À Paulistana: Memórias de comida e imigração em São Paulo

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Memórias de comida e imigracao na cidade de Sao Paulo

POR RAFAEL BAHIA FOTOS GABRIEL CABRAL

Memórias de comida e imigracao na cidade de Sao Paulo

Para minha avó, Mercedes

INTRODUÇÃO

QUE GOSTO TEM SAO PAULO

grossas e o nariz reto denunciavam algum mouro lá atrás na sua árvore genealógica. E arrematava a mistura com um sotaque italiano, que aprendeu no Brás, reduto desta imigração. Nos sábados de manhã, às vezes me levava para fazer mercado nas lojas a granel da Zona Cerealista, ao lado do Mercado Municipal. Os donos árabes o chamavam de “primo” e o tratavam bem, com azeitonas e tâmaras secas para provar.

Sempre se cozinhou em casa. Não saíamos para comer. Mesmo a pizza de sábado à noite era feita do começo sobre a pia de granito do sítio em Socorro, no interior. Eu achava que eram pequenos costumes, mas se tratava de tradições na verdade, porque nunca podiam ser (e nunca eram) quebradas. O bolo formigueiro, uma pena quando o chocolate granulado se decantava todo no fundo da forma. Gelatina quadriculada, pavê de nozes e doces de outra época. Meu avô trazia uma melancia inteira. Minha mãe e minha tia deixavam o bacalhau para dessalgar na véspera do Natal. Na manhã seguinte à ceia, virava bolinhos que a gente ajudava a enrolar. No Ano-Novo, uma cataplana de paella amarela, cor de próspero ouro, a coisa mais linda. E os restos de cuscuz paulista tinham de ser acompanhados por café preto no desjejum do dia 1°.

Alguns desses hábitos são compartilhados pela cidade. A comida deste chão é a caipira, com forte influência dos guaranis em feijões, batatas e, principalmente, milhos — é o que diz o sociólogo Carlos Alberto Dória em seu livro A culinária caipira da Paulistânia. Mas São Paulo tomou gosto por tudo que os imigrantes trouxeram de saudade nas malas. Acabou, assim, com o aroma da lenha queimando à noite nas pizzarias dos bairros, de yakisoba preparado na porta do metrô, de

DE MESA EM MESA OS RESTAURANTES

descendentes que hoje moram na cidade3, oriundos de ondas migratórias que começaram no ano de 1900.

Um chinês alto e corpulento que, nas manhãs dos fins de semana, toma lugar no segundo átrio de uma enorme cozinha. Seu trono é um banquinho. Seu tapete vermelho, tecido com repolhos, nabos e cenouras cortados em fios sobre um balcão metálico.

O primeiro restaurante do senhor Shu foi aberto na mesma pensão que recebia os chineses recém-chegados em 1954, no bairro de Perdizes, na zona oeste. A mesma casa deu origem ao restaurante Sino-Brasileiro, antigo conhecido da comunidade. Foi também sócio do Kinkon, na avenida Pau-

lista, região central, que pouco tempo depois se deslocou algumas quadras para a rua Peixoto Gomide em 1975; e do Palácio Imperial, localizado em Pinheiros. Finalmente, inaugurou o Golden Plaza em 1984.

A vizinhança do Morumbi ainda não tinha sua pompa atual, muito menos era um bairro de presença asiática. Acabou sendo escolhida graças ao terreno, comprado barato, que poderia abrigar tanto o restaurante quanto a casa da família na porta vizinha. Nos fundos, coube uma horta onde o senhor Shu cultivava acelga, e trazia os ingredientes restantes do Ceagesp – até hoje “seu Shu-Shu” é reconhecido pelos vendedores nas raras vezes em que faz as compras. Era uma época de trabalho árduo, para além da meia-noite. Não havia fins de semana ou folga. Portas fechadas, só então sobrava tempo para se divertir com o máhjòng (jogo de mesa chinês).

Hoje o Golden Plaza não recebe os visitantes pelo grande portão principal. Este é reservado apenas para solenidades, como tantos casamentos da comunidade chinesa já realizados ali. Quem chega tem de entrar por uma porta lateral, como se o prédio reiterasse sua cerimônia.

MARGINALPINHEIROS

A louça timbrada serve um camarão empanado do senhor Shu; e o cozinheiro senta em seu balcão para preparar rolinhos-primavera

Um dos cantos do Golden Plaza: mesa posta, vitrais de decoração e painéis suntuosos

era criança, mas lembra. “Hoje você ouve coreano pelas galerias daqui”, diz. “Naquele tempo, a cada esquina tinha um grupos de homens conversando e só falavam árabe.” Um idioma que ela mesma usa com fluência ao cumprimentar algum antigo cliente de trás do balcão do caixa. À sua esquerda, uma redoma de vidro repousa, deixando à mostra ninhos de nozes e doces de semolina brilhantes de tão úmidos com água de flor de laranjeira — as sobremesas!

Os árabes vieram desde o fim do século 19 e ganharam a vida no Brasil com os tecidos ou como caixeiros-viajantes4. Já os Maatouk se destacaram no ramo da comida. Halim e Alice eram um alfaiate e uma costureira, dois namorados, que trocaram de profissão quando chegaram, em 1958. O marido passou a trabalhar em restaurantes árabes hoje tradicionais da cidade, como o Raful, no Centro, e o Almanara, na região da República; até ter dinheiro suficiente para comprar de um patrício a sala no prédio comercial onde começou seu próprio empreendimento.

Alice ia ao mercado com notas altas na carteira. Como tinha dificuldade com o português e não entendia os preços que os vendedores

Naquela tarde de novembro, foi tamanho sucesso que as portas fecharam mais cedo — faltou comida no restaurante, tantos eram os comerciante síriolibaneses que queriam almoçar como em casa.

anunciavam, sempre entregava um valor muito maior, que cobrisse a oferta e evitasse conversa. Não era difícil encontrar zaatar , azeite, gergelim: todos velhos conhecidos dos paulistanos, desde aquela época já tão acostumados com a comida sírio-libanesa que pedem sfihahs em qualquer boteco como se fossem prato local. Na cozinha, os ingredientes iam ser misturados, triturados, temperados e despachados para o salão através de uma pequena abertura quadrada na parede. Viravam hummus , coalhada seca e

Praça da República

Biblioteca Mário de Andrade

Pinacoteca do Estado Memorial da Resistência

Estação da Luz

Praça da Sé

Mercado Municipal

Terminal Pq. Dom Pedro II

Mesa árabe: pão sírio, tabule, quibe cru, mijadra, charutos de folha de uva, babaganoush e o kibbeh michui

Babaganoush e outros pratos sírio-libaneses do Monte Líbano que, às vezes, só exigem as mãos para comer

profundos porque tinha de carregar baldes cheios de água quente. Não gosta de lembrar. De fato, sua voz logo fica trêmula e custa a escapar. Interrompe a conversa... Quando se recompõe, é para logo terminar este episódio com a lembrança de ir a Cochabamba sempre que recebia o salário para comprar comida aos avós. Chegou a se mudar de novo para a cidade por um breve período, mas partiu depois da morte da avó.

A saída que encontrou foi vir ao Brasil. Não teria problemas com documentação, porque nasceu em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, fronteira com a Bolívia. Além disso, tinha um tio e um irmão que a acolheriam no novo país, mas com uma condição: “Aqui se come e se trabalha”, avisou senhor. Para Flora, não era problema. Dirigiu-se a Deus de novo, rogando para que não voltasse a ser empregada doméstica. E não foi. Como tantos bolivianos que vêm ao país, entrou para uma confecção. Logo, despontou-se entre as costureiras: “Me chamavam de puxa-saco. Eu não entendia e agradecia. Não me importava: só queria trabalhar”, lembra.

Conseguiu comprar sua primeira máquina para produzir de casa e, em pouco tempo, montou uma pequena

equipe de funcionárias. Trabalhava de sol a sol, cumprindo a demanda de uma indústria de tecidos que não se preocupava com quaisquer leis trabalhistas. Foi outra época difícil. E só piorou quando seu marido fugiu com todo o dinheiro.

O que lhe sobrou foi continuar. E trabalhava... De madrugada, enfiava panos molhados nas frestas das portas e janelas para que o barulho das máquinas não atrapalhasse os vizinhos. E trabalhava... Parava só para amamentar seu filho Erik, exausta, dormindo pouquíssimas horas por noite. E trabalhava… Só 15 anos depois de chegar aqui foi que conseguiu dar entrada em uma casa. Vendeu todo o equipamento de costura que possuía e passou a sobreviver vendendo salteñas (um tipo de empanada popular na Bolívia, suculenta a ponto de o recheio ter de ser “bebido”) e anticuchos (espetos macios de coração bovino) à comunidade de bolivianos que frequentava locais como a Feira da Kantuta, no Brás.

Então, uma ideia! Vinha chegando 6 de agosto, a Independência da Bolívia, dia de comemorações. Pagou para um rapaz entrar em uma grande festa e colocar em cada mesa folhetos que ela mesma havia copiado com

RIO TIETÊ
Pinacoteca do Estado Memorial da Resistência Estação da Luz
Praça da República

Salteñas dispostas em série, saindo do forno a gás; para comê-las, morde-se uma ponta para que o interior suculento possa ser “bebido” e não vaze

Flora e Erik Fernandes, seu filho, no restaurante pintado com as cores da bandeira da Bolívia

sou pelo Brasil em 1976, até virem em definitivo em 1987. Chegaram a trabalhar na doceria de dona Lina, vendendo queijos búlgaros e iogurte de cabra, até enfim abrirem seu próprio negócio. Aí, então, foi criada a Delishop.

Quando inaugurada, em agosto de 1991, limitava-se a apenas um balcão no estilo das delicatessens de Nova York. Era entrar, escolher porções dos pratos à mostra, pagar e levar. Foi um modelo de negócio tipicamente adotado pelos judeus na metrópole norte-americana que poderia ser traduzido aos costumes brasileiros como uma rôtisserie. Mas o esquema não pegou. Mal recebiam os pacotes, os clientes procuravam lugar para sentar. Queriam comer na hora. Era melhor, então, abrir logo um salão para acomodá-los todos. Pronto, surgiu um restaurante.

Quem hoje cozinha é Nir Baruch, um dos dois filhos do casal, nascido em Israel. Muito provavelmente, estará atrás do balcão com sua alta estatura e tatuagens no braço, usando um avental branco e um boné com a Estrela de Davi. Divide espaço com o pai Adi, que fecha as contas. Este é um senhor menor, sério, econômico nas palavras. É uma surpresa, então,

quando um amigo passa pela porta cumprimentado-o e ele grita: “Olá! Boa tarde! Te amo!”

A tradição dos Baruch é sefardita, termo hebraico para os judeus oriundos da Península Ibérica e espalhados pelo Mediterrâneo. Falam o idioma ladino, derivado do castelhano. Assim, Shoshanna e Nir têm um sotaque difícil de perceber tão próximo que é do português — apesar de também falarem hebraico. Sua dieta é mais parecida à dos gregos, turcos e marroquinos: comem mais legumes, frutas, azeites e produtos derivados do leite.

Mas também servem pratos familiares aos asquenazes, outra palavra hebraica que se refere à Alemanha e designa os judeus da Europa Central e Leste Europeu. Têm uma outra língua, o iídiche, de raiz germânica; e também outros hábitos alimentares, com menos cores e mais carboidratos. Por isso, dona Shoshanna chega de manhã para fechar pastéis vareniks de massa cozida, que mais tarde Nir irá polvilhar com cebola frita logo antes de levar à mesa.

Não são kosher, mas deixam de servir porco e frutos do mar em respeito aos praticantes mais ortodoxos. De qual-

Casa Búlgara

Praça da República

Memorial da Resistência

Casa do Povo

AV. T I RADENTES

Pinacoteca do Estado

Estação da Luz

Mercado Municipal R. 2 5 D E M A R Ç O

RIO TIETÊ

Assim se moldam os vareniks, um prato asquenaze: o recheio de batatas é colocado sobre discos de massa, que se fecham em forma de meia-lua

Dois pratos sefarditas da casa: antepasto de berinjela e o mesmo vegetal com molho de iogurte e recheado com ricota; e detalhe do restaurante, que mesmo na fachada possui algo de mediterrâneo

NOTAS

1. Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, 2017 Disponível em: http://abrasel.com.br. Acesso em: 9 de nov. de 2019.

2. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2018. Disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sao-paulo/panorama.

Acesso em: 9 de nov. de 2019

3. Consulado Geral da República Popular da China em São Paulo, 2012 Disponível em: http://saopaulo.china-consulate.org/pl/fyrth. Acesso em: 9 de nov. de 2019.

4. KHOURI, Juliana Mouawad. Pelos caminhos de São Paulo: a trajetória dos sírios e libaneses na cidade. Orientador: Prof. Dr. Paulo Daniel Elias Farah. 2013 281 p. Dissertação (Mestrado em Estudos Judaicos e Árabes) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

5. International Potato Center, 2015. Disponível em: https://cipotato.org. Acesso em: 9 de nov. de 2019

6. PEREIRA, Elvis. Bolivianos se tornam a segunda maior colônia de estrangeiros em SP. Folha de S.Paulo, São Paulo, 16 de jun. de 2013 Disponível em: https://folha.uol.com.br/saopaulo/2013/06/1295108-bolivianosse-tornam-a-segunda-maior-colonia-de-estrangeiros-em-sp.shtml. Acesso em: 9 de nov. de 2019.

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