Itatiaia, Geraes

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bija, Bárbara Itatiaia, geraes / Bárbara Bija. -- 1. ed. -Ouro Branco, MG : Ed. da Autora, 2021. ISBN 978-65-00-16334-6 1. Arte 2. Artes visuais 3. Cultura 4. Itatiaia (MG - Descrição 5. Lendas - Itatiaia (MG) 6. Itatiaia (MG) - História 7. Patrimônio cultural - Itatiaia (MG) I. Título.

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CDD-981.512 Índices para catálogo sistemático:

1. Itatiaia : Cidade : Minas gerais : História 981.512 Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964


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Começo dos começos Na língua tupi-guarani, de quem não viveu pra contar a primeira história, a palavra itá-ti-aia é pedra úmida. Há muito tempo, Mãe D’Ouro iluminou as fendas molhadas dessa serra. Foi quando, dizem, uma luz alaranjada mandou chamar a Bandeira de Borba Gato, que parou pra descansar depois de vencer a Serra do Deus te Livre (acredite, o nome não é à toa!). Então, lá na Gruta dos Cabritos, dois bandeirantes se desentenderam por causa do dourado nos paredões, no que se dividiram — um foi tocar sua vida até encontrar o ouro branco, enquanto o outro foi ter notícias do ouro preto. Mas, como todo mineiro sabe, no meio do caminho tem o Bico de Pedra. E foi lá mesmo onde ouvi de um sanfoneiro a seguinte história, baseada em fatos reais:

SIGA ATÉ A PEDRA QUE ROLA-NÃO-ROLA! p. 8


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Bico de Pedra Antes da partida, sanfoneiro me elucidou que Itatiaia, sendo fractal das Minas, guarda todos seus mistérios. Pois hai em nossas gentes miniaturas da sorte maior, bem como na vegetação, aves, peixes, bovinos, felinos, répteis, morros, águas e tal e qual — também na arquitetura, palavreado, ouro ou quaisquer estirpes das criações. Por isso, nossos cenários, personagens e modos de bem viver são apenas exemplificações da grande geometria, que o ser indivíduo tem livre arbítrio pra arranjar em categorias de narrativa particular, embora nem tão livre assim, modo cá despencamos nos quinhões preestabelecidos. Mas como fractal ao avesso, Itatiaia também multiplica o grande tabuleiro, no que suas pecinhas, desconfiadíssimas, por ora teimam contrariar os mandamentos da partida. E foi assim que sanfoneiro se me apresentou sua própria sina, pois de narrar os acontecimentos via concertina, modo ninguém deslembrar de seu começo, fim ou meio. No que, derepentemente, aprumando, exclamou: — Tem boi na linha! E, caminhando, foi tocando essa alegre canção: Pastora, vamos simbora / que a madrugada já invém / vamos ver as nossas cabanas / que lá não ficou ninguém… / Entrei por uma porta / saí pela outra / quem quiser, minha senhora / que lhe conte outra! Pois, diminuindo na curvatura da paisagem, sanfoneiro abriu uma portinhola de ferro redonda, incrustada no pé da serra que, dizem, vai comunicar l’em Lavras Novas. E assim deu no pé, pra tocar em outras paralelas. Em seu banquinho de contador, resta único um seixozinho, em formato de corisco.


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Posfácio Itatiaia tem histórias pra contar Em volta do fogo todo mundo abrindo o jogo Com tudo que tem pra contar Casos e desejos coisas dessa vida e da outra Mas nada de assustar Quem não é sincero sai da brincadeira correndo pois pode se queimar… Caxangá, canção de Milton Nascimento

Este livro é a repercussão de um trabalho desenvolvido no contexto da pandemia da Covid-19. Em abril de 2020, elaborei um projeto de aulas de artes gratuitas para doze crianças de Itatiaia, em formato remoto. Como a maior parte do grupo não conta com acesso a equipamentos digitais, tampouco internet, eu passava em suas casas semanalmente entregando uma proposta artística e materiais para sua execução; na semana seguinte, eu recolhia as atividades prontas, trocando as pastas. Entre abril e setembro, compartilhei meus próprios materiais com as crianças, seguindo rodízios. Esse modelo didático, que chamei de “aulas por correspondência”, me surpreendeu positivamente e superou bastante as expectativas, já que os alunos aderiram às propostas com paciência e entusiasmo, o que, professores sabem, nem sempre acontece nas salas de aulas da educação formal. Experimentamos


várias técnicas e materiais artísticos, tais como: autorretrato, desenho livre, de observação, técnico, com giz pastel oleoso, pintura com guache, xilogravura, escrita, colagem e frotagem. Em agosto, fui contemplada com uma bolsa em artes visuais pelo Lab Cultural, um programa do BDMG Cultural para valorização e incentivo à pesquisa de processos artísticos e culturais em Minas Gerais. Assim, foi possível comprar um conjunto de materiais para cada criança inscrita no projeto, incluindo caixas de doze cores de lápis de cor, canetas hidrográficas e giz pastel oleoso, tinta guache, três tipos de pincéis, rolinho de pintura, papéis etc. Minha mãe costurou saquinhos personalizados e os materiais foram separados e entregues individualmente no início de setembro, quando começaram a ilustrar esse livro. Itatiaia é uma comunidade pertencente a Ouro Branco, com menos de 300 habitantes, localizada aos pés da cadeia do Espinhaço. Apesar do tamanho, já foi palco de muitas histórias, desde a época das catas do ouro na região, e bastante mais populosa. Há muitas narrativas que datam de 1700 ou antes, compreendendo um rico patrimônio cultural imaterial transmitido de uma geração a outra pela oralidade. Assim, não foi difícil convidar a população local ao compartilhamento de saberes, lendas e experiências de vida. O projeto começou em agosto, com a entrega de cartinhas de porta em porta, um chamado à contação de casos e memórias para a produção de um livro ilustrado. As conversas foram gravadas ao ar livre, seguindo as recomendações da OMS para prevenção do vírus, entre setembro e novembro. Fatinha, Mundico, Cilico, Jovercina, Almerinda, Maria, Geralda, Gracinha, Baixinho, Marcelo, Mauro e Kelvyn me contaram histórias. O livro é uma ficção “baseada em fatos reais”, como diria Cilico. Dona Jovercina, que completou cem anos, me contou os casos da cobra-galo, da garrafa de ouro enterrada,


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dos “capinhas brancas”, do padre que escondeu os homens, do baile na Fazenda Pé do Morro, do capataz, da mula-sem-cabeça, dos soldados que voltaram pra casa fechando os olhos, da orquestra de assombrações (ela mesma já presenciou), da procissão das almas e do Santo Antônio vivo. Quase todos falaram da cabaça que sobe e desce o morro voando (Dona Ernestina, sagaz, comentou certa vez: “mas eu fico boba é dela subir!”). Baixinho e Marcelo lembraram do feiticeiro que sacudia a cabaça até libertar as galinhas vivas. Mundico falou sobre o Santo Antônio pesado, que voltou leve da reforma, e de um portão de ferro que talvez ligasse Itatiaia a Lavras Novas. Dona Almerinda cantou todas as músicas do livro. De uma delas, eu inventei o caso de amor entre Esmeralda e Zé Beleza. Aliás, Zé Beleza era o violeiro que até hoje desce o leito do rio tocando, segundo Cilico. Os garimpeiros realmente duelavam na ponte. Marcelo falou sobre uma mulher que foi enterrada viva, à mão de pilão, por trair o marido — mas não é Esmeralda. Também me explicou das pedras de corisco, achados bem comuns na região, e dos primeiros bandeirantes. Dona Geralda contou da mãe que esperou o filho passar na procissão das almas. O envenenamento do padre é caso de Cilico, que ouviu da mãe, que ouviu da mãe. O marido de Dona Maria testemunhou animais se transformando, enquanto a cachorra de Mauro ressuscitou milagrosamente. Todos contextualizaram os modos de vida, cenários, personagens e tempos que compõem a narrativa deste livro. Prestei bastante atenção às palavras e expressões mais usadas, bem como à ordem sintática das frases pra encontrar a voz lírica do narrador. O sanfoneiro é uma figura recorrente nas histórias daqui, onde o povo foi mesmo muito festeiro. A propósito, os contadores manifestaram muita saudade dos bailes, procissões, leilões, feiras e coroações. Itatiaia também já teve uma rica tradição no congado que,


infelizmente, se perdeu. É verdade que o povoado foi criado por feiticeiros, como Baixinho comentou. A casa das cabaças ainda existe, em ruínas, um provável terreiro frequentado por escravos na época mais forte da mineração do ouro, ou pouco depois, como espaço para reuniões e celebrações. Entre índios, bandeirantes, escravos e garimpeiros nasceram as primeiras famílias, e toda gente hoje é descendente de três ou quatro linhagens principais. As histórias e saberes atravessaram muitas gerações, mas têm se perdido com a modernização dos modos de vida, os meios de comunicação que homogeneízam os costumes, a chegada de forasteiros que se instalaram na região, o turismo que descaracteriza as tradições ancestrais e a falta de investimento público em cultura. Mais do que uma colheita de estórias e do esforço do arquivo, de conservação das memórias, os espaços limítrofes guardam, acredito, fértil potência criadora. Assim, meu desejo era “transcriar” o conjunto de narrativas, explorando as fronteiras entre a ficção e a documentação, a arte e a literatura, a cultura oral e a História. Quase imediatamente, o livro foi se tornando uma espécie de mapa do povoado. Os cenários onde as histórias acontecem são fundamentais, num jogo onde o leitor é testemunha do percurso narrativo, seguindo as coordenadas do texto, como um andarilho. A carpintaria, na verdade, é minha casa. Tal qual um caleidoscópio, Itatiaia é um fractal das Minas Gerais, ou parte dele, que espelha o folclore e saberes regionais — por isso a paisagem da capa é refletida. Além disso, os desvios ou rotas alternativas ampliam os horizontes de leitura da obra, afinal, reconhecemos o perigo de uma História única. Logo, o todo é maior que a soma das partes.


57 O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim. Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo

Assim como Sherazade, que ao longo de mil e uma noites conta uma história pra não morrer, comunidades instauram um patrimônio vivo à medida que se apropriam daquilo que é lhes é próprio. Os trabalhos artísticos também contam suas próprias histórias, como inscrições concretas no mundo. A arte conecta subjetividades individuais, integrando experiências de comunidades, inspirando e ressignificando as formas de vida, enquanto salvaguarda saberes tradicionais referentes à identidade, história e memória. O objeto livro, por sua vez, é um dispositivo viajante condutor de conhecimentos. As estórias despertam sempre outras histórias e experiências. Os próprios movimentos de “puxar da memória” e contar são casos à parte. O livro Itatiaia, Geraes é testemunha dos arcabouços por trás do trabalho, revelando e apresentando suas estruturas. Por último, leitores/participadores, com suas histórias pessoais, também criam outras, infinitamente, a partir da obra. “Quem conta um conto, aumenta um ponto”, diria o ditado popular. Talvez, por isso, Babel seja uma grande confusão.



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Agradecimentos E o esquecer / Era tão normal que o tempo parava / E a meninada respirava o vento / Até vir a noite e os velhos falavam / Coisas dessa vida / Eu era criança / Hoje é você / E no amanhã, nós... Fazenda, canção de Milton Nascimento

Minha gratidão às crianças que participaram do projeto, bem como às mães, tias e avós que trabalharam com a gente. Deixo um abraço especial para Isaque de Souza Sales, menino forte e corajoso. Obrigada Ícaro e Wilton que, por meio da biblioteca comunitária de Itatiaia, acolheram o livro desde o nascimento. A todos que me contaram histórias e compartilharam experiências de vida comigo. Nos bastidores, Alisson Damasceno, Desali, Efe Godoy, Ítalo Almeida, Larissa Freitas, Matheus de Simone, Maya Quilolo, Priscila Rezende, Terra Assunção, Júlia Rebouças, Raylander Mártis e Melissa Rocha também dividiram seus processos, angústias, inquietações e ideias ao redor da fogueira. Agradeço ao Programa Lab Cultural pela rara oportunidade de troca e aprendizado coletivo. Débora Ribeiro Rendelli, pela revisão tão carinhosa. Por fim, à Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais (Secult) que, através da Lei Aldir Blanc, viabilizou a ampla distribuição desse livro em nossa comunidade. Este livro é dedicado à biblioteca comunitária de Itatiaia que, assim como a cobra das histórias, guarda um valioso tesouro.


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Este livro foi composto em Montserrat e Montserrat Alternates Miolo 64 páginas em Offset 120g/m2 Capa em Couché fosco 300g/m2 1ª tiragem: 25 exemplares 2ª tiragem: 300 exemplares Texto, projeto gráfico e diagramação: Bárbara Bija Imagem da capa: João Pedro F. Moraes Revisão: Débora Ribeiro Rendelli Esta pesquisa, bem como a impressão da primeira tiragem, foi realizada entre agosto e dezembro de 2020, através do Programa Lab Cultural, do BDMG Cultural. A segunda tiragem foi viabilizada pela Lei Aldir Blanc – Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais (Secult). CONTATO: barbarabija@gmail.com / @bijabarbara ITATIAIA – MG 2020, 2021






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