POR RAFAEL BAHIA
Memórias de comida e imigracao na cidade de Sao Paulo
POR RAFAEL BAHIA FOTOS GABRIEL CABRAL
Memórias de comida e imigracao na cidade de Sao Paulo
Para minha avó, Mercedes
ÍNDICE
7 QUE GOSTO TEM SAO PAULO 13 DE MESA EM MESA 14 OS NOBRES CHINESES DO MORUMBI 22 OS FRATERNOS LIBANESES DO CENTRO 30 A FERVOROSA BOLIVIANA DOS CAMPOS ELÍSEOS 38 OS RESILIENTES JUDEUS DO BOM RETIRO 46 AGRADECIMENTOS 47 NOTAS
INTRODUÇÃO
QUE GOSTO TEM SAO PAULO
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Esta obra começou a ser escrita há muito tempo. Antes de mim, até. Pode ser que tenha começado em junho de 1886, na primeira página do livro de registros de imigrantes na Hospedaria do Brás. Ou mais cedo ainda, quando os estrangeiros já vinham para cidade e eram recebidos em casas alugadas pelo governo na região da Luz, no Centro.
grossas e o nariz reto denunciavam algum mouro lá atrás na sua árvore genealógica. E arrematava a mistura com um sotaque italiano, que aprendeu no Brás, reduto desta imigração. Nos sábados de manhã, às vezes me levava para fazer mercado nas lojas a granel da Zona Cerealista, ao lado do Mercado Municipal. Os donos árabes o chamavam de “primo” e o tratavam bem, com azeitonas e tâmaras secas para provar.
Continuou nas páginas de cada cardápio dos quase 20 mil restaurantes e 30 mil bares de São Paulo1 — este número não conta os carrinhos de cachorro-quente, as bancas de frutas ou os universitários que vendem brigadeiro para pagar a faculdade. O negócio é que existem quase 22 milhões de bocas na zona metropolitana2 mais inchada da América Latina. E haja comida para satisfazer todas elas... A história segue pelas linhas das mãos macias e de unhas bem feitas de uma senhora chamada Mercedes Debeus Bahia. Em 1949, tinha 17 anos quando entrou pela primeira vez na antiga fábrica da General Motors, na avenida Goiás, onde ainda está localizada em São Caetano do Sul, ABC Paulista. Começou no salão servindo os altos executivos em mesas com talheres de prata. Na cozinha, ficavam apenas as mulheres casadas; mas era onde ela queria estar, apesar de ainda solteira. Pediu para o chef, um austríaco durão, para ser transferida para as panelas. Hoje, aquela jovem é minha avó. E se lembra bem do cheiro de baunilha no ar às sextas-feiras, quando preparavam sorvete para a sobremesa.
Sempre se cozinhou em casa. Não saíamos para comer. Mesmo a pizza de sábado à noite era feita do começo sobre a pia de granito do sítio em Socorro, no interior. Eu achava que eram pequenos costumes, mas se tratava de tradições na verdade, porque nunca podiam ser (e nunca eram) quebradas. O bolo formigueiro, uma pena quando o chocolate granulado se decantava todo no fundo da forma. Gelatina quadriculada, pavê de nozes e doces de outra época. Meu avô trazia uma melancia inteira. Minha mãe e minha tia deixavam o bacalhau para dessalgar na véspera do Natal. Na manhã seguinte à ceia, virava bolinhos que a gente ajudava a enrolar. No Ano-Novo, uma cataplana de paella amarela, cor de próspero ouro, a coisa mais linda. E os restos de cuscuz paulista tinham de ser acompanhados por café preto no desjejum do dia 1°.
O restante do livro está impresso nas marcas de expressões do meu avô, Manoel Theotonio Bahia, falecido em 2010. Tinha nome de português — e sua família realmente era. Mas uma pele morena, sobrancelhas
Alguns desses hábitos são compartilhados pela cidade. A comida deste chão é a caipira, com forte influência dos guaranis em feijões, batatas e, principalmente, milhos — é o que diz o sociólogo Carlos Alberto Dória em seu livro A culinária caipira da Paulistânia. Mas São Paulo tomou gosto por tudo que os imigrantes trouxeram de saudade nas malas. Acabou, assim, com o aroma da lenha queimando à noite nas pizzarias dos bairros, de yakisoba preparado na porta do metrô, de
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coxinha às seis e pouco da manhã. No Carnaval, tem cheiro de todas as comidas do mundo misturadas em vômito catártico no asfalto. Por essas razões, este livro é um almoço coletivo. Traz histórias de um, memórias de outro, trabalho de amigos e coleta de pesquisas. Mas seu ingrediente principal são as narrativas individuais, que se desdobram em álbuns de famílias, relatos de imigração e na complexidade de uma cidade inteira. Quatro estabelecimentos de imigrantes, agora bem brasileiros, que acharam na cozinha um meio de permanecer aqui e são reconhecidos por suas comunidades como instituições daquela comida com o gosto da terra natal. Tudo no mesmo tacho. Dizem que receitas de uma panela só parecem simples, mas podem ser as mais complicadas. Aqui estou contando com a fome de muita gente, de comer e de viver. Porque falar de comida é, antes de tudo, falar de pessoas.
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OS RESTAURANTES
DE MESA EM MESA
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OS NOBRES CHINESES DO MORUMBI Shíshīs são criaturas chinesas que protegem edifícios. Meio cães, um pouco gárgulas aos olhos ocidentais. São, na verdade, leões. De fato, as sílabas repetidas em seu nome transcrevem ao alfabeto latino dois ideogramas de sons parecidos, “pedra” e “leão”, que se diferenciam apenas pela entonação dada. Há séculos habitam a China, no mínimo desde a dinastia Ming, e se espalharam pelo mundo até chegar em uma rua tranquila do Morumbi, zona sul de São Paulo, onde montam guarda nos portões de um palácio: o restaurante Golden Plaza.
Dentro da sua cozinha, Shu Chang Yor é um imperador de 95 anos. Um chinês alto e corpulento que, nas manhãs dos fins de semana, toma lugar no segundo átrio de uma enorme cozinha. Seu trono é um banquinho. Seu tapete vermelho, tecido com repolhos, nabos e cenouras cortados em fios sobre um balcão metálico.
Está fazendo rolinhos-primavera neste momento. Abre a massa, posiciona o recheio de legumes no meio, dobra-a por cima. Passa um dedo ligeiro em uma cola feita de farinha e água. Fecha-os. Um trabalho metódico e silencioso que o séquito de A rua Luís Gonzaga de Azevedo Neto funcionários não ousa interromper; termina em uma quadra verde de até porque o senhor não fala bem onde já se avista a Ponte Estaiada o português, apesar de estar aqui no horizonte, acotovelada entre os desde 1941, vindo de uma Hong Kong arranha-céus da Marginal Pinheiros. bombardeada por tropas japonesas, Comparar o Golden Plaza a um “pa- que marcaram a então colônia britâlácio” não é só adequado, dado o ar nica como alvo durante a Segunda Guerra Mundial. de nobreza; mas também um pouco proposital, já que ele acontece de estar a apenas dois quilômetros e Lá como cá, senhor Shu era cozimeio de um outro, o dos Bandeiran- nheiro. Trabalhou em plantações de tes, de onde o governador do estado arroz e trigo quando criança. Codespacha. Mas, naquele restaurante, meçou em um restaurante aos 14 a autoridade é outra. Tem ares míti- e, mais tarde, cozinhava para uma cos – ou talvez seja apenas a névoa família com a qual embarcou para subindo de panelões industriais com o outro lado do mundo. A vida aqui água fervendo para cozinhar arroz, seria melhor, diziam. E, assim, ajulegumes e macarrão. dou a compor os 180 mil chineses e 14
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descendentes que hoje moram na cidade3, oriundos de ondas migratórias que começaram no ano de 1900.
Um chinês alto e corpulento que, nas manhãs dos fins de semana, toma lugar no segundo átrio de uma enorme cozinha. Seu trono é um banquinho. Seu tapete vermelho, tecido com repolhos, nabos e cenouras cortados em fios sobre um balcão metálico.
lista, região central, que pouco tempo depois se deslocou algumas quadras para a rua Peixoto Gomide em 1975; e do Palácio Imperial, localizado em Pinheiros. Finalmente, inaugurou o Golden Plaza em 1984. A vizinhança do Morumbi ainda não tinha sua pompa atual, muito menos era um bairro de presença asiática. Acabou sendo escolhida graças ao terreno, comprado barato, que poderia abrigar tanto o restaurante quanto a casa da família na porta vizinha. Nos fundos, coube uma horta onde o senhor Shu cultivava acelga, e trazia os ingredientes restantes do Ceagesp – até hoje “seu Shu-Shu” é reconhecido pelos vendedores nas raras vezes em que faz as compras. Era uma época de trabalho árduo, para além da meia-noite. Não havia fins de semana ou folga. Portas fechadas, só então sobrava tempo para se divertir com o máhjòng (jogo de mesa chinês).
O primeiro restaurante do senhor Shu foi aberto na mesma pensão que recebia os chineses recém-chegados em 1954, no bairro de Perdizes, na zona oeste. A mesma casa deu origem ao restaurante Sino-Brasileiro, antigo conhecido da comunidade. Foi também sócio do Kinkon, na avenida Pau15
Hoje o Golden Plaza não recebe os visitantes pelo grande portão principal. Este é reservado apenas para solenidades, como tantos casamentos da comunidade chinesa já realizados ali. Quem chega tem de entrar por uma porta lateral, como se o prédio reiterasse sua cerimônia.
AV. PAD RE L
RIO R INHE IRO S
AV. MORUMBI
Ponte Estaiada
AV. DR. CHU CRI ZAID AN
AV. JOR NAL ISTA
AV. MORU MBI
S RO EI H N
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Palácio dos Bandeirantes T RE EB
Uma vez lá dentro, as saudações são com um pergaminho; e o Próspero, dadas por detrás do balcão, vindas do levando muitos adornos. filho José Paulo, da nora Stella, ou da neta Stephanie, uma de quatro irmãos Chegam às mesas receitas que vieque formam a geração mais jovem da ram na bagagem de seu cozinheiro do família Shu. O casal se conheceu em outro lado do mundo no formato de uma viagem da Singapore Airlines: um livro, que ele ainda possui – com José Paulo era um engenheiro viajan- exceção do camarão empanado, cuja do pela Ásia e Stella, uma comissária técnica diz ser invenção sua para de bordo nascida em Singapura, de equilibrar a textura crespa e o intefala pausada e modos impecáveis. rior macio. Também são servidos peixes inteiros em um caldo de soja es“Yéyé é um homem trabalhador e de curo, que tinge os cogumelos que o poucas palavras”, diz Stella sobre o acompanham à moda da província de sogro, utilizando a palavra em man- Zheijang, no leste do país. O pato, no darim para “vovô”. “Mas a comida é cardápio, vem com um molho apimensua forma de expressar amor. Para tado de Sichuan, região no sudoeste. ele, a simplicidade é o ápice da so- E o chāsīu tem gosto familiar para o fisticação. Ele é simples e, por isso, senhor Shu: barriga de porco marinaé cheio de riqueza.” da em caldo levemente doce, assim como se come em Guangdong e em O salão fica logo virando à esquer- Hong Kong. Faz lembrar sua China, da, suntuoso, com as boas-vindas que hoje lhe aparece em memórias dadas por um sorridente Buda dou- “às vezes boas, às vezes ruins”, segunrado. Sobre sua cabeça, emolduran- do ele, mas sempre viva nas mesas do a passagem, um painel de ara- que alimenta, reinando absoluto na bescos em madeira vindo de Taiwan sua própria Cidade Proibida. nos anos 1980. As mesas estão postas e a cor vermelha grita – no ideário chinês, significa alegria, sempre GOLDEN PLAZA abundante no Ano-Novo. Há simbologia por todos os cantos; por exemplo, nos pórticos das quatro saletas DESDE 1984 encabeçados pelos ideogramas de cada estação do ano e sua flor caENDEREÇO r. Luís Gonzaga de racterística: orquídea na primavera, Azevedo Neto, 263 lótus no verão, crisântemo no outoFAMÍLIA Shu no, e a flor da ameixeira no inverno. Também na estante atrás da caixa O QUE PEDIR camarão empanado registradora, onde descansam as e barriga de porco estatuetas dos três anciões chineses: o Longevo de bengala; o Sábio
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AV. MO RUM BI
R. M ARIN HO
Parte da família Shu (Stephanie, Stella e José Paulo) sob um pórtico com os ideogramas para "crisântemo", a flor do outono; e uma das mesas em vermelho, com tampo giratório para revezar pratos de frango xadrez, camarão empanado e gyoza
A louça timbrada serve um camarão empanado do senhor Shu; e o cozinheiro senta em seu balcão para preparar rolinhos-primavera
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De Hong Kong, Shu Chang Yor trouxe um livro com as receitas que constam no cardápio
Um dos cantos do Golden Plaza: mesa posta, vitrais de decoração e painéis suntuosos
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OS FRATERNOS LIBANESES DO CENTRO
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Antes, eram picos nevados que apa- longe. Pelo contrário, o horizonte reciam no horizonte de Zgharta, uma nem existe; antes, é barrado pelos cidade pequena no norte do Líbano. prédios da metrópole. Mas seu resUma ou outra mancha verde-escura taurante foi batizado Monte Líbano indicava que lá em cima havia bos- como uma memória. E levanta tão ques de cedro, a árvore que figura na cedo assim porque é lá que precisa bandeira nacional. No pé da monta- estar às seis da manhã para fazer a nha, não fazia tanto frio – se fizesse, lista de compras. Às sete e meia, já talvez aliviasse a ponta dos dedos voltou do Mercado Municipal seguiqueimadas de tanto revirar bolotas da por um rapaz carregando maços de carne sobre a brasa acesa no de hortelã e sacos de grão-de-bico. forno comunitário. Era dia de prepa- Sobe ao primeiro andar do Edifício 25 rar quibes assados, ou kibbeh michui, de Março, quase na esquina da rua a iguaria mais característica da vila de mesmo nome, onde está instalalocalizada no sopé das cordilheiras do o restaurante. Então, cozinha até centrais do país, que os locais cha- o meio da tarde sem descanso ou pausa para o almoço, sempre de pé mavam de Monte Líbano. sobre dois joelhos que não parecem As mulheres se sentavam com um já ter 84 anos. Tem sido assim desde almofariz entre as pernas, jogavam que abriu sua cozinha em 1973, ao para dentro punhados de triguilho, sal, lado do falecido marido Halim Maacarne moída e pilavam vigorosamen- touk. Naquela tarde de novembro, foi te até acabar com uma massa rosa e tamanho sucesso que as portas feaerada. Dava para comer crua, ou es- charam mais cedo — faltou comida palhar em camada fina sobre traves- no restaurante, tantos eram os cosas untadas com muito azeite. Mas, merciantes sírio-libaneses que queem Zgharta, preferiam mesmo molriam almoçar como em casa. dar em forma de bolas ocas (juntando as bocas de duas tigelas para isso), Algumas dessas famílias que fizerechear com miúdos e tostar ao fogo. ram negócios na região continuam eternizadas nos endereços da viziHoje, quando Alice Maatouk acor- nhança: Jafet, Chohfi, Schahin. A da ainda de madrugada no bairro mais nova dos dois filhos do casal, da Liberdade, centro de São Paulo, Regina Maatouk, que hoje comanda não avista mais as montanhas ao o restaurante ao lado da mãe, ainda
era criança, mas lembra. “Hoje você ouve coreano pelas galerias daqui”, diz. “Naquele tempo, a cada esquina tinha um grupos de homens conversando e só falavam árabe.” Um idioma que ela mesma usa com fluência ao cumprimentar algum antigo cliente de trás do balcão do caixa. À sua esquerda, uma redoma de vidro repousa, deixando à mostra ninhos de nozes e doces de semolina brilhantes de tão úmidos com água de flor de laranjeira — as sobremesas!
Os árabes vieram desde o fim do século 19 e ganharam a vida no Brasil com os tecidos ou como caixeiros-viajantes4. Já os Maatouk se destacaram no ramo da comida. Halim e Alice eram um alfaiate e uma costureira, dois namorados, que trocaram anunciavam, sempre entregava um de profissão quando chegaram, em valor muito maior, que cobrisse a 1958. O marido passou a trabalhar oferta e evitasse conversa. Não era em restaurantes árabes hoje tradi- difícil encontrar zaatar, azeite, gercionais da cidade, como o Raful, no gelim: todos velhos conhecidos dos Centro, e o Almanara, na região da paulistanos, desde aquela época já República; até ter dinheiro suficiente tão acostumados com a comida sípara comprar de um patrício a sala rio-libanesa que pedem sfihahs em no prédio comercial onde começou qualquer boteco como se fossem seu próprio empreendimento. prato local. Na cozinha, os ingredientes iam ser misturados, trituAlice ia ao mercado com notas altas rados, temperados e despachados na carteira. Como tinha dificulda- para o salão através de uma pequede com o português e não enten- na abertura quadrada na parede. dia os preços que os vendedores Viravam hummus, coalhada seca e
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Naquela tarde de novembro, foi tamanho sucesso que as portas fecharam mais cedo — faltou comida no restaurante, tantos eram os comerciante síriolibaneses que queriam almoçar como em casa.
FAMÍLIA O QUE PEDIR
AV. T IRAD ENT ES
Memorial da Resistência
r. Cavalheiro Basílio Jafet, 38 Maatouk
Pinacoteca do Estado Estação da Luz
kibbeh michui, trio de pastas, charutos de folha de uva
EST AD O
ENDEREÇO
1973
AV. DO
DESDE
AV. S EN. Q UEIR ÓS
R. 25 DE MA RÇO
“São coisas que aprendi com minha mãe e minha avó”, relembra Alice com sotaque árabe de erres tremidos. “Cozinhar ainda me faz sentir um pouco como se estivesse lá.” Com esforço, dá mesmo para imaginar que a varanda do Monte Líbano se debruça sobre campos de oliveiras mediterrâneas. Mas a verdade é que lá embaixo está o caos do comércio popular. Nas paredes, Alice emoldurou jornais que colocam seu restaurante como o melhor árabe da cidade. É um título que, pelo visto, ela não quer levar sozinha – porque, no meio dos quadros, também está pendurado um retrato do seu marido, loiro, de terno, parecendo um elegante sósia do ator Robert Redford entre os prédios de Nova York, mas na verdade mais um libanês indo trabalhar no centro de São Paulo.
MONTE LÍBANO
AV. PRESTES MAIA
um babaganoush pungente levados à boca utilizando só o pão pita de talher.
Praça da República
Mercado Municipal
DO RUA
Terminal Pq. Dom Pedro II
Biblioteca Mário de Andrade
RIO Í TE UA ND MA TA
Praça da Sé
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. AV
O METR GASÔ
NA TA ES LP E NG RA
Mãe e filha, Regina e Alice Maatouk posam entre as mesas, próximas à varanda que dá para o centro da cidade
Mesa árabe: pão sírio, tabule, quibe cru, mijadra, charutos de folha de uva, babaganoush e o kibbeh michui
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O kibbeh michui típico da Zgharta de Alice Maatouk; e a versão do quibe crua e decorada com um maço de hortelã
Babaganoush e outros pratos sírio-libaneses do Monte Líbano que, às vezes, só exigem as mãos para comer
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A FERVOROSA BOLIVIANA DOS CAMPOS ELÍSEOS Flora Fernandes já conversou com Deus muitas vezes. Uma delas foi no ônibus que a trazia da Bolívia ao Brasil, destino São Paulo. Dizia ela em sua oração: “Vou para um país estranho porque já sou tão triste e sozinha na minha própria terra. Se vou voltar, só o Senhor vai poder me dizer.”
“Senhor, me perdoa. Eu prometo dar comida a toda criatura que tiver fome. Aquele que bater na minha porta pedindo um pedaço de pão nunca sairá de mãos vazias.”
Restou a ela crescer em uma casa de barro, sem luz ou água encanada. Ainda assim, brincava de cozinhar. E imitava a avó fervendo espigas ou fazendo queijo com o leite das ovelhas do quintal. De perto, aprendia com ela a preparar quinoa ou escaldar batatas de casca escura, pálida, roxa… Qualquer uma das mais de 4 mil variedades5 que se enterram no solo dos Andes — e a comida boliviana tem disso mesmo, um apego às raízes que ofereceu resistência à colonização e ainda se sacia com milhos, tubérculos, grãos e pimentas.
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profundos porque tinha de carregar baldes cheios de água quente. Não gosta de lembrar. De fato, sua voz logo fica trêmula e custa a escapar. Interrompe a conversa... Quando se recompõe, é para logo terminar este episódio com a lembrança de ir a Cochabamba sempre que recebia o salário para comprar comida aos avós. Chegou a se mudar de novo para a cidade por um breve período, mas partiu depois da morte da avó.
equipe de funcionárias. Trabalhava de sol a sol, cumprindo a demanda de uma indústria de tecidos que não se preocupava com quaisquer leis trabalhistas. Foi outra época difícil. E só piorou quando seu marido fugiu com todo o dinheiro. O que lhe sobrou foi continuar. E trabalhava... De madrugada, enfiava panos molhados nas frestas das portas e janelas para que o barulho das máquinas não atrapalhasse os vizinhos. E trabalhava... Parava só para amamentar seu filho Erik, exausta, dormindo pouquíssimas horas por noite. E trabalhava… Só 15 anos depois de chegar aqui foi que conseguiu dar entrada em uma casa. Vendeu todo o equipamento de costura que possuía e passou a sobreviver vendendo salteñas (um tipo de empanada popular na Bolívia, suculenta a ponto de o recheio ter de ser “bebido”) e anticuchos (espetos macios de coração bovino) à comunidade de bolivianos que frequentava locais como a Feira da Kantuta, no Brás.
Flora também quis estudar. Mas a escola era para meninos e, mesmo insistindo, um ferimento no olho comprometeu sua visão e impediu que continuasse (até hoje, não enxerga bem da vista esquerda). Teve de sair para arranjar seu primeiro trabalho aos 11 anos como cuidadora de uma idosa. Aos 14, foi morar com uma Tinha uns 20 anos e saía de Cocha- irmã em La Paz e arranjou emprego bamba, uma cidade de feiras livres em um restaurante alemão: era cozinas terras encharcadas do centro nheira dos funcionários, preparando do país. Deixou para trás a aldeia a comida de todos os dias. nos subúrbios onde os avós a criaram; porque o pai havia abandona- Foi uma época sofrida, como tantas do a família, a mãe era comerciante da sua vida. Conta que as mãos sane nunca parava em um só lugar, e o gravam de tanto esfregar panos de padrasto não aceitava os enteados. prato; e os ferimentos ficavam mais
A saída que encontrou foi vir ao Brasil. Não teria problemas com documentação, porque nasceu em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, fronteira com a Bolívia. Além disso, tinha um tio e um irmão que a acolheriam no novo país, mas com uma condição: “Aqui se come e se trabalha”, avisou senhor. Para Flora, não era problema. Dirigiu-se a Deus de novo, rogando para que não voltasse a ser empregada doméstica. E não foi. Como tantos bolivianos que vêm ao país, entrou para uma confecção. Logo, despontou-se entre as costureiras: “Me chamavam de puxa-saco. Eu não entendia e agradecia. Não me importava: só Então, uma ideia! Vinha chegando 6 de agosto, a Independência da Boqueria trabalhar”, lembra. lívia, dia de comemorações. Pagou Conseguiu comprar sua primeira má- para um rapaz entrar em uma grande quina para produzir de casa e, em festa e colocar em cada mesa folhepouco tempo, montou uma pequena tos que ela mesma havia copiado com
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Memorial da Resistência
Pinacoteca do Estado Estação da Luz
RINCÓN LA LLAJTA DESDE ENDEREÇO FAMÍLIA O QUE PEDIR
1986 al. Cleveland, 698 Fernandes
fricassé, salteñas para levar
Praça da República
R. 25 DE MA RÇO
No lugar que leva o nome de “lar”, os bolivianos encontram refúgio justamente na comida de casa. Da sopa de maní (amendoim) ao charquekan, um prato andino feito com carne desfiada e frita servida sob enormes grão de milho, queijo branco e um ovo cozido ainda com casca; sua cozinha foi passada adiante ao filho Erik. É dele o food truck La Cholita, que homenageia a Bolívia para além do cardápio de empanadas, levando no nome a maneira como as indí-
RIO TIET Ê
AV. T IRAD ENT ES
papel carbono. Os bilhetes anuncia- genas dos Andes são chamadas no vam: ainda na madrugada depois da Equador, no Peru e na Bolívia. Antes festa, os primeiros clientes que che- uma pecha dada pelos colonizadogassem naquele endereço (o de sua res por sua origem mestiça, hoje as casa transformada em restaurante) mulheres ameríndias têm orgulho de, ganhariam uma cerveja e um prato sim, serem cholitas. de fricassé. Afinal, o caldo feito com carne de porco era apimentado e rico “Antes de abrir meu restaurante, eu o suficiente para curar a ressaca. estava em um momento muito ruim“, relembra Flora pela última vez. “Assim, Filas se formaram. Assim veio a ser fiz um pacto com Deus. Ajoelhei-me o Rincón La Llajta em 1986, palavra diante do crucifixo e perguntei por que na sua língua materna, o qué- que eu vinha sofrendo desde pequechua, refere-se ao lar e aos lugares na. Eu não fiz mal a ninguém. Mas que são familiares. O local ficou fa- se tiver feito, Senhor, me perdoa. Eu moso entre seus compatriotas como prometo dar comida a toda criatuo primeiro restaurante boliviano da ra que tiver fome. Aquele que bater cidade — uma imigração que hoje na minha porta pedindo um pedaço soma cerca de 100 mil pessoas em de pão nunca sairá de mãos vazias. São Paulo, documentadas ou não6. Mesmo que me falte comida, eu vou E é simbólico que a história de Flora, alimentar quem precisa comer.” permeada por dificuldade e sofrimentos, ilustre a de tantos dos seus, E, assim, leva sua promessa até hoje. que fogem de condições precárias e aqui se deparam com uma vida difícil de moradias compartilhadas, preconceito e escravidão.
Flora Fernandes prepara charquekan, ajeitando batatas entre grãos de milho graúdos; e um dos quadros no salão, que ilustra a cordilheira dos Andes
Salteñas dispostas em série, saindo do forno a gás; para comê-las, morde-se uma ponta para que o interior suculento possa ser “bebido” e não vaze
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Flora leva à mesa o charquekan pronto; para acompanhar o prato, há llajua (molho picante feito com pimenta vermelha) e mocochinchi (bebida feita com pêssegos desidratados)
Flora e Erik Fernandes, seu filho, no restaurante pintado com as cores da bandeira da Bolívia
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OS RESILIENTES JUDEUS DO BOM RETIRO Da placa, só se entende o preço. Todo algumas quadras mais para deno resto está escrito em coreano, pro- tro do bairro, onde está localizada a vavelmente anunciando doces de Casa Búlgara. É uma confeitaria de nozes, chás ou outros produtos da burekas, doce dos Bálcãs de massa confeitaria. Na mercearia ao lado, folhada e recheada, aberta em 1975 enormes ramalhetes de nabos des- pela falecida Lina Levi. Uma imigrancansam perto da porta, suas folhas pendendo para fora das estantes, alguns dedos mais próximas da rua. Conviver é preciso Ainda assim, estão bem resguardadas porque seu povo, do rapaz que passa a pedaladas, secando seu rosto marrom de traços inafinal, aprendeu com dígenas. O Bom Retiro mudou. Antes sacrifício o valor de predominância judaica, desde os da união. Mas não anos 1960 famílias de coreanos e bolivianos deram outra cara ao bairro em só isso. Shoshanna que se fixaram para morar e trabalhar. atesta: “O que
mais tenho de judia Porém, algumas testemunhas daquela época, a da presença dos judentro de mim é deus, ainda estão de pé. Por exemmeu instinto de plo, a Casa do Povo, na rua Três Rios, sobrevivência! um centro cultural judaico que antes era a escola Scholem Aleichem. O prédio foi erguido pela comunidade unida em resistência ao nazismo. te búlgara, dona Lina foi com a famíTudo foi doado, tijolo por tijolo, lite- lia para o território onde seria fundaralmente. No seu porão, ainda está do Israel, mas teve de deixar o país escondido o Teatro Israelita-Brasi- durante a Guerra do Yom Kippur. Veio leiro esperando por uma reforma. ao Brasil em 1974, e aqui faleceu em Seguindo por esta rua, dobrando a 2018. Hoje, quem toca o negócio é esquina, chega-se à Delishop. sua filha Shoshana Baruch. Mas, para contar a história deste estabelecimento, é preciso andar
Shoshana e Adi Baruch, seu marido, são um casal israelense que pas38
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sou pelo Brasil em 1976, até virem quando um amigo passa pela porta em definitivo em 1987. Chegaram a cumprimentado-o e ele grita: “Olá! trabalhar na doceria de dona Lina, Boa tarde! Te amo!” vendendo queijos búlgaros e iogurte de cabra, até enfim abrirem seu A tradição dos Baruch é sefardita, próprio negócio. Aí, então, foi criada termo hebraico para os judeus oriuna Delishop. dos da Península Ibérica e espalhados pelo Mediterrâneo. Falam o Quando inaugurada, em agosto de idioma ladino, derivado do castelha1991, limitava-se a apenas um balcão no. Assim, Shoshanna e Nir têm um no estilo das delicatessens de Nova sotaque difícil de perceber tão próYork. Era entrar, escolher porções ximo que é do português — apesar dos pratos à mostra, pagar e levar. de também falarem hebraico. Sua Foi um modelo de negócio tipicamen- dieta é mais parecida à dos gregos, te adotado pelos judeus na metrópo- turcos e marroquinos: comem mais le norte-americana que poderia ser legumes, frutas, azeites e produtos traduzido aos costumes brasileiros derivados do leite. como uma rôtisserie. Mas o esquema não pegou. Mal recebiam os pa- Mas também servem pratos famicotes, os clientes procuravam lugar liares aos asquenazes, outra palavra para sentar. Queriam comer na hora. hebraica que se refere à Alemanha e Era melhor, então, abrir logo um salão designa os judeus da Europa Central para acomodá-los todos. Pronto, sur- e Leste Europeu. Têm uma outra língiu um restaurante. gua, o iídiche, de raiz germânica; e também outros hábitos alimentares, Quem hoje cozinha é Nir Baruch, um com menos cores e mais carboidrados dois filhos do casal, nascido em tos. Por isso, dona Shoshanna chega Israel. Muito provavelmente, estará de manhã para fechar pastéis vareatrás do balcão com sua alta esta- niks de massa cozida, que mais tarde tura e tatuagens no braço, usando Nir irá polvilhar com cebola frita logo um avental branco e um boné com a antes de levar à mesa. Estrela de Davi. Divide espaço com o pai Adi, que fecha as contas. Este é Não são kosher, mas deixam de servir um senhor menor, sério, econômico porco e frutos do mar em respeito aos nas palavras. É uma surpresa, então, praticantes mais ortodoxos. De qual39
quer maneira, diversas culturas judaicas sentam à mesa: no balcão refrigerado de vidro, típicos bolinhos dos asquenazes chamados gefilte fish (que se comem frios com raiz-forte, ou chrain, como dizem) ficam na prateleira logo acima dos pudins de leite, uma receita sefardita trazida pela avó de Nir, dona Lina.
DESDE ENDEREÇO
FAMÍLIA O QUE PEDIR
1991
RIO TIET Ê
r. Correia de Melo, 206 Baruch
mussaká ou schnitzel; depois, pudim de leite
Casa Búlgara
Casa do Povo AV. T IRAD ENT ES
Conviver é preciso porque seu povo, afinal, aprendeu com sacrifício o valor da união. Mas não só isso. Shoshanna é categórica: “O que mais tenho de judia dentro de mim é meu instinto de sobrevivência!” E continua: “Posso comer pão com cebola ou caviar, ser dona de restaurante ou faxineira. Para mim, tanto faz. Vou sobreviver com o que tenho nas mãos.”
DELISHOP
Pinacoteca do Estado Estação da Luz
R. 25 DE MA RÇO
Memorial da Resistência
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Mercado Municipal
Com o avental da Casa Búlgara, Shoshanna Baruch enrola vareniks na cozinha do Delishop
Assim se moldam os vareniks, um prato asquenaze: o recheio de batatas é colocado sobre discos de massa, que se fecham em forma de meia-lua
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Adi Baruch, de pé, e o filho Nir ainda de avental no restaurante do Bom Retiro
Dois pratos sefarditas da casa: antepasto de berinjela e o mesmo vegetal com molho de iogurte e recheado com ricota; e detalhe do restaurante, que mesmo na fachada possui algo de mediterrâneo
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AGRADECIMENTOS
NOTAS
Obrigado a vocês.
1. Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, 2017. Disponível em: http://abrasel.com.br. Acesso em: 9 de nov. de 2019.
A Gabriel Cabral, fotógrafo e amigo. Por me emprestar seus olhos.
2. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2018. Disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sao-paulo/panorama. Acesso em: 9 de nov. de 2019.
A Beatriz Dórea, designer e amiga. Por dar forma às minhas palavras.
3. Consulado Geral da República Popular da China em São Paulo, 2012. Disponível em: http://saopaulo.china-consulate.org/pl/fyrth. Acesso em: 9 de nov. de 2019.
A Eun Yung Park. Por orientar este livro e nunca me deixar pagar a conta.
4. KHOURI, Juliana Mouawad. Pelos caminhos de São Paulo: a trajetória dos sírios e libaneses na cidade. Orientador: Prof. Dr. Paulo Daniel Elias Farah. 2013. 281 p. Dissertação (Mestrado em Estudos Judaicos e Árabes) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
Aos cozinheiros e famílias. Por abrirem suas cozinhas a visitação. A minha família. Por estarem comigo. A meus amigos. Por acompanharem no caminho.
5. International Potato Center, 2015. Disponível em: https://cipotato.org. Acesso em: 9 de nov. de 2019 6. PEREIRA, Elvis. Bolivianos se tornam a segunda maior colônia de estrangeiros em SP. Folha de S.Paulo, São Paulo, 16 de jun. de 2013. Disponível em: https://folha.uol.com.br/saopaulo/2013/06/1295108-bolivianosse-tornam-a-segunda-maior-colonia-de-estrangeiros-em-sp.shtml. Acesso em: 9 de nov. de 2019.
A você que lê. Por garantir que essas histórias sigam vivas.
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Este volume foi composto nas fontes Freizeit e Attila Sans e impresso no papel pólen soft pela gráfica Riso Tropical, em novembro de 2019.
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