eu quero servir a ela, ela diz não, não, não… porque pensa que quem deve servir é ela. Pensa que ela é que deve cozinhar e servir e não deixar eu fazer isso, apesar de ser mais novo, mas porque ela é mulher sente-se assim. Nós pensamos que as mulheres é que devem cozinhar mas quando a gente vai para os hotéis quem cozinha nos hotéis são homens e são os homens que ensinam as mulheres a cozinhar mas na povoação, em casa a gente pensa que o homem não pode cozinhar, que é uma vergonha o homem cozinhar quando há uma mulher ao lado. Então esses tabus é que têem que desaparecer. Os melhores chefes de cozinha são homens, há escolas de cozinha, portanto o cozinhar já não é um serviço baixo, é um serviço de responsabilidade mesmo em casa se a gente come tem que saber que a comida não vai nos trazer problemas. A pessoa que cozinha tem que saber que quanto mais noções de higiene e do valor nutritivo das comidas tiver melhor comida vai confeccionar para nossa vida. Agora isso o homem vai aprender mas depois vai ralhar com a mulher porque não fez isto não fez aquilo quando ele que aprendeu é que devia ir cozinhar. Portanto, é uma questão de educação que vai levar muito tempo. E afinal de contas não é só o nosso país, são muitos países neste mundo e que até estão, em muitos casos, piores que o nosso.
DESDE PRATICAMENTE A CRIAÇÃO DA ONU QUE EXISTEM VÁRIOS INSTRUMENTOS PARA DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS, INCLUINDO A PRÓPRIA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, MAS ATÉ HOJE PARECE QUE A APROVAÇÃO DE POLÍTICAS E LEIS ENQUADRADAS POR ESSAS LEIS PARECE SER UM TRABALHO PENOSO.
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EM MOÇAMBIQUE E ALGUNS OUTROS PAÍSES AFRICANOS PARECE QUE OS DECISORES TÊEM DIFICULDADES EM APROVAR LEIS QUE MATERIALIZAM ESSES INSTRUMENTOS. PORQUE SERÁ ASSIM? Eu penso que nem tudo o que se discute na arena internacional é recebido em terreno igual. Não se pode comparar a percepção das leis em Moçambique com a percepção das leis, por exemplo, na Suécia. Há países como Suécia ou França em que as discussões já são um pouco mais abertas e que nós não podemos comparar com um país com o índice de analfabetismo que nós temos, com vários usos e costumes devido à heterogeneidade da nação. Então quando se toma uma decisão nas Nações Unidas ela é aplicada em tempos diferentes nos diferentes países. A democracia, por exemplo, a gente vai para o médio oriente e ainda encontramos regimes que são absolutos e a democracia tem sido falada já desde antes da nossa independência. As percepções nas Nações Unidas variam. Quando ficamos independentes tínhamos que correr atrás de uma multitude de decisões da comunidade internacional. E não tínhamos gente para estudar o que foi decidido e muito menos gente para aplicar e isso arrasta as decisões. Eu próprio participei por exemplo na conferência que adopta a Convecção sobre os Direitos da Criança em 1990 e só a ractificamos em 1998 porque eu trago e coloco na mesa mas onde é que estão os instrumentos para trabalhar com estes instrumentos que nós aprovamos lá?
SERÁ QUE COM ISSO QUER DIZER QUE OS NOSSOS PAÍSES AFRICANOS NÃO ESTÃO PREPARADOS PARA A IGUALDADE DE GÉNERO? Não, estão a trabalhar. O que eu estou a dizer não impede que haja progressos. Há progressos em todas essas questões só que não é uma coisa que acontece de imediato. Vamos discutindo pouco a pouco. Este ano houve esta discussão além da
igualdade de género em que os países africanos reagem contra essa evolução na parte da sexualidade, que os países africanos não entendem, mas na Europa há movimentos muito grandes sobre isso.
NA SUA OPINIÃO, QUAL SERIA O ESTÁGIO DA IGUALDADE DE GÉNERO EM MOÇҪAMBIQUE? Eu penso que está muito avançado e avançamos com uma grande velocidade, mesmo porque hoje nós já temos mulheres na direcção de várias organizações. No governo e no parlamento temos uma grande participação de mulheres. Portanto, a mulher libertou-se e com maior velocidade que outros países. O Ruanda está por cima de Moçambique em relação ao parlamento e participação no governo, apesar de eles também terem tido um interregno de guerra, é um país que ficou independente antes de Moçambique e com uma escolarização muito maior de homens e mulheres. Em Moçambique nós não tínhamos a escolarização de mulheres, estava muito em baixo então a escolarização trouxe a oportunidade de vermos mulheres em todos os domínios da actividade económica e social e no governo também. Temos uma Presidente da Assembleia da República que é uma mulher.
UMA DAS QUESTÕES QUE SE COLOCOU RECENTEMENTE, NAS DISCUSSÕES SOBRE A REVISÃO DO CÓDIGO PENAL, É QUE VÁRIOS ARTIGOS PROPOSTOS ATENTAM CONTRA OS DIREITOS HUMANOS NO GERAL MAS SOBRETUDO DAS PRÓPRIAS MULHERES. MAS COMO É QUE AS MULHERES QUE ESTAVAM LÁ DEIXARAM PASSAR ALGUNS DESSES ARTIGOS? É a preparação para estarem atentas a algumas dessas questões. As mesmas mulheres amanhã já não vão tomar a mesma postura. É isso que
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digo, não havia mulheres nesses lugares e agora entram e encontram muita coisa acumulada. Estas resoluções que foram tomadas na China... é um documento muito grande que tem muita coisa para ser implementada. Ai está o problema! As mulheres que estão lá no parlamento não têem todas a mesma percepção sobre estas questões. Eu por exemplo já deixei de ser homem do estado já há quase 10 anos e estes 10 anos já me fazem falta porque eu já não acompanho o que se discute aqui e acolá. Se fosse para discutir aqui para tomar decisões eu havia de tomar decisões erradas e havia de deixar passar essas coisas. Fui convidado há pouco tempo para este alto painel de ICPD task force, estamos lá e isso é composto por pesso -as que vem da sociedade civil de vários países que dão o seu parecer para influenciar decisões das Nações Unidas nas matérias da população. E eu tenho que aprender porque há muito tempo que não acompanho as discussões, não são as decisões que contam muito mas são as discussões. Como é que se chega a uma decisão. Dantes estava à vontade porque era ministro dos negócios estrangeiros e acompanhava as discussões todas porque as comissões eram assistidas por diretores que vinham comentar o que aconteceu e estava portanto pronto para argumentar mas ler uma resolução muito seca com muitas siglas pensa que aquelas deputadas todas que estão ali vão estar em condições de reagir?
FALA-SE EM “MULHERES NO PODER MAS SEM PODER”. SERÁ QUE NÃO É ESSE O PROBLEMA? Não, não. As mulheres que estão lá no poder é que dão a direcção. Eu tive uma Primeira Ministra que exerceu a sua função muito livremente porque a preparação das sessões do Conselho de Ministros é feita pelo Primeiro Ministro e ela é que deve acumular tudo para poder também responder ao parlamento. Portanto, não pode ser uma Primeira Ministra que não tem poder. Tem o poder que lhe é conferido pela constituição e ela exerce. Agora há outros cargos que nem precisam de uma dele-
gação do presidente, são os cargos ministeriais, em que elas tomam as decisões segundo as suas atribuições. Seja a presidente da Assembleia da República ou uma governadora. As governadoras provinciais dentro do seu nível têem poder sim senhora.
COMO VÊ O ENVOLVIMENTO DOS HOMENS NOS ASSUNTOS DA IGUALDADE DE GÉNERO? É muito importante porque as mulheres combateram muito mais do que os homens para se expurgarem do seu complexo de inferioridade. E os homens ainda não conseguiram combater o suficiente para se expurgarem dos seus complexos de superioridade e que, às vezes, são complexos de inferioridade também, porque quando vêem que as mulheres estão a subir então reagem. É preciso que esse combate continue, é necessário que os homens tomem cada vez mais consciência. Não digo isso porque não esteja a acontecer, porque tudo aquilo de que estamos a falar não iria acontecer se os homens ainda fossem aqueles que pensassem que todo poder tem que ser para os homens. Agora até sentemse orgulhosos em ter uma mulher que assuma uma responsabilidade seja de que nível for. Portanto, é preciso que os homens também façam como as mulheres fizeram porque as mulheres lutaram para se libertarem do seu complexo de inferioridade, portanto, para acreditarem que podem ser mais úteis à sociedade. Os homens também devem acreditar que eles não são os todo poderosos, que necessitam das mulheres e que as mulheres podem até ser mais valiosas do que eles. Quando chegarmos a esse nível teremos uma sociedade um pouco mais harmoniosa. Depois a gente esquece que a mulher é que nos tem ao colo, crescemos a mamar e então crescemos com orientação da mãe e na nossa sociedade muitas vezes o pai não está porque foi às minas, porque foi trabalhar na cidade, longe do lugar onde nós crescemos e quando já estamos adultos pensamos que somos mais do que as mulheres. Mas as
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mulheres é que nos deram aquilo que nós somos, o nosso carácter tem muito a ver com a orientação que as mulheres nos dão. Então os homens devem começar por ai.
SERÁ QUE AS LIDERANÇAS AFRICANAS PODEM FAZER ALGUMA COISA EM RELAÇÃO A ISSO? Eu penso que sim porque eles podem incentivar este debate no seio da sociedade. No nosso caso aqui em Moçambique nós temos a sorte que isso foi feito desde a altura que nós lutávamos pela independência nacional também falávamos da necessidade da libertação da mulher, libertação dos maus hábitos e dos tabus etc . Falamos disto já no tempo da luta de libertação nacional , portanto, a independência de escolha do que é que uma mulher quer ser já se discutia nesse tempo e é isso que foi interiorizado pelas nossas mulheres e pouco a pouco também pela população. Naquela altura também houve resistência de certos tradicionalistas que tinham influência nas sociedades, não queriam ver as mulheres tomarem parte nas decisões políticas e muito menos na luta armada. Isso foi discutido e teve bons efeitos, portanto, nós continuamos a incentivar este debate. Temos organizações femininas aqui em Moçambique e é preciso que essas organizações femininas também aprofundem o debate para saberem como levar essa discussão a um bom caminho.
MAS EM MOÇAMBIQUE, E OUTROS PAÍSES AFRICANOS, SEMPRE SURGE ESTA QUESTÃO DA CULTURA E TRADIÇÃO QUANDO SE TENTA LEVANTAR ESTE DEBATE. SERÁ QUE IGUALDADE DE GÉNERO É INCOMPATÍVEL COM AS NOSSAS TRADIÇÕES? Não é não. Não é incompatível. Uma maneira de viver pode não ter um efeito negativo apesar de que agora na modernidade podemos olhar para
aquele que é polígamo e dizer que na casa dele é necessariamente um caos quando é lá onde há maior disciplina, é lá onde os filhos até as mulheres são bem tratatdos- Mas isso não é uma coisa fácil por causa do ambiente que se vive, que já não é aquele ambiente inicial que se vivia na tribo onde se vivia com essa harmonia. Portanto, a cultura não tem que ser culpabilizada. É verdade que a cultura deve evoluir ,deve se adaptar às circunstâncias do tempo que estamos a viver, por exemplo, agora no ambiente de globalização temos que ter cautela de como aspectos negativos da globalização possam afectar os nossos aspectos positivos da tradição. Temos que aceitar o que é bom como não devemos também resistir a uma evolução que seja positiva adaptando os nossos procedimentos culturais a esta evolução. Nós crescemos e já compreendemos melhor a natureza e dantes nós não compreendíamos. Por exemplo se vamos fazer uma oração num tronco de árvore podíamos pensar que um tronco de árvore fala ou qualquer coisa assim…mas nós agora podemos dar um outro simbolismo. A deposição de flores numa campa..., dantes era bebida que se punha lá mas tem um significado que a gente pode guardar porque é positivo e expurgar aquilo que era negativo porque nós explicávamos as coisas pela nossa ignorância mas, à medida que fomos aprendendo podemos adaptar a nossa cultura a um pensamento mais esclarecido.
O QUE GOSTARIA DE VER OS PAÍSES AFRICANOS FAZENDO EM RELAÇÃO A IGUALDADE DE GÉNERO NO PÓS-2015? Eu gostaria que houvesse o maior investimento possível em cada país. Há que investir em vários sectores mas no sector da mulher o nosso país tem que ter um investimento ainda mais rápido para se chegar a essa igualdade de facto. Tem que se olhar no Orçamento do Estado qual é a porção que vai para as questões de género. Estão espalhadas pela educação, saúde, saúde reprodu-
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tiva da mulher em especial. Tem que se ver qual é a porção do orçamento que vai para isto. E gostaríamos de ver as políticas mais claras e mais direccionadas para esta questão. Porque temos políticas de educação, da saúde, do emprego etc. Mas como é que estas se direccionam para resolver esta questão? E o governo tem que estar claro sobre a proporção de investimento para a mulher e a criança e isso conduziria também às formas de angariação dos fundos necessários.
ALGUMA MENSAGEM QUE GOSTARIA DE DEIXAR FICAR? Os homens deviam continuar a reflectir nestes assuntos para valorizar, em primeiro lugar, as suas mães, as suas próprias esposas e o trabalho que fazem mas, sobretudo, valorizar as ideias
que elas têem e não contribuir para reprimir as grandes ideias que surgem e devem, mesmo em casa, viver num ambiente de diálogo mesmo no que diz respeito às relações sexuais deve haver diálogo para que haja um consentimento mútuo porque a mulher não é um objecto, é uma pessoa que tem sentimento e tem a sua própria carne e não se pode forçar. Porque às vezes muitas zangas podem estar relacionadas com a maneira como o homem vê a mulher como um objeto para relações sexuais, portanto, é preciso que haja este respeito pela mulher e depois as filhas também que sejam educadas para terem a sua responsabilidade e a sua independência. Apesar de que têem que respeitar os pais sim, mas temos que olhar para elas desde pequeninas com muito respeito e até aprendermos delas.
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IDEIAS PARA MUDANÇA "Não cresci muito ligado a tradição mas respeito-a. O que faço e contrariar aqueles que usam a tradição para justificar os seus actos imorais." VALDEMIRO JOSÉ, MÚSICO.
"O sucesso de uma mulher é também o sucesso do homem." CHUDE MONDLANE, CANTORA.
"Um companheiro perfeito sente os meus sentimentos, chora as minhas lagrimas e anda no passo dele andando no meu também." IVETH, RAPPER E ACTIVISTA DOS DIREITOS HUMANOS.
"A igualdade de género é o núcleo do amor e respeito entre seres humanos. Seja no lar, no trabalho assim como na via pública. É um princípio que revitaliza a inclusão social, promovendo partilha, solidariedade, entendimento etc" CHENY WA GUNE, MÚSICO.
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POEMAS DA TERRA
NO POVO BUSCAMOS A FORÇA Não basta que seja pura e justa a nossa causa. É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós. Dos que vieram e conosco se aliaram muitos traziam sombras no olhar, motivos ocultos, intenções estranhas. Para alguns deles a razão da luta era só ódio: um ódio antigo centrado e surdo como uma lança. Para alguns outros era uma bolsa: bolsa vazia (queriam enchê-la) queriam enchê-la com coisas sujas inconfessáveis. Outros viemos. Lutar p'ra nós é ver aquilo que o povo quer realizado.
É ter a terra onde nascemos. É ter p'ra nós o que criamos. Lutar p'ra nós é um destino é uma ponte entre a descrença e a certeza do mundo novo. Na mesma barca nos encontrámos. Todos concordam - vamos lutar. Lutar p'ra quê? P'ra dar vazão ao ódio antigo? P'ra encher a bolsa com o suor do povo? Ou p'ra ganhar a liberdade e ter p'ra nós o que criamos?
Inexoravelmente como uma onda que ninguém trava vencemos. O povo tomou a direcção da barca. Mas a lição lá está, foi aprendida: Não basta que seja pura e justa a nossa causa. É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós.
Na mesma barca nos encontrámos. Quem há-de ser o timoneiro? Ah as tramas que eles teceram! Ah as lutas que ali travámos! Mantivemo-nos firmes: no povo buscámos a força e a razão.
Poema do escritor Jorge Rebelo (1971)
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- MASCULINIDADES, PAZ E CRIMINALIDADE EM SOFALA: UM OLHAR SOBRE A DOMINAÇÃO MASCULINA - Bayano Valy e Arsenio Manhice
A história humana é prenhe de relatos da dominação masculina, ancorada numa lógica dominante cuja raiz é o sistema do patriarcado - um sistema social no qual o homem organiza o social e exerce autoridade sobre a mulher, filhos e bens materiais e culturais. Este artigo procura discutir três dimensões do problema, nomeadamente, 1) masculinidades e consolidação da paz, 2) masculinidades e violência contra a mulher e rapariga e 3) masculinidades e a criminalidade em geral, a partir de um trabalho de campo efectuado nas cidades da Beira e de Dondo, província de Sofala. 1. MASCULINIDADES O conceito de masculinidade tem vindo a sofrer várias transformações à medida que se aprofundam estudos sobre o mesmo. No
entanto, é preciso frisar que não existe uma única masculinidade; são várias: hegemónicas e subalternas. Apesar das várias e sucessivas alterações no entendimento do que é ser masculino, subsiste que a masculinidade é sinónimo de bravura, força física, poder, provedor e dominação, que se traduzem em “não ter medo, não chorar, não demonstrar sentimentos, arriscar-se diante do perigo, demonstrar coragem e ser activo”. Esse carácter normativo da masculinidade hegemónica apoia-se no discurso tradicional, ou seja, o essencialismo e o carácter institucional da construção da masculinidade hegemónica ancorada no patriarcado. Portanto, a masculinidade hegemónica é uma identidade de género construída medi-
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Foto de Francisco Raiva
implementar este dispositivo internacional.
ante um rigor e vigilância constantes, que se reflecte nas relações de poder com o género feminino. 2. MASCULINIDADES E CONSOLIDAÇÃO DA PAZ O governo e a Renamo têm estado a realizar várias acções para uma paz efectiva em Moçambique. E quase que não constitui surpresa que os homens é que lideram o processo - aliás, não há mulheres nas três delegações (governo, Renamo e mediadores). E durante o conflito militar opondo as forças governamentais à Renamo no centro do país, mormente na zona da Gorongosa, foi notória a presença de jovens do sexo masculino, o que consubstancia que o processo político-militar ocorreu com a ausência quase que total de indivíduos do sexo feminino, como se elas não fossem também vítimas do conflicto e como se não tivessem direito à voz no processo de diálogo para a paz. E o não envolvimento da mulher no processo de paz entra em choque com a Resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas cujo artigo 1 recomenda a necessidade de os Estados assegurarem “uma representação cada vez maior de mulheres em todos os níveis de tomada de decisão nas instituições nacionais, regionais e internacionais, bem como nos mecanismos destinados à prevenção, gestão e resolução de conflitos”. Isto significa que apesar de ser parte da Resolução 1325, o Estado moçambicano ainda está por
Mas, porque, aparentemente, só participam homens tanto no processo político como no militar? Carlos Oliveira, jovem de 36 anos, considera que a necessidade de se afirmar como homem foi o principal motivo que o levou a cumprir o Serviço Militar Obrigatório (SMO) e, por essa via, integrar as Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM). Em sua opinião, a sua vida mudou para melhor pelo simples facto de ter cumprido o SMO “Hoje ninguém me provoca. Até as meninas preferem a mim pois sabem que vou defendê-las, sempre que necessário.” Para ele, a postura física de um homem é o mais importante. Tudo porque a maioria dos problemas sociais são resolvidos com recurso à força física e não ideias ou conhecimento. Como que a concordar com os benefícios de cumprir o SMO, Jordane Nhane, jornalista e ex-militar, disse que a tropa é uma escola de formação do homem. O raciocínio dos dois entrevistados justifica a tendência de muitos jovens que integram o exército para lutar e ganhar prestígio. Esse prestígio também se extende aos mancebos que se juntam à Renamo. Portanto, parece estar claro que o exército é por excelência um local de controle e manipulação das masculinidades. Vários estudos indicam mesmo que a violência (físicas, psicológicas e mesmo sexuais) de grupos armados em contexto de guerra (exércitos, guerrilhas, forças policiais, etc.) passa pelo controle das masculinidades e pela promoção de identidades violentas. Daí que, essas masculinidades hegemónicas e dominantes procuram a todo o custo silenciar e invisibilizar, bem como marginalizar, todos os outros tipos de masculinidades que não obedeçam ao padrão imposto pelo patriar-
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cado sobre o papel do homem e da mulher na sociedade. Mas, em Sofala, parece que as masculinidades não são apenas sexualizadas, elas são também etnicizadas, isto é, uma parte da população desta província julga que pertencer a este ou aquele grupo étnico é determinante na sua vida social – nas cidades da Beira e de Dondo predominam duas etnias, nomeadamente Ndau e Sena. Alguns entrevistados acreditam que o ser Ndau é uma mais-valia para quem quer ser dirigente. É uma espécie de convicção generalizada. Apesar desta convicção, seria muito importante perceber como essas masculinidades etnicizadas foram produzidas, se reproduzem e se sustentam. No entanto, parece estar claro que produzem e sustentam identidades masculinas hegemónicas e subalternas que se apresentam como um lugar de contradição entre sistemas de poder – o pressuposto é de que na intersecção dos sistemas de poder encontramos um modelo de masculinidade hegemónico: um homem Ndau, adulto, provavelmente com uma renda acima da média e heterossexual. O contrário seria termos outros modelos específicos, localizados e estruturados de masculinidade subalternos ou configurados em contextos de subalternização, cujo conteúdo determinante seria um homem Sena, adulto e heterossexual. Pode ter rendimentos acima da média mas ser da etnia Sena acaba por colocá-lo num contexto de subalternização. José Luís, da etnia Sena, chegou mesmo a dizer que é impossível acreditar que um dia os Senas possam estar no poder. Mas é preciso realçar que o género do indivíduo parece contar. Aparentemente, só os homens Ndaus é que podem ser os líderes. Poucas mulheres ascendem ao poder, o que reforça o argumento das masculinidades hegemónicas e dominantes.
3. MASCULINIDADES E VIOLÊNCIA CONTRA MULHER E RAPARIGA Apesar de muitos avanços na luta pela igualdade de género, muitos homens ainda acreditam que a sua condição biológica justifica a sua tendência para liderar. Para os mesmos, não é o porque existe o modelo dominante do patriarcado, socialmente construído, que os coloca numa situação de dominação que é sustentado pela hierarquização societal que gera desigualdades de género, atribuindo aos homens papéis que os colocam numa posição superior à das mulheres. É por isso mesmo que para esses homens, na tentativa de exercer a sua versão de masculinidade hegemónica, fazem cobranças e pressões junto às mulheres para que as mesmas considerem como “natural” o poder do homem, e assim submetendo-se aos seus caprichos, desejos e vontades, descambando em violência física quando se torna difícil o alcance desse desiderato. Mas, enquanto a sociedade não se torna mais igualitária e para defender os direitos humanos das mulheres e crianças, o Estado moçambicano aprovou a Lei Sobre a Violência Doméstica Contra a Mulher (Lei n° 29/2009, de 29 de Setembro). Esta lei procura tirar a violência doméstica da esfera privada para a pública. Este instrumento legal tem sido utilizado pela Polícia como porto de entrada de casos de violência doméstica nos Gabinetes de Atendimento à Mulher e Criança Vítima de Violência Doméstica. Para além dessa lei, o parlamento aprovou o novo Código Penal que também norma sobre a violência doméstica. Infelizmente, algumas mulheres ainda acham normal serem violentadas. Muito provavelmente isso se deva ao facto de que a mulher é socializada a suportar as agressões e a dor de
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violência física. Dulce António, de 38 anos, de Dondo, é vítima de agressões físicas pela parte do marido. No seu entender seria anormal não ser agredida fisicamente pelo marido. “Ele me bate mas isso não é motivo para eu abandonar o lar”.
Aparentemente, o crime tem um lado atraente para alguns jovens. Para eles, o crime compensa. Através do crime conseguem obter recursos que abrem possibilidades para que adquiram bens de consumo e elevar o seu ‘status’ no seio da sociedade.
4. MASCULINIDADES E CRIME Na Beira e no Dondo, ocorrem diferentes tipos de crime. Apesar de a Polícia afirmar ser implacável na luta contra o crime, os crimes não parecem abrandar. E na maioria dos casos, os homens são os principais perpetradores. Segundo os nossos entrevistados, o homem pratica o crime para sustentar os seus vícios e paixões, cuidar da família, entre outras motivações.
Concluindo, não há dúvidas que conceptualmente as masculinidades ainda são um caso em estudo. No entanto, não deixa de ser verdade que as masculinidades, quer hegemónicas quer subalternas, são uma construção social negociada através e dentro de várias estruturas do modelo do patriarcado. É preciso reconhecermos que essas negociações são mutáveis dependendo do tempo e do espaço.
O que sobressai das razões dadas para a prática dos crimes é que todas elas estão associadas às masculinidades hegemónicas. Alguns estudiosos argumentam que as masculinidades hegemónicas são o modelo que muitos jovens (homens) procuram seguir porque oferecemnos prestígio na sociedade, e que o crime é um recurso que os jovens utilizam para atingir a prestigiante masculinidade hegemónica.
Por isso, há que encontrarmos formas ‘inteligentes’ de desconstruir as actuais masculinidades hegemónicas que ajudam a perpetuar o sistema do patriarcado, de modo a construirmos novas masculinidades que não coloquem tanta pressão sobre o homem ao ponto de levá-lo a praticar crimes, violentar mulheres e a sempre querer dirimir conflitos através do uso da força, entre outros. Bayano Valy e Arsenio Manhice - Jornalistas
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HOMENS–CATANA: UM CASO DE CRIME VIOLENTO
Beira foi recentemente assolada por criminosos conhecidos por homens-catana - a designação combina o facto de serem homens e o instrumento usado para praticar crimes hediondos. Esse bando de criminosos foi assim tipificado por se ter notabilizado pelo seu modus operandi: uso da catana e violação sexual de mulheres. E aqui questiona-se: porquê a gangue preferiu este instrumento normalmente usado na produção agrícola? “É um objecto de autodefesa dos homens mas que é temido por mulheres”, disse Marcos Zefanias, morador do bairro Ponta-Gêa na cidade da Beira. Isto dá a entender que é normal o homem ter em casa uma catana, e que, porque a utiliza no seu dia-a-dia, pode se tornar num exímio utente da mesma. A Polícia confirmou que além de praticarem furtos e roubos, os malfeitores violavam sexualmente as mulheres que encontravam nos lugares do crime. É o que aconteceu no bairro Nhamudima onde na calada da noite, um grupo de três indivíduos assaltou uma residência e estuprou uma mulher de 21 anos de idade. Para lograrem os seus intentos, os três exibiram catanas. Aparentemente, não basta roubar bens, os malfeitores também procuram manifestar a sua masculinidade violando mulheres indefesas.
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ARTE 100 VIOLÊNCIA
UM PAI DE BEBÉ NA PEDIATRIA
Pedro Muiambo
A minha esposa apresentou-me a sentença hospitalar quando eu me preparava para sair para o emprego de todos os dias: ela estava doente, maltratada por uma malária de duas cruzes, que a derrubava para um repouso absoluto de uma semana. Sucede que ela tinha que levar a nossa bebé de nove meses a vacinar no dia seguinte, num posto público de saúde, já que na clínica privada que frequentávamos não o faziam. Havia a hipótese de adiar a vacinação, mas quando se trata de cuidar da saúde dos meus filhos, não aceito contemplações: é uma prioridade absolutíssima… De tal forma que ficamos ali, eu e ela, cogitando soluções, nomeadamente, sobre quem, uma cunhada talvez, poderia levar a miúda para o hospital. Mas, feliz ou infelizmente, descobrimos que pertencemos a famílias do tipo urbano dos dias que correm: todo mundo anda ocupadíssimo e as agendas preenchidas com assuntos inadiáveis. Foi então que a minha esposa fez um suspiro que me deixou envergonhado. Ela disse: “paciência, vou levá-la, não importa o estado em que estou: ela é minha filha e wukati va kandza hi mbilo”. Esta expressão tsonga, que pode ser traduzida em “mulher que está no lar deve fazer das tripas o
coração e engolir todos os sapos”, deixa-me eu, que sou um romântico por excelência, enjoado… Decidi que eu iria pessoalmente levar a menina a vacinar contra o Sarampo. Foi então que começou a minha purifcação. Logo aprendi sobre a capacidade que uma bebé tem de escangalhar os nervos dum pai: quando me preparava para a encaixar na cadeira de bebés, no banco de trás da viatura, ela começou a chorar. É mais estridente o choro de um bebé quando somos nós próprios que a temos que a fazer calar do que quando chamamos pela esposa: “querida, a bebé está a chorar: fica com ela, tenho que escrever um email”. E é incrível o “sadismo” dos bebés: a fralda está seca, acaba de mamar e até estava a sorrir há pouco tempo; o que ela quer é provar a nossa paciência. Ocorrem-me as conotações e significados do Wunsch, termo alemão e da psicologia, que aprendi num seminário. Dizia o palestrante: “a presença deste Outro passa a ter uma importância em si mesma, uma importância que vai além da satisfação das suas necessidades, na medida em que esta presença passa a simbolizar o amor do Outro. Assim a
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demanda ganha um duplo sentido: a) ela é a articulação de uma necessidade; b) ela é uma demanda por amor. Enquanto, de um lado, o Outro pode prover os objectos requeridos pelo bebê para satisfazer as suas necessidades. Do outro, ele (o Outro) não pode satisfazer o amor incondicional de que o bebê tem gana. Logo, é este resto que não pode ser satisfeito que chamamos desejo”. .. o desejo, entendam-me, que eu nomeei “sadismo”, atrás, a brincar.
ções de ninar não ajudam. Criativo que sou tento música pop, pandza, work songs, mas nenhuma resolve o problema: minha filha soluça desesperada, nada a faz parar. Minto, o cansaço a vence e ela adormece.
Lá consigo me safar, porque cansada do meu embalo e da minha versão desafinada da canção de ninar cuja letra é “ho ho ho, hohoho cala bebé”, ela finalmente adormeceu, permitindo finalmente dedicar-me apenas aos stresses dos engarrafamentos e das manobras perigosas dos condutores dos malfadados “chapa-100”. No hospital, a fila é enorme, o ruído é ensurdecedor. O que comem estas crianças para conseguir fazer tanto ruído? Percebo que a picada da vacina deve doer, mas… haja tímpano que aguente! E ainda tenho que me haver com toda a tralha que levo: a alcofa, a pasta com os biberões, fraldas descartáveis, “wipes”, cocktais de frutas, etc. Como aguentam as mamãs?
Agradeço o facto da mãe dela tomar o controlo agora: é ela que, apesar de doente, a embala, a dá de mamar, e ela parece mais calma: encontrou o seu ninho.
É ver-me, único homem entre dezenas de mulheres, aflito, sem saber o que fazer. As mulheres cedem o lugar da frente: sou eu a seguir. Estou um pouco aliviado. Todo mundo trata-me com simpatia. Apresento o documento, fazem as pesagens, perguntam pela mãe e, finalmente, a minha filha apanha as vacinas. Meus Deus!, que aperto de coração ver e ouvir a minha filhinha em esgares e gritos de dor, e eu sem poder fazer seja o que for para a ajudar. As can-
Chego a casa e ela pula logo para o colo da mãe e volta a chorar: eu sou o mau da fita, o que a levou de encontro a dor, não quer voltar nunca ao meu colo. E o meu coração num aperto indescritível…
A minha esposa fita-me, nota o meu cansaço e sorri com maldade. Mas não diz uma palavra. Ela decerto percebeu que acaba de ganhar um novo homem lá em casa. Um homem que já se colocou no papel do que ela passa todos os dias… um homem que, no mínimo, nunca mais irá desprezar o papel duma mulher no trabalho doméstico e com os filhos, antes pelo contrário irá tentar partilhar, um homem que percebeu que o lema que deve vigorar numa família deve ser de empate nos transtornos familiares. A wukati va kandza hi mbilo? Não na minha casa. Prefiro esta: “cuidar de filhos é padecer no paraíso”. E eu cuido da minha filha, como já viram… e agora mais do que nunca.
Pedro Muiambo - Escritor
54 | Crónica
PALAVRAS CRUZADAS HOPEM Por: Paulo Freixinho http://palavrascruzadas-paulofreixinho.blogspot.pt
HORIZONTAIS: 1- A Rede Homens pela Mudança. 4- Em muitas comunidades, está associado à ideia de virilidade (não poder ter medo, não poder chorar). 9- Antes do meio-dia (abrev.). 11- Sociedade Anónima (sigla). 12- Época. 14- Abreviatura de movimento. 16- Repare. 18- Situada no âmbito de género, representa um conjunto de atributos, valores, funções e condutas que se espera de um homem numa determinada cultura. 21- Fileira. 22- Família (fig.). 23- Contracção de “em” com “o”. 24. Pátria de Abraão. 25- Centímetro (abrev.). 26- Interjeição que exprime admiração, alegria, espanto ou lamento. 27- Que não corresponde ao carinho ou à bondade com que é tratado. 30- Vara da lança. 32- Recitou. 33- Sigla de Save Our Souls. 34- Pouco frequente. 36Dar existência a. 38- Conjunto de duas pessoas, particularmente, marido e mulher. 39- Fruto da videira. 40- Atmosfera.
VERTICAIS: 1- Existe. 2- Breve interrupção. 3- Preposição que indica lugar. 5- Eles. 6- Muito. 7- Marca que identifica o fim de uma corrida. 8- Caminhava para lá. 10- Corpo esférico. 13- Que limita, restritiva. 14- É quem mais sofre de violência doméstica. 15- Referente ao homem. 17- Cheiro. 18- Masculino. 19- Espírito. 20- Deus grego do amor. 26- Apertar com nó. 28- Recusa. 29- Pega. 31- Senhora (abreviatura). 35- Alternativa. 37- Segunda nota musical. SOLUÇÕES VERTICAIS: 1- Há. 2- Pausa. 3- Em. 5- Os. 6- Maningue. 7- Meta. 8- Ia. 10- Bola. 13- Redutora. 14- Mulher. 15- Viril. 17- Odor. 18- Macho. 19- Alma. 20- Eros. 26- Atar. 28- Nega. 29- Asa. 31- Sra. 35- Ou. 37- Ré. HORIZONTAIS: 1- HOPEM. 4- Homem. 9- AM. 11- SA. 12- Era. 14- Mov. 16- Note. 18- Masculinidade. 21- Ala. 22- Lar. 23- No. 24- Ur. 25- CM. 26- AH. 27- Ingrato. 30- Haste. 32- Leu. 33- SOS. 34- Raro. 36- Gerar. 38- Par. 39- Uva. 40- Ar.
Ficha Técnica:
N.ºde registo: 25/GABINFO-DEC/2012 Propriedade: Rede Hopem Editor: JÚLIO LANGA Produção, Design e Ilustração – www.bagabagastudios.org Revisão linguística: Percida Langa (nota: nesta edição optou-se por manter a escrita original dos autores dos artigos.)
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