Acaricia meu Sonho

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Acaricia meu sonho


Conselho Editorial: Marcelo Barbão Stella Maris Baygorria Vanderley Mendonça


Acaricia meu sonho

Barbão

Amauta Editorial São Paulo - 2007 1ª Edição

Amauta Brasileira

Amauta AcadÍm ica

Amauta PoÈtica


Copyright © Barbão, 2007 Revisão: Stella Maris Baygorria, Henrique Polak, José Mateus Capa: Mario Amaya Foto da Capa: Ximena Duhalde Agradecimentos: Vanderley Mendonça, Roberto Guimarães e Martín Kohan O autor agradece qualquer opinião sobre o livro e pode ser contatado através do e-mail: barbao@gmail.com Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ______________________________________________________ Barbão Acaricia meu sonho / Barbão. -- São Paulo : Amauta Editorial, 2007

1. Romance brasileiro I. Título.

07-7822 CDD-869.93 ______________________________________________________ Índices para catálogo sistemático: 1. Romances : Literatura brasileira 869.93

Endereço para Correspondência: Amauta Editorial Rua Augusta, 1378 - cj. 72 01304-001 - São Paulo - SP www. amautaeditorial.com contato@amautaeditorial.com

Amauta Brasileira


Dedicado a Salvador Elizondo (1932-2006), que me reensinou a escrever.



Volver Ainda fazia bastante frio, apesar de ser quase meio-dia. É verdade que já estávamos no outono, mas a gente sempre pensa que vai esquentar quando chega o meio-dia. Não ia. Eu havia acabado de chegar, desci do remis que me trazia do aeroporto em plena Plaza de Mayo. Há anos não vinha para cá. E eu nunca percebi verdadeiramente o quanto sentia falta deste lugar. Sua gente sempre linda e mal-humorada, os parques com leitores ávidos em busca de velhas novidades, a sensação de riqueza mesmo nas casas mais pobres. Sim, mas ela tinha mudado. Eram anos de tristezas e desilusões que ficavam marcadas nas suas paredes mal pintadas e seus edifícios sem conservação. Engraçado como conseguimos recontar as história de povos há muito desaparecidos através de sua arquitetura e somos incapazes de olhar com o mesmo interesse para os lugares ainda habitados. É possível, sim, conhecer a situação atual deste lugar olhando para as fachadas de seus prédios. Talvez até seu passado, quiçá seu futuro. Eu conseguia fazer isso somente respirando o ar gelado que machucava minhas narinas. La sensación térmica es de 5 grados y puede llegar a cero grados a la noche, dizia o “homem do tempo” do Canal 13. Aqui é o único lugar onde se ouve a expressão “sensação térmica”, que é muito engraçada. Depois acabei exportando-a e acho engraçado que ninguém

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mais ache engraçado quando ouve. É estranho quando as coisas que são diferentes passam a ser normais. A TV está no bar que entrei. O frio me cortava as entranhas, não tive o bom senso de ver com antecedência o clima por aqui. Fui pega desprevenida. Peço um café e me dirijo ao banheiro. Ainda bem que não sou tão tola assim e trouxe alguns agasalhos na mala. Quando saio, o velho garçom me dá um sorriso de cumplicidade e, trazendo meu café, comenta: ¿Hace mucho frío, no? Sim, está demais. ¿Recién llegás? Sim, me esqueci de checar o clima antes. Mas parece que o inverno será terrível este ano. Claro, ya se ve como van a ser las cosas. Yo si pudiera me iría de acá pero ¿con qué plata? Nadie tiene plata en estos días. Eu costumava vir a este café quando vivia aqui, estava sempre cheio. Instintivamente, olhamos ao redor. Além de mim, somente o dono no caixa olhando com tristeza para o nada e dois jovens que discutiam animadamente (apostaria que era sobre política, mas não me interessei em prestar atenção). Sí, por supuesto, ¡acá trabajábamos 8 mozos! Ahora, somos tres. Yo, todo el día sólo (y, mirá que tengo tiempo para charlar con vos) y los otros dos a la noche cuando hay más gente. Situação triste. ¿Entonces, estás de vuelta? Sim. ¿Y te vas a quedar acá? Não sei. Esto es otra cosa triste de la crisis, la gente se va del país. Pero si no fuera por la edad también me iría y no volvería. Essa palavra ficou me perseguindo por um bom tempo já na rua. Será que posso considerar isso um retorno, estarei eu voltando? Diz-se por aí que volta-se sempre ao primeiro amor, volta-se ao lugar onde nasce, volta-se ao lugar onde suas melhores lembranças estão guardadas. Quase que como um cofre onde se guardam todos os melhores momentos da sua vida. E este lugar significa tudo

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disso para mim. Mas de uma forma nova. Não passei os melhores momentos da minha vida aqui. Mas acho que se eu estivesse aqui teria passado os melhores momentos da minha vida. Uma sensação estranhíssima de saudades do futuro. Ou do futuro do pretérito. Algo assim. Só sei que foi aqui que fiquei depois que ele me deixou. É certo que, entre aquele momento em que ele foi embora e hoje, passaram-se quarenta anos. E eu me recusei a voltar nesse tempo todo. Talvez por isso a sensação de retorno, de volver. De retorno para um lugar que não deveria ser meu, não deveria me dar saudades, mas dá. Ao sair do café, com o início da noite, fiquei pensando no velho garçom que conversara comigo quase toda a tarde. Eu só decidi ir embora porque o turno dele já estava acabando. Uma dor profunda me atacou quando atravessei a rua. As luzes que começaram a se acender me deixaram absolutamente tonta. Era como se falassem, ¿Que hacés acá? Este no es tu hogar, no vuelvas más, ¡andate de acá! Mas se aqui não é meu lugar como é que vocês reconhecem que isto é um retorno? Pero, ¿no ves que nadie te quiere acá? ¿Que nadie te espera? Mas, se é assim, porque vocês continuam iluminando meu caminho, o meu retorno? E as luzes se calavam e continuavam com seu trabalho de iluminar. Caminhei por esta larga avenida chamada Corrientes arrastando minhas próprias correntes como um fantasma que, tendo morrido em hora errada, ainda volta para cumprir seu destino. Quando me animava a olhar para o céu, via olhos sarcásticos que continuavam a perguntar ¿Qué hacés acá? Tentei responder nas primeiras vezes, depois simplesmente olhei e, no fim, só caminhava de cabeça baixa. Depois de um tempo o olhar das estrelas me esqueceu.

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Mas a cidade continuava a me tratar de forma diferente, como se fosse eu a única que estivesse faltando. Por todos os lados podia sentir o calor dos becos, dos cafés, das livrarias, das prostitutas e até dos mendigos. As pessoas tinham saído às ruas e por onde eu passava, amigos e namorados brindavam. Eu sabia que brindavam pela minha volta. Mesmo que não soubessem. Afinal, nesta terra sofrida e esmagada, somente a volta dos que a amam pode levar aos brindes, às festas e trazer alegria. Era por mim que a cidade festejava. Mas eu permanecia nas sombras, caminhando com passos cansados. Acho que tinha vergonha, vergonha da alegria e do olhar quente que a cidade me lançava. Vergonha por tê-la abandonado por tanto tempo, como se a culpa fosse minha. E, ao chegar aqui, era tratada como uma filha mal criada, mas adorada. Isso me dava vergonha, como nunca senti na vida. Passava pela esquina de Corrientes e Callao com algumas doces recordações. Eram tantas que escapavam pelos meus bolsos, caíam pelo chão da avenida gelada e formavam um pequeno rastro. Era impossível me esconder com aquelas lembranças contagiando o ambiente, daquele jeito. Entrei no primeiro hotel que encontrei. Por favor, um quarto. Por supuesto, señora, ¿cuánto tiempo piensa quedarse? Não sei ainda, alguns dias. Bueno. Habitación 113. Obrigada. De nada. Quando fechei a porta do quarto, o medo esquentou todo meu corpo. Eu suava como se tivesse corrido por toda a cidade. Enchi a banheira de recordações e mergulhei fundo no sofrimento que havia deixado preso por essas quatro décadas dentro do peito. Gritei, apavorada com o esquecimento, apavorada por ter sido esquecida. Adormeci

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dentro da banheira e acordei semi-congelada pelas ilusões. Finalmente, parei pela primeira vez desde que essa idéia insana passou pela minha mente e me perguntei: O que é que estou fazendo aqui? Señora, señora, ¿está todo bien? Sim, sim. Oímos un grito. Não foi nada, estou bem. Silêncio na noite. Vim para cá porque me cansei de fugir, porque me cansei de viver somente com uma lembrança e preferi me iludir com uma realidade. Assim, fico olhando para a noite através da janela. Olho a cidade e as estrelas que me trataram tão bem e tão mal. Penso em tudo que já passei nesse lugar mesmo tendo chegado há pouco mais de uma tarde. Abri minha pobre mala onde trago o que consegui juntar nos últimos quarenta anos e lentamente vou colocando no armário de um hotel perdido no micro-centro as esperanças humildes que trouxe para encontrá-lo. Durmo com os primeiros raios do sol batendo na janela.

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Siléncio A quinta-feira estava fria e molhada. Chovia, mas era uma chuva fina e embaçava meus óculos. Eu estava sentada num banco da Plaza de Mayo nesta tarde de quinta. Ao voltar para cá retomei velhos hábitos que me davam uma sensação de conforto. Parecia que retomava uma velha rotina, apesar de que minha única rotina aqui ter sido você. Vivia através das lembranças e recordações de outros. Através dos contos e historietas de passados que me davam ciúmes e que, muitas vezes, teria preferido não ouvir. Pois agora tenho estas estranhas saudades. Na minha frente, estava uma procissão de senhoras que, num grande círculo, marchavam pela vida. Senti um choque muito grande quando vim aqui pela primeira vez, uma terrível sensação de amor e ódio concentrados. Mesclados com muita esperança e resignação. Elas caminhavam na tarde gelada de quinta-feira em frente à Casa Rosada. Eu vinha aqui vê-las desde a primeira vez. Mesmo não vivendo aqui quando elas começaram. Nessa cidade, o tempo passa de um jeito diferente. Cheguei mesmo a quase desmaiar de cansaço nas noites de vigília mas resisti quase que bravamente. Mais por vergonha, é claro, que por outro sentimento. Afinal, se elas, que eram velhinhas, conseguiam, como eu, que era mais jovem, iria desistir? Claro que dormia como uma desesperada no dia

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seguinte e tinha que cuidar com muito cuidado de minhas bolhas, mas cumpria meu dever. Hoje, era diferente. Eu simplesmente olhava. Apesar de toda a simpatia, participar da marcha seria como fazer parte de algo que não me pertencia, como forçar minha intrusão. Além disso, eu ficava na minha posição mais do que preferida, a de observadora meio desatenta do mundo que me cercava. Preferia isso a tomar parte ativa. Para ser parte de algo, era necessário uma boa dose de fé mas eu havia perdido todo tipo de crença em algum momento do passado. A chuva fina começou a congelar meus ossos. Uma dor passou a me incomodar e pensei se não seria este um bom momento para retomar o hábito de beber mate. Será que me reacostumaria com o gosto amargo? Lembro-me que passei anos até me entrosar com esse velho costume da cidade. – ¿Cansada, hija? Imersa nestes estúpidos pensamentos, não havia percebido a mulher que tinha se sentado ao meu lado no banco. Era uma das senhoras da marcha, talvez a mais velhinha de todas. Eu já havia notado seu andar difícil, sua necessidade de um braço amigo e seu olhar entristecido. Acho que ela só conseguiu dar umas três voltas. As colegas a deixaram no banco porque sua fraqueza atrapalhava a marcha, mas ela parecia não ligar. – Não, eu não estou. E a senhora? Mas ela não respondeu. Entre a sua pergunta e minha demorada resposta, seu espírito já estava distante. Acho que havia adormecido. Não tenho certeza. Olhei para o lado e ela estava sentada como antes, mas seus olhos estavam fechados. Sua cabeça embranquecida estava envolta num

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pañuelo branco. Bordado nele o conhecido símbolo das mães que buscam seus filhos, filhas e netos. Que buscam sua dignidade, que buscam sua justiça. Sentada naquele banco, com uma senhora que mal conseguia ficar em pé por quinze minutos e que, de tão cansada, dormia sentada na chuva, senti muita raiva das injustiças do mundo. Mas também senti uma tremenda incapacidade dentro de mim. Essa velhinha passou seus últimos vinte e cinco anos em busca de pessoas desaparecidas. Não há nenhuma esperança de estarem vivas e são mínimas as chances de seus corpos serem encontrados. Mas ela não desiste. Ela nem está atrás do dinheiro que querem pagar para que tudo seja esquecido. Eu passei estes anos todos adiando um encontro muito mais simples. Com alguém que acho que sei onde mora, que acho que nunca se escondeu e que acho que está me esperando. Qual das duas esteve “perdendo tempo”? Suas mãos enrugadas trazem um pequeno saquinho de plástico onde é possível ver velhas e amareladas fotografias. Alguns jovens de terno ao redor da mesma senhora, vários anos mais nova. Nos rostos dos jovens a alegria gerada pelos encontros familiares regados a carne, cerveja e vinho; nos olhos da mulher, uma certa melancolia vinda da intuição. Será a última foto guardada de filhos perdidos para sempre? Uma pequena corrente escapa das mãos crispadas ao redor desse plástico. É um rosário, a fé que anima essas mulheres. Fé que eu mesma deixei para trás há muito tempo. Olho para as mulheres que continuam sua vigília circular ao redor dos assassinos e ditadores que sumiram com seus amados, que sumiram com seu passado e sumiram com seus sorrisos. Tudo secou menos as lágrimas da lembrança e as lágrimas da esperança.

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A “minha” senhora ainda segue sua vigília sonolenta. Em momentos penso que seus lábios se mexem, como naquelas preces semi-silenciosas que os velhos fazem nas tardes ecoantes das igrejas. Mas deve ser pura ilusão de ótica. Meus óculos já estão encharcados com a chuva e a distorção embaça minhas pupilas. Talvez seja por isso que olho para a Casa Rosada e a veja vermelha como se coberta de sangue. Olho para seu rosto. Não sei se são lágrimas ou se é a chuva que escorre pela sua face. Mas entendo que, mais do que chorar pela sua miséria, pela sua perda e pela certeza de que vai morrer sem nunca descobrir o que aconteceu com os seus, esta velhinha chora por mim, pelo que fiz da minha vida, pelos erros que cometi, pela desesperança que me conquistou, pela incerteza que alimento dentro de mim, pelos anos jogados fora, pela falta de sonhos e pelas certezas às quais me agarrei tão intensamente que consegui matar o que poderia haver de interessante em minha alma. Ela sentia tão intensamente o fracasso da minha vida que acordou repentinamente dos meus sonhos e percebendo a força do meu olhar sobre seu rosto enrugado e belo, disse: – Todavía hay tiempo, hija. Todavía hay tiempo. Nesse momento, a chuva ficou mais forte e duas outras senhoras aproximaram-se do banco. As três foram caminhando até um táxi que as levou embora. A marcha, aos poucos, foi se esvaziando. Saí caminhando por Defensa, um pouco sem rumo. Passando por um prédio, apesar da chuva, consegui ver um senhor olhando através da janela, com um rosto triste para o infinito. Eu conseguia ver o que ele via. Na Plaza Dorrego, sentei numa mesa perto da janela e, enquanto assistia a noite cair, me calenté com muito tango e pouco vinho.

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Cuesta abajo Naquelas tardes eu me sentava nos fundos da Biblioteca Nacional, naquele pequeno jardim com um nome engraçado. Ficava horas esperando que você fizesse suas pesquisas na biblioteca. Eu nunca entrava, os ambientes fechados, claustrofóbicos e solenes das bibliotecas me deprimiam. Preferia ficar sentada no banco, ao ar livre, com um café pequeno que durava a tarde toda porque o dinheiro só dava para um. Várias vezes, os seguranças me lançavam olhares gulosos, olhares com convites implícitos e explícitos, mas eu nunca contei para você. E nunca correspondi aos olhares. Outros olhares se me cruzavam pela praça. Eram olhares tristes, olhares pensativos, olhares alegres, todos os tipos de olhares. Como aquela era a parte mais rica da cidade, transbordavam os olhares satisfeitos. Eram muito impressionantes os olhares intelectuais ávidos pela leitura de algum livro raro, algo que esses olhares olhariam pela primeira vez. Mas não só era a parte mais rica, também era uma das mais belas e românticas da cidade. Então, os olhares apaixonados eram freqüentes e inspiradores, mesmo porque deviam ser um espelho do meu olhar quando estava com você. O melhor era que os olhares apaixonados vinham em dois pares, o que aumentava a alegria de olhá-los.

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Mas os olhares apaixonados eram também burros e isso me apavorava. Quantos olhares apaixonados caminhavam abraçados a outros olhares, mas estes, ao invés de responder com paixão nos olhos, respondiam com raiva, desprezo ou com um olhar vazio? Será que seus olhos respondiam assim ao meu olhar apaixonado? Pior mesmo eram os olhares apaixonados solitários. Esses eram os mais belos porque misturavam paixão, tristeza e esperança (ou desespero, em alguns casos). Esses me assustavam de verdade, pensava se algum dia iria me sentar nesse banco olhando para a sua Biblioteca Nacional, esse monumento futurista e um tanto feio cravado na parte norte e nobre da cidade, com um olhar de paixão triste, indecisa entre a esperança e o desespero e, no meu caso, marcado pelo medo. E cá estou eu, sentada no mesmo banco em que costumava sentar. Algumas coisas mudaram, sem dúvida. Do lado esquerdo há, agora, uma pequena galeria de arte, do lado direito, o café continua, mas todo modernizado. Ao contrário dos velhos mozos, jovens senhoritas que não têm a mínima noção das regras de atendimento dos mozos. Eu também quebro as regras, café já me faz mal, peço chá. Os prédios ao redor da praça bibliotecal continuam exatamente iguais. Lembro dos nossos olhares de inveja que gritavam: eu quero morar aqui. E depois, contávamos as moedas para voltar para casa de ônibus. Hoje em dia, ainda poderíamos tentar roubar, enganando as maquininhas automáticas, mas naquele tempo era o motorista que pegava o dinheiro, dava o troco, cantava, conversava com os passageiros, mandava umas cantadas de muito baixo nível e dirigia. Tudo ao mesmo tempo.

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São inesquecíveis os seus olhares de desespero ao entrar no ônibus. Não era à toa que você sempre ia para o fundo diretamente e me deixava pagando. Aliás, era por essa sua mania que eu era obrigada a ouvir essas cantadas horríveis. Quantas vezes, por raiva, pensei em dar trela a esses motoristas indelicados. Mas sempre desistia. Sentada num banco bem de frente para a nacionalística biblioteca, tomando meu segundo chá (hoje, que tenho dinheiro para tomar dezenas de cafés, prefiro os chás – aliás, vou embora de táxi – será que os motoristas continuam galanteadores – mas, também hoje só receberia cantada de velhos), só vejo olhares vazios. Os olhares dos guardas me olham de forma vazia, os namorados que passam nem se olham, os solitários passam com os olhos voltados para o chão como se seus olhares fossem pesados, tão pesados que exigem um esforço para não levar toda a cabeça para baixo. Até mesmo os leitores que ainda povoam o pequeno parque, agora, carregam livretos vazios e os lêem com olhos sem prazer. O vazio tomou conta da praça. Do mesmo banco, com a mesma visão da biblioteca, lembrei-me da sua janela. Aquela em que você sempre vinha me espiar. Na minha opinião era só ciúmes, mas você afirmava que era para ver se estava tudo bem. Você nunca explicou por quê, na única vez em que um jovem parou para conversar comigo, decidiu ir embora mais cedo, justamente quando o rapaz decidiu se sentar ao meu lado. Durante toda a volta para casa eu não conseguia segurar o riso (aliás, se você soubesse ler os olhares, teria visto meus olhos gargalhando), enquanto você estava com os olhos mais bravos que já tinha visto num homem apaixonado. Olhei para sua janela e vi esses seus olhos bruxos que me

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espiavam rigorosamente a cada trinta minutos. Não tenho a mínima idéia de como conseguia fazer isso. Não andava de relógio, mas a cada trinta minutos cronometrados, levantava-se da sua cadeira, da sua mesa, deixava seu livro marcado, caminhava até a janela do banheiro e dava uma espiada para me ver. Eu era mais esperta e menos sensorial, portanto, marcava no relógio. E nossos olhos se cruzavam e mandavam mensagens de amor. Alguém deveria criar uma coleção “Olhares do escritor apaixonado” em sua homenagem. Que deveria ser organizada a partir daquela janela, daquele banheiro. A pequena janela que servia para que você me espionasse. Uma espionagem consentida, claro. Eu poderia me sentar em outra mesa. Aliás, lembro-me do dia em que, ao chegarmos na praça, vimos a “minha” mesa ocupada. Isso era raro, porque era a pior mesa, perto da rua movimentada e barulhenta. Naquele dia, no entanto, o café estava estranhamente cheio. E um grupo de jovens havia se sentado naquela mesa. Esperamos por meia hora até que desistimos. Você nunca poderia ficar na biblioteca sem seu ritual de vigilância. E nesse momento a janela se mexeu e seus olhos apaixonados vieram até mim. Engasguei com o chá e me levantei. Corri, como a idade permite, para a entrada da biblioteca. Na porta, o guarda me avisou: – La biblioteca está cerrada por remodelación, señora. Vuelve a abrir recién el mes que viene. Voltei para pagar os dois chás e fui embora sem olhar para trás, mas sentindo seus olhos bruxos queimando minhas costas até eu virar a esquina.

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El día que me quieras De todos os amores, só o seu não consigo esquecer. Ando pela beira do rio apesar de que isso pode não ser bom para a minha saúde. De alguma forma, não parece ser tão importante. Sonho com os dias que não passamos juntos perto do rio da Prata. E sinto como se o vento frio e cortante que vem da água fosse o seu suspirar. Este suspirar que já me esqueci. Você já me esqueceu há tanto tempo! De todos os lados, encontro com olhos negros que me evitam, silenciosos pesares de minha busca inútil. Mas também escuto uma risada triste que o murmúrio do rio silencioso traz de terras distantes e que me dão tanta agonia. A busca pelas suas risadas é o que me faz sentar na beira do grande rio que marca esta cidade. Escuto seu canto que penetra em minhas feridas como um vírus, partindo em mil pedaços toda a tentativa de evitar as lágrimas nos olhos. Ninguém está preparado, mesmo na velhice, para o momento em que escuta, pela primeira vez, a voz do ser amado. Mesmo nunca tendo escutado uma voz que tivesse me encantado desde a primeira vez. O princípio de um amor que nunca conheci. Olho ao longe e encontro um esquecimento dentro da água, como se estivesse afundando. Perdido e triste, como devem ser todos os esquecimentos. Uma pena que não seja meu, pior que pode ser seu. Fecho os olhos e imagino o momento em que nós, por

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fim, nos encontraremos. A felicidade poderia ser tamanha que ficaria sem palavras, como agora fico sem ar. Descrever uma cena assim poderia ser um erro. Olho ao longe e as flores do Barrio Norte parecem dançar para mim, convidando-me a bailar pelas ruas da cidade, como se você estivesse aqui, dançando comigo. Quem sabe, se eu começasse a dançar, meus passos não me levariam até o lugar onde você se esconde? A cidade não é tão grande assim, eu haveria de encontrá-lo. O problema é que não sei nem se você já esteve aqui algum dia. Caminho pela borda do rio imaginando o Uruguai, imaginando que poderia morrer nadando até o outro lado e, então, sinto a água fria entrando pela minha boca. Agarrada por braços fortes, sinto que estou sendo trazida de volta para a terra. Perguntas e mais perguntas. Estou na cama com um policial ao meu lado. Não, não tentei me suicidar, só me joguei no rio. Sei que isso não é normal mas nem o rio… e o chamado do meu amor… Cuidado com o que diz, o pior seria terminar essa busca pelo amor em um hospital psiquiátrico. Ninguém poderá entender que você está buscando um amor que nunca mais viu, que nunca reviu. Buscando algo que bem poderia ser um fantasma e que talvez nem viva mais aqui. Nem viva. Mas se vivesse e vocês se encontrassem, seria uma linda história de amor. Daquelas que deixariam felizes até as flores, o vento e as fontes de água. Fui me afastando do rio enquanto os postes da cidade começavam a se acender e os raios de luz começavam a me seguir, iluminando meu cabelo já descolorido. Havia uma melodia no ar, como se a música viesse preencher este meu momento de loucura, tão forte que até

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senti a água fria molhando meus ossos, enquanto afundava pensando se o encontraria no fundo. Quantas pessoas já não pularam por amor nas profundas águas deste rio? Ainda bem que não tem nenhuma ponte. Era necessário me afastar dessa assustadora imagem – eu já começava a odiar esse rio. Por isso decidi seguir um rumor de melodia até chegar a uma pequena esquina, perto do famoso cemitério, onde um senhor triste, sentado em um pequeno banco, chorava tocando seu bandoneón. Ao seu lado, um jovem vestido de terno e um chapéu antiquado, murmurava algumas palavras, olhando para o alto. Intensamente. Segui seu olhar até a torre de uma igreja, era como se ele esperasse um momento. Quando bateu a hora cheia e os sinos da igreja marcavam algo que eu não sei dizer o que seria, ele começou a soltar sua voz límpida. Essa mistura de sinos com voz, me deu um aperto no estômago tão forte que precisei me encostar na parede. Aos poucos fui escorregando até quase cair no chão. Felizmente, um casal de turistas percebeu meu futuro desmaio e fui socorrida. Sentaram-me na mesa de um café ao lado e um copo d´água ajudou muito na recuperação. Por sorte, enquanto tudo isso acontecia, o jovem e o velho – cantor e bandoneonista – não pararam de cantar/tocar. Talvez já estivessem acostumados com as conseqüências de seus talentos. ¿También qué hace esta vieja acá si no puede con la música?, devem ter pensado. E eu fiquei feliz com isso, não foi a água, não foi a cadeira, não foi o socorro dos turistas que me recuperou, foram os sinos, foi a voz. Foi só quando a igreja silenciou que comecei a melhorar. Já não sentia mais nenhuma dor. Nenhuma mesmo.

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Só um pouco de tontura, por isso resolvi aproveitar aquela mesa, aquele garçom, até mesmo aquele casal de turistas e lanchar. Pedimos todos sanduíches de miga e descobri que o casal vinha pela primeira vez àquela cidade, que estava num hotel chique, que estavam amando, que estavam se amando, que não tinham filhos mas que pretendiam ter, que os preços estavam baratíssimos e tinham comprado tudo que viam. Ao fundo, continuava a música do bandoneón mas o jovem cantor já tinha ido embora. O velho tocava como se nem percebesse que agora estava só, que as pessoas passavam pela rua e quase nem percebiam que ele estava ali. Também ele tocava muito baixo, como se nem quisesse tocar. Acho que só eu o percebia ali. Não sei o que aconteceu com o jovem cantor, ele simplesmente desapareceu. Pensei em perguntar ao casal de turistas se eles tinham visto o cantor ou se havia sido uma ilusão minha. Mas eles estavam tão animados, descrevendo lugares da cidade, coisas óbvias que eu conhecia há anos, para que acabar com a alegria deles perguntando sobre fantasmas? Tomar la leche é uma das melhores coisas dessa cidade, foi por isso que agüentei aquela conversa extenuante. Até que eles me perguntaram o que eu estava fazendo ali? Não ali, sentada na mesa do café com eles – isso eles sabiam – mas o que estava fazendo ali, naquela cidade, tão longe de onde morei os últimos anos de minha vida, tão só e solitária. – Estou procurando uma pessoa. Eles se entreolharam, por um momento pensaram que eu era mesmo doida. – Uma pessoa? – falaram quase simultaneamente.

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– Sim, vim atrás de um grande amor. Nesse momento, eles tiveram certeza de que eu estava doida. – Alguém que conheci há muito tempo mas só agora tive coragem de procurar, de declarar meu amor. Achei que a mulher ia chorar. Não a culpo, realmente a minha história é muito bonita, muito romântica. – E quem é essa pessoa? – perguntou o homem, verdadeiramente interessado. – É um escritor. Seus escritos me deixaram apaixonada. Desde que li a primeira linha de seu primeiro livro. – Um escritor? – disse a mulher interessada. – Talvez ele (apontou para o marido) conheça, é professor de literatura. – Sim, qual é o nome dele? Falei. – Mas, mas... Sabia que precisava ir embora naquele momento. Fiz o gesto de pedir a conta, mas o casal se recusou a aceitar meu dinheiro. Era por conta deles. Agradeci e me despedi, antes que eles pudessem questionar. Ao me levantar, olhei para a rua. O velho bandoneonista ainda tocava no mesmo lugar, na mesma posição e com a mesma expressão. Ao passar por ele, deixei umas moedas na caixa que guardava o bandoneón. Percebi que eram as únicas moedas que ele havia recebido. Nada como la leche como forma de preparar o espírito para as noites nessa cidade.

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La cumparsita Não me lembro se comprei aquele jornal ou se o encontrei em algum lugar. Talvez no banco de uma praça ou no metrô. Tampouco posso entender porque fui direto para aquela página. A de classificados. Como antes. Meus olhos encontraram aquele pequenino anúncio, ao pé da página. Se alquila departamento. Dizia ele para mim. Eu bem conhecia aquele apartamento. Nem precisava olhar o número de telefone, nem o locatário. Já os conhecia muito bem. Descobri que ainda sabia usar um telefone público aqui, apesar da privatização. Liguei e marquei um horário para visitá-lo. Eu não tinha nenhuma intenção de alugar, só de rever as paisagens que ele via enquanto se dedicava a escrever. Fui caminhando até o local, por sorte perto. Minha estadia nessa cidade já estava começando a ficar cansativa. Tinha tantas coisas para ver, tantas coisas para lembrar, tantas buscas a fazer. E nem havia chegado perto dele ainda, não conseguia sentir sua presença. A praça continuava a mesma e os cafés também. Era um dia da semana qualquer e estava tudo vazio, ainda pela manhã. Sentei-me no banco convidativo, de frente para o prédio. Havia vários bares mas eu já estava cansada deles. Conhecia todos, até os nomes dos mozos, de cor.

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Era aqui que passava as tardes enquanto você escrevia. Não queria atrapalhar e você ficava meio estranho à frente da velha máquina de escrever. Como se estivesse possuído. Cheguei a ficar com medo algumas vezes, então sempre saía. Como não tinha nada para fazer, comprava o Clarín e passava três, quatro horas sentada lendo. Foi o momento em que mais me inteirei da história dessa cidade. Lia o jornal de cabo a rabo, até os anúncios, até os classificados. Descobria que uma família vendia tudo por motivos de viagem, que a empresa X estava precisando de um ajudante-geral (pagava-se bem) e que uma menina morria de desgosto pela perda de um cachorrinho (não havia recompensa). Todas as coisas que eu nunca iria comprar, me candidatar ou procurar. Mas eu lia. A cada linha lida, subia meus olhos até o balcón do apartamento, em busca de sinais. E assim passava minha tarde até o momento em que você aparecia, esgotado, deixando claro que a sessão de literatura daquela tarde havia acabado. Você abria a porta de supetão, olhava para a praça que começava a ganhar vida, espreguiçava-se como se estivesse acordando para a vida nesse momento e olhava para mim, sentada no café. Às vezes, eu não o percebia prontamente, então você acendia um cigarro e ficava esperando que eu terminasse aquele artigo sobre o aumento da criminalidade em algum bairro afastado. Bairro que eu nunca iria conhecer porque odiava cruzar a General Paz. Por coincidência, sempre que você terminava seu cigarro, eu terminava o artigo e nossos olhos se cruzavam. Eu pagava a conta (sempre um único café para combinar com minhas parcas moedas) e subia. Juntos, arrumávamos a bagunça que você fazia – folhas de papel rasgadas e amassadas, dezenas de bitucas de cigarro no cinzeiro e algumas marcas de tinta perto

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dos cantos (aquela porcaria de máquina de escrever e sua fita maldita). Já era hora, então, de sair para comer. Para economizar, pulávamos o almoço – ou melhor, tomávamos o desayuno na hora do almoço e comíamos a principal refeição no final da tarde. O que nos preparava para as noites animadas pulando de bar em bar, atrás de amigos e conhecidos (até alguns admiradores) que nos pagassem o vinho, a cerveja, os cigarros. E sempre encontrávamos alguém. Você era uma pessoa muito querida. Eu apenas o acompanhava. E nunca abria a boca quando a discussão era sobre literatura. Para mim, tudo que você escrevia era perfeito, o melhor do mundo. Pouco ou quase nada lia de outros autores, não me interessavam. Mas sabia de cor todos os seus contos, todas as suas novelas e poderia recitar durante horas, todas as suas poesias. Mas quando falavam de Borges, de Poe ou Machado de Assis, eu me limitava a escutar. Claro que, freqüentemente, a conversa se fixava em outros assuntos. Se fosse algo sobre a cidade, eu me transformava em especialista – para isso valiam as horas diárias escarafunchando o jornal. E você sempre se admirava com tudo que eu sabia sobre essa cidade. Deu a hora. Eu já podia ver um homem parado na porta do prédio. Aproximei-me, ele me cumprimentou: – ¿Entonces, subimos? – Vamos, quero rever o apartamento. O homem olhou para mim com espanto, mas não comentou nada. Era no oitavo andar. Ele abriu a porta e eu podia ver, naquele apartamento vazio, nossos móveis, nossos livros (que eram todos seus, na verdade) e minhas roupas (você só tinha algumas poucas, que eu havia comprado). Caminhei com lágrimas nos olhos, apontando para os

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lugares onde estava sua mesa de escrever – de frente para a janela, sempre –, onde estava sua poltrona para ler – embaixo da única lâmpada forte da casa –, onde estava minha vitrola junto com meus discos de tango. Entrei no único quarto e apontei para a cama onde havíamos feito amor tantas vezes. Como não havia mesa nem cadeira no apartamento, a cama também era o lugar das refeições, o que nos obrigava a dormir em meio a migalhas de pão e outros resquícios, mas não nos importávamos. Era no balcón, no entanto, que passávamos os momentos mais divertidos. Olhando o movimento da praça ali embaixo. Vendo esta cidade e o mundo de cima, como algo que não nos tocava. Imaginando que todas as pessoas que passavam embaixo eram personagens de um road-movie a pé, ou um streetmovie e que nós, aqui em cima, éramos a platéia. Por isso, muitas vezes, assustávamos com aplausos, assobios e gritos de “Bravo!”. Era daqui desse balcón que víamos a vida passar. Mas também fazíamos com que ela nos visse. – O senhor conhece alguns dos inquilinos mais antigos? – perguntei ao homem constrangido com minhas lágrimas, meus sorrisos e meus rodopios pelo apartamento vazio. – No, señora, perdóneme, pero es la primera vez que me toca vender departamentos en este edificio – me respondeu. – Uma pena, porque nessas paredes há mais história do que em toda a sua miserável e aburrida vida – foi o que disse e saí do apartamento antes que ele pudesse responder qualquer coisa. Enquanto caminhava pela rua, me afastando do edifício, lutei contra a tentação de olhar para trás, para o balcón. Tive medo que o corretor estivesse lá. Ele não podia, aquele balcón era seu, sempre será seu.

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Caminito Quando abandonei aquela praça, andei por várias avenidas, só avenidas. Por sorte, a cidade tem várias delas, espalhadas de forma geométrica – paralelas, perpendiculares, transversais. Em todas, um rastro quase invisível – para as outras pessoas, claro – seu. Para quem estivesse me olhando – será que alguém me olhava? – poderia parecer um caminhar sem sentido. Nada mais longe da verdade. Eu seguia um caminho deixado há anos por um escritor iniciante, sem dinheiro, em busca de inspiração para um livro sobre esta mágica cidade. Qualquer um pode rir à vontade, como se os rastros de uma pessoa sumissem só porque se passam os anos. Pode ser verdade. Ou talvez eles sumam, exceto para mim. Os seus. Apesar de cansada, caminhei por muito tempo. Talvez dias. Lembro-me que parei algumas vezes em cafés para descansar e que uma noite entrei em um hotel para dormir. Estava exausta. Depois de caminhar por um bom tempo, comprei um mapa e comecei a desenhar seu/nosso caminho por entre as avenidas da cidade. Depois das avenidas começaram as ruas, as vielas, as peatonales sem me esquecer das praças e parques. Toda uma continuidade. Por fim, os poucos viadutos e pontes. Durante todo esse trajeto que me deixou com os pés dormentes e cheios de bolhas, com os dedos sujos da tinta que

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teimava em fugir do mapa de plástico (o único que poderia agüentar tamanha viagem), com a roupa colada ao meu corpo de velha como uma mendiga, durante todo esse trajeto, não percebi o que de mais importante me contava o seu rastro: que você nunca havia tomado o caminho de volta. Seus passos sempre seguiam em frente, sem voltar por onde já haviam passado. Como? É algo que nunca poderei explicar. A não ser que você tivesse feito todo o caminho de uma vez só, como eu, durante dias, sem parar. Mas me lembro que você saía para caminhar todos os dias, aos poucos. Algumas horas, poucas. Como não podia encontrar seu rastro de volta para casa? Terminei meu caminho labiríntico em alguma rua esquecida de algum bairro distante, entrei em um desses cafés empoeirados, calurosos e com apenas um mozo velho e cansado. – Eu queria um cigarro! – disse, depois de pensar um bom tempo com o cardápio aberto. – ¡Un cigarillo! – disse o homem espantado. – Sim, não tem? Por um momento ele se confundiu. Afinal, eu tinha falado com tanta convicção, depois de consultar o cardápio que era como se eu tivesse visto, depois das milanesas con fritas e antes do café cortado, uma linha que dissesse cigarrillos. Não havia e eu sabia que não havia. Há anos não fumava, desde que paramos de sair para beber e conversar... Hum, quer dizer, na verdade você parou primeiro. Dizia que o cigarro atrapalhava suas caminhadas, sua concentração, seu subir de escadas. – En realidad, no – disse o garçom depois de uma rápida

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olhada no cardápio. – Pero hay un kiosco acá enfrente, si quiere le voy a comprar. – Sim, por favor. Ele ainda me perguntou qual marca eu queria. Nunca tinha me preocupado com isso, sempre era você quem comprava. Eu só os acendia e inspirava a fumaça que, naquele momento, me ajudava a pensar mais claramente. Diria até a entender suas conversas com outros candidatos a escritor. Todas charlas ininteligíveis, recheadas de ataques perversos contra terceiros. Em geral pés-rapados como vocês mas que já tinham conseguido publicar. Hoje posso falar que os cigarros me ajudavam a ficar acordada a noite inteira. É que, como poderia dizer, vocês eram um pouco hincha pelotas com essa pseudo-rebeldia. Ao final, todos foram publicados e o ciclo se refez com os novos escritores jovens falando mal de você e seu grupo. – Señora, acá están los cigarrillos. Pero la nueva ley... – Lei? – Sí, no se puede fumar adentro de los cafés. ¡Perdóneme! Eu tampouco tinha isqueiro ou fósforo. Fiquei segurando o maço de cigarros tentando lembrar há quanto tempo não fumava. Abri o mapa sobre a mesa do bar vazio e comecei a esquecer todos os caminhos que percorri seguindo seus passos. Não me lembrava mais quando você publicou seu primeiro livro. Tampouco o nome e se o havia dedicado a mim. Era como um caminho-fantasma que se apagava de trás para frente. – Señora, ¿no quiere algo para acordarse? – Senhor, não me lembro das coisas que me esqueci.

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– ¿Perdón? Na verdade, o garçom trazia um café que não me lembrava de ter perdido/pedido. Com um gesto torpe, derramei todo o conteúdo da xícara sobre o mapa que tomava o espaço da mesa. A mancha que se formou, ajudou a apagar o caminho que havia percorrido durante os últimos dias (ao apagá-lo, fiquei perdida). Todos, menos os rabiscos deixados em uma pequena viela nos limites da cidade. Foi aí que me lembrei como você gostava de ir para este lugar tão freqüentado por turistas sempre que terminava uma história sua. Ia como se fosse o seu cemitério de histórias mortas. Sim, lembro-me agora como você chamava seus contos e novelas prontos: historias muertas. Como se elas só fossem vivas enquanto estivessem sendo escritas. Você ia aí, nessa pequena viela, também para falar outros idiomas. Talvez até se apresentasse como guia turístico. A maioria dos turistas não entendia as visões poéticas e antropológicas que você apresentava sobre a cidade, seus habitantes e sua cultura. Ainda mais porque, apesar de só falar a língua daqui e francês, você se aventurava pelo português, o inglês, o alemão e até o russo, como me contava excitado ao voltar para casa depois das sessões funerárias como você as chamava. Eu já não sabia como chegar lá. De qualquer forma, tinha o mapa. Por isso saí caminhando até que tive um quase desmaio depois de uns poucos passos. Peguei um táxi com a firme convicção de que poderia recobrar as forças com um cigarro. Mas também era proibido fumar nos táxis. – Vamos a Caminito, por favor.

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– ¡Cómo no! Muy bien. – Essa lei antitabaco deve ter sido muito ruim para os cafés, não? Fiz essa pergunta tarde demais, quando já havíamos chegado ao velho porto. Mudei minha questão: – O senhor sabe onde ficava o velho cemitério de historias muertas? – ¿Historias muertas? ¿Está segura de que estaba por Caminito? – Sim, certeza. – Se lo digo en serio nunca lo escuché nombrar. ¿Cómo me dijo? – Histórias mortas. – Perdón, pero no me suena. Para nada. – Está bem. Obrigada. Saí do táxi e caminhei por Caminito, pelas casas coloridas e em meio a palavras desconhecidas. Pensei durante um bom tempo se deveria perguntar pelo cemitério, o seu cemitério, mas não me animei. Todos os nativos tinham cara de malandro e todos os estrangeiros, de estúpidos. Ao pisar no chão, saindo do táxi, me agarrou uma tristeza como se estivesse realmente caminhando por um campo santificado para receber os restos mortais de pessoas esquecidas. E assim era. Como se milhares de lágrimas tivessem sido derramadas, escorrendo por entre os paralelepípedos desta pequena rua. E assim tinha passado. Caminhei como se passeasse entre túmulos, buscando algum que me trouxesse o passado de volta. E assim foi. Andei tanto que saí do caminho, do bairro, da zona. E

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pela primeira vez, desde que desci do avi達o nessa cidade onde o sol e as pessoas dormem tarde, fui assaltada.

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Madresselva Em pleno verão, a cidade renasce. O calor sufocante obriga todos os moradores a tomar as ruas, os bares, os cafés. Amargados em suas casas durante o inverno, são jogados para fora durante o verão. É verdade que se perde um pouco da discreta elegância, mas ganha-se em alegria. Eu mesma, acostumada a uma outra época, quando o calor era menos intenso, me assustei no princípio. Com o verão e a gente nas ruas, surgem outros personagens que, por serem discretos e insignificantes, perturbam de forma inacreditável minha tentativa de concentração para encontrá-lo: as sombras. Por estarem em todos os lugares, durante a maior parte do tempo, elas conhecem tudo, todos os nossos segredos mais escuros, todos os nossos pensamentos mais sombrios, todos os atos menos brilhantes que já fizemos. E, ao meio-dia, em uma das avenidas mais famosas e movimentadas de toda a cidade, tive algumas certezas: 1. Que as sombras sabiam por que eu estava ali; 2. Que elas sabiam onde você se escondia; 3. Que eu havia visto sua sombra passar correndo por uma esquina. Não corri, já não tinha idade para isso. Mas lembrei-me

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de nossas corridas pelo parque geralmente nos domingos à noite. Acho que fazíamos isso porque as noites eram nossas manhãs. Não eram corridas organizadas, como jogging ou cooper. Eram mais disparos enlouquecidos que acabavam em perseguições e atropelos. Eu só conseguia vencê-lo se fizesse trampa, se você tropeçasse ou algo assim. Minha principal estratégia era pisar na sua sombra, esperando que você caísse. Talvez seja por isso que ela foge de mim ao cruzar essa esquina da principal avenida. Era o medo, algo que eu já não sentia. Percebi que só poderia conversar com as sombras pois elas é que me levariam até você. O problema é que elas insistiam em me ignorar, como se eu falasse outra língua, como se estivesse na posição equivocada em relação ao sol (ou outra fonte de luz), como se – parada na esquina da avenida mais movimentada, olhando para o chão, fazendo perguntas às sombras que passavam – eu estivesse louca. Quando e como as sombras começaram a me responder, não sei. Mas elas falam de você. Do que havia acontecido durante os anos que nos separam – apesar de doces, as sombras sempre mentem, é de sua natureza nunca falar a verdade. Algo genético, talvez. – ¿Nena, qué decís? ¡Vos nunca lo conociste! – ¿Pero, qué te pasa? Él no se acuerda de vos. – Si, en realidad, no volvió a vivir acá después de viejo. – Su sombra es de cuando era joven. Eu sabia de tudo isso, é claro. Sabia que ele tinha ido para Paris e nunca havia voltado. Mas também sabia que as sombras mentem e que você deveria estar aqui, em algum lugar, senão sua sombra não poderia estar viva e caminhando

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por entre as paredes das avenidas largas. Não assim, tão placidamente. Entre as mentiras das sombras e as mentiras das biografias, preferia seguir com as minhas próprias. Entrei em um café pouco iluminado para aproveitar ao máximo os rincões ensombrecidos. Quando saí, as flores tomavam as calçadas apertadas das ruas que cruzam de norte a sul. É incrível como as flores, quando caem no chão, podem mudar completamente o humor de qualquer pessoa. Também mudam a forma de se caminhar. Apesar de tentar seguir em linha reta até a praça do general que nos libertou de todo o mal, as flores me carregavam por todos os lados, mudando meu caminho. Levando-me para trás, sem se preocupar com minhas intenções. Até que gritei, louca de frustração: – O que vocês querem comigo? – Vuelva, señora. Acá no encontrará nada. – ¿Tiene una moneda? Esse era um menino pobre que, deslizando junto comigo por cima das flores, me pedia dinheiro. Depois de dar uma moeda, fiquei observando como ele se movia, usando as flores para chegar até o próximo “surfante” para pedir mais uma moeda. Não é que eu não conseguisse “navegar” como o menino, é que eu simplesmente estava muito cansada para tentar. E queria saber para onde me levariam as flores no chão. Uma mistura de cansaço e curiosidade. E um pouco de raiva, também. Não entendia o que as flores e as sombras tinham contra mim. Por que estavam tão

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interessadas em me enganar, em dizer que minha busca era inútil? Esta cidade estava me deixando triste e com raiva. E eu não queria ficar assim. Quando as flores me deixaram na porta do meu hotel, resolvi entrar. – Señora, ¿pasó algo? – era o recepcionista – Não, por quê? – Hacía dos días que no volvía al hotel. Estábamos repreocupados. – Dois dias? Não sei onde estive nesses dois dias. Subi para meu quarto e foi quando entrei sob a ducha quente que percebi como extrañaba um banho. Devo ter dormido durante horas. Acordei com o incrível barulho que entrava pelo balcón, pela porta meio aberta que me conectava com a cidade a meus pés. Mas não me levantei, fiquei escutando os barulhos de uma noite que recém-iniciava. Ao menos, era isto que pensava. Não tinha relógios e somente a falta de luz denunciava a noite do lado exterior. Pensava que iria ouvir sons de buzinas e freadas, de risadas e gritos orgânicos, mas apenas percebi um choro contido e um murmúrio que só depois de muita concentração pude entender. Era o meu nome que era murmurado. Como se me chamassem baixinho. Não posso negar que me assustei. Será que alguém me buscava? Será que, depois de décadas, ainda tinha algum conhecido na cidade? Em que andar estava meu quarto mesmo? Era alto, lembro que subi de elevador! Finalmente, como o choro e o murmúrio não paravam e meu sono não poderia ser retomado, levantei.

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Caminhei até a sacada e vi que as flores tinham tomado toda a parede externa do hotel. Eram elas que murmuravam meu nome. Poderia ter ficado com medo, mas não senti nada. Só o perfume. Elas falaram comigo: – ¡Acá está quién buscaba! Não entendi, a princípio, porque não conseguia ver a sombra presa entre as flores trepadas na parede. Era de noite, como já disse. Mas senti o choro que vinha da sombra presa. – Quem é este que chora? – Esta es la sombra que persiguió con tantas ganas por toda la ciudad. – E por que chora? – ¡Por qué no me gusta la altura! – gritou a sombra com toda raiva. Minha resposta foi: entre, então. Acendi a luz do quarto e a sombra pôde se projetar com força na parede nua. Sentei-me na cama desarrumada. Tinha muita fome, mas este pobre hotel (o único que minhas economias podiam pagar) não tinha serviço de quarto. Pensara em quase tudo que faria ao chegar na cidade, menos no momento em que me encontraria com você. Talvez isso fosse pela certeza (nunca assumida) de que nunca o encontraria. Só agora pensei no que dizer. Mas também não sei se o encontrei de verdade. Encontrei a sua sombra. – Enfim, te encontrei – acabei dizendo. – No, yo no soy él. Soy sólo su sombra – foi a resposta. – Una sombra vieja, ya olvidada por estos lados. Hace mucho tiempo.

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Mano a mano Você sabe muito bem quem sou eu, quando vivíamos na pobreza, mas felizes, juntos nessa cidade que tanto bem e tanto mal nos fez. Éramos jovens. Eu não tinha nenhum sonho específico, mas compartilhava os seus. Como faziam as mulheres naquele tempo. Você, não. Foi direto estudar e partir para outro país, outra língua, outra vida. Eu me lembro de quando vivíamos naquela miserável pensão na rua C., não me lembro mais o nome. Ou melhor, talvez me lembre, mas não possa mais falar. Algumas palavras desse idioma, agora, fogem da memória, não consigo mais falar.. Como você, que passou tanto tempo longe, a ponto de falar sua língua materna com sotaque. Sim, é verdade, não entramos juntos na pensão. Eu vim depois. Você já estava instalado na pensão só para homens, caballeros. Eu entrei uma noite, escondida, depois que você conseguiu um quarto privativo. E passei nove meses aí, em completo silêncio. A porta trancada. Você ia para a escola e ficava lá o dia inteiro, estudando seu francês querido, enquanto eu permanecia lendo e ouvindo os rumores dessa enorme casa povoada de sonhos e desejos masculinos. Quando você chegava, no começo da noite, conver­

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sávamos aos sussurros. Mais era você quem falava, na verdade, porque eu não tinha nada para contar. Apenas ouvia. E você sempre me trazia algo para comer. Nunca muita coisa, pois o dinheiro era escasso. Algumas empanadas e uma pequena garrafa de vinho. Pouca conversa, você tinha que continuar estudando. Só de madrugada é que podíamos nos arriscar a sair para o corredor e ir ao banheiro. Eu me lembro que entrávamos juntos. Assim, se alguém aparecesse, você podia fingir que estava cagando ou mijando. Existe algo mais íntimo que dividir a mesma privada? Acho, não tenho certeza, que me olhar cagar e mijar era um ato de intimidade maior do que quando fazíamos amor. Coisa, aliás, que fazíamos no início da manhã. Sim, era mais fácil e simples quando a pensão estava cheia de barulhos de pessoas se despertando. Uma coisa me atormentava de verdade: só poder tomar banho uma vez por semana. Isso era terrível! Aproveitávamos as tardes dos domingos. A maioria dos caballeros ia ao cinema ou a encontros furtivos em telos ou diretamente a casas de má fama. A dona da pensão tirava uma longa sesta. Eu podia, então, me trancar no banheiro com você para tomar um relaxante banho. Muitas vezes, você me esfregava as costas e acabávamos abraçados sob a água quente que tanto me fazia bem. Eu não sabia nenhum outro idioma naquele momento. Mas você, estudante aplicado de francês, insistia em conversar comigo nessa língua. No começo eram simples palavras, mas com o tempo você foi se aprimorando. Ao final, só falava em francês, não

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só comigo mas com todos. Eu podia ouvi-lo, através das paredes finas, conversar com os outros moradores e até com a pobre dona da pensão. Bonjour, dizia. Por essas atitudes, acabou sendo visto como um estranho. Poucas vezes, mas foram assustadoras, a dona da pensão o obrigou a abrir a porta do quarto (que, é óbvio, ficava trancada o tempo todo). Por sorte, sempre conseguia me esconder a tempo. Normalmente, embaixo da cama (mas, uma vez, a dona da pensão fingiu que uma moeda caíra no chão, para poder bisbilhotar – mas você foi muito mais rápido do que ela), outras dentro do armário e poucas atrás da cortina (e se alguém estivesse olhando pela janela justo naquele momento?). Depois de algumas incursões, a dona da pensão assumiu que você era apenas um estudante compulsivo e deixou de joder. Suas economias permitiam pagar tudo em dia e ela não tinha do que reclamar. Minhas roupas (pouquíssimas) foram se desgastando. Em poucos meses, não tinha mais blusa ou saia e ficava o tempo todo de calcinha e sutiã. No inverno, não podia deixar a estufa ligada, por isso me metia embaixo das cobertas, esperando sua chegada. Nos verões calurosos, andava nua pelo quarto. Nunca fiquei doente nesses nove meses. Acabei criando a ilusão de que este era um útero e que eu iria nascer ao final. Não sei se foi coincidência ou se minha ilusão fez com que você terminasse esse curso de tradução em exatos nove meses. Sendo que ele durava três anos. Eu percebia que sua saúde estava sendo minada de forma rápida. E quanto mais doente você ficava, mais conversava comigo. À noite, quando chegava do curso, charlábamos durante longas horas. Acho que em francês.

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Não sei como aprendi. Talvez seu suor tenha me passado todo o conhecimento que eu precisava ter. Já não nos importávamos mais com os caballeros no quarto ao lado ou com a dona da pensão. Apesar de cada vez saber mais da nova língua, eu entendia menos o que você dizia. Mas não me importava. Só queria que você continuasse conversando comigo. Era tão solitário aqui! Um dia, você chegou, abriu a porta e disse só uma frase: – J´ai fini! Havia terminado o curso. Ficamos nos olhando por um longo tempo. Você, de pé perto da porta. Eu, deitada na cama. Não contei o tempo que passava. Poderiam ter sido horas, dias ou semanas. Ou apenas um momento, rápido e triste, e você desmaiou. Era como se suas forças devem ter fugido. Não sabia o que fazer, de verdade. Quando você se levantou, perguntei o que iríamos fazer agora. – Je vais en France – foi sua resposta. Não sei se por acaso ou por intenção, você nunca me incluiu nessa viagem. Mas não percebi isso naquele momento. Nem mais tarde. Talvez só tenha percebido hoje, décadas depois. O que me lembro daquela noite foi que você acordou do seu desmaio, tomou um banho e saiu. Enquanto se arrumava, falava sozinho. Não, não conversava comigo. Parece que falava com outra pessoa que estava naquele quarto ou que estava na sua cabeça, não sei dizer. Quanto tempo você ficou fora? O tempo suficiente para quase me matar de fome e sede. Eu me arrisquei até a sair do quarto para roubar comida da velha geladeira.

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Voltou uma tarde como se nada houvesse acontecido. Trouxe empanadas e vinho, e me olhou comer com ansiedade. Minha ansiedade. Fiquei com medo de perguntar por onde tinha andado. Nessa noite, fizemos amor mas não conversamos. Acordei de madrugada e vi que você estava sentado em frente à pequena mesa. Tinha acendido uma vela, talvez para não atrapalhar o meu sono. Não sei de onde tinha tirado um caderno Rivadavia de capa vermelha. Daqueles pequenos, de cinqüenta páginas. E começou a escrever. Durante dias. Só parava para ir comprar comida. Ocupava seu tempo enquanto esperava o resultado de seus exames finais e o diploma. Eu me angustiava com esse lento passar do tempo. Sabia que, com o diploma na mão, me abandonaria para sempre. Acho que era a depressão que me fazia ficar na cama o tempo todo. Quanto mais você escrevia, mais eu me enterrava na cama. Mais eu dormia. Mais eu me esquecia. Até que tudo ficou nebuloso, tudo se apagou. Eu não me lembro de mais nada. – Você se lembra de tudo isso? – perguntei para a sombra que havia escutado toda a minha história em silêncio. – Sí, me acuerdo de todo. Pero no pasó nada de la forma como me lo contaste. Olhei pela janela e as flores tinham ido embora.

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Amores de Estudiante Voltei-me para a sombra que havia diminuído, como se tivesse se encolhido com medo de mim. – ¡Vos sos Circe! – me disse com pânico na voz. Eu me deitei na cama e desmaiei. Não sei por quanto tempo fiquei desacordada naquela cama. Só me lembro que meu sono/desmaio foi povoado por olhos claros, azuis, verdes ou castanhos-claro. Olhos que sempre mentiam para mim. Esses olhos que me traziam flores e que me enganavam. Como se fossem declarações escondidas por falsas intenções. Levantei-me e, naquele quarto vazio, nada conseguia mostrar as emoções que o haviam habitado nas últimas horas. Nenhuma lembrança, nenhuma marca. Achei que a sombra ainda estava lá, mas era apenas uma ilusão causada pela luz do sol entrando pela janela que tinha ficado aberta. Tomei um banho de banheira, uma das grandes atrações dessa cidade. Em todos os banheiros, havia uma banheira e um bidê. Renasci dentro das águas frias que ficavam salgadas com a contaminação das minhas lágrimas. Devia ter chorado muito. Como prêmio ou tortura, o banheiro, apesar de pequeno, tinha um espelho de corpo inteiro. Olhei para minha imagem com um misto de curiosidade e medo.

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Estava velha. Os cabelos já, há muito tempo, estavam cinzentos. Eu pintava, não de roxo como as velhinhas do meu bairro, mas de preto. Não fiz isso desde que cheguei aqui. E as raízes já mostravam meus anos. Como os anéis de uma árvore cortada, que servem para medir a idade (séculos, até). Talvez eu tivesse centenas de anos. Toda a minha pele estava manchada. Os seios, inchados, ficavam com uma aparência horrível sem o sutiã. Eu não me depilava mais, ali, não tinha por quê. Só olhava para aquele tufo de pêlos no meio das minhas pernas. Lá, eles não tinham ficado brancos. Estava velha e olhando meu corpo cheio de pelancas e estrias, comecei a me perguntar de que serviria toda essa minha busca. Por sorte, o espelho não era tão terrível sem os meus óculos. Vesti uma roupa limpa e desci. – ¡Buen día! – disse o mozo do restaurante. Percebi, então, que era de manhã, mais cedo do que pensava. – Bom dia. Media-lunas e café com leite, por favor. – ¡Como no! – me respondeu solícito. Há muito tempo, uma refeição não me parecia tão saborosa como essa. Fiquei sentada numa poltrona confortável, olhando os jornais com letras enormes nas manchetes. Era uma mistura de datas e eventos que se repetiam e se apagavam. Parecia que, numa simples folha de jornal, eu via passar anos de acontecimentos. Resolvi, então, voltar onde tudo tinha começado. – Por favor, – perguntei ao jovem que estava do outro lado do balcão do hotel – como faço para chegar à Escuela de Traductores?

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O rapaz se perdeu, não era uma pergunta comum para uma turista e ele não estava preparado. Nem o taxista, nem o guarda na esquina. A resposta veio do lugar menos esperado. Tão inesperado que não sei como contar, pelo menos não agora. O importante é que cheguei. Mas cheguei justo na hora do almoço da secretária, então resolvi caminhar pelos enormes corredores da escola. Passei por uma biblioteca e um laboratório (era o que dizia a plaquinha na porta). Ao invés de pipetas e microscópios, havia computadores com enormes fones de ouvido. Entre os dois, alunos. O local estava lotado. Não sei porque achei que estaria vazio. Não era mês de férias escolares, não era fim de semana. Era pleno dia de aula e os estudantes corriam para suas classes. Caminhando por um longo corredor, podia escutar diversas línguas estrangeiras, até mesmo esta com a qual escrevo e que não é estrangeira para mim ou para você, mas é para eles. No final do longo corredor, tomo um susto. Viro e dou de cara com você. Quero dizer, com uma foto sua, num quadro na parede. Ao lado de outras pessoas, a maioria homens, algumas mulheres. A maioria velhos, alguns jovens. Pergunto quem são a uma garota que passa apressada. – Son los tipos famosos que estudiaron acá. Uma galeria de personalidades, de tradutores famosos. É engraçado como tradutores não ficam famosos fora das escolas de tradutores. Às vezes, nem dentro delas. Você é diferente, ficou famoso por ser escritor, não por ser tradutor. Aposto que poucas pessoas saberiam dizer que você pagou suas contas no fim do mês com o dinheiro ganho com a transposição de palavras de um idioma para o outro.

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– Este primeiro aqui, você sabe quem foi? – perguntei para a jovem que, apesar de apressada, mostrava um certo orgulho de sua escola; a ponto de chegar atrasada a seu compromisso (qualquer que fosse ele) para ajudar uma senhora, interessada nos tradutores célebres formados neste velho edifício. – ¿Este? Sí, claro, este fue uno de los más celebres traductores de la Unesco. Fiquei esperando algum complemento, algo que demonstrasse que ela conhecia sua obra, mas a garota já tinha passado para o quadro seguinte. Apresentou as doze celebridades do mundo da transcriação. Quando terminou, insisti: – E aquele primeiro, parece que foi um autor famoso, também, não? – ¿Autor? Puede que sea. ¿Sabés que yo me acostumbré tanto a mirar sólo el nombre del traductor de las obras que conozco a pocos escritores? Não quis dizer que, ao escrever na mesma língua que ela, seus livros não teriam tradutores. Talvez seja por isso, tão viciada em traduções estava a garota, que não poderia ler livros não-traduzidos. Olhei com admiração: alguém que se recusava a ler obras originais! – Espero que um dia seu retrato esteja aqui, entre estes! – me despedi. – ¡Ah, gracias! – ficou me olhando. – ¡Señora! ¡La secretaría es para allá! Antes que pudesse perguntar como sabia que meu objetivo final era a secretaria, ela desapareceu correndo atrás de seu compromisso.

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Na frente de uma pequena janela, comecei pedindo o seu histórico escolar. Ela (a secretária) reagiu como se isso não fosse uma surpresa. Muitas pessoas já deveriam ter feito esse pedido, muitas vezes. – Mire, señora, si necesita material para un reportaje para un periódico o si está escribiendo una biografía, lo mejor es hablar con el director. – Não, não sou jornalista, nem biógrafa. Só queria ver o histórico, vocês têm fotos da época? – Sí, las teníamos pero alguién se las robó hace mucho. Yo no era la secretaria en aquella época – falou como se estivesse se justificando. – ¿Pero, para qué quiere mirar sus documentos? Hesitei, pensei em ser estúpida e responder que ela não tinha nada a ver com isso. Pensei melhor. – Posso falar com o diretor, então? A mulher, mesmo descontente com a minha falta de resposta, ligou para o ramal do diretor. Depois de algumas trocas de palavras, ela desligou o telefone e perguntou meu nome: – Sou Circe – respondi. Não sei por que fiz isso, não usava esse nome há muito tempo. Quase uma outra vida de distância. Ela me acompanhou até a sala do diretor, bateu levemente na porta e enfiou uma cabeça dentro: – Acá está la señora Circe. Foi o que eu ouvi, antes de um baque surdo vindo de dentro do escritório.

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Ausencia Revelada, sua ausência me domina Padecendo meu bem sem cessar E seu nome, vem à minha memória Pela sede insaciável de amar. É vão chorar, Nada acalma a dor Que atormenta meu ser abatido Destroçando meu trono de amor. Volte logo, diminua o sofrimento, Que sua ausência me mata, ai de mim! Ninguém seca o choro afligido, Que meus olhos derramam por ti. Vago errante, sem fé, Desafiando a dor, Sem ter mais amparo que o céu E esperando que volte meu amor. Minha paixão era terna, muito terna E você, por outro lado, não sabe amar, Que motivo dei, alma minha Para me fazer padecer tanto?

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É vão chorar Nada acalma minha dor, Que atormenta meu ser abatido, Destroçando meu trono de amor. O mozo me olhou com um misto de espanto e compreensão. Os poucos freqüentadores do café na esquina da avenida mais movimentada da cidade, bateram palmas. Eu não sabia nem por que tinha começado a cantar aquela música nem como podia me lembrar da letra. Engraçado que minha voz até que não era de todo feia. Nunca tinha cantado antes. Nem na escola, apesar de me lembrar muito pouco da minha vida antes de você tê-la monopolizado. Era como uma ausência de vida (acho que foi por isso que lembrei-me desse tango – ou será uma valsa?). Talvez nunca tenhamos vivido naquele apartamento em frente à praça. Talvez tenhamos vivido num apartamento em frente a uma praça mas não tenha sido nesta cidade. Mas também não me lembro de ter vivido em nenhuma outra praça com você. Lembro-me do quarto e da pensão. E dos seus estudos. De francês. Lembro-me do meu ciúmes quando você, numa noite em que estava dentro de mim, prestes a gozar, chamou-me pela primeira vez de Circe. Mas acho que não fiz nenhum escândalo. Nem o bombardeei com perguntas. Não queria saber quem era ela. Queria que ela fosse eu. E passei a adotar esse nome. Que também já tinha se ausentado de mim. Até aquela tarde, com o diretor, quando voltei a usá-lo. Também me lembro que você começou a tomar pílulas

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para dormir (será mesmo verdade, parece tão irreal que já existissem pílulas para dormir naquele tempo!) (parece tão irreal que você, que quase não tinha dinheiro para comprar comida pudesse se dar ao luxo de gastar o pouco dinheiro que tinha em pílulas para dormir) e eu as roubava para colocar no mate da dona da pensão. Assim podia trabalhar na cozinha de madrugada. Fazia uns bombons que você adorava tanto! Engraçado que nunca mais fiz nada, depois disso. Lá onde moro hoje, minha cozinha é um deserto. Vivo de comidas prontas, entregues por um restaurante do outro lado da rua. Tento me lembrar como eram os bombons, mas não consigo. Só lembro do chocolate, claro. Mas tampouco sei como conseguia as barras. Talvez soubesse, talvez você as comprasse. Só me lembro que fazia bombons à noite e você os comia durante o dia, enquanto estudava. Isso me lembro. Isso preenche o gosto amargo dessa ausência.

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Melodia de Arrabal Depois de perguntar para o guarda, que não sabia o caminho até a Escuela de Traductores, fiquei parada na esquina de uma rua com a calçada estreita, como é tão comum no velho centro desta cidade. Provavelmente devo ter ficado pensando sobre o mo­mento em que estas calçadas e ruas foram construídas. Naquela época, ninguém poderia imaginar que a cidade cresceria tanto e que as pessoas ficariam apertadas tentando caminhar entre a rua cheia de ônibus com motoristas impacientes e as paredes de velhas casas e edifícios (mais edifícios do que casas). Pior é quando alguém fica parado, tomando espaço, indeciso para onde ir. Como eu! Ninguém me xingou, mas eu sentia os olhares cansados. Quem me olhava também, era o guarda. Pensei que pediria para que eu saísse do caminho dos passantes. Ele também pensou em me falar algo. Mas se conteve, talvez pensando em qual artigo da lei eu poderia ser enquadrada. Como não se lembrou de nenhum, perdeu interesse em mim. Foi quando olhei para o muro. Era mais um tapume em frente a um prédio abandonado. No meio de dezenas de cartazes, alguns com datas de recitales, outros com fotos de políticos, pude ler em letras grandes, prateadas: ¿A la Escuela de Traductores? Parei naquele momento. Já estava parada, claro, como

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contei. Mas parei de respirar, parei de bater o coração, parei de pensar. Fiquei feliz, já sabia como chegar a meu destino. Ao lado da frase, havia uma seta apontando para a direita. Comecei a caminhar, talvez aliviando a preocupação do guarda. Andei por cinco quarteirões até chegar a um novo muro. Dessa vez, era um muro de verdade. Tomate el 82, era o que estava escrito. Eu estava bem na frente do ponto de ônibus. Em cinco minutos, ele chegou. Entrei e paguei. Aqui os idosos não tinham nenhuma vantagem. Por sorte, sempre andava com umas moedas. Sentei e fiquei preocupada. Não sabia para onde ia o ônibus. Como todo morador daqui, já tive todos os itinerários na cabeça. Mas tinha esquecido. Depois de uns quinze minutos, percebi que havia uma pichação no encosto do banco da frente. Ela teria estado aí desde o começo? Ou aparecera naquele instante? Não saberia dizer, não tinha percebido. Estava escrito: Bajate en la próxima. Levantei-me, toquei el timbre e desci. Estava em um bairro diferente, não sei se longe dos que estava acostumada. Mas me senti perdida. Engraçada essa sensação. Numa cidade tão pequena dentro da sua grandeza, era difícil ter um lugar que eu não conhecesse. Será que já havia cruzado a divisa e entrado na província? Com apenas quinze minutos de viagem, seria impossível. Comecei a caminhar, estava em uma avenida (dessa vez as calçadas eram larguíssimas porém estavam lotadas de pessoas) e o sol já batia forte na minha cabeça. Não procurava mais sinais, sabia que eles viriam. Foi quando vi o outdoor enorme, em cima de um prédio que parecia um mercado. No, nena,

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estás equivocada. Para el otro lado. Me virei e caminhei para o outro lado, feliz porque alguém ainda me chamava de nena. Continuei para o lado em que a maioria das pessoas estava indo. Pude, então, descansar e permitir que a multidão me levasse. E fui seguindo, assim, carregada, até a esquina de uma praça. Nessa esquina, um cartaz dizia: Acá salí de la multitud y seguí por la derecha. Foi quando vi o prédio, enorme como todos os prédios antigos. Ao chegar na porta da Escuela, fui tomada por uma visão. Um nome que ainda estava lá depois desses quase quarenta anos. Sentei-me no chão. Todos os estudantes, entrando e saindo dos vários cursos (ou melhor, todos iam para o mesmo curso de tradução, mas em diferentes línguas) correram em minha direção. Acho que o problema foi o fato de ser velha. Uma jovem que se sentasse no chão, em frente a uma escola, não chamaria a atenção de ninguém. Mas uma velha... – ¿Qué le pasa, señora? – ¿Pasó algo? – ¿Se siente mal? Foram muitas mãos querendo ajudar. Preferi não falar nada. Não teria como me explicar, melhor pensarem que eu tinha passado mal. Do meio das mãos solícitas, surgiu um copo de água. Bebi. – Vocês podem me explicar o que significa essa pichação na porta da faculdade? – resolvi perguntar. – Ah, ¿eso? – me respondeu um deles. – Es como una tradición de la Escuela.

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Fiquei esperando a continuidade da explicação. A pequena multidão que havia se formado ao meu redor começou a se dispersar. – Hace mucho uno de los estudiantes, uno que después se tornó un conocido escritor, escribió eso ahí. Año tras año, nosotros pintamos de nuevo las mismas palabras, ¿para qué? – perguntou para si mesmo. – Sólo para mantenerlas ahí. – E o que significam? – No sé, nadie lo sabe. Dicen que él estaba un poco loco cuando las escribió. – Um pouco louco? – Sí, sus cuentos después son bastante raros, pero muy buenos. – Sim, eu conheço todos eles. – ¿Ah, sí? Bueno, dicen que él caminaba por los pasillos repitiendo este nombre, como si hablara con alguién, con esta persona. – Mas ela não estava aqui? – No, por supuesto no. Entonces en su ultimo día, apareció con tinta, escribió eso y se fue. El director de aquella epoca era reconservador, pero no tapó la pintada y ahí sigue hasta hoy. Agradeci e me afastei. Do outro lado da rua, fiquei juntando forças para poder entrar. Então era aqui que você passava os dias daquele fatídico ano. O ano em que vivemos intensamente nossos últimos momentos. Para mim, as letras pintadas naquele muro caminhavam. Na verdade parecia que dançavam. O vermelho que as formava, brilhava como se fosse o sangue que alimenta de vida um corpo. Talvez o próprio prédio. Pensei que se aquelas palavras fossem apagadas, todo o prédio morreria. Sim! Aquela pichação era o que sustentava

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toda a escola. Me apavorei com a idéia da morte de todo um edifício. Os estudantes ainda estavam parados na porta da Escuela. O que havia conversado comigo, apesar de estar numa roda de colegas, volta e meia me olhava, num misto de preocupação e curiosidade. Tirei da bolsa um caderno, um caderno Rivadavia vermelho. Aquele que você tinha me dado, com uma história. Com a primeira versão daquela história. Apesar dos quase quarenta anos que separavam os dois momentos (aquele, em que você me deu o caderno e este, em que o seguro na frente da Escuela), nunca o abri. Nunca li o que você tinha escrito. Só sabia, de cor, o nome anotado na capa, que você tinha manuscrito num adesivo grudado na capa vermelha. Escrito com sua letra feia e corrida, letra que tinha piorado muito depois do esforço para se formar em Francês, formatura que, na verdade, era parte de um plano para fugir daquela sua vida e, só depois percebi, fugir de mim. Você só escreveu um nome, cinco pequenas letras que não fizeram sentido para mais ninguém, apenas para mim. Não o abri mas me espantei com a qualidade do caderno. Quarenta anos e as folhas ainda estavam como novas. Coloquei-o de volta na bolsa. Cruzei a rua e, ao passar pelo estudante que há pouco me ajudara, agradeci mais uma vez. Ele se separou do grupo em que estava e perguntou se me sentia melhor. – Sim, – respondi – muito melhor. Escute, – falei, depois de dar alguns passos e me voltar para ele – mantenham essa tradição por muitos anos. Disso depende a existência dessa escola.

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Segui caminhando antes que ele tivesse tempo de reagir. Subi as escadas e entrei na Escuela passando pelas radiantes palavras em vermelho ao lado da porta. Radiantes, como se estivessem felizes. Acá nació y murió Circe, que un día volverá.

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Milonga Sentimental A nossa história começou quando os boatos sobre mim tinham tomado todas as casas daquele bairro, daquela cidade, ou seria uma simples vila? Você foi o único que continuou me tratando bem. O único que não dava risadinhas quando me encontrava. O único que não tinha medo da minha fama, a de ser a “garota que matou seus dois noivos”. Foi por isso que você acabou se afastando de sua família, por me defender. Aos domingos, seus familiares o abandonavam, saíam para passear e você corria para baixo da minha janela, jogava uma pedrinha. Às vezes, eu abria, às vezes, deixava você lá embaixo, sem esperanças. Quando me mudei, minha fama diminuiu um pouco. Mas continuei afastada do mundo, de todos menos de você. Continuamos nos encontrando duas vezes por semana, no final da tarde. Eu adorava quando você me levava para uma confeitaria em Rivadavia ou a caminhar pela Plaza Once. Nesta época, eu ainda estava de luto, pela morte de meu último noivo. Ou seria pela morte de meus dois noivos? Você não gostava disso, eu sei. E se espantava com o amor que os animais demonstravam quando eu chegava perto. Alguns deles, quero dizer. Eu sempre gostei de todo tipo de bicho. Hector se suicidou um sábado, à noite, depois de sair da minha casa. Rolo morreu de síncope, na porta, logo depois de nos despedirmos. Rolo não significou muita coisa

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para a vizinhança, mas o suicídio de Hector acordou velhas suspeitas. Eu sei que fiz você passar por maus bocados. Mantinha meu luto (acho que era só por Hector mesmo, Rolo já tinha se tornado uma lembrança tão distante) e só permitia que sua mão segurasse a minha em poucos momentos. Muitas vezes, em público, para que todos vissem. Eu sabia, mesmo com você tentando me proteger, que muita gente continuava a conectar os vários pontos obscuros da minha vida. Obscuros para eles, claro. Os namorados, meus bichos de estimação que sempre morriam, os gritos e soluços que se ouviam na minha casa. Tudo era motivo para fofocas. Um bilhete de suicídio. Eu só o li uma vez. Não tinha sido endereçado a mim. Nenhuma explicação, por isso eu era a explicação (era o que todos pensavam). Como se os choros e gritos abafados ouvidos pelos corredores da velha casa tivessem sido o motivo oculto de todas as desgraças. Nós nunca falávamos desse passado. Nunca. Acho que você esperava que eu entrasse no assunto. Eu não teria problemas em falar, mas não tinha o que dizer. Aos poucos, fui me afeiçoando à sua presença. Fui me animando. Até posso dizer que comecei a gostar de você. Mas ainda era cedo para fazer algo, fazer meus bombons. Usar meus licores. Não sei se você sabia da minha paixão por bombons ou se foi pura coincidência quando trouxe uma caixa deles para mim. Achei que você não sabia, por isso contei. Fiquei horas falando sobre como os bombons eram feitos ou como eu os fazia. Acho que o deixei cansado. Você pensava em outra coisa, tenho certeza, enquanto me ouvia e comia

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os bombons da caixa. Parece até que eu sabia o que você pensava: pensava que queria ser meu noivo, meu terceiro noivo. Mas vivo. Você começou a me comprar licores, chocolates. De forma sutil, me impelia a retomar minha vida, minha paixão. Nunca falava de sua vida quando estava comigo. E aposto que não falava de mim para as outras pessoas da sua vida. Um dia, fiquei com vontade de fazer algo para você. Fiz um licor de laranja, concentrado. Você se espanta com a minha solidão. Era o único a me visitar. Eu sentia um certo medo em você, quando levou o pequeno copo laranja à boca. Mas seus elogios, talvez um pouco exagerados, quebraram o gelo do temor. Foi mesmo você que me fez retomar meus ensaios, nem fotográficos nem literários, mas gastronômicos. Meus bombons começaram a sair novamente. Sim, você era meu provador oficial. Tampouco havia outra pessoa para esse “emprego”. Tenho certeza que você adorava aquele ritual: eu o obrigava a fechar os olhos e tentar adivinhar os sabores que colocava nas minhas produções. Fiquei feliz quando você se responsabilizou pelos materiais necessários para minhas experimentações. Acho que foi a primeira vez que o beijei, usando meu afeto para compensar sua generosidade. Era a única forma de continuar, também, já que eu não tinha nenhuma renda. Foi nessa noite que decidi voltar ao piano, algo que havia abandonado. Gostava de tocar na penumbra, só iluminada pela luminosidade da rua. Quando alguém acendia a luz da sala, eu me afastava rápido. Era verdade, parecia uma centopéia ou outro inseto fugindo da presença humana que, no meu caso, era simbolizada pela luz que vinha do teto.

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Naquela noite, acho que você conseguiu ter uma medida da minha fragilidade. Por baixo desta paz que eu demonstrava ao manipular minhas essências e as teclas do piano, havia uma mulher que carregava duas mortes nos ombros. E que talvez estivesse com medo de que você se tornasse a terceira. Depois de tanto tempo sem fazer bombons, quando você me trouxe as essências, comecei a achar que era isso que eu devia fazer pelo resto da vida. Não como um meio de vida, mas como um modo de vida. Podia fazê-los normais e comuns, como todo mundo, mas preferia criar. Novos sabores e novos formatos. E eu sabia que você era o único que os apreciava. Às vezes, você demorava para reconhecer os sabores, eu sempre ousava mais. Uma tarde, enquanto derretia o chocolate, lembrei-me com tristeza profunda da noite em que Rolo morreu quase na minha frente, na porta da casa. Sem querer, uma lágrima caiu no chocolate. Foi uma simples gota mas pude perceber, pelo seu rosto, que você sentiu aquele leve gosto salgado. Não comentamos nada. Além de você, minhas únicas companhias eram meu gato e um peixe dourado. Mas o peixe ia morrer, estava velho e doente. Ia morrer no dia seguinte, eu sabia. E morreu mesmo. Acho que foi esse anúncio que despertou algo em você. Coragem ou pena. E foi naquela noite, na noite em que anunciei a morte do peixe, que você me pediu em casamento. Aceitei mas demorei para responder. Pensava em como você tinha mudado. Como estava mais bonito depois do pedido. Era amor? Mas o amor poderia mudar a nossa percepção sobre alguém tão rapidamente? Aceitei e a partir daquele instante você virou meu noivo. Meu terceiro noivo. Você quis comemorar e abriu um vinho do Porto. Era

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visível que tínhamos muitas palavras para falar, mas não dissemos nada. Passávamos de uma intimidade tranqüila de amigos, para uma tensão de amantes. Nas semanas seguintes, você apareceu à noite sempre tenso. Nunca me disse nada, mas suspeito que a notícia de nosso noivado deve ter caído como uma bomba por todos os lados. Duvido que não tenha existido alguém que tentou fazê-lo desistir da idéia. Que velhos recortes de jornais falando sobre as mortes de meus dois noivos anteriores, não tivessem aparecido sob a porta da sua casa, anonimamente. Até senti que éramos seguidos nos nossos passeios de domingo. Acho que isso também já tinha acontecido antes, não sei. Talvez fosse uma reação ao medo do casamento. Lembrome vagamente de sentir algo parecido com Rolo e Hector. Não vou ficar louca, disso tenho certeza. Você chegou depois de um passeio solitário pela cidade (não me contou, eu sabia). Já era noite. Eu disse que o gato também estava enfermo. Discutimos essa situação. Senti que você não acreditava em mim. Para terminar com a conversa, falei que ele, o gato, ia morrer. Você não abriu mais a boca. Eu estava estranha, sabia disso. Preferi tocar piano a conversar. Com um olhar, pedi que você apagasse a luz. Você tentou me beijar mas eu pedi que esperasse. Esperasse que a cidade adormecesse. Continuei tocando piano, longas valsas para que o tempo passasse. Não sei no que você pensava. Entendi que falava que tinha sede. Antes que pudesse me levantar, você foi até a cozinha. Não podia ter feito isso! Era minha casa. Ainda era só minha. Apesar de nossa intimidade, você ainda era convidado. Quando voltou, eu estava de pé

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na frente da janela. Essa janela onde havia acompanhado meus dois antigos noivos irem embora, por várias noites e longos meses. Sabia que você tinha visto o gato. E como eu tinha enfiado dois gravetos em seus olhos, deixando-o para morrer. Mas não comentou nada. Em cima da mesa, havia deixado meus últimos bombons, minha última experiência. Não precisei oferecer, você já conhecia o ritual. Mas desta vez não fechou os olhos para experimentá-los. Não pedi. Podia ser o luar entrando pela janela na sala escura, mas vi seu rosto branco como mármore. Ao invés de colocar o bombom direto na boca, você o abriu com os dedos, separou-o em dois, mostrando o recheio. O recheio especial que eu havia preparado. A casca e as asas e as perninhas que ainda pareciam se mover foram iluminadas pela parca luz. Tinha colocado a barata inteira dentro do bombom, não tinha tirado nada. Esperei, esperei muito que seus dedos ao redor da minha garganta acabassem com meu sofrimento, com meu choro. Queria que a mistura das minhas lágrimas e dos seus dedos sufocassem essa minha obsessão. Mas você me deixou caída no sofá e foi embora. Meu terceiro noivo.

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Adiós Muchachos “Quando o ponto final foi desenhado nesse caderno, eu sabia que minha vida neste lugar havia terminado”. Não sei se escrevi ou pensei esta frase. Só sei que ela existia, que havia existido. Circe me perseguiu por meses, eu a encerrava no quarto de pensão em que estava hospedado mas sua sombra me acompanhava pela Escuela, pelas ruas, pelos meus pensamentos. Uma mulher belíssima, teriam dito meus companheiros, meus muchachos se alguém, além de mim, pudesse vê-la. Nos últimos tempos, quando a pressão por terminar meu curso de francês tinha ficado insuportável, ela ficara ousada, criara coragem. Poderia dizer que havia ganhado mais vida. Antes limitada ao meu minúsculo quarto na pensão, ela agora me acompanhava por todos os lados, pelos corredores escuros e silenciosos. Podia ouvir os ecos de seus sapatos. Ela sempre falava comigo, sempre queria conversar. Eu tentava ignorá-la mas sentia vontade de contar tudo o que me ocorria. Ela era a única pessoa com quem me relacionava naqueles tempos. Uma vez, no corredor das personalidades, ela me falou: “Um dia, seu retrato estará aqui”. Falou que eu estaria entre os onze pendurados na parede. Ri, ela podia estar certa. É verdade que a tradução, para

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mim, era só um meio de sair daquela situação, daquela cidade, daquele país. Tinha medo. Medo que ela descobrisse sobre a minha preparação para a fuga. Apavorado de que ela quisesse ir comigo. Eu precisava romper todo o passado para começar de novo. Queria convencê-la a me abandonar. Por isso, caminhava pelos corredores, entre minhas aulas, conversando com ela. Tantas coisas a falar! Até que se esgotaram. Uma tarde, voltando para a pensão, vi um caderno Rivadavia na vitrine de uma papelaria. Entrei e comprei. Naquela noite, iluminado por uma vela, comecei a escrever a história de um amor auto-destrutivo, como o nosso. Sentava na mesa, abria o caderno, enquanto você ficava na cama. Era o silêncio que servia como comunicação entre nós. Nunca levava o caderno quando saía. Mesmo deixando-o aberto em cima da mesa (tinha medo de borrar a tinta), sabia que você nunca iria ler a história. Eu só escrevia duas páginas por noite, para não precisar virar a página e borrar tudo. Não deixar a história mais borrada do que ela já era. Nunca acreditei antes em escritores que respondiam “para não ficar louco” à pergunta “por que tinha se tornado escritor”. Agora acredito. A história era algo que você tinha me contado. Quando surgiu na minha vida. Não, não sei como ou quando isso aconteceu. Todos os casais têm essas histórias. E adoram compartilhálas com o mundo. Nós, não. Você simplesmente apareceu.

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Simplesmente começou a me seguir. A ser uma presença. Até tomar conta da minha vida, como faz agora. Antes de virmos para essa pensão, você já estava ali. Eu me lembro que antes de entrar na Escuela, você me observava, sentada em um café na esquina, enquanto eu escrevia em meu apartamento. Escrevia durante as tardes, depois das aulas. Das aulas em que era professor, não aluno. Quando acabava de escrever, saía na sacada. Sempre. Como se estivesse avisando que você já podia voltar. Quantas vezes pensei em sair escondido, quantas vezes pensei em fugir de você. Mas sempre aparecia na sacada, dando um sinal inconsciente. É verdade, você já incomodava naquela época. Mas hoje sua presença é mais parecida com uma dor constante. Sinto muito ser obrigado a dizer essas coisas. Estou borrando as páginas desse caderno com essas palavras amargas. Sei disso. Sei também que você não vai saber de nada. Que não vai ler esse caderno. Porque vou pedir para você nunca ler. E sei que você vai obedecer. Este conto “Circe” que estou escrevendo, é uma despedida. Não estou só me despedindo de você, mas deste país, deste continente. Não sei se alguma vez poderei voltar. Parece triste, mas não sei se é. De verdade. Essa cidade é de uma estranheza vil. Suas ruas todas retas, seus prédios baixos e a quantidade de sacadas nos prédios antigos, funcionam como uma rede que me engole. Eu me perco aqui com tanta facilidade! E todas as sacadas parecem que olham para mim. Como se eu estivesse num antigo teatro grego. Atuando numa peça sem conhecer o roteiro.

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¡Adiós, muchachos!, foi o que falei naquela noite. Na noite que consegui sair sozinho. Quando você se esgueirou para a cozinha, certamente para fazer seus bombons, deixei a caneta sobre a página em branco do caderno e saí. Também me esgueirando. Depois de tanto tempo, meus velhos amigos falidos continuavam passando as noites de bebedeira no mesmo velho bar perto do mesmo velho porto. Foi aí que falei de você. Quase monopolizei a conversa a noite toda. Meus amigos, escritores e artistas frustrados, alcoólatras ativos, presos em empregos inúteis, não tinham muito a contar também! Talvez nem tenham ficado felizes em me ver. O mais impressionante, para mim, é que eles não sabiam quem você era. Apesar das infindáveis noites em que você me acompanhou nas rondas pelos bares de intelectuais deste bairro ao sul do centro. Nesse bairro com o nome de santo. Haverá existido um santo com esse nome? Quando o silêncio baixou naquela mesa, comecei a me lembrar do seu silêncio obsessivo quando não estávamos sozinhos. Quando mais alguém tentava roubar minha atenção. Deve ser por isso que você aceitou viver naquela pensão só para caballeros. Porque sabia que ali, atrás daquelas portas, eu seria só seu. Foi por isso que você me encorajou a completar o curso tão rapidamente, porque sabia que eu não teria tempo para mais nada. Até mesmo minha escrita a incomodava. Tinha ciúmes até das minhas personagens. Olho para essas pessoas, que eu chamava de amigos, e vejo como minha vida poderia ser um horror se não tivesse escutado seus conselhos. Levantei-me da mesa e, apesar de ter a nítida impressão de

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que ninguém percebeu, falei bem alto: ¡Adiós, muchachos! E completei: ya me voy y me resigno. Voltei para o quarto de pensão vazio. No dia seguinte, iria para a Escuela pela última vez. Sentei-me à mesa e escrevi as últimas páginas do conto. Ao terminar, fiz uma cópia, já com as correções, escrevi uma carta, coloquei-a num envelope. Já era de manhã quando terminei tudo. Arrumei a minha mala. Saí, passei por uma ferretería, comprei tinta. Era muito cedo para que alguém me impedisse. Pintei uma frase na porta da Escuela. Uma frase para você. Entrei, recebi meu diploma, entreguei o envelope para o diretor com as mãos ainda vermelhas de tinta. Voltei à pensão, peguei minhas coisas, paguei o que devia à dona e me despedi com uma frase de efeito: – ¡Perdoná por los cadáveres en el ropero! Fui direto ao velho porto onde, pela última vez, entrei no velho bar e pedi um café.

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Por una cabeza A secretária abriu um pouco a porta, enfiou somente sua cabeça e falou: – Acá está la señora Circe. Houve um ruído forte dentro do gabinete do diretor. A secretária abriu toda a porta, assustada. Não sabia se entrava atrás dela ou se esperava uma ordem. Fiquei parada embaixo do umbral. Do outro lado, do lado de dentro, a secretária ajudava o diretor a se levantar. Aparentemente, sua cadeira tinha tombado para trás. Ele estava no chão. Não podia vê-lo, pois a grande mesa de diretor atrapalhava minha visão. A pobre secretária, pequena e fraca, era incapaz de levantar aquele homem gigantesco. Não me decidia a entrar para ajudar ou ficar olhando ou rir descaradamente da situação. Finalmente entrei e fizemos um esforço tremendo para levantá-lo do chão. Ele estava pálido e com cara de assustado. Cada vez que olhava para mim, parecia ficar mais branco e mais amedrontado. Depois dos diálogos normais nesse tipo de situação, depois do normalíssimo copo d’água e da mais normal ainda pergunta sobre médicos e hospitais, pudemos nos sentar e esperar a saída da secretária. Ele falou, de forma surpreendente, na língua que eu

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tinha escolhido como pátria depois de ter abandonado aquela cidade. – Então você existe mesmo! Essa frase me surpreendeu mais do que o seu desmaio. Por tudo. Pela língua, pelo evidente conhecimento de onde eu vivera nessas décadas, por saber que eu existia. – S-sim, eu existo. Acho – pensei esta última palavra. – Desculpe-me, desculpe-me. Sou um bruto – a língua materna ainda se mesclava com o novo idioma. – Nem me apresentei. Esqueci todo o protocolo de diretor, – falava como se tivesse um livro de etiquetas para diretores de colégio – meu nome é Martín K., diretor-geral da Escuela de Traductores. Parou, não sabia se devia continuar, se devia se levantar, me dar a mão ou um forte abraço. – Sou Circe e vim pedir notícias sobre um aluno antigo da Escuela. – Sim, eu sei – claro, a secretária havia falado com ele. – Desculpe todo o papelao – as contaminações da língua continuavam. – É que todos achavam que a senhora era uma lenda, um sonho. – Lenda? Sonho? Agora o diretor estava realmente embaraçado. Ficou com o rosto vermelho. – Ai, meu Deus. Estou cada vez me enrolando mais. Sou um bruto, um bruto – tentando mudar de assunto. – A senhora aceita um café, uma água? – Água, por favor. Ele pediu para a secretária, por telefone. – Olhe, vamos começar tudo de novo. Há mais de quarenta anos, a passagem Dele por essa escola foi uma

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experiência, digamos, extraordinária, hummm, diferente, talvez. – Posso imaginar ou me lembrar. – Sim, é claro que eu “não” estava aqui, ou melhor, nem havia nascido. Mas as histórias ficaram vivas nas memórias, nesses corredores. E muitas coisas foram passadas entre as várias, como diria, “gerações” de diretores. – Há quanto tempo o senhor é diretor aqui? – Por favor, pode me chamar de você! – Está bem, há quanto tempo você é diretor aqui? – Este é o meu terceiro ano. Quando um diretor se aposenta, o seguinte deve continuar com as “tradições” do lugar. Principalmente, as criadas por Ele. – Como repintar a frase na porta da entrada. – Exatamente! Como repintar a pixassao na porta da entrada! – depois de uma certa pausa. – Pixassao que, dizem, foi feita por Ele no seu último dia aqui. – Sim, com o meu nome! – Com o seu nome. Por todo esse comportamento, hã, bizarro, talvez seja essa a palavra, pensávamos que Circe era uma “invenção” da cabeça Dele. Não imaginávamos que pudesse ser uma pessoa real. Ainda mais por causa do conteúdo da frase na porta: aqui nasceu e morreu – enfatizando o “e morreu” – Circe. – Imagino – foi o que pude falar. – Veja, – ele parecia tentar justificar sua falta de fé – nos últimos tempos de Sua permanência aqui, Ele falava sozinho. Caminhava pelos corredores conversando com pessoas imaginárias – fiz uma cara de espanto, como as lendas podem se formar assim? – e, além do mais, alguns anos depois, Ele publicou um livro com um conto chamado

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Circe. O que se fala é que Ele exagerou nos estudos. – Completou em nove meses um curso de três anos! – Sim, isso mesmo. Aliás, foi depois deste fato que acabamos com a possibilidade disso acontecer. Como é que poderiam achar que Ele caminhava pelos corredores falando sozinho se era eu quem o acompanhava? Teria me tornado tão parte Dele que havia ficado invisível? – Então, a segunda parte da pixação era um mistério para vocês? – Segunda parte? – Sim, “e um dia voltará”. – Bom, para dizer a verdade, nem pensávamos muito nisso. – Parecia mais uma loucura? – Sim, – constrangido – era isso mesmo. – Mesmo assim, vocês colocaram o retrato Dele na parede das celebridades? – Mas é claro. Além de ter-se tornado um escritor famosíssimo, talvez um dos maiores deste país, Ele ainda galgou grandes e importantes degraus na carreira de tradutor. – Não é qualquer um que chega a tradutor da Unesco. – Exatamente! Fiquei com medo que Martín se empolgasse em falar de sua profissão. Todos sabem como os tradutores são pessoas solitárias. – Bom, mas o importante é que eu existo e, como dizia a “profecia”, voltei. Martín não sabia o que falar. Finalmente, levantou-se e caminhou até um cofre que estava no fundo da sua grande sala. Aparentemente, um cofre que não guardava grandes

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segredos ou valores, já que estava aberto. Pela idade e aspecto, provavelmente não era mais possível fechá-lo. De dentro, empoeirado e meio sujo, ele tirou um envelope. Mesmo de longe, pude ver o nome Circe escrito. Na frente do meu nome, a palavra Para. – Ele, na verdade, deixou este envelope aqui, para o diretor da época. Disse que era para quando ela/você voltasse. Estas foram as Suas palavras. Ele me trouxe o envelope. Por um instante ficou em dúvida. Seria essa mulher, eu, parada na frente dele, realmente Circe? Ou apenas uma louca que viu a frase na porta e inventou toda esta história? Seria uma peça dos alunos? Não seria a primeira vez! Pensando que estava pensando tudo isso, tirei meu envelope da bolsa. Os dois eram idênticos, comprados na mesma papelaria, escritos no mesmo dia, pela mesma caneta e pela mesma mão trêmula. Vi a cara de alívio do diretor. – Não estou inventando essa história – disse. – Eu sei, me desculpe – ele falou, entregando o envelope. Abri, dentro havia um caderno Rivadavia vermelho. Fiquei com medo de folheá-lo. Estava condicionada pelo bilhete que você havia me deixado. Martín sentiu minha hesitação mas eu não queria contar minha história para ele. Abri o caderno e lá estava o original do conto “Circe”. Peguei o meu envelope, aquele que Ele havia me deixado, tirei o caderno vermelho, idêntico ao do diretor e abri. Estava vazio. Todas as páginas em branco. Possivelmente pela primeira vez na minha vida, soltei um palavrão. Tinha começado a odiar Você. Naquele momento.

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Esta noche me emborracho – Você não sabe quem eu sou. Mas eu sei quem você é! Foi assim que começou esta relação. Era um cabaré. Sentado à mesa, você lutava contra o sono que resulta do excesso de vinho. Para dizer a verdade, eu não o procurava. Tinha saído a perambular pela cidade. Porém, reconhecera o seu futuro quando o vi. Reconheci quando ouvi sua voz grave que lutava com argumentos alcoólicos contra amigos que se escondiam atrás da fumaça de cigarros sem filtro. – Neste país, os intelectuais estão perdidos – tinha sido uma das suas últimas frases. Depois a conversa tinha acabado. Cada um dos presentes havia entrado em uma espécie de torpor etílico. Ou poderia ser o fim dos argumentos frente a uma afirmação tão definitiva. Ou, então, a cantora que subiu ao palco, interpretando velhos tangos com uma linda voz de contralto. Não sei, mas os cinco pseudo-escritores sentados naquela mesa tinham parado de discutir e adormeciam em cada uma das cadeiras. – E quem sou eu? – Um futuro escritor. Você sorriu. Sim, escrevia pequenos contos. Sim, queria escrever grandes contos. – Claro, quem não é um futuro escritor nessa cidade?

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– Bom argumento. Você olhou para seus companheiros de bebida. Olhou para o palco onde a bela cantora interpretava tangos de Gardel. Parecia querer se localizar, como se não soubesse onde estava. – E você, quem é? – Não sei, qual é o nome que você quer me dar? – Quer que eu crie um nome para você? – Um nome, uma história, um futuro. Afinal, não é você o escritor? – Eu? Não! Você mesma disse que sou um futuro escritor. – Futuro escritor famoso. Mas escrever é um ofício, aprende-se do mesmo jeito que se aprende a cozinhar, a fazer artesanías. Ele ficou me olhando, durante um certo tempo. Não falou nada mas eu sabia em que pensava. Primeiro, avaliava meu rosto. Depois, meu corpo. Queria descobrir se eu o agradava. Eu sabia que sim, que ele se apaixonaria por mim. Pelo que eu representaria em sua vida. Depois, ele pensou em vários nomes que combinariam comigo. O problema era que o álcool atrapalhava. Cada vez que um nome surgia, ele se esquecia. – Não faz mal, – falei – temos muito tempo para isso. – Para quê? – Para preencher o caderno. – Caderno ¿Cuaderno de Escritura? Não respondi. Pensei no futuro. Marquei esse nome. Um dia, em outra cidade – maior e mais barulhenta que esta – um outro jovem estaria sentado em frente a uma mesa, tendo esse mesmo diálogo. E chegando à mesma conclusão.

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A diferença é que este outro se lembraria. – O que você quer de mim? – perguntou depois de desistir da grande tarefa de pensar em um nome que fosse meu. – Ser sua Musa – respondi. Ele sorriu. – Mas é um trabalho muito difícil ser Musa. – Você acha que eu não estou apta para esse trabalho? – respondi/perguntei com malícia na voz. – Teria que fazer um teste – ele respondeu no mesmo tom. É tão fácil enganar os homens! Tão fácil conquistá-los! Só é preciso um pouco de volúpia e sensualidade, que a maioria se derrete completamente. Não foi diferente com você. – Olha, eu preciso avisá-la: não tenho um centavo! – Eu sei. Aliás, vocês escritores são todos iguais. – Todos pobres. – Sim, – disse rindo – todos pobres. Mesmo quando ficam famosos e são adorados, continuam uns pobretões. – Talvez talento com as letras não signifique talento com os números. – Tenho certeza que são excludentes. Eu me levantei, fingi ir ao banheiro mas o objetivo real era que você me olhasse, visse meu lindo corpo. Estava maravilhosa aquela noite com um vestido vermelho que mostrava minhas coxas grossas e brancas. Com um decote que insinuava seios perfeitos e rosados. Deu certo, quando saí do banheiro, percebi que você me procurava com o olhar. Cheguei sorrindo perto da mesa e você logo me convidou para sairmos dali. – E seus amigos? – Eles não vão se importar.

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– Mas você deveria se despedir deles. Talvez nunca mais os veja. Você não entendeu essa minha frase naquele momento. Talvez não tenha entendido nunca. – Para onde vamos? – Alguma sugestão? – você perguntou. – Onde você mora? Gostava de ver o sorriso em seu rosto. Os homens sempre sorriem da mesma forma na iminência do sexo. Na imaginação do sexo. Homens são seres tão simples! Se soubessem disso, a vida seria tão monótona! Talvez até a arte acabaria. Quando você percebeu, eu já estava vivendo no seu apartamento. Há tanto tempo que talvez você nem se lembrasse mais do dia em que me instalei. Claro, estava completamente bêbado! E eu cheguei justo quando você começava a pensar ou repensar o que iria fazer da vida. Não existe momento mais vulnerável em uma pessoa. O momento em que se descobre o que não se quer fazer mas ainda não se sabe o que se quer fazer. Vivíamos à beira da miséria. Você mal sobrevivia sozinho com seu salário de professor, como faria para me sustentar? Eu, porém, pouco gastava. Milagrosamente o dinheiro chegava até o fim do mês para pagar o aluguel. Você não tem a menor idéia mas fui eu que inspirei suas histórias. As primeiras e todas as seguintes. Claro que continuava repetindo a fábula de que era sua Musa, mas você não acreditava. Pobre de ti! Era um escravo de minhas vontades sem perceber. Devo dizer, também, que não era culpa sua. Há tantos anos fazia

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isso que desenvolvi uma técnica, uma sutileza que ninguém conseguiria evitar. Ia dominando, tomando conta de seus pensamentos, me instalando em seus diálogos. E, de repente, você repetia involuntariamente minhas palavras. Como se fossem suas. Você foi aos poucos cortando seus laços com a cidade, com os amigos e a família. Para servir aos meus propósitos, era essencial que ficasse egoísta. Que só pensasse em si. E em mim, claro. Deixei que mantivesse alguns amigos, porque eles pagavam o vinho que tanto fazia bem a seus sábados. Era bom vê-lo levemente alcoolizado. Parecia um louco, como se conversasse sozinho. E isso amedrontava seus companheiros. Eles se afastavam e você era, cada vez mais, exclusivamente meu. Só fiquei preocupada quando você resolveu cursar a Escuela de Traductores. Ainda era cedo para visualizar uma saída para sua vida. Eu ainda não dominava seus pensamentos de forma completa. Você ainda tinha momentos de independência. Principalmente naquelas férias de verão. Nem sempre o ócio é a oficina do diabo, como dizem. Pelo menos não foi para você. Sem as aulas que o aburrian tanto, você se dedicou a escrever. Expulsava-me gentilmente do apartamento todas as manhãs e vivia algumas horas apartado de minha presença. Talvez tenha sido nesses momentos que pensou na tradução. Sempre havia adorado os franceses, a vanguarda européia. Seria a influência de Fernandez e Borges? Mas eu tinha um plano. Você tentou me tirar da sua vida. Não deixei. Deveria ter

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percebido que estava tentando fugir. Naquela época. Cometi erros, agora percebo. Pode ter sido excesso de confiança ou presunção. O melhor é pensar que aprendi com esses erros. Nas vezes seguintes, estava melhor preparada. Meu plano, ou minha mudança de plano, foi inteligente, isso ninguém pode negar. Fui eu quem coloquei esse sentido de urgência em sua cabeça. Aumentar muito a necessidade de mudar, de ir embora. É claro que o objetivo final não era que você fosse embora de verdade. O objetivo era que ficasse tão cansado, tão estressado como se diz nos dias de hoje, que se entregasse completamente a mim. Que fosse meu de corpo, alma e mente. Não contava com o poder curador da literatura. Pelo contrário, escrever sempre foi, para mim (e para meus outros amores), uma porta de acesso à loucura. Ser escritor, decidir ser escritor, sempre foi estar a um passo do abismo. Maldita hora em que você levou ao pé da letra minha sugestão. Aquela que eu dei no nosso primeiros encontro: a de contar a minha história. Nunca ninguém havia tentado isso antes. Por essa razão, quando mudamos para aquela pensão sólo para caballeros e você conseguiu que eu ficasse trancada em um recôndito; quando você comprou aquele caderno Rivadavia de capa vermelha; quando passou noites em claro, escrevendo algo “para mim”, como dizia; não me importei. Achava sinceramente que você já era meu. Não via como conseguia me isolar, pensava que eu o dominava. Que o mundo já se limitava a nós dois. Como toda mulher, achei que controlava todos os aspectos de sua vida. Que poderia

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moldá-lo à minha imagem e semelhança. Fui enganada, completamente. Você me fez de boba. E o pior é que não fiquei brava com você. Nem mesmo quando descobri que tinha sido abandonada sozinha naquele quarto de pensão para morrer de fome e sede. Fiquei tão fraca que nem mesmo a dona da pensão notou meu corpo quando abriu o armário para limpar o que você tinha deixado para trás. Fui jogada na rua junto com seus restos. Minha única solução era procurar outro. Alguém que pudesse me alimentar, me agasalhar. Nunca pensei em procurá-lo de novo. Seria inútil. Há muitas recaídas, eu sei. Mas também sou uma jogadora leal. E não sou vingativa. Acabei em outra cidade. Não vou falar aqui como aconteceu. Seria necessário outro livro para contar isso. Conheci outro como você. Mais fraco, mais susceptível. Que se sentava em um café perto de uma grande avenida. Era de outro país, de outra cidade, de outra língua. Mas tinha a alma aqui. Até escrevia em cadernos Rivadavia mas de capas amarelas. Foi até um dos mais fáceis que já encontrei. Uma das coisas boas é que apesar de ter ficado famoso e ter seu retrato pendurado em várias paredes, você nunca revelou o que aconteceu nos últimos meses de sua vida préfama. Sua biografia me esconde. Se tivesse revelado tudo o que aconteceu, talvez meu trabalho fosse bem mais difícil. O fato de não ser vingativa e de não tê-lo procurado, não quer dizer que o esqueci. Pelo contrário, não deixei de pensar em você um segundo. E por todos esses anos, você foi uma lembrança dolorosa. Só conseguia agüentar essa coisa que me corroía internamente quando estava com

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outro futuro escritor que me transformava em outra Musa. Quando vivia e me alimentava de suas ilusões e desejos. Só assim. Entre um e outro (sim, foram muitos em minha vida, não posso nem quero negar), me escondia em bares decadentes, desses onde se encontra fácil companhia por uma noite. Enchia a cara, algo que nunca fiz antes de conhecê-lo e levava todo tipo de homem para minha cama. Mas não era a mesma coisa. O prazer sexual não era seguido de uma boa conversa pós-coito. Até tentei outros artistas. Mas só os escritores possuem aquele senso de irrealidade que me apetecia. Cineastas, atores, músicos, todos eles estão muito ligados à mundanidade do mundo. São patrocínios, ensaios, relacionamentos e instrumentos. Só o escritor é que precisa que o mundo não exista para fazer sua arte. Uma caneta e um caderno. Um lugar seco e quente. Uma mesa. Para que mais? O que mudou? Não sei, não sei por que fui procurá-lo depois de quarenta anos. Pode ter sido aquele livro rasgado que uma vez encontrei no lixo perto de um ponto de ônibus. Não foi exatamente no lixo, foi ao lado da lixeira. Lembro-me de ter pensado: “Ah, se essa pessoa que jogou fora este livro soubesse como seria o mundo sem escritores!”. Era uma edição velha e mal feita. Páginas faltavam. Não tinha nem capa nem o nome nem o autor. Na verdade, a história começava na página 43. Mas eu sabia que era seu. O livro. E me lembrei. E decidi voltar. E larguei o livro no mesmo lugar em que o encontrei. Dali caminhei até meu apartamento. Fiz a mala e peguei

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um táxi até o aeroporto. Não me lembrei de checar o clima lá. Sempre fazia mais frio do que aqui. Nunca cheguei a pesquisar se você tinha voltado. Se estava vivo ou morto. Simplesmente voltei. Quando sentei na minha poltrona no avião, desejei ardentemente que ele se espatifasse assim que passasse por cima do Uruguai. Haverá morte mais bela do que nas águas do Río de la Plata?

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Mi Buenos Aires Querido – Qual é o seu nome? – Roberto, Roberto Guimaranes. ¿Y el tuyo? – Não sei. Você ainda não criou um nome para mim. – Sí, es verdad. Todavía no sé el nombre de esta historia, de este cuento. Eu tinha saído da sala do diretor, caminhado pelos corredores escuros e entrado de volta na cidade. Na rua, você ainda me esperava. O estudante da Escuela de Traductores. Sabia que você tinha ficado um pouco obcecado por mim. Quando me viu, abriu um largo e lindo sorriso. – Mira, – apontou para a parede – yo me quedé protegiendo la pintada en la pared. Não pude evitar o riso. Você tinha bom humor. Há muito tempo ninguém me fazia rir. Talvez há muitos anos. Aceitei seu convite para um café. Quando nos sentamos e o mozo nos serviu, você me contou que era fascinado pela obra Dele. – Não quero falar mais Dele, passei muito tempo pensando, procurando, falando sobre Ele. Agora quero só ouvir. Me fale de você. – ¿Yo? ¿Qué puedo decir? Essa falsa modéstia logo ficou para trás. Você era daqueles que adoravam falar de si mesmo. Como todo bom escritor.

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Como todo futuro bom escritor. E você me contou que queria ser escritor. Que até já tinha publicado uns continhos em uma revista literária. Dessas publicadas por universitários. E que tinha ouvido elogios. Mas que sabia que faltava um estilo próprio. Você é muito novo, ainda. Acho que foi esse o meu comentário. E percebi que você tinha ficado feliz. – Sí, ya sé. Tengo mucho tiempo por delante, ¿no? – Sim, você tem todo o tempo do mundo. Você também me contou que ainda vivia mais ou menos com seus pais. Mais ou menos porque seu quarto tinha uma saída independente para a rua. – ¡Es casi como tener un departamento propio! – disse com orgulho. E me convidou para ir conhecer o seu quarto. – Mais tarde vemos isso. Perguntei como você escrevia. Qual era a sua rotina. – ¿Rutina? Yo no tengo una rutina. – Isso é um erro. Você precisa ter uma. Não existe escritor sem rotina. Sem um modus operandi, como se diz agora – você ouvia maravilhado. – Se não estabelecer um, nunca vai escrever nada. Abri minha bolsa e tirei o caderno Rivadavia em branco. Aquele que guardei por quarenta anos crente que ali dentro, naquelas páginas vazias, estava, talvez, o maior segredo da minha vida. Mas ele estava em branco. Não sei se foi maldade sua ou simplesmente uma piada. De terrível gosto. Agora, sua lembrança começava a desvanecer. Sua personalidade ficava embaçada. Pelo que me lembro, você não gostava de piadas. Estava sempre sério. – Tenho aqui um caderno em branco. Há anos que o

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carrego comigo. Como se fosse um caderno que contasse a história da minha vida. Mas está vazio. – ¿Como si tu vida estuviera todavía sin escritura? Foi aí que entendi porque você me deixou o caderno em branco. Para que eu escrevesse minha vida. Mas demorei quarenta anos para entender essa sua mensagem. – Sim, pode ser isso. Um caderno em branco pode significar um vazio abandonado ou um vazio prestes a ser preenchido. Passei o caderno para você. Foi nesse momento que lembrei de uma noite, há muitos anos, décadas atrás, quando entreguei esse mesmo caderno para você (Ele) e fiz um pedido absurdo, um pedido que pode ter sido o detonador da sua (Dele) pseudo-loucura. – Queria que você escrevesse a história da minha vida. Já não sabia se estava falando com você (Ele) ou você (Você). Parecia que minha vida era uma repetição infindável de momentos atrasados. Você pegou o caderno como se ganhasse o presente mais importante de todos os tempos. Como se fosse o próprio Necronomicon. – ¡Pero acá ya hay un título! Eu não tinha arrancado o adesivo que você (Ele) tinha colado na capa do caderno. – O título é a última coisa que se coloca na história – falei, enquanto arrancava o adesivo do caderno. Era como se tivesse arrancado você (Ele) da minha vida. Perguntei mais sobre o quarto/apartamento em que você (Você) morava. Perguntei se era possível ficar no seu quarto sem que o resto da família percebesse. Escondida lá. Pensei na minha casa, naquela outra cidade. Comecei a

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me despedir daquela outra vida que tinha vivido nos últimos quarenta anos. Você pediu uma garrafa de vinho com duas taças, apesar da estranheza na cara do mozo. Era como se ele não me visse ali. Bebemos, enquanto a noite caía do lado de fora. Você abriu o caderno e começou a escrever, não imaginava que iria começar tão rapidamente. Mas ainda era um iniciante. Escrevia e riscava, escrevia e riscava. Isso era bom, não queria que terminasse logo. Não tinha pressa. Fiquei olhando você escrever, como sempre fazia. Como era a minha função. Foi nesse momento que comecei a esquecer aquela outra língua que tinha aprendido lá naquela outra cidade distante, agora cada vez mais distante. – ¿Amor? No podés escribir acá. Hay que esperar hasta la noche plena. Nosotros dos, sólos en nuestra pieza. Ahí es que podrás escribir en paz. Sólo podés escribir cuando estemos sólos, sólo nosotros dos. Você não falou nada mas fechou o caderno. Olhou para mim como Ele me olhava. Eu sabia que já estávamos apaixonados. Percebi, pela janela do bar, o momento em que as luzes da rua se acendiam. Minha história recomeçava naquele instante. Lembrei-me da velhinha na Praça de Maio. – Todavía hay tiempo, hija. Todavía hay tiempo. Apesar das luzes fortes, as sombras começavam a diminuir. “Eu adoro Buenos Aires” – foi meu último pensamento.

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