quem fazeu agulha_práticas arquitetônicas para educação

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quem fazeu agulha

práticas arquitetônicas para educação



UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO CENTRO DE ARTES DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO

quem fazeu agulha práticas arquitetônicas para educação

VITÓRIA 2013

Bárbara Veronez Ribeiro



BÁRBARA VERONEZ RIBEIRO

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo do Centro de Artes da Universidade Federal do Espirito Santo, como requisito para obtenção do título em Arquitetura e Urbanista. Orientador: Prof.ª Dr.ª Clara Luiza Miranda Co-orientador: Prof.ª Dr.ª Ana Heckert Convidado: Prof.ª Dr.ª Daniella Bonatto Convidado: Prof.ª Dr.ª Adriana Magro

VITÓRIA 2013



FOLHA DE APROVAÇÃO Nome: BÁRBARA VERONEZ RIBEIRO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO APROVADO EM: ___/___/____ ATA DE AVALIAÇÃO DA BANCA ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________________

AVALIAÇÃO DA BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________________________________ NOTA DATA ASSINATURA ____________________________________________________________________________ NOTA DATA ASSINATURA ____________________________________________________________________________ NOTA DATA ASSINATURA ___________________________________________________________________________________________

NOTA

DATA

ASSINATURA

APROVADO COM NOTA FINAL:_________


agradecimentos Agradeço ao meu pai Mauro e minha mãe Guta pelos valores transmitidos das mais variadas e belas formas e por serem exemplos de amor e altruísmo. Agradeço a Ciça por toda prontidão em estender abraços, abrir ouvidos, proferir palavras tão sábias e metáforas tão simples quanto eficazes, por ser a experiência de si mesma, tão nua, crua, como repleta. E nesse cheio que é, divide, se doa ao mundo com toda força e valentia. A Laiz Leal e a Dan Nogueira pela enorme cumplicidade, carinho, música, letra e dança. A Cintia Reis, aff! sem palavras, piccola sorellina! Ao Gabriel Ramos e ao Leo Izonton, por serem tão amigos, generosos, pela companhia e boas conversas e pela vontade de viver sem receio de se reinventar. A alguns Thiagos, Sousa por aparições angelicais e Fontes por ser meio irmão mais novo com quem posso brigar e também dividir emoções. Ao meu irmão Franco, por quem tenho enorme admiração. Obrigada por ter me inspirado e por ser tão leal. A todos os amigos da infância e da adolescência, por me ensinarem o valor da cumplicidade, da tolerância, da compaixão e do perdão. Sou grata tanto pelos que se mantiveram ao meu lado como pelos que se foram. Agradeço a dança e a música, minhas doses diárias de alegria e êxtase frente às ameaças do mundo que se revelava aos poucos. Ao Denis, canavial do mar, meu guru caboclo, amigo dançante, que anseia comigo transformações estéticas! Ao Govinda, ao Tião, ao Rendrick. Ao Karlão, o guardião do Cemuni III, por ter aberto as portas para que eu entrasse e por ter me guiado pelo labirinto encantado e obscuro da arquitetura. Ao Junin, ao Conrado, ao Zael, ao John, a Mini, a Paulinha, a Biba, a Thais de Sá, a Camila Tangerino, a Virgínia, Camila Dini, a Samira Proeza, a Jiulia Caliman, ao Henrick, ao Thairo, ao Renan, ao Pedro Turtle e Moreira, ao Michel, ao Guilherme Lauar, a Ju Tusholska, a Luciana Duarte, ao Francesco Lugo, ao Patryck e ao Emílio, a Thiara, Flávia, Bruno e Rayanne, Hugo Tavares, Camilo, Carol Vallandro, Bruno Massara, ao Fábio, a Madalena, a Raquel Garbelotti, a Flávia Dalla, Latussa, Ivna,


André Azoury, Sérgio Pruccoli, a Samya, a turma 2006/02...Aos habitantes do Cemuni III... Aos amigos e professores de BH: Adriano Mattos, Silke Kapp, Renata Marques, Luiza Bastos, Luna Diniz, Flora Rajão, Marcos Nunes, Núria, Patilda, Mateus Andreatta, Fernando Soares, a Gabi Ornelas, Débora Gonçalvez, Neném, ao Movasse, ao Corpo, ao Palácio e tantos outros presentes que aquela cidade me proporcionou. A Gabi Starling pela finesse, companhia e pelo “quem fazeu agulha”. Ao Eric, pelo antagonismo potente. A Clara Miranda e toda multidão nela contida! A Ana Heckert e a Adriana Magro pela riqueza que são e por aceitarem participar desse trabalho. Ao mestre Barbosa, pelas lições de arquitetura e de vida. As crianças do EMEF Eber Louzada por me acolherem com carinho, mesmo com a desconfiança inicial. Por me receberem com sorrisos, abraços e beijos e pela euforia com as surpresas que a tal da arquitetura poderia trazer. A Nadia Peres, pelo suporte e boa vontade e encantar o ambiente escolar. A Maria Tereza, minha prima Tetê, por ser uma criança destemida. A Geni, companhia e suporte desde a infância que nunca tendo visto o trabalho foi a que melhor soube defini-lo toda vez que entrava no meu quarto: “bárbara, você já terminou sua biografia?!”. A Viviane, por me ajudar a perceber tudo isso. E ao mistério de toda existência...

El asombro ante lo que desconozco fue mi maestro, escuchando su inmensidad.

...Eduardo Chillida...




resumo Esse trabalho procurou investigar maneiras de tornar acessíveis conhecimentos da arquitetura junto às crianças nas escolas de ensino fundamental. Deu-se como um processo de experimentação estendido de maio a setembro de 2013 em uma escola da rede municipal de ensino da cidade de Vitoria (ES). Afirma a necessidade de se incentivar a autonomia construtiva das pessoas, tornando-as capazes de compreender e interferir no espaço de maneira consciente, responsável e eficaz. Para isso, focou nos estágios iniciais da vida, tanto pelo fato de compreender a concepção do espaço como extensão da própria criação do homem, como por reconhecer a escola como um potencial difusor de ferramentas para expressão. A arquitetura, portanto, foi utilizada como um dispositivo de ativação da potência de criação, subsidio para subjetivação e processos coletivos (colaborativos). O trabalho traz a atuação prática (experiência de campo) e reflexões conceituais de uma estudante de arquitetura transladada para a condição de “professora de arquitetura” de crianças de 6 a 14 anos, as atividades realizadas, seus relatos e repercussões. Esse outro modo de dispor as coisas de lugar, tanto conteúdos como pessoas e práticas, ofereceu condições para pensar uma redimensionalização da arquitetura e uma educação aberta à cidade e as questões por ela suscitadas. Tratou-se, então, de uma pesquisa-ação, dado seu caráter narrativo-analítico.

palavras-chaves: arquitetura, educação, atividade prática, menor, experiência, autoconstrução, autopoie-

se


prólogo caseando ou...abrindo as casas O ato de fazer revela muito a nosso respeito. E eu não poderia dispor esse material de maneira diferente: coerente e afinado com a minha lógica de pensamento, por vezes de aparente incoerência! E todo pensamento encarnado, como obra, conta a sua produção. Esbarrei em dificuldades, elas aqui estão. Detive-me diante de impossibilidades, existem lacunas. Teve suspiro, dor e alegria: pedi licença à cientificidade acadêmica e os expus em medida. Existe uma engenhosidade no fazer. E costurar as partes é como o trabalho cauteloso de um bom artífice1 das palavras. Envolvido em cada gesto minucioso, o pertencimento dai resultante inviabilizaria qualquer estruturação pré-estabelecida. O trabalho investe na estética como uma aposta política. Aposta numa prática “menor”2 implicada com as condições transgressoras de qualquer prática que se desenvolva no seio daquela a que se chama “grande” (ou estabelecida). Portanto, se ao refletir e defender a validade de outros modos de existência, produção arquitetônica e práticas educacionais, sistematizar esse trabalho a uma maneira diferente não se trata apenas de um capricho vaidoso. Trata-se de um comprometimento estético acima de tudo, ético e político. Com uma diagramação e um arranjo de conteúdos vivos que não se burocratizam e que validam e expressam a minha impossibilidade de fechamento. Ao longo do trabalho pequenas conclusões a aberturas se apresentam. Aberturas não se limitam ao início e conclusões ao fim, pois sim, o trabalho do cartógrafo implica em muitas entradas quantas forem captadas por suas antenas e as saídas são múltiplas, pois ele vive de devorar e desovar, transvalorando3. O labirinto que se segue demostra essa disposição mais ou menos rearranjável dos conteúdos. O fio de Ariadne simboliza um percurso possível, uma costura casual que optou por uma entrada, desviou de quinas e becos e escapou do labirinto. Mas, claro, é possível oferecer uma versão encurtada do texto, um guia de navegação que facilite o acesso do leitor com apenas uma ressalva: não se trata da leitura independente de capítulos. Suas partes não são autossuficientes, uma ampara a outra apesar dos níveis variados de autonomia. Seus meios teórico, analítico e narrativo se mesclam num todo em que as conexões são múltiplas, sem centralidade e hierarquia definidas. As orelhas dobráveis funcionam como uma escuta de pé de ouvido, aquele sussurro que acresce sentidos ao corpo principal e sua leitura independente conduziria a um novo texto. Antecipar o leitor do que está por vir é afetá-lo pelos mesmos coeficientes de desterritorialização4 e reterritorialização pelos quais toda pesquisa-ação se implicou e continua se implicando. Eis o tecido, o novelo, a linha e a agulha...Olhe suas mãos, acredite nelas e faça como quiser...mas não se esqueça de brincar! 1

O “bom artífice” atribui valor positivo as limitações. Evita a busca inflexível de uma problema ate torna-lo perfeitamente isolado e auto-suficiente. Aceita um certo grau de incompletude do projeto, evita perfeccionismo em excesso e identifica o momento de parar. SENNETT(2009, p. 291) 2 “Uma literatura menor não pertence a uma língua menor, mas antes, à língua que uma minoria constrói numa língua maior” DELEUZE GUATTARI (2003, p.38) (...) “As três categorias da literatura menor são a desterritorialização da língua, a ligação do individual com o imediato politico e o agenciamento coletivo de enunciação” DELEUZE GUATTARI (2003, p.41) 3 ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo, 1989. online 4 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix . Kafka, Para uma literatura menor. 2003. p.38


prólogo

quem fazeu agulha anúncio de uma arquitetura menor ............12 labirinto de Dédalo ...........................................12 fio de Ariadne ....................................................14

percurso metodológico ..................................................16 bloco reflexivo_ 0.1 ..........................................................30 |autoconstrução como autopoiese| propostas de atividades ................................................37 diário de bordo ..................................................................44 bloco reflexivo_ 0.2 .........................................................76 |infância e institucionalização escolar| bloco reflexivo_ 0.3 .........................................................80 |conexões entre uma arquitetura menor e uma educação menor| arrematando .......................................................................82 referências bibliográficas ............................................86 índice de imagens .............................................................89

imagem 01 estandarte da cooperativa Mulheres Reais em Diamantina. fonte: acervo do 45° Festival de Inverno da UFMG. 2013

sumário


“Durante uma oficina para crianças no 45° Festival de Inverno da UFMG, em Diamantina – MG propusemos atividades de fabricação de estruturas e objetos com materiais doados pelos moradores do Bela Vista, bairro da periferia de Diamantina onde a oficina foi ministrada. As crianças, também moradoras da região, arrecadaram caixas de papelão, bambus, tecidos, flores, dentre outros materiais. Enquanto um grupo ficou responsável por montar cabanas de bambus e tecidos, outro grupo fazia lenços e bandanas para serem usadas pelas Mulheres Reais, cozinheiras locais responsáveis pelo almoço do dia. Bárbara e eu ensinávamos as crianças a cortar as bandanas e costurar fitas, flores, dentre outros enfeites para as bandanas. Eu estava ensinando uma das meninas, que deveria ter em torno de 8 anos, a costurar as fitas no tecido, mostrando como se passava a fita na agulha e a agulha através do pano, quando ela me devolveu a seguinte pergunta: “Mas...tia, quem fazeu agulha?” Para aquela pergunta, com o pequeno erro de português que a deixou tão graciosa, não tive uma resposta precisa. Esbocei algo genérico que pude pensar na hora como “ah... bom... ela é feita na fábrica, compramos assim na loja... etc.” Mas guardei a pergunta, que pareceu muito interessante para aquele momento: as mulheres reais faziam a comida que iríamos comer, nós fazíamos as bandanas que elas iríam usar. Mas quem fez a agulha, esse instrumento de fazer as coisas?” Gabriela Starling

imagem 02 queda de Ícaro após voa escapatório do Labirinto de Dédalo.

quem fazeu agulha


labirinto de Dédalo

anúncio de uma arquitetura menor Na mitologia grega, Dédalo, pai de Ícaro, era um dos artífices mais habilidosos e criativos de Atenas, conhecido por suas invenções e pela perfeição de seus trabalhos manuais, sintetizando a engenhosidade humana, o “pensar com as mãos”. A pedido do rei Minos, Dédalo construiu um Labirinto no qual o rei aprisionou o Minotauro, fruto do adultério de sua mulher. Tendo sido cúmplice da traição contra o rei, Dédalo caiu em seu desagrado e foi, junto com seu filho Ícaro, aprisionado em uma torre no labirinto. Sabendo que a prisão era intransponível e que o rei controlava mar e terra, Dédalo decidiu fugir pelo ar e para tanto pôs-se a projetar asas, juntando penas de aves de vários tamanhos, amarrando-as com fios e fixando-as com cera, para que não se descolassem. Foi moldando com as mãos, de forma que estas asas se tornassem perfeitas como as das aves. Estando pronto o trabalho, o artífice, agitando suas asas, se viu suspenso no ar. Equipou Ícaro e o ensinou a voar lhe advertindo antes do voo final: - Ícaro, meu filho! Recomendo-te que voes a uma altura moderada, pois se voares muito baixo, a umidade tornará suas penas muito pesadas e, se voares muito alto, o sol derreterá a cera que as cola. Conserva-te perto de mim e estarás em segurança. Todos que abaixo estavam contemplavam atônitos o que viam, julgando serem deuses aqueles que conseguiam cortar o ar de tal modo. Mas Ícaro, não resistindo ao audacioso impulso de se aproximar do céu, subiu demasiadamente e, ao chegar perto do sol, a cera fundiu-se, soltaram-se as penas, e ele caiu no abismo do mar Egeu. O pai, vendo as penas flutuando na água e lamentando a própria arte enterrou o corpo e denominou a região de Icária, em memória do filho.

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imagem 03 peça em tecido costurado e digitalizado. fonte: acervo do autor. 2013

Embora engenhoso representante do intelecto e da racionalidade técnica, Dédalo tinha tanta vaidade com suas realizações, que não tolerava a ideia de um rival. Sua irmã entregou aos seus cuidados um filho, Pérdix, a fim de aprender as artes mecânicas. O jovem era um bom aluno e deu provas de notável habilidade. Dédalo teve tanta inveja das invenções do sobrinho, que certo dia, quando se encontravam juntos, no alto de uma torre muito elevada, atirou-o para fora. Minerva, protetora da habilidade, vendo-o cair evitou a sua morte, transformando-o numa ave, que recebeu seu nome, a perdiz. Essa ave não constrói seu ninho nas árvores nem voa alto, acomodando-se nos arbustos e, lembrando-se da queda, evita os lugares elevados. Esse mito nos parece apontar para uma mediação por onde a arquitetura contemporânea ainda não se encontra capaz de transitar. Na construção arquitetônica é preciso empreender uma passagem do discurso para a edificação do objeto próprio da Arquitetura. Muitos arquitetos contemporâneos têm edificado literalmente seus discursos. Há uma diferença fundamental entre o discurso sobre a arquitetura e o edifício arquitetônico construído. Precisamos inaugurar com a arquitetura a recomendação de Dédalo que, antes do vôo escapatório do labirinto ao qual pai e filho se encontravam condenados, ensina: “Ícaro, voemos pelo meio, voemos por onde é possível voar, por entre o sol e o chão, por entre o céu e a terra, voemos por onde se pode construir a sombra, pois o esclarecimento da luz inteira não é coisa para os homens.”

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fio de Ariadne

“Enquanto isso nós, arquitetos contemporâneos seduzidos e imobilizados pelo encanto do brilho glamoroso do sol, arquitetos-ícaro continuamos a despencar nos abismos impalpáveis de nossos próprios feitos, ditos arquitetônicos (...) A construção de uma atitude por uma arquitetura menor depende de um trabalho cotidiano e próximo do particular de cada homem que carece e deseja nomear um território. Pouco se encontra encaminhado para tanto que ainda está por fazer. Cabe aos arquitetos dos próximos dias projetar as construções que serão intermediárias à nossa necessidade atual de habitar o mundo”. (Mattos Corrêa , Adriano)

Um dia contei para as crianças a historia de Dédalo no labirinto do Minotauro. Sentamos no chão e apesar de ter iniciado, o entusiasmo e proximidade entre a gente eram tão grandes que eles próprios conduziram boa parte do mito, contando determinados trechos que já conheciam, fantasiando detalhes e fui me aproveitando dessa riqueza na descrição para propor a construção de um labirinto no chão do parquinho com pedaços de gesso. Procurei enfatizar a habilidade de Dédalo como um engenhoso construtor, o alerta que fez a seu filho Ícaro sobre o perigo do impulso em se aproximar do sol e o pouco caso que este fez do conselho do pai, levando-o a queda e morte. Ficaríamos restritos a um trecho do parquinho, mas na medida em que acrescentavam becos, quinas, reentrâncias, tocas, passagens secretas, corredores sinuosos, o labirinto ganhava uma proporção absurda e as crianças simplesmente se fundiram com a ficção criada, o caos se instalou e me deixei conduzir por eles. O fio Entreguei um rolo de barbante e sugeri que criassem um percurso dentro do labirinto, conduzindo algum colega ou a mim, narrando acontecimentos. Alguns se vendaram no desejo de não saberem ao certo por onde eram levados. E novamente, explodiram as bordas: começaram um emaranhado de barbante por toda a área comum da escola até o limite do rolo. Eu observava aquilo com um sentimento inédito e portanto, ainda inominável. Preferi acreditar num campo de intensidades que cessou apenas com a repreensão da professora de educação física que sentia sua aula comprometida e após insistir, descredibilizando nossa “aula-caos”, pedi que aos meninos recolhessem o rolo. O labirinto criado pelas crianças me serviu de base para costurar o labirinto-sumário que se encontra nesse trabalho. O fio de Ariadne, assim como no mito, representa as múltiplas possibilidades de percurso sem que para isso se perca a noção da origem das coisas, pois seu nó inaugural se encontra ancorado na porta de entrada do labirinto. Agora, da mesma maneira que esse trabalho possui seções interdependentes com arranjos flexíveis, o fio que as interliga é uma mera casualidade. Esse acidente de percurso delegado ao leitor o solidariza com o próprio titulo do trabalho: quem fazeu agulha coloca a subjetividade como peça central no ato de fazer, o pertencimento impresso nos artefatos produzidos pela mão engajada que deixa seus vestígios de afeto e a simbiose com as ferramentas-próteses de nosso corpo (como a agulha) para lapidação do feito.

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“Interessa hoje uma “arquitetura-ação”, definida desde uma vontade “atuante”, de (inter)atuar. Quer dizer, de ativar, de gerar, de produzir, de expressar, de mover, de intercambiar e de relacionar. De agitar acontecimentos, espaços, conceitos e inércias, propiciando interações entre as coisas mais que intervenções nelas mesmas. Movimentos mais que posições. Ações, pois, mais que figurações. Processos mais do que sucessos.” Manuel Gausa QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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percurso metodol贸gico

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| infância e institucionalização escolar | procura compreender a condição da infância como uma produção social circunstancial e o momento em que a escola passa a assumir a condução da aprendizagem como templo universal do saber. Mais do que traçar uma cronologia da infância e da escola, esse tópico sustenta a necessidade de se falar com a infância e não por ela, sobre ela ou para ela. Compreendê-la em suas diferentes concepções no tempo e no espaço (considerando principalmente as mudanças da cidade), permite questionar o atual modelo de educação escolar que coloniza a infância, dizendo o que ela é, como “funciona”, o que nela falta e como preenchê-la em sua carência, desapropriando-a, assim, de suas próprias experiências. Práticas Arquitetônicas para a Educação procura abalar o modelo de cognição como representação para desdobrá-lo em um modelo de cognição como invenção, algo mediado por um saber construtivo (essencial da arquitetura) que implica necessariamente em processos de deslocamento e intervenção na vida do sujeito. Nesse sentido, a aprendizagem se dá como descontinuidade necessariamente e não de maneira cumulativa, redutora dos saberes a uma dimensão informativa e de apropriação de códigos.

Mais do que metodologia, é possível dizer que esse trabalho se deu como um processo de experimentação em aberto, percurso metodológico criado e recriado na ordem dos acontecimentos. Partiu do empírico, das surpresas da eventualidade, das pessoas que apareciam e deixavam as pistas para a próxima direção. Não havia metas pré-fixadas, a não ser o desejo último de fazer reverberar uma nova ideia dentro do campo da educação e que fosse impulsionada pela pluralidade das discussões trazidas pela arquitetura e o urbanismo. Uma etapa não foi sucessiva a outra, embora, semanalmente, um esboço de atividades para as oficinas fosse pensado e repensado tendo como referência a receptividade das ideias junto às crianças. A cada relato, que viria constituir o |diário de bordo|, novas proposições e indagações surgiam, pois, afinal, foi inevitável não se envolver com os mais diversos temas. E foi justamente dos relatos que surgiram os três blocos de reflexões que ser encontram dissolvidos ao longo do trabalho: do contato com o ambiente escolar (crianças e professores) e das aulas de Pepa I (Psicologia Escolar e Problemas de Aprendizagem) com a professora Ana Heckert nasceu a necessidade primeira de se pensar a |infância e institucionalização escolar|. Do envolvimento subjetivo com as crianças, da inclinação que o corpo precisa fazer para escutá-las, uma a uma, do choro de um, do abraço e dos beijos do outro e da felicidade proporcionada pelo simples fato de ”poderem” riscar no chão com giz uma ideia surgiu o |autoconstrução como autopoise| como síntese da satisfação e alegria proporcionadas pelo gesto livre das mãos e pela liberdade ativada pelas possibilidades da criação. O trabalho (não) se encerra com um anúncio: |conexões entre uma arquitetura menor e uma educação menor|. Atribuo o teor do assunto às aulas de Estética da professora Clara Miranda, ao professor Adriano Mattos da Escola de Arquitetura da UFMG e seu engajamento cotidiano e ao estágio no sistema de créditos solidários para habitação no Ateliê de Ideias junto ao professor Eduardo Barbosa.

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|autoconstrução como autopoise| se embasa em impressões pessoais captadas no contato com as crianças e na interlocução com pensadores como Richard Sennett em O Artífice e Sérgio Ferro em O Canteiro e o Desenho. Nesse sentido, os argumentos acerca da gestualidade sustentam a importância da prática como meio de se alcançar uma vida material mais humana. Engajar-se corporalmente na tarefa de produzir coisas materiais mobiliza habilidades a


que recorremos no trato com os outros. O processo de feitura revela muito a nosso respeito e conduz a uma reflexão sobre nós mesmos por meio das coisas que fazemos e o modo como as fazemos. “Os seres humanos são hábeis criadores de um lugar para si mesmos”, afirma Sennett ao depositar grande esperança nas realizações do homem e em sua capacidade de criar. É nessa constatação que o trabalho encontra respaldo para adentrar as escolas e desconstruir o mito em torno da arquitetura, propondo que ela possa ser ativada, ou melhor, revelada nas circunstâncias de vida de todo sujeito. Espraiando o saber arquitetônico de modo a torná-lo instrumento de autonomia , amplia-se a relação entre o corpo que age e a experiência dessa ação, o que permite, no processo de tentativas, erros e acertos imaginar categorias mais amplas de “bom”. Lembrar que fazer também é pensar (um pensar com as mãos) reloca a íntima relação entre a mente e o corpo e permite o embate entre práticas concretas e ideias para as demandas dos dias de hoje.

Editamos um vídeo (anexado ao volume e disponível na internet) com o material coletado por várias mãos e, portanto, vários olhares - das crianças, dos amigos da arquitetura que se interessaram e acompanharam algumas atividades, professores da escola e por mim. Assim como todos os envolvidos na proposta se deparavam com um processo em aberto, que ganhava corpo mediante nossas ações, editamos o vídeo com o mesmo intento: desvencilhamo-nos de uma narrativa linear, ilustrativa, legenda de um trabalho acabado. O vídeo procurou ser um suporte a mais, uma interface necessária à ação de quem acessaria a proposta a posteriori e que os já envolvidos pudessem revisitá-la, certos apenas de sua incompletude. O trabalho aconteceu em parceria com Maria Cecília Alves, amiga da Escola de Arquitetura da UFMG que sob orientação da professora Silke Kapp (coordenadora do núcleo MOM – Morar de Outras Maneiras) desenvolveu a mesma proposta em uma escola em Contagem, Minas Gerais. Partimos dos mesmos pressupostos, cheguei a acompanhá-la em algumas orientações com a Silke em Belo Horizonte, mas conduzimos as atividades cada uma a sua maneira, muito pelo fato de nos depararmos com contextos muito diferenciados. Ciça em uma escola particular da Região Metropolitana de BH (Contagem), eu em uma escola da rede pública municipal de Vitória com um perfil social heterogêneo. Trabalhei em um EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental Éber Louzada Zippinotti) no bairro Jardim da Penha (Vitória, Espírito Santo) com dois grupos distintos de aproximadamente 10 crianças cada. As idades variavam de 6 a 13 anos. Nossos encontros eram semanais (duravam em torno de uma hora e meia com cada grupo) e abrigados no horário integral, ou seja, no turno complementar às aulas regulares. As oficinas foram desenvolvidas no período de maio a setembro de 2013. Com o grupo do turno da tarde desenvolvemos o canteiro de obras, que se propunha ser dentro da escola. Com o turno da manhã, a escola ambulante que procurou se fazer fora do contexto escolar (pela cidade). Procurei assumir esses dois direcionamentos por acreditar na importância da subversão a partir de dentro.

O que é possível fazer para potencializar os recursos já disponibilizados pela escola? Como pensar a infância dentro e fora da instituição escolar? Pensar a criança não como subjetividade incompleta, (a)luno (destituido de luz) e, portanto desprovido de responsabilidades e autonomia e sim como mais um agente, colaborador, parceiro das ações na cidade.

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Na medida em que experimentávamos outro modo de aprender dentro da escola (tornando-a mais encantada, aberta e criativa), apontávamos sutilmente uma possibilidade outra (mais incisiva e de ruptura) que restituiria à cidade e seus agentes a tarefa primeira de se modelarem a partir de seus atravessamentos e afetações. O projeto, portanto, pretendeu inserir as crianças em uma proposta de canteiro de obras (mão na massa), assumindo elas o papel de “pequenos construtores” e munidos de materiais, “ferramentas” (régua, esquadro, tesoura, fita métrica, cola...), tarefas individuais e coletivas, inspiradas na organização de um canteiro experimental. A ideia foi que ao longo dos meses, se desenvolvesse um sentido colaborativo e de apropriação dos espaços nos quais as atividades fossem desenvolvidas, criando-se um laboratório de ideias e ações, podendo ser acessado para além do horário estipulado para as oficinas.


Paralelo a isso, a escola ambulante se dava pela experimentação de uma educação não escolar. Para além dos limites físicos e ideológicos da instituição, seria uma escola em deslocamento, transportada por uma Kombi adaptada que estacionasse em locais diferentes da cidade e que da leitura e vivência desses espaços, instigasse junto às crianças o confronto potente com o mundo e proposições de atividades e conversas que partissem das novas relações criadas. A aceitação das propostas junto à escola não contou com muitos empecilhos. Parti de uma conversa com a coordenação, na qual apresentei as ideias ainda germinais, mas que já traziam as |propostas de atividades| consistentes. Contei com muito apoio da coordenadora Nadia Peres que a cada semana adaptava a agenda escolar, articulava a utilização dos espaços da escola, os materiais que utilizaríamos, compunha os grupos e providenciava as saídas com o ônibus.

Um plano de oficinas semanais foi apresentado à escola e seguiu um esquema de atividades que se articulam em torno de quatro eixos:

Pedi para acompanhar algumas aulas regulares (com a intenção de compreender melhor o que era transmitido em sala e como isso era feito). Cheguei a escrever uma carta solicitando a permissão dos professores para entrar nas salas, mas encontrei muita resistência e até a recomendação de não levar adiante a ideia.

1_Percepção espacial 2_Aspectos naturais 3_Construção e materiais 4_Nossa bairro e nossa cidade

No meio do percurso, Ciça e eu tivemos a oportunidade de passar um bom tempo juntas trabalhando no 45° Festival de Inverno da UFMG, em Diamantina, Minas Gerais (realizado no período de 21 a 28 de julho de 2013). Participamos das ações do Caminhão Itinerante dedicado e produzir experiências de ocupação na cidade por meio da criação dos suportes espaciais necessários para ancorá-lo nos diferentes lugares, levando em conta as singularidades arquitetônicas e compartilhando ideias e ações com os moradores para a construção itinerante das atividades diárias propostas pelo Festival. A partir de cada ancoragem do caminhão desenvolvíamos junto às crianças dos bairros de Diamantina a oficina Invenção da cidade pelas crianças, cuja proposta era intervir e propor situações, jogos, ações construtivas e conceituais no espaço urbano através do olhar e da escuta das crianças.

Esses quatro eixos temáticos abrangem atividades conceituais e práticas e percorrem assuntos relacionados à edificação, ao abrigo e ao ambiente em que as crianças estão inseridas, seus aspectos naturais e as relações com os contextos sociais atuais e passados. As atividades serão compostas de rodas de conversas, reflexões coletivas e individuais e tarefas práticas de mesmo caráter, podendo ser realizadas em diversos lugares como escola, casa, pátio da faculdade de arquitetura da Universidade Federal do Espírito Santo e espaços públicos.

Mas por traz da metodologia oficial, existe também outra história... QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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Há quase um ano, vinha desenvolvendo como projeto de graduação uma pesquisa sobre o corpo e a cidade, uma investigação sobre as possibilidades que a dança contemporânea poderia oferecer para se repensar a experiência estética na cidade.

|escola ambulante| experiência em uma escola do Aglomerado da Serra em Belo Horizonte, MG, 2011

A cada teorização sobre o assunto, a cada fala sobre o corpo, sentia-me mais descorporificada, mais anestesiada por tentar levar para um raciocínio acadêmico algo de uma esfera sensitiva muito sutil. Era difícil transformar em palavras, embora o trabalho previsse outras linguagens como suporte. Embora sempre em atividade, dançando desde a infância, em Vitória não consegui dar continuidade aos estudos em dança contemporânea que iniciei em Belo Horizonte e isso tornava o trabalho pouco partilhável, solitário e restrito as ideias. Faltava gente, contato, suor, conversa, quebra de certezas, movimento. E daí resultava uma contradição enorme: onde estava o encontro dos corpos tão preconizado pela discussão? Onde estava o movimento próprio da dança? Onde estava a experiência viva de cidade em uma estudante entre livros e ideias? Foi um período triste: quando resolvi falar de duas grandes paixões, a dança e a arquitetura, esqueci de vivê-las. No meio disso tudo, a Ciça começou a pensar em qual seria o tema do projeto de graduação dela na UFMG, onde eu havia feito mobilidade acadêmica por um ano e meio entre 2010 e 2011. Da nossa amizade e conversas, tínhamos o gosto comum pela prática, pela “fazeção”, como chamamos. Na época, eu muito mais ligada à dança e ela a construção com terra e bambu. Foi quando resolvi guardar o antigo tema - certa de que ele estaria comigo quase como uma ética perante meu posicionamento em relação à produção de subjetividade na cidade - e me tornar parceira da Ciça nos primeiros esboços do que ela inicialmente chamou de Práticas Arquitetônicas para a Educação. Seu desejo inicial e mais profundo era incentivar a autonomia construtiva, a maior consciência espacial e capacidade crítica das pessoas em produzir espaços de qualidade e menos passividade quanto ao que tem sido feito em nossas cidades, bairros e casas. Foi quando me lembrei do trabalho que desenvolvi durante a disciplina de Projeto de Arquitetura com o professor Adriano Mattos na UFMG em 2011. Sob o tema Concepção e projeto de outros modos de habitar um território urbano inventado: saber/fazer/construir ‘cotidiano’ desenvolvi a escola ambulante, que assim como a proposta da Ciça, pensava a questão da arquitetura, educação, autonomia e crítica, no entanto, mais desvinculada da instituição escolar (embora precisou nascer de dentro dela).

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imagens de 04-07 montagens para livreto de relato da experiĂŞncia de uma escola ambulante em Belo Horizonte. fonte: acervo do autor. 2011


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No mesmo período em que decidimos por fazer juntas o trabalho, saltou em forma de formigamento nas mãos um antigo desejo de aprender crochê e macramê. Minha avó Tereza estava na minha casa por esse tempo e trocávamos alguns pontos novos, dicas de materiais, o jeito de segurar a agulha... Eu já estava a um bom tempo envolvida com uma atividade teórica e isso já causava desconforto. Até os desenhos a mão diminuíram a frequência, muito pelo uso dos programas de computador, mas também pela redução das atividades com projeto na faculdade e estágios. A descoberta de uma nova técnica, uma nova lógica de transposição da ideia para o fazer (e a concomitância e interferência de ambos) foi algo que proporcionou sentir novamente a satisfação pela descoberta daquilo que antes parece misterioso mas que vai se revelando no cuidado com que uma pessoa ensina e na abertura de quem está disposto a aprender. O que, na verdade, se dá de maneira recíproca: aprendiz e mestre não são condições fixas na criação do novo. Posso dizer que as aulas de artesanato, assim como as de dança (ininterruptas em minha vida só que agora revisitadas sob um novo olhar) tiveram um papel relevante dentro do percurso metodológico. Eram como laboratórios experimentais de onde pude extrair pistas para lidar com os processos de aprendizagem na escola. Uma vez sentindo em mim, pude assumir isso como mote dentro das propostas de atividades com as crianças. “(...) as condições não são dadas numa enunciação individuada pertencente a este ou aquele “mestre” separável da enunciação coletiva.” (DELEUZE GUATTARI 2003, p.40)


“A aspereza da mão é certeza de realização. A maciez da palma,é talvez da alma, Alteza idealização. A mente se é mente, É semente da suavidade. As mãos, se mãos são, São sementes da construção (...)”

imagem 08 trabalho em macramê da artesã Ana Por El Mundo, Itaúnas, ES. fonte: Vinícius Binotte. 2011

Maria Cecília Alves

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No início do trabalho, ainda era sutil a percepção de que, na verdade, usávamos a arquitetura apenas como um pretexto, um recurso a mais de ativação das potências humanas num âmbito de pedagogização dos estágios iniciais da vida.

No Brasil, a porcentagem de edificações autoconstruídas é altíssima. Excede os 70% e revela o quanto é profunda a incongruência entre a demanda por habitação, a autogestão de obras, o acesso ao auxílio técnico e a formação profissional do arquiteto. As pessoas, na precariedade de recursos constroem mesmo assim. Como fazem? E os estudantes e profissionais de arquitetura, onde atuam? COMO AJUSTAR UMA PARCERIA QUE MELHORE A QUALIDADE DE VIDA DO HABITAR? “Minha casa, minha vida”: soluções paliativas? O que tem por trás? Enfraquece a autonomia? Passa uma régua, determina categorias e trata tudo como uma coisa só? E os processos de gentrificação? Por que a autoconstrução também adota padrões construtivos tão homogêneos? Quais pequenas intervenações diminuiriam a precariedade das construções, ou melhor, pequenas ações que potencializariam a vitalidade do habitar?

Não poderíamos nos distrair com uma técnica que se detivesse a resolver problemas, como um novo método que estivesse sendo testado pela sua eficiência diante de um alvo preciso. A arquitetura, a arte e o prazer de estar com as pessoas eram as coisas que eu possuía. E isso já era um tanto suficiente. Não se esquecendo disso, deveríamos estar sempre comprometidos com a criação de realidade, a reinvenção da relação com o território e a contribuição com os processos já existentes no meio escolar. Se como justificativa mais pragmática apontamos a questão do abrigo e da autonomia construtiva como pressupostos para entrada na escola, o processo revelou que esses argumentos eram apenas dispositivos que ofereciam condições para o uso de ferramentas técnicas, artísticas e arquitetônicas para um novo tipo de construção do saber. Um saber que ativasse a criação de si mesmo no encontro com o mundo e nas relações assim desencadeadas. A questão principal deixou de ser a autoconstrução como precariedade , embora ela seja mencionada no trabalho por trazer reflexões acerca da aproximação entre espaço construído e usuário, passando então a ser a autoconstrução como autopoiese , como processo de empoderamento em seu sentindo transformador, segundo Paulo Freire.

Autopoiese ou autopoiesis (do grego auto “próprio”, poiesis “criação”) é um termo cunhado na década de 70 pelos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana para designar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios continuamente. Segundo eles, todos os organismos funcionam devido a seu acoplamento estrutural, ou seja, devido à sua interação com o meio, que se caracteriza por uma mudança estrutural contínua (que não cessa enquanto houver vida) e, ao mesmo tempo, pela conservação dessa recíproca relação de transformação entre o organismo (unidade) e o meio, pois a forma como ocorre esse processo depende do meio e do contexto em que se vive. Isso significa que, embora sejamos determinados por uma estrutura biológica, essa determinação estrutural não implica num reducionismo biológico, pois o meio interfere na forma com que iremos interagir com nossas próprias estruturas. De origem biológica, o termo passou a ser usado em outras áreas como por Gilles Deleuze na filosofia e tanto a teoria como a sua aplicação aos sistemas sociais representou uma grande mutação

“Implica, essencialmente, a obtenção de informações adequadas, um processo de reflexão e tomada de consciência quanto a sua condição atual, uma clara formulação das mudanças desejadas e da condição a ser construída. A estas variáveis, deve somar-se uma mudança de atitude que impulsione a pessoa, grupo ou instituição para a ação prática, metódica e sistemática, no sentido dos objetivos e metas traçadas, abandonando-se a antiga postura meramente reativa ou receptiva” (SCHIAVO e MOREIRA, 2005) Quando pensei em articular junto às crianças a ideia de um canteiro de obras como gatilho para as oficinas de arquitetura na escola, ainda não a havia relacionado de maneira direta com as concepções do “canteiro livre” e suas tentativas de realização pelo grupo Arquitetura Nova, formado pelos arquitetos Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império a partir do final da década de 50.

no foco epistemológico.5

Pensar o canteiro, a casa, a relação com o espaço vivido, a responsabilidade pelos espaços e sua manutenção como extensões da própria condição do corpo em autopoiese permitiria desconstruir o mito em torno da arquitetura e pensar sua redimensionalização.

5 CASTRO DE ANDRADE, Claudia. A fenomenologia da percepção a partir da autopoiesis de Humberto Maturana e Francisco Varela. 2012. p. 99. online

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Toyo Ito em “Arquitetura dos Limites Difusos” reflete sobre a distância entre os espaços que conformam as experiências dos seres humanos e o espaço construído por um arquiteto; o primeiro é “uma casa onde se pode viver” e o segundo é uma “casa obra de um arquiteto”. Os argumentos desta “autocrítica”, que se reveste de grande importância, pois se trata do espaço da vida cotidiana, advém do filósofo Koji Taki: “Por que apareceu esta diferença? (...) O espaço projetado pelo arquiteto não é resultado do tempo vivido por alguém; a casa como morada não se construiu a priori para as coisas que residem no futuro. Estas revelam os aspectos espaciais do lugar habitável como um conceito lírico codificado. Entre as contradições e as relações interativas destes aspectos surgem nossas reflexões sobre o espaço habitável. As diversidades lingüísticas do espaço habitável estão relacionadas. (...). A criação do arquiteto aparece de modo que extrai aquilo essencial do conceito de arquitetura que passa desapercebido mas além do caráter vivente da casa. Ao dispor o modo como os demais vêem as coisas, se desvelam e se expressam os limites do espaço que um indivíduo pode visualizar no presente”. (KOJI apud ITO, 2006) Toyo Ito deduz que há uma defasagem entre o corpo como “experiência vivida” e o “outro corpo”, que aspira a tal linguagem lírica (conotativa, subjetiva, pessoal), um corpo criado mediante a consciência ampliada da tecnologia moderna. A meta de Herman Hertzberger no livro “Lições de Arquitetura” é converter o usuário em morador. Segundo ele é possível tomar medidas para que o usuário/ habitante possa dar sua contribuição onde é relevante. Pode-se mesmo ter a expectativa de uso ativo, criativo dos espaços por parte dos usuários. No agenciamento do espaço por meio do desenho e também na distribuição das instalações podem-se proporcionar meios para criar senso de responsabilidades e gerar envolvimento no arranjo, na ocupação, no movimento, enfim, na vida de um espaço. De modo que os usuários se tornem moradores mesmo em espaços de uso coletivo. Pensei então, que se a construção do abrigo e a relação vivencial com os espaços são concomitantes a criação de nós mesmos é necessário potencializar a potência de criação, pois assim somos capazes de humanizar os espaços mortificados pelos efeitos pasteurizados ou cenográficos (que apagam as rachaduras, desacordos e estão a serviço da tecnocracia) e somos autocríticos nas novas proposições que partam de nós ou que requisitem nossa coautoria, corresponsabilidade, coprodução. E por que não realizar isso no âmbito atual da educação, espaço físico e relacional cada vez mais enrijecido e desencantado pelas distrações do controle? Por que não instigar a percepção do espaço e a modelagem material de ideias desenvolvendo junto às crianças um sentido espacial e um conhecimento construtivo (de QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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empoderamento/autonomia) que intensifique a relação entre a mão que faz e o objeto imaginado? Essa intensificação, para além da gestualidade que implica, consagra a abertura do sujeito na sua relação com o mundo: as indagações e saberes produzidos derivam de constantes especulações acerca de outros modos de existência, uma vez que a função dos objetos e sua relação com o homem não são dados a priori e a leitura da vida é marcada por arbitrariedades. O trabalho proposto nas escolas indaga essas questões de maneira subjacente, uma vez que procura dissolver o mito em torno da arquitetura e conduzir a ideia do potencial arquiteto inerente ao sujeito.

É um trabalho nas escolas fundamentais, mas que nasce dentro da universidade na sua leitura das demandas da cidade. Então, de certa maneira, questiona a extensão das ações acadêmicas e o papel da UNIVER-CIDADE.

Não é apenas a dimensão heroica da arquitetura que deve interessar. A consciência de que ela está presente a todo tempo e em todas as circunstâncias da vida material é o gatilho para o engajamento na vida miúda. É a casa, o quarto, o cantinho, o bairro, a escola e a cidade que são pensados e produzidos por aqueles que ali vivem e que podem ter em mãos as ferramentas para ação e produção de outros possíveis.

Que mito é esse? Com que intuito ele insiste em existir? Edificação literal de discursos narcisistas? Encarceramento de saberes codificados como aparato para tecnocracia? Conduz a uma isenção de certas responsabilidades e coatuação mas em contrapartida aciona a coerção e privação dos direitos coletivos (direito a própria cidade e a moradia). Agir na cidade e produzir arquitetura é para alguns poucos ou tarefa de todos?

A aproximação entre educação e arquitetura garante um duplo ganho: a escola e a educação ganham em aproximar cada vez mais seus conteúdos à vida prática das pessoas. A arquitetura e a cidade ganham por serem construídas por sujeitos com maior consciência espacial, construtiva, estética e política e com maior capacidade de produzir e propor espaços de qualidade, questionando o que tem sido feito nas cidades, bairros e casas.

A vida prática, nesse caso, não se trata de um utilitarismo, ou seja, uma redução da vida ao treinamento (verificável sob ameaça). Trata-se de AUTONOMIA DE ESCOLHA, empoderamento mediante experiências vividas, investimento na vida potente com toda sua imprevisibilidade e perfeição, desmascarando os desejos artificiais impostos e validando os desejos autênticos com seus níveis de responsabilidade pessoal pela realidade criada.

Por ser a arquitetura um campo multidisciplinar e uma ciência social aplicada que visa em última instância à concretude de ideias e noções abstratas, pensar sua aplicabilidade e pertinência dentro das escolas é razoável dada a dimensão palpável dos diversos conhecimentos trabalhados em geografia, história, ciências, matemática, física, artes, português e educação física.

O desenvolvimento de certas habilidades, como percepção espacial, noções estruturais e de técnicas construtivas, paisagem, ambiente, a cidade e sua história se consolidam como aprendizagem quando dados de maneira empírica e ligadas a demandas da vida cotidiana. São processos de aprendizagem validados pelo fazer, muito além da dimensão informativa dos conteúdos didáticos propostos pela estrutura curricular da escola.

Essa tática fomenta a autonomia e o desprendimento, tornando assim o processo de aprendizagem uma construção compartilhada com variados focos de emissão, transgredindo o formato convencional do professor-emissor e do estudante-receptor dos conteúdos. Nesse sentido, a proposta foca em processos de produção de saber corporificados: sabemos com um corpo que participa ativamente das dinâmicas da vida. 28


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|autoconstrução como autopoiese| “Se você não tem um lugar para chamar de seu você não sabe onde está. Não pode haver aventura sem uma base para retornar: todo mundo precisa de alguma espécie de ninho para pousar”. (HERTZBERGER, 1996) Sempre que necessário, técnicas e procedimentos (rudimentares ou sofisticados) são ativados na garantia de um lugar para si e a arquitetura, portanto é parte constitutiva da história social do homem. Uma obviedade não fosse outra perspectiva que tende locar a arquitetura num paralelismo com a condição humana na qual as duas estâncias caminham como fluxos distintos, incongrutentes. “Não é sem razão que nos lamentamos sobre a frieza de nossos espaços, sua desumanidade” (FERRO, 2002, p.146). Mas por que chegamos a esse ponto? A pressão por produtividade intrínseca a lógica de produção capitalista distancia socialmente o trabalho do trabalhador e isso ofusca as nuances de pertencimento ao artefato produzido (seja ele uma vestimenta, “[...] os detalhes do trabalho cotidiano são signifi- uma casa, uma cidade), o que significa dizer, que alguém que não sabe o que faz, não está no domínio de si cativos para o trabalhador porque, em seu espíri- mesma: algo essencialmente desejável a um padrão societário manipulador e competitivo. to, não estão separados do produto do trabalho” Fruto desse modo de funcionar, “em qualquer organização, os indivíduos ou equipes que entram em com(MILLS, 1976, p.238). petição e são recompensados por se sair melhor que os outros haverão sempre de entesourar informações” (Sennett 2009, p.44). Sobre esse entesouramento de informações e práticas se erigiu toda a ideia legalista responsável pela divisão social do trabalho e trama burocrática. E sob a mesma ótica, se articula a tríade saber-poder-discurso que se sustenta no deslocamento do saber do corpo social para o técnico. Atuar na restituição desse saber ao corpo social talvez seja o esforço e colaboração desse projeto Com as políticas neoliberais, reforçando ainda mais a definição de cada indivíduo dentro do processo de distribuição do trabalho, tornou-se ainda mais privatizado o acesso a determinados bens como saúde, educade arquitetura nas escolas. ção e moradia. O que antes era minimante conferido por uma versão suave do Estado de bem-estar social, agora passa a estar subordinado a um assistencialismo a serviço da manutenção de setores em “atraso”, taxas desejáveis de desemprego e pobreza como alicerces de um capitalismo ainda mais voraz.

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No recorte específico do contexto brasileiro, marcado por forte abismo social, o déficit habitacional apontado como mazela a ser sanada deflagra a disparidade entre o acesso ao auxílio técnico e a iniciativa pessoal


de se construir. O arquiteto não é sequer cogitado para tal tarefa tanto pelo alto custo do projeto quanto por uma formação acadêmica ainda incongruente com as demandas específicas da habitação em favelas ou assentamentos precários. A lei de assistência técnica (LEI Nº 11.888, de 24 de dezembro de 2008) apresenta como discurso a garantia do direito das famílias de baixa renda à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e construção de habitação de interesse social. O programa Minha Casa, Minha Vida, aponta como igual meta a redução do déficit habitacional brasileiro por meio da construção de 2 milhões de unidades habitacionais na segunda fase em que se encontra (2011-2014). Como parte integrante do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2, 2011) do Governo Federal, o Minha Casa, Minha Vida define quatro faixas de renda familiar para as quais se direcionam os subsídios para a aquisição da casa própria. “A primeira faixa de renda do programa Minha Casa Minha Vida corresponde às famílias participantes cuja renda familiar varia até R$ 1.600,00 reais. É nessa parte da população nacional que o programa do governo se concentra, uma vez que corresponde a quase 90% do déficit habitacional do país.” Simulador Caixa – Financiamento CAIXA Habitação Essa suposta política de assistência social, declaradamente ou não, confere forte prioridade ao incentivo da construção civil brasileira e o favorecimento de grandes empreiteiras na tentativa de combater a crise econômica: os lucros de particulares são enormes na medida em que se definem parâmetros de projeto arquitetônico e urbanístico redutores da qualidade de vida dos que optam pelo financiamento. Adotam tipologias construtivas uniformes e rígidas; espaços mínimos e compartimentados de forma pouco flexível as dinâmicas familiares variáveis; visam obsessivamente a redução dos gastos com materiais, negligenciando os inconvenientes da manutenção a longo prazo; alguns itens básicos de saneamento e iluminação pública são ignorados ou implementados muito depois da ocupação das casas. Contraditoriamente ao preconizado pelo programa, as famílias com renda mensal de até 3 (três) salários mínimos são as que menos acessam os subsídios e correspondem a uma parcela considerável da mãode-obra empregada na linha de produção de novos itens da construção civil ou como trabalho braçal nos canteiros das empreiteiras de conjuntos residenciais (dos populares aos de luxo) . São também aqueles, que no tempo que lhes sobra, organizam entre familiares e vizinhos mutirões para construção em etapas de suas próprias moradias. Esses motivos revelam, em certa medida, porque no contexto da autoconstrução também recai a reprodução de padrões construtivos homogêneos. Revela também o anseio pelo consumo de itens de padrões da dita classe média mesmo que equivalentes mais acessíveis. QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

Essas reflexões são pessoais e possuem referências nas vivências de campo que pude realizar em disciplinas de projeto de moradia em assentamentos precários em Belo Horizonte, MG (2010), estágio em sistemas de créditos habitacionais em São Benedito, Vitória, ES (2011) e pelo envolvimento e disciplinas cursadas na graduação do curso noturno de Arquitetura e Urbanismo da UFMG no período de minha mobilidade acadêmica. Esse curso possui ênfase em urbanismo principalmente no que diz respeito à práxis e seus professores desenvolvem estudos e projetos diretamente ligados às leis governamentais de assistência técnica e ao programa minha “Casa Minha Vida”.

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Pode parecer simplório apontar a cooperação – como no exemplo dos mutirões citados acima – como uma forma mais dinâmica e eficaz de realização do trabalho e nesse aspecto tê-la como princípio norteador dentro da prática arquitetônica e educacional. Sem ser evidentemente suficiente e fácil, é necessário e exequível se pensar nesses termos, pois se refere a um modo de operar dentro do hiato entre o discurso especialista dominante e o saber do corpo a corpo. Para Sennett, mesmo que romantizada e articulada a muitas contradições existentes à época em termos de hierarquia social, desigualdades econômicas e coerção, as formas históricas do trabalho artesanal desenvolvido nas guildas talvez possam apresentar referências para se pensar as relações de poder: questões como O retorno romântico quase sempre ocorreu para autonomia, autoridade, alteridade, conservação e reprodução do saber. Muito porque a ruptura com essas uma estação idealizada que silencia Marx na me- formas de transmissão do saber trouxeram graves consequências para o campo da arquitetura: dida em que segundo ele, nenhuma unidade de validade universal entre vida e trabalho pode ser O domínio sobre as técnicas de desenho e representação, convenções e simbologias próprias do saber doinstituída sem a dissolução da ética que redimen- minante passaram a reforçar a diferença de valor entre o conceber e o construir. sionou todo o trabalho humano e subordinou-o “o fato de o arquiteto ser o suporte de um trabalho intelectual dividido do trabalho maao lucro e à acumulação. nual faz da sua existência algo de profundamente social e inevitavelmente comprometido com as contradições daí resultantes.” (BICCA, 1984, p. 67) Nas organizações sociais onde se atingiu um alto grau de formação intelectual e especialização, o trabalho manual é rejeitado de forma natural e assumido principalmente, pelas classes minoritárias. Reconhecendo essas contradições e na obrigação ética de rever as certezas enfumadas da profissão, recorri a Sérgio Ferro, que em seu livro “O canteiro e o desenho” demonstra o contraste absurdo entre o discurso profissional dominante, em geral aparentemente generoso e a realidade assustadora dos canteiros de obra. E por esse contraste ser análogo ao modelo educacional brasileiro, entrar com a arquitetura nas escolas foi um recurso para tatear tais contradições num esforço de se fazer experiência mesmo que inicialmente tivesse partido com a intenção de se colocar na mediação entre teoria e prática. Ao indagar a dimensão genial e mítica da arquitetura, que se torna um reduto de acesso restrito, a experiência do projeto (guiada por doses de intuição e insights) procurou aguçar o potencial criativo das crianças no âmbito do enrijecimento imposto pelo sistema educacional que ao invés ampliar a oferta de ferramentas para expressão e criação de si mesmo, dociliza a intensidade daqueles corpos na tentativa de contornar a ameaça de perturbação ao conformismo que tamanha espontaneidade poderia gerar. 32


A mitificação da arquitetura, tantas vezes citada ao longo do trabalho refere-se a tríade saber-poder-discurso que introduziu a reflexão como forma de demonstrar o acesso cada vez mais indireto a um bem produzido pela arquitetura: a moradia – entendida como qualquer que seja o refúgio criado pelo homem para abrigá-lo. E nesse sentido, abarca o que lhe veste, a marquise da rua, a caixa de papelão, o barraco de zinco, madeira, tijolo, barro, o palacete, a própria cidade e os modos de nela ancorar. O desenho aparece então como um regulador interno do processo de produção do artefato arquitetônico já que a especificidade mesma da arquitetura, situada entre abstração e forma, oferece a possibilidade de entrada desse recurso. O salto do discursivo dos programas arquitetônicos à plasticidade dos espaços é preenchido pelo desenho cuja primeira missão sob o capital é separar a mão do seu objetivo próprio, o fazer do feito. Mas é importante ressaltar: o desenho de arquitetura não é o único possível! “Na arquitetura, entre o gesto e o propósito entra a vontade de um outro. Entre a mão que faz e seu objetivo se insere o desenho do projetista.(...) Arquitetura é mercadoria que serve ao capital e, portanto procura, sobretudo, a mais-valia que alimenta o lucro. Para tanto, há forçosamente exploração do trabalho, sua mutilação e submissão às autoridades representantes do capital (e em grande parte dos casos a Arquitetura faz parte desses representantes). Segue uma série de consequências: irracionalidade do projeto (a simplicidade da construção exige injeções de boas doses de mistificação para justificar a ‘necessidade’ da dominação); desaparecimento de qualquer vestígio de arte (fruto exclusivo de trabalho livre) – e, no pólo operário, miséria, salários baixíssimos, doenças, acidentes, desqualificação, etc”. (FERRO, 2002, p.145) Pensado dessa forma, a plasticidade dos espaços refere-se a uma obra concreta, que como produto conta a sua produção. Do afastamento da força de trabalho do produto do seu trabalho decorre a atração pelo liso, pelo recoberto: eles apagam o desacordo. A ideia do mito é retomada aqui. Ferro sempre insiste na simplicidade da construção habitual: “Para que a exploração se instale sem excesso de coerção cotidiana, é preciso por cunhas, rachaduras – complicar, sombrear a simplicidade. Desde o comecinho, da penetração do capital no canteiro, lá pelo século XII as ordens do arquiteto afastam a normalidade do construir da construção dominante.” (FERRO, 2002, p.146) QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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O resultado é que os vestígios do sujeito (seu único representante, sua única forma de aparição) passam a ser não pertinentes. Esse vestígio é “marca de um contato afetivo, físico, um fóssil de uma ação sobre um material” (FERRO, 2002, p.145). Ferro chama ‘trace’ o índice deixado pela mão livre com intenção e propósito, o testemunho do fazer autônomo: “Na obra, portanto, os que deixam os índices, os que fazem devem ausentar-se, apagar ou desviar suas marcas. Os que impõem o traçado dominante deixam sem dúvida sua marca, mas que é marca da marca, simulacro. (...) O verdadeiro sujeito sai de cena - entra um ator que mima o personagem ausente”. (FERRO, 2002, p.146) Os materiais de revestimentos pré-fabricados assumem essa tarefa embora sejam em sua maioria dispensáveis. Seu papel fundamental é esse: eliminar a presença da gestualidade da mão na obra que ela própria constrói. “O revestimento, do lado de outras muletas, serve à fetichização da mercadoria, faz o construído parecer não-construído, o valor ser atributo da coisa. A hemorragia de revestimentos, desmaterialização e efeitos de circo encobre o desprezo pelo fazer” (FERRO, 2002, p.148). O ponto de convergência que se estabelece entre as discussões e experiências de Ferro e as atividades com as crianças é o incômodo com a distância existente entre o pensar e o fazer e as inúmeras amputações das liberdades decorrentes dessa separação, forjadas propositalmente pelas instituições dominantes. E em contraponto a isto, tanto nas oficinas de arquitetura nas escolas como nos canteiros livres “a discussão é permanente - e, como então toda posição autoritária é abolida, a necessidade de explicação, de argumentação lógica empurra a autoconsciência para frente. Ao mesmo tempo, e ainda através da discussão e da demonstração, todos aprendem com todos” (FERRO, 2002, p.149). “Em condições de liberdade e de respeito de todos por todos, usando somente a força da racionalidade construtiva para o bem comum, afastando toda sobra de autoridade e de argumentação estética (ultimo reduto de autoridade), outras relações de produção nascem.” (FERRO, 2002, p.150) Contrariando então raciocínios que separam as atividades manuais das intelectuais, as propostas desenvolvidas junto às crianças procurou sempre conferir ao trabalho corporal uma centralidade necessária e capaz à constituição de um sentido para a experiência do fazer. E dentro dessa perspectiva , recorrendo a Sennett,


fui também confirmando a ideia de que aquilo que somos deriva diretamente do que nossos corpos são capazes de fazer. Em seu livro ele também sustenta que as “capacidades do nosso corpo em moldar coisas materiais são as mesmas as que recorremos nas relações sociais” SENNETT (2009, p.323). “O ofício de produzir coisas materiais permite perceber melhor as técnicas de experiência que podem influenciar no trato com os outros (‘habilidades de antecipação e revisão que a rotina e prática desempenham no processo de produção’). Tanto as dificuldades quanto as possibilidades de fazer bem as coisas se aplicam à gestão das relações humanas, contribuem para o entendimento das resistências que as pessoas enfrentam na relação com os outros ou dos limites incertos entre as pessoas. “ (SENNETT 2009, p.322) Faz-se necessário abordar a arquitetura e a arte de uma forma em que a dimensão heroica e supra-humana fosse substituída por uma dimensão palpável e cotidiana, demonstrada na sua potência em revelar o humano. “A criatividade traz um excesso de bagagem romântica - o mistério da inspiração, os rasgos do gênio (...)” (SENNETT 2009, p.322). É preciso desconfiar do pressuposto de que os talentos são inatos (alicerce da mitificação) e que, portanto, dispensam apoio, métodos e técnicas para se desenvolver. Ao eliminar parte do mistério mostrando como acontecem os saltos intuitivos, nas reflexões que as pessoas fazem sobre os gestos de suas próprias mãos ou no uso de ferramentas, que por sua vez, qualquer que seja sua forma e densidade tecnológica, podem e devem ser tomadas como um estímulo. Todas as técnicas contêm implicações expressivas (a ‘trace’ que Ferro aponta). O manuseio ativo das tecnologias e ferramentas - “a mão livre que produz, embalada pelo canto de sua lógica eficaz, sublinha o que fez, acentua sua ‘trace’. (...) é o elogio do próprio saber” (FERRO, 2002, p.148)– seria uma forma prodigiosa de exercitar a gestualidade, possibilitar a autocrítica e autorrealização. “(...) temeroso de entediar as crianças, ávido por apresentar estímulos sempre diferentes, o professor pode evitar a rotina, mas desse modo impede que as crianças tenham a experiência de estudar a própria prática e modulá-la de dentro para fora” (SENNETT, 2009, p.49). Por fim, sendo a semente da arquitetura a ética – que a palavra estética inclui e esconde, e que, portanto deve assumir sua mediação na obtenção do abrigo – o segundo e indispensável corpo do homem, acredito que a iniciativa de despertá-la desde a infância - como instrumento de autonomia e questionamento das práticas homogeneizadoras, como abertura a criação e como potencializadora na revisão das dinâmicas e QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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relações sociais - incita um ganho tanto para a educação como para a arquitetura por se verem deslocadas de suas esferas habituais de ação e acomodamento. Dentro das interferências de uma sobre os limites da outra, podem abalar as delícias do conformismo.

“(...) a construção corriqueira é coisa simples. Complicada é a técnica de dominação.” (FERRO, 2002, p.149) Essa simplicidade dá à construção, a arquitetura e a educação grande responsabilidade ética de atuação conjunta na perspectiva de uma vida integral.

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propostas de atividades

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Um plano de oficinas semanais a ser desenvolvido junto as crianças foi apresentado à escola e segue um esquema de atividades que se articulam em torno de quatro eixos: 1_Percepção espacial 2_Aspectos naturais 3_Construção e materiais 4_Nossa bairro e nossa cidade Esses quatro eixos temáticos abrangem atividades conceituais e práticas e percorrem assuntos relacionados à edificação, ao abrigo e ao ambiente em que as crianças estão inseridas, seus aspectos naturais e as relações com os contextos sociais atuais e passados. As atividades propostas serão compostas de rodas de conversas, reflexões coletivas e individuais e tarefas práticas de mesmo caráter, podendo ser realizadas em diversos lugares como escola, casa, pátio da faculdade de arquitetura da Universidade Federal do Espírito Santo e espaços públicos. Segue um breve resumo do que se propõe cada eixo temático e possíveis atividades abarcadas por eles: 1_ Percepção espacial Esse eixo temático agrupa atividades que pretendem aguçar a percepção em relação ao espaço e, para tanto, se utiliza de recursos mais lúdicos para despertar o corpo da criança e suas sensações no confronto consigo, com o outro e com os lugares que a rodeiam. Algumas propostas: _Desenho livre dos espaços cotidianos vivenciados pelas crianças (casa, escola, bairro...) a partir de lembranças e sensações; _brincadeiras de percepção corporal derivadas de conceitos da dança; _teatro de sombras; _construção de desenhos com carimbos; _cinema dentro de um inflável construído com plástico e estruturado pela corrente de ar de um ventilador; 38


_caça ao tesouro, recriando uma lógica labiríntica, com mapas e charadas a serem decifradas e que instiguem alguns conhecimentos de arquitetura e cidade; _rodas de contação de histórias que envolvam a descrição de cidades ou de aspectos ligados ao espaço construído e a sua recriação através de maquetes físicas ou virtuais, desenhos e até mesmo encenação, sendo de livre escolha o modo de manifestação; _construção de cidades imaginárias e criação de vídeos com os elementos da narrativa (enredo, persona gens, locação, etc...) a exemplo do Projeto Morrinho; _oficina de Pin Hole e câmara escura (cinema na caixa), procurando despertar o olhar sobre o recorte foto gráfico. Possibilidade de revelação no laboratório de fotografia analógica da Ufes; _proposição de melhorias dos espaços com pequenas modificações: rearranjo de móveis, utilização de cores; _piquenique para incentivar a apropriação de espaços inesperados; _criação de uma escola ambulante.

imagem 09 montagem de um inflável na Semana de Arquitetura da EA-UFMG. fonte: Pedro Parrela. 2011

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2_Aspectos naturais Aqui serão abordados temas relacionados aos aspectos naturais que influenciam diretamente a qualidade do ambiente em que vivemos como sol, vento, água, relevo e solo. _Oficina de aviãozinho e pipas pra a sensibilização em relação ao vento; _ elaboração de maquetes para a observação da movimentação das massas de ar quente e frio; _ oficina de localização geográfica, utilizando uma técnica indígena simples de identificação do norte através da observação do sol e utilização de algumas varetas; _passeio virtual com a utilização do Google Maps e desenvolvimento de trabalhos a partir dos recursos disponíveis e questões levantadas; _construção de relógio solar; _construção de filtros de água; _ elaboração de maquete do relevo em que a escola ou casa se inserem e observação de como a água se comporta nessa morfologia; _construção de um mapa por memória que ilustre os ciclos da água de maneira completa associada à realidade das crianças.


3_Construção e materiais Nessa etapa, as atividades têm por principal objetivo incentivar a prática, a gestualidade, o improviso e a experimentação a partir dos recursos disponibilizados. Serão demonstrados materiais, maneiras de se construir e noções de como as estruturas ficam de pé. _Oficina de confecção de tijolos de adobe (técnica milenar de construção que utiliza a terra como matéria-prima); _oficina de montagem de estruturas com materiais descartados como garrafa pet, caixote de feira, caixa de leite, palitos de picolé, jornal, dentre outros; _teste de situações de equilíbrio a partir de arranjos dos corpos das crianças. Esse trabalho se inspira em uma maneira lúdica de ensinar sistema estrutural desenvolvida pelo engenheiro Yopanan Rabello que, através de analogias com sistemas da natureza, facilita a apreensão das noções de equilíbrio isostático; _ oficina de origami e formas geométricas; _proposição de melhorias para os locais vivenciados (casa, escola), identificando potencialidades e patologias e buscando meios de concretizar construtivamente as intervenções, seja de maneira real, seja por meio da construção de protótipos. Serão apresentadas formas de identificar os “defeitos da construção”, como mofo, infiltração, má iluminação e ventilação, espaços ociosos ou de dimensões inapropriadas, arranjo de mobiliário inadequado para o fluxo e etc...

imagem 10 estruturas feitas com palitos de picolé imagem 11 atividades com desenhos de ambientes montados no chão da sala de aula imagem 12 estrutura geodésica montada com jornal

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4_Nossa bairro e nossa cidade Nesse eixo serão discutidas formas de melhorar a vida no bairro e consequentemente na cidade procurando despertar um senso de apropriação e engajamento em pequenas ações que conduzam ao bem estar individual e coletivo. _Apropriação de espaços ociosos ou aquém de suas potencialidades, revertendo esse quadro com a construção de hortas, criação de locais de descanso, conversa e brincadeiras, pintura de muros, jardins, etc; _pensar maneiras de como mobilizar a vizinhança e propor melhorias de baixo custo; _discussão sobre o entorno da escola e possíveis propostas; _construção de protótipos de soluções para a mobilidade urbana em Vitória. Levantar questões referentes ao trânsito, as variadas formas de deslocamento possíveis, condições naturais e históricas da cidade a exemplo dos aquaviários e catraias que por décadas fizeram o transporte marítimo na baía de Vitória; _pesquisa e reprodução esquemática de cidades pelo mundo: quais semelhanças e diferenças possuem entre si; de que alternativas urbanas fazem uso para uma boa qualidade de vida de seus habitantes.

imagem 13 alternativas de lazer e transporte na agua


imagem 15 narrativa de cidades recriadas a partir do recurso de dobradura em livro

imagem 14 apropriação do espaço público na rua Sapucai, Santa Tereza, BH. 2012

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diรกrio de bordo


[canteiro de obras] Relato oficina #01 [15 de maio de 2013] Em nosso primeiro encontro, a coordenação da escola apresentou-me a turma como sendo a “professora de arquitetura”. De maneira geral, a ideia foi bem recebida. Alguns se referiam ao termo “arquitetura” com muita propriedade, não perguntavam o que viria ser essa nova “matéria”. Por outro lado, dentre as inúmeras disciplinas que eles carregam na grade curricular, “arquitetura” poderia também vir a ser mais um fardo. O entusiasmo pela novidade era margeado também por certo cansaço de “mais uma coisa fazer”. Para iniciar uma conversa desprendida do formato professor-aluno, fomos para o pátio e sentamos em roda com um grande papel kraft no centro. Começamos a conversa e registro conjunto nesse mural que revelaria algumas percepções sobre: _ o que acham do bairro onde moram, quais pontos agradam e quais desagradam; _o que fariam para melhorar o que desagrada na escola e no bairro; _o que costumam fazer nas horas livres, quais seus hábitos, suas brincadeiras; _ o que acham dos conteúdos dados na escola; _quais coisas mais gostam de fazer. Para a primeira questão, foram quase unanimes em dizer que o bairro onde moravam era entediante, sem opções de lazer, muito vazio, muito violento e passavam a maior parte do tempo livre em casa e na internet. Como percebi que algumas falas eram muito pouco reflexivas e reproduções de alguns discursos prontos (como a violência nas ruas), insisti perguntando o que havia de bom, quais locais eram mais frequentados e por quais motivos. E a partir das respostas, naturalmente iam apontando também as melhorias que poderiam ser feitas. E assim, de maneira descontínua, as questões eram registradas, cada um procurando reservar e nominar um espaço no papel para si; alguns assuntos eram expostos em grupo, outros registrados de forma mais individual e silenciosa. Em seguida, como um modo de consultá-los sobre suas predileções e formas de expressão com as quais se identificam mais, listamos alguns tipos de atividades e fizemos uma votação, colocando de zero a cinco tracinhos na frente de cada uma. Foram as seguintes:

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Ler Contar histórias Desenhar Montar coisas grandes Fazer maquete Mexer no computador Ver filmes Conversar

26 pontos 28 pontos 34 pontos 34 pontos 39 pontos 44 pontos 45 pontos 49 pontos

[montagem_01_o que acham do seu bairro e da sua escola?]

E para finalizar, fizemos uma lista de materiais que precisaríamos para as oficinas de arquitetura e combinamos que traríamos pouco a pouco materiais recicláveis para compor um estoque em nosso canteiro, já que mais pra frente construiríamos em uma escala maior.


[montagem_02_o que acham do seu bairro e da sua escola?] QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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Relato oficina #02 [28 de maio de 2013] Fizemos uma roda e retomei a ideia do ateliê e canteiro de obras. Providenciei uma caixa para depósito dos materiais trazidos de casa. Mostrei o que levei e como fiz para juntar isso em minha casa. Disse que deixei um saco ao lado da coleta seletiva que já costumo fazer, com um aviso de que ali fosse depositado caixa de leite, garrafa pet, potinho de yogurt, etc...Disse que a caixa de leite serviria de tijolo para quando construíssemos em escala maior. Alguns também levaram materiais e deixaram na caixa grande. “projeto é o modo através do qual intentamos transformar em ato a satisfação de um desejo nosso (...). Existe, porém, implícito na palavra projeto um sentido de distância entre desejo e a sua satisfação, o sentido de um tempo preenchido pelo esforço em organizar uma série de fenômenos voltados para uma finalidade, num momento determinado do processo histórico. Tal objetivo deve realizar-se como ponto concreto que vem a ser presença e significado, para passar logo a ser matéria a re-significar e satisfazer um desejo ulterior”.

Expliquei que começaríamos naquele dia o projeto de uma casa e que o colega do nosso lado direto seria nosso “cliente” e o da “esquerda” seria o nosso “arquiteto”. E para pensar um projeto para o outro precisaríamos consultá-lo, perguntando seus gostos, hábitos, preferências quanto a materiais, espaços, formas, cores, quais locais da casa gostavam mais de permanecer, se preferiam reunir amigos ou estar mais só. Tentei que o jogo de perguntas e respostas fosse feito coletivamente para que as perguntas de um dessem margem para criarem outras formas de consultar o colega e que as respostas também tivessem validade para todo o grupo. Percebi a impaciência nessa escuta e que preferiam fazer a “entrevista” de maneira mais reservada, anotando as respostas e logo em seguida desenhando. Curiosamente, todos desenham em planta-baixa. Alguns com régua, outros não.

Expliquei o uso da trena e do escalímetro. Alguns se interessaram bastante pelo fato deste ser um instrumento que permitiria converter o tamanho das coisas a sua escolha. Perceberam que poderiam manipular Vitório Gregotti a escala real dos objetos para tê-los mais acessíveis as mãos. Medimos a sala com a trena e definimos que o tamanho da casa seria do tamanho da sala. Senti que isso poderia ser bom para que eles tivessem um parâmetro, uma referência de dimensão de espaço. Quando começaram a fazer a maquete na escala 1:20, recorriam a mim para perguntar a medida das coisas, como a altura da porta, da parede, da janela, etc... Para uma delas respondi: quantas Milenas cabem nessa parede? (e apoiei meu corpo na parede como que para servir de régua). Ela olhou a parede e disse: duas e meia. E perguntei: e qual é a sua altura? E respondendo, disse: 1,40m... então, a parede tem 3,50m!!! Conferimos com a trena e vimos que era muito próximo disso. Ela arregalou ou olhos e abriu a boca como que tivesse descoberto o truque de uma mágica!

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[montagem_03_a medida das coisas vem do tamanho da gente] Relato oficina #03 [29 de maio de 2013]

[montagem_04_como fazer caber?]

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Relato oficina #04 [05 de junho de 2013] Já havíamos ampliado as opções de materiais e ferramentas utilizados para maquetaria. Da folha oficio e da caixa de sapato, surgiram palitos de picolé, isopor e estilete. Como nesse dia muitos não estavam presentes e as duplas ficaram desfalcadas, achei mais interessante uma conversa na qual poderiam ser colocadas as dificuldades e questionamentos. Poderia ser também um momento para partilhar alguns conhecimentos que já levamos conosco acerca da construção. Elencamos numa folha de papel Kraft colocada no centro, os principais itens a serem levados em conta quando pensamos na construção de uma casa: o que uma casa precisa para garantir o seu conforto térmico, quais materiais são utilizados, quais os principais cômodos existentes. Energia e ventilação foram instantaneamente levantados e a partir desses, fomos lembrando dos subitens que os compõe. Dentro de materiais, foi muito rica a variedade de itens. Enquanto todos davam sequencia a uma relação de materiais de construção, uma menina disse prateleira e foi recriminada por esse não fazer parte do universo antes rasamente estabelecido (tanto que na escrita registramos materiais e não materiais de construção). Isso revela como a funcionalidade dos objetos e palavras que os (re)apresentam não são determinantes nem dados a priori no universo infantil. Prateleira pode sim ser um material de construção ou um material de arte, uma bricolagem. Ou mesmo um material para uma brincadeira infantil, como a montagem de cabaninha, casinha, ou ainda um item na construção do quarto. Por fim, quando o assunto foi encanamento, umas das crianças desenhou no quadro um esquema de uma casa vista em corte e sua rede hidráulica. Ele o fez de forma incrivelmente espontânea para explicar aos colegas como funcionava o abastecimento de água e a eliminação de esgoto. Narrava o trajeto dos fluidos com a propriedade de um bom conhecedor do assunto e para se fazer ainda mais claro, se aproveitou de um esquema em resina do aparelho urinário que existia na sala e traçamos juntos analogias entre os órgãos, artérias e veias do corpo humano e a caixa d’água, canos, vaso sanitário, pia, chuveiro e caixa de esgoto da casa.


[montagem_05_ a casa é tipo a gente só que maior]

Relato oficina #05 [12 de junho de 2013] Iniciamos o encontro com a turma muito desfalcada em relação à formação original. Das onze crianças presentes desde a primeira oficina, percebi uma aleatoriedade na presença, mas ao mesmo tempo, a constância de cinco deles (Kayla, Duda, Jordana, Ana Alice, Mylena, Raphael e Victor). Fechamos então o nosso grupo com aqueles que estavam presentes, esses mais familiarizados com a proposta por acompanharem desde o inicio. E recebemos novos integrantes: três crianças, de 7, 8 e 9 anos (Pedro, Caio e Lucas) que chegaram muito entusiasmados e dispostos a por a mão na massa, pois segundo eles, já fazem isso em casa e adoram construir. Com os maiores, vi que as maquetes físicas já estavam em andamento, os desenhos elaborados anteriormente a partir das entrevistas eram consultados, modificados e alguns novos recursos entravam cena, como papel vegetal, papel colorido e Sketch Up (software de modelagem 3d, com ferramentas simples e ícones autoexplicativos). Percebi que eles começaram a se apropriar da sala de aula de uma nova maneira: antes se concentravam em torno da mesa principal e algumas vezes se percebiam criando a casa a partir dos seus desejos e não do colega que seria o seu cliente. Não convêm julgamentos, pois afinal, todo trabalho de criação deixa os rastros daquele que concebe, mas achei interessante enfatizar que eles precisavam conversar entre si, recorrer ao amigo sempre que necessário, pois quem moraria naquela casa seria o colega. Pensei então que esse é um exercício bonito do eu para o outro, mas que também reelabora o eu, a partir do outro. Ao ampliarem a apropriação da sala, juntavam-se por afinidade em “estações de trabalho” e começaram a se concentrar mais no que estavam fazendo, sentindo-se um pouco mais parte daquilo. QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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E essa nova conformação me ajudou a perceber como auxiliar cada estação da maneira que demandava, pois estavam em estágios de concepção diferentes. Uma amiga do curso de Arquitetura da Ufes (Laiz Leal) estava presente nesse dia e passou boa parte do tempo junto com o Raphael (14 anos) que já havia compreendido o uso do escalímetro, havia desenhado uma planta -baixa mais detalhada e começou a experimentar a volumetria através da modelagem digital. Sua grande angustia foi perceber que as proporções dos espaços desenhados bidimensionalmente não o satisfaziam quando vistos em volume, pois pareciam não caber na área sugerida para a casa. Alguns apresentavam resistência em ir do desenho para a maquete, argumentando que, além do desenho estar horrível, não sabiam como por paredes a cortar as aberturas para janelas e portas. Primeiramente, redesenhamos o que antes estava no papel para dentro da caixa de sapato, num esforço de perceber como manter as proporções dentro dessa nova escala. Sugeri que recortassem papeis coloridos no tamanho que julgassem adequado para cada ambiente da casa e que brincassem de mover esses módulos, pensando arranjos diferentes e quais relações entre espaços desejariam criar: áreas mais íntimas e áreas sociais da casa, áreas de circulação, relação de proximidade entre os cômodos, etc... Alguns pensaram em casas onde morariam sozinhos, outros já incluíram algum modelo familiar. Não ficou estabelecido um jeito de morar que induzisse ao individual ou ao coletivo. Isso foi se mostrando dentro da perspectiva de cada um, mas acreditei ser interessante reforçar a importância deles se perceberem dentro de um espaço onde habitariam. Os novos integrantes do grupo (os mais novinhos) estavam cheios de fôlego, recortando a caixa de sapato, fazendo escadas, duplex, janelas e portas, mobiliário de papel, mas fui surpreendida por um deles chorando silenciosamente. Conversamos um pouco, ele me deu a mãozinha, chorava um choro lento dizendo que nada do que havia feito tinha ficado bom, que ele não sabia fazer as coisas direito. Alguns colegas se aproximaram e ofereceram um consolo, uma “palavra amiga” e ele se reanimou. Minha satisfação foi perceber o quão refletido naquele fazer ele se sentia. Muitas instituições escolares condicionam a crianças a agir de maneira passiva, cumprindo tarefas que serão avaliadas como certas ou erradas sob a perspectiva de um adulto, mas muito pouco a partir deles. Ser ativo no processo de aprendizagem implica uma expansão para dentro e nesse processo, as crises de criatividade, autocensura, limites desafiados, potências descobertas e amplificadas, satisfações e frustrações são vivenciados dentro da ex-


periência subjetiva de cada um e para escola não é apenas um questão de responsabilidade acolher essa dinâmica, mas muito mais do que isso, se constituir a partir dela.

[montagem_06_expansão para dentro]

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Relato oficina #06 [19 de junho de 2013] Esse dia foi uma continuidade bem fluida da oficina anterior. Sem demora, cada um procurou encontrar sua maquete e dar continuidade a ela de maneira mais reservada mantendo aquela configuração gerada na semana anterior (estações de trabalho por afinidade). Em alguns percebi certo esgotamento em relação à maquete física. Já havia pensado em apresentar a modelagem digital (com o programa SketchUp) e isso foi possível com a companhia da Carol Vallandro (amiga da arquitetura), que ofereceu um suporte no uso das ferramentas principais enquanto eu visitava cada estação a medida que as crianças solicitavam alguma ajuda. Com a câmera de vídeo (já naturalizada), alguns narraram o funcionamento da casa, seus fluxos, cômodos, funções, materiais, cores. Quando um estava contanto suas ideias, era comum que outros se aproximassem para ouvir, e normalmente faziam algum comentário, sugestão, crítica. Começaram também a perceber que seria importante avançar na maquete física para depois irem para a digital e que o computador não fazia milagres, como era possível perceber nos colegas que já estavam explorando as primeiras ferramentas e sentindo as primeiras dificuldades. Dificuldades essas que passavam pela percepção de que os espaços antes pensados no papel não cabiam quando os parâmetros numéricos entraram em questão. Mostrei algumas maquetes físicas processuais (par enfatizar que processo é continuidade, não é algo acabado, não precisa ser lindo, perfeito) e alguns projetos mais fantasiosos de casas (como a casa bola, em São Paulo) para que eles experimentassem sem medo e para que pudessem pensar em outras formas de habitar para além da reprodução de suas próprias casas. Ao introduzir a caixa de sapato para instigar um primeiro contato com a tridimensionalidade em escala senti que isso também poderia ser limitador ao definir um espaço entre quatro planos (a folha ofício A4 já poderia ter representado um limite de ação). A relação sensível com um objeto quadrangular possivelmente conduziria a uma criação condicionada a essa forma. E isso pareceu ocorrer. No entanto, já nas primeiras plantas-baixas elaboradas por eles, percebi que era unanime a compartimentação da casa em formas geométricas retificadas, algo que possivelmente revela a reprodução do padrão de habitação que eles vivenciam ou que veiculado pela publicidade. Os menores, muito mais desprendidos com a aparência e representação lógica dos espaços, pintaram com tinta as paredes, criaram escadas, terraços, entrada exclusiva do cachorro, jardineiras, mezaninos, mobiliário interno.....


Percebi que para os próximos dias, poderíamos deixar as maquetes um pouco de lado para explorar dinâmicas que aguçassem a percepção corporal nos espaços que os rodeiam e apresentar outros modos de existência humana em que a arquitetura intensifica nossas experiências com o espaço, induzindo encontros, materializando formas plásticas mais orgânicas e envolventes.

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Relato oficina #07 [26 de junho de 2013] A proposta para esse dia foi que andássemos pela escola de olhos vendados tendo um dos amigos como guia. Expliquei que essa brincadeira nos ajudaria a ampliar nossa percepção do espaço que era algo que já vínhamos fazendo com as maquetes. Pedi que ficassem atentos aos sons, cheiros, rugosidade das superfícies, calor e frio, luz e sombra, desconforto, insegurança, prazer, tensão e descontração e que em alguns momentos tentassem perceber em qual local da escola estavam. O resultado foi uma tarde prazerosa, na qual esquecemos o tempo estipulado para a oficina. Crianças de outras turmas e funcionários da escola interagiram com o grupo. As duplas não se restringiram a um recorte específico da escola. Todos procuraram passar pela maior variedade de cantinhos. O registro disso tudo por duas câmeras revelou situações muito interessantes. Voltando para a sala, a cada momento um assumia o pincel e desenhava no quadro o percurso que acreditou ter realizado, narrando algumas sensações, tropeços e quedas. Observando cada desenho, é muito interessante perceber a maneira como alguns espaços são representados. É muito recorrente representar a ‘coisa’ através da textura predominante, como por exemplo, a quadra sendo sinalizada pela malha quadrangular da grade que a cerca, ou um corredor que ganha peculiaridade ao ser lembrado pelos cobogós que o encerram e que provavelmente foram identificados por serem fonte de maior luminosidade e calor na medida em que eles (de olhos vendados) se aproximavam.

[montagem_09_cabra-cega]

Uma das crianças usou como principal código de representação as sensações proporcionadas pelos espaços, como a aspereza ou lisura das superfícies, os obstáculos e riscos que ofereciam (ele relacionou os espaços da escola com os locais de colisão e queda). É curioso perceber também trechos retilíneos e outros sinuosos que podem ou não corresponder a morfologia real dos espaços, mas provavelmente refletem a maneira como seus corpos foram induzidos na movimentação. LEMBRAR PARA A OFICINA #08 Indagar: O que a falta da visão gera na gente? O que percebemos com os outros sentidos e que normalmente não nos damos conta quando de olhos abertos? Mostrar para eles os desenhos que fizeram Qual a relação disso com arquitetura? Confrontar com uma planta baixa da escola? Levar fotos de maquetes processuais digitais, croquis de arquitetos, desenho no chão (na terra, no concreto com gesso)... 56


[montagem_10_uma escola, muitas escolas]

Exemplos de diferentes modos de habitar Manual do Arquiteto Descalço para consulta. (ILUMINAÇÃO, VENTILAÇÃO) – IDA AO CEMUNI? CHAMAR O PROFESSOR BARBOSA? Desenhar a casa com gesso no chão (na ausência de limites, redesenhar a ideia da casa, ver o que muda, quais novas espacialidades podem ser exploradas) Desenhos e artistas Outros modos de vida, indígenas (técnicas e formas de morar), iglus, cabanas.... Construção de inflável e filme! Posso usar um papel vegetal e uma caneta colorida para traçar como eles os percursos possíveis dentro da planta-baixa que eles estão fazendo. Fazer isso narrando os possíveis caminhos e encontros. Oferecer variados suportes para se construir um saber aberto – cada um parece possuir uma inclinação maior para certo mecanismo de apreensão e formulação de ideias e conhecimentos...

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Relato oficina #08 [03 de julho de 2013] Usamos a técnica de verificação do norte solar com a sombra de uma vareta para darmos inicio a um pensamento da casa em que a insolação passasse a ser determinante no posicionamento dos cômodos e aberturas. O dia nublado não permitiu que o experimento fosse efetivado: não chegamos a desenhar no chão a rosa dos ventos e não construímos um biruta para verificação da ventilação predominante. Isso ficará para o próximo dia em que fizer sol. Mesmo assim, segui com a proposta do dia que previa o desenho em giz da casa que eles já vinham criando em maquete só que agora no chão do pátio. A amplidão do pátio os libertou do limite do papel e da caixa de sapato e embora tenham seguido um pouco o que já vinham fazendo, criaram novas relações espaciais.

[montagem_11_novos suportes, novas espacialidades]

A principal delas foi se perceber a partir de dentro do desenho. Alguns fizeram desenhos pequenos e mantiveram o distanciamento. Outros os fizeram grandes (até mesmo em escala 1:1) e apreendiam a espacialidade por meio do seu próprio deslocamento no desenho. Isso ajudou a perceber as proporções entre as ambiências interna e ainda mais interessante, ajudou a perceber as relações com o desenho do vizinho. Ao chegarem de encontro com o desenho do colega, adaptavam seus limites em respeito à área do outro. Ou não... Os pequenos parecem pensar e registrar mais próximos da tridimensionalidade e o envolvimento com a produção passa por certa ausência de limites entre a imaginação e realidade concreta. Ao iniciarem a produção de uma realidade relativa a validam sem atribuir a ela função de simulacro, diferente dos mais velhos. Isso se torna evidente também pelo fato dos mais velhos ativarem mecanismos semelhantes (os desenhos se parecem mais uns com os outros, eles iniciam por comparação com o que o outro está fazendo) ao passo que entre as crianças menores existe uma maior versatilidade expressiva, marcada também por forte autenticidade.

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Relato oficina #09 [12 de julho de 2013] Esse foi o dia em que quiseram encenar uma peça que criaram na oficina de Cartografia Escola (desenvolvido por uma estudante de Geografia da Ufes). Eles tinham o roteiro da peça em mãos e enquanto um narrava os outros se apropriavam do espaço da sala num dinamismo impressionante, criando muitas cenas improvisadas a partir dos cantos e suportes que aquela sala oferecia. Até os mais tímidos tinham uma tarefa dentro do grupo, nem que fosse simular um cinegrafista ou entrevistador. Foi muito bonito de ver a alegria e liberdade deles. Depois disso fiquei até sem graça com o formalismo da proposta do canteiro, mas continuamos a maquete física e digital. No programa de modelagem 3d, senti a necessidade de criar um arquivo com elementos básicos para facilitar a interface com o programa e instigar maneiras menos convencionais de portas, janelas, paredes, etc...

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Relato oficina #10 [2 de agosto de 2013] Mostrei para eles o vídeo em stopmotion do dia em que fiz junto com uma amiga o relógio solar no próprio pátio da escola. Eles ficaram muito intrigados (tanto com a técnica de captação em frames, como com a possibilidade de saber o norte solar a partir da sobra de uma vareta sobre o chão). Mostrei para eles também as fotos que vínhamos fazendo ao longo do processo (em especial as maquetes e os desenhos a giz no chão). Percebi o encanto e entusiasmo da parte deles. Fizeram muitas perguntas quanto a questões geográficas, algumas até revelando o quão abstratos e nebulosos são esses conhecimentos transmitidos em sala de aula e pelos livros didáticos (essas as mediações mais instauradas na relação da criança com o conhecimento, infelizmente). E de repente, eles se deparavam com uma maneira ao alcance das mãos para saber onde é norte, sul, leste, oeste. E que isso diz muito a respeito de localização e posicionamento de uma casa de forma a obter melhor conforto térmico e iluminação. Começamos então a montar umas das casas com as caixas de leite que vínhamos juntando.

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Relato oficina # pausa 01_quem fazeu a agulha [de 21 a 28 de julho de 2013] diamantina |mg No período de 21 a 28 de julho de 2013 participei a convite da Ciça do 45° Festival de Inverno da UFMG, em Diamantina, Minas Gerais. O professor de arquitetura da UFMG, Adriano Mattos Corrêa compôs uma equipe-oficina que o ajudaria nas atividades do “Caminhão Itinerante”. A proposta se tratava de um caminhão-cenário que a cada dia era estacionado em um bairro de Diamantina. O caminhão era suporte para as diversas atrações do festival como noite de shows, peça de teatro, exibição de filmes. No seu entorno, durante o dia, aconteciam os “banquetes públicos”, uma comidaria coletiva preparada pela cozinheira Patrícia Britto, a cooperativa “Mulheres Reais” e um grupo de trabalho de estudantes do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFMG. Enquanto o palco era montado no caminhão e o banquete preparado, as pessoas dos bairros se aproximavam (adultos, jovens e crianças). O Boi da Manta, grupo popular de boi bumbá conduzia cortejos ao som de seus tambores atraindo mais gente. Nosso papel era reunir as crianças e envolvê-las nas atividades do caminhão ou propor maneiras de se apropriarem daquele espaço, o que gerou a oficina “A invenção da cidade pelas crianças”. Aqui vou descrever três atividades realizadas com as crianças durante o festival: a cabaninha indígena no Bairro da Palha, os abrigos do sol no Bairro Boa Vista e os turbantes e bordados no terreiro de Mãe Lia. No dia 22 de julho de 2013 o caminhão estacionou em uma praça no Bairro da Palha. Nesse dia a comidaria era em homenagem aos índios e durante a tarde seriam exibidos no caminhão e filmes de cineastas indígenas da tribo Guarani Kaiowá. Quando chegamos no bairro, já haviam algumas crianças no local, inicialmente fizemos algumas pipas. Em determinado momento, nos organizamos em roda e conversamos um pouco sobre os índios e seu costumes. Decidimos então construir ali na praça uma cabaninha parecida com as construções indígenas. O único material que tínhamos era uma grande sacola com flores de tecido e muitas fitas de cetim. Andamos pelo entorno da praça para recolher materiais. As crianças que já conheciam os locais, nos levaram para colher bambus em um quintal e pegar folhas de bananeira e urucum em outro. Utilizamos facas e tesouras emprestadas pelos vizinhos. Com os materiais à mão, as crianças começaram a tecer as folhas de bananeira com as fitas de cetim em um guarda corpo que havia na praça. Enquanto algumas montavam a cabaninha, outras produziam arcos e flechas com bambu e fita e se enfeitavam com urucum e folhas. No início da tarde o banquete estava pronto e todos comeram. Após a comida, as crianças foram brincar na cabaninha, que ao final do dia já havia sido destruída. No segundo dia, o caminhão se instalou no bairro Boa Vista. Era um dia muito quente e no local quase não tinha sombra. Era um descampado, uma pequena igreja no meio e um centro comunitário, onde se instalou a cozinha para o banquete do dia. O desafio com as crianças nesse dia foi criar abrigos do sol. A equipe do caminhão itinerante possuía algumas sombrinhas e redes, nós continuávamos com a nossa sacola de fitas de cetim. Com esses três materiais montamos um abrigo com sombra na porta da igreja. Em seguida, separamos as crianças em grupos e andamos pelo bairro à procura de novos materiais. Ganhamos lençóis usados das donas de casa, retalhos coloridos de uma costureira, caixas de papelão e caixotes de madeira em um supermercado e colhemos bambus nos quintais. Ao reunir os materiais nos empenhamos em duas tarefas: um grupo de crianças trabalhou comigo e com a Gabriela Starling. Confeccionamos lenços enfeitados para as Mulheres Reais com QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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os retalhos doados e flores de pano. Ciça e Pedro Parrela juntos com outras crianças construíram cabaninhas com bambu, retalhos de tecido e papelão. Estendemos os lençóis e amarramos nos postes para gerar mais sombra. Ao perceber que não havia lixeiras no local, espalhamos os caixotes de feira. O banquete ficou pronto, comemos e fomos descansar nos abrigos que havíamos construído. No terceiro dia, a equipe do caminhão se instalou em frente ao terreiro de candomblé de Mãe Lia. A organização do festival nos forneceu duas barracas de montagem instantânea. Por isso, apesar do calor, criar áreas de sombra já não era uma necessidade. Nesse dia confeccionamos com as crianças turbantes para os participantes do festival que passavam pelo local e bordamos estandartes. Os turbantes eram em homenagem a cultura negra e o Boi da Manta novamente estava presente. Após o banquete finalizamos as atividades das crianças com um jogo de balão d’água para nos refrescarmos.


Relato oficina # pausa 02 [7 de agosto de 2013] Pedi a coordenação da escola para não ir nesse dia. Depois da viagem e do tanto de atividades que fizemos com as crianças do festival eu estava esgotada. Precisava descansar, renovar o fôlego para permitir que a continuidade na escola partisse da elaboração de propostas coerentes. Percebi que da parte das crianças do Emef havia uma expectativa de “aonde vamos chegar com isso”. Mas resolvi deixar essa expectativa em suspenso, tanto para ganhar tempo como testar uma proposta aparentemente incoerente com o que vinhamos fazendo até então: uma aula de dança a partir de alguns métodos desenvolvidos por bailarinos modernos e contemporâneos. O sentido, o nexo, caso fosse necessário, seria criado subjetivamente. Procurei apenas traçar um paralelo com o dia em que caminhávamos de olhos vendados e o que isso trazia de percepção do espaço. Alguns, no mínimo, acharam que eu era um pouco louca. Mas os pequenininhos se jogaram completamente na proposta até me estimulando a perder a timidez diante dos grandes que se recusaram a participar e ficaram só olhando desconfiadíssimos! Não fizemos registro desse dia. Dividi-me em muitas e ainda procurei observar como eles reagiam. Senti também uma censura a câmera de vídeo. Mas foi surpreendente a variedade de respostas dadas ao estímulo da proposta: os limites, recusas, aceitações e entregas. Relato oficina #11 [14 de agosto de 2013] Resumo do que preparei para aula de dança: A proposta do dia foi levar um pouco dos processos corporais de apreensão do espaço desenvolvidos pela dança, em especial, os conceitos de Rudolf Laban. Roteiro: Proposta 01: Com música, caminhar pelo espaço atento com o espaço do outro e a cada orientação com palmas (minha ou de um amigo) repetir o movimento de estalo de dedos que se desloca para direita, esquerda, em cima e embaixo. (música: Belleville Rendez-Vous) Proposta 02: Conceito de kinesfera: espaço que nos envolve e que corresponde a amplitude dos nossos movimentos. 62


Rudolf Von Laban (1879, Eslováquia - 1958,Inglaterra). Dançarino, coreógrafo, considerado como o maior teórico da dança do século XX e como o “pai da dança-teatro”. Dedicou sua vida ao estudo e sistematização da linguagem do movimenIntenção da proposta: explorar os planos e níveis. Buscar a expansão e consciência dessas ‘categorias’ du- to em seus diversos aspectos: criação, notação, rante a movimentação. apreciação e educação. Kinesfera interna e externa. As vezes estamos mais acuados, as vezes estamos mais expansivos. Pensar-nos dentro de uma esfera (bolha) que é a forma mais lapidada das figuras geométricas (tetraedro, cubo, octaedro, icosaedro e dodecaedro). À medida em que aumentam os vértices tem-se a esfera. Individualmente, cada criança deve ‘atuar’ dentro de sua kinesfera. Buscar explorar seus limites dentro dessa bolha.

Planos: alto, médio e baixo. Níveis:da mesa (horizontal) e da porta (vertical) (música: J’y Suis Jamias Allé) Proposta 03: Montagem do cubo com barbante, suas diagonais e uma das crianças dentro desse cubo recebendo orientações de movimento pelos colegas de fora do cubo. Comandos possíveis: Frente: direita, diagonal alto ou baixo/ esquerda, diagonal alto ou baixo. Trás: direita, diagonal alto ou baixo/ esquerda, diagonal alto ou baixo. imagem 16 icosaedro de Laban, parte de sua teoria de ana-

imagem 17 croquis de escalas e níveis, Laban Centre Archive. fonte: http://www.antarcticanimation. com/content/thesis/gestureandline.php

Exemplos: lise dos movimentos. fonte: http://peacefulpiaffer.tumblr. braço direito: frente, direta, diagonal alto + perna esquerda: trás, esquerda, diagonal baixo + cabeça: frente, com/image/53964542020 direita, diagonal alto + perna direita: frente, esquerda, diagonal alto = tem-se uma movimentação (sem música) Assumir essa movimentação para si (incorporando o preenchimento dos comandos com a movimentação própria de cada um). Deslocar andando e a cada comando, repetir o movimento. (música: Jogada Infantil ou For Our Elegant Caste) Proposta 04: Partindo dessa movimentação, iniciar deslocamento em massa, dissolvendo esses comandos, reassimilando a movimentação da kinesfera e permitindo o contato como o outro e se deixando modificar por esse encontro. (música: Percepção) QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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[escola ambulante] Relato oficina #01 [12 de junho de 2013] Essa foi a primeira oficina com o turno integral da manhã. Criamos uma turma heterogenia, com idades entre 4 e 12 anos para enriquecer a troca, pois percebia que o G2 (turma do integral da tarde) por ser da mesma faixa de idade (12 anos), compartilhava de certa apatia em relação as propostas de atividades. De fato, a presença das crianças de 5, 6 e 7 anos proporcionou uma vitalidade que contagiou um pouco mais as crianças de 10, 11 e 12 anos. Iniciei explicando o motivo pelo qual estava ali e as atividades que já estavam sendo feitas com o G2. Disse que estudaríamos arquitetura porque ela está presente em nossas vidas a todo tempo embora pareça algo distante. Se estávamos em baixo de um teto e em uma sala fechada por paredes, estávamos vivenciando arquitetura, mas que ela é muito mais do que isso. Todos me olhavam com desinteresse e desconfiança. Perguntei o porquê de estarem na escola* e para que estudavam. Em que se situações se aplicavam os conteúdos que aprendiam. Uns respondiam que a escola era para brincar, jogar bola, outros diziam que era para aprender, passar de ano e ser “alguém na vida” (expressão muito recorrente). Quando argumentados sobre o que era aprender não respondiam, ficando muito sérios e pensativos. Apenas um disse que estudávamos para “viver bem em sociedade”. E senti que essa seria a deixa para pensar a cidade. *Essa pergunta carrega o pressuposto de que a escola é o local da aprendizagem por excelência embora o trabalho siga para a vertente da cidade educativa.

Às crianças não é dada a opção de irem ou não a escola. Mas já que essa obrigatoriedade está instaurada, refletir a que servem os conteúdos pode amenizar o lapso entre aprendizagem e vida, como se essas fossem experiências distintas.

Perguntei sobre a cidade, por quem ela era feita, seus responsáveis: eles respondiam prontamente que a cidade era construída por planejadores, arquitetos e engenheiros, prefeitos e etc... Indaguei se eles também eram responsáveis pela construção da cidade e novamente se silenciavam. Alguns diziam que não sabiam construir cidades, mas retruquei levantando a hipótese: Se somos parte da cidade ela também não é feita por nós? Se andamos por ela diariamente, percebendo que tem coisas boas e ruins, situações agradáveis como as praças, parques, a praia, mas que essa mesma praia se encontra poluída, pegamos engarrafamento e alguns lugares acumulam entulho, que os prédios carregam uma história, foram construídos por alguém em alguma época e que sem percebermos muitos são demolidos para construção de torres comerciais e shoppings centers. 64


Todas essas questões pareciam muito distantes deles. A cidade parecia algo externo que acontecia fora da influência e participação deles. Então perguntei: Vocês já viram Vitória por cima? Quem já viu a cidade da janela de um avião? Alguns reponderam que sim e que achavam estranho, muito pequenininha vista do alto. Lancei mapas temáticos da cidade sobre a mesa e todos ficaram muito encantados. Olhavam com muito interesse apontando locais que conheciam, onde moravam e conversavam muito sobre assuntos variados, instigados pelas imagens coloridas e o destaque para alguns pontos referenciais mais importantes da cidade como a Terceira Ponte, as praias e ilhas, o Shopping Vitória, o Convento da Penha, o Santuário de Santo Antonio. Por fim, um menino me disse olhando para uma dos mapas: Tô apaixonado por esse mapa aqui, tia! Comecei a unir os dois assuntos: o motivo pelo qual estudam e a cidade em que vivemos. Mostrei uma miniatura de Kombi e lancei a ideia de pensarmos uma escola dentro dela e que nos transportaria para pontos diversos da cidade. Tudo o que a escola “normal” oferece (livros, lanche, brincadeiras, aulas) seria feito na rua e para isso teríamos de adaptar nossa kombi-escola. Dessa forma, começamos a fazer desenhos de como seria essa escola ambulante. A mini Kombi despertava muito interesse. Eles olham, perguntavam se poderiam tirar todas as poltronas internas, quais portas abriam, se ela poderia ter asas, se poderia ser um tanque de guerra contra a violência e etc...O pequenininhos iniciaram muito rapidamente os desenhos, era a coisa mais linda a espontaneidade com que narravam como funcionava aquela engenhoca e por quais locais passava. Os maiores sempre questionando se poderiam fazer isso ou aquilo, que não haviam entendido “nada” do que era para ser feito, que estavam sem criatividade naquele dia, que desenhavam muito mal ou que não gostavam de desenhar. Usavam régua, apagavam muito, censuravam as próprias ideias e traços e não se convenciam quando eu elogiava ou demonstrava interesse pelo o que estavam fazendo. Duas meninas se uniram e fizeram um desenho da Kombi vista de cima. Compartimentaram a Kombi, desenharam o mobiliário e as funções que cada parte poderia ter e então começamos a filmar o discurso delas sobre os próprios desenhos. Os pequenininhos contaram suas ideias mostrando no desenho o quê era o quê, muito felizes e desprendidos. Depois pegaram a câmera e começaram a filmar os maiores, mas retornavam e mim dizendo que os grandes não queriam falar. Alguns se dispuserem, pediram para não filmar o rosto e explicaram como era sua escola na Kombi. Por fim, diziam: “Aqui, tia, toma o trabalho, terminei!”. Isso me gerou aquele desconforto: eles não haviam assimilado a ideia que, de fato, estávamos pensando outro modo de aprender, que o projeto de uma escola ambulante era factível e que teria a cidade como laboratório de ideias e intervenções. Mais desconfortante ainda era perceber como está arraigada a ideia de trabalho pronto para ser entregue e avaliado pelo profesQUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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sor, o que se assemelha claramente a dinâmica dos deveres de casa e provas. Parecia não não haver qualquer reflexo deles naquilo que faziam e isso foi algo que passei a levar muito em conta a apartir de então. Mas esse é agora o desafio dos próximos encontros: pensar as adaptações para essa Kombi, conseguir uma Kombi real, sair da escola para a rua e estacionar em locais eleitos por eles. Locais esses que serão observados e experienciados para pensarmos ações coletivas de intervenção dentro de uma dinâmica de aprendizagem ativa e autônoma. Alguns alunos não geraram nenhum desenho, embora tenham se apropriado da atividade de outras formas, seja pela observação dos mapas e da miniatura de kombi, seja pelas conversas. Alguns me chamavam para algum cantinho mais afastado para se justificarem, demonstrando muito frustração por não terem concluído a “tarefa”. Perguntavam se poderiam levar para casa e trazer pronto na próxima aula. Respondi que até poderiam fazer em casa, mas o que importava não era se o desenho tinha ficado bonito ou feio, se as ideias eram as mais inéditas ou não e que eles não estavam sendo avaliados. O que estávamos fazendo era uma construção conjunta de ideias e que os desenhos seriam apenas o registro delas em benefício de um projeto comum.

[montagem_16_como seria uma escola dentro de uma Kombi e que estacionasse em pontos diferentes da cidade]

Ao terminar a oficina, uma das meninas que se não quis desenhar deixou escrito no quadro: Criatividade ao extremo. Use sua total criatividade.

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Relato oficina #02 [19 de junho de 2013] A proposta do dia foi recortarmos de revistas imagens que nos remetessem a ideia de arquitetura. Os recortes eram dos mais variados. Alguns perguntavam se aquilo era ou não arquitetura e eu respondia que se para eles havia um porque para escolha daquela imagem, se algo justificava a relação que eles faziam entre a imagem e arquitetura, então era. Normalmente não hesitavam, diziam que para eles era arquitetura e ponto, outros, ofereciam alguma justificativa do tipo: cidade é arquitetura também; a arquitetura tá no mundo, não sei porque, mas acho que isso é arquitetura sim... Após juntarmos um número razoável de imagens (nenhuma foi descartada, pois afinal, eram coerentes e as relações seriam criadas, não existiam conceitos dados a priori) começamos a colar num grande papel Kraft colocado no centro da roda. Percebi certo cuidado em agrupar por assunto, ou seja, eles me perguntavam onde deveriam colar as tais imagens e incentivei reunir por categorias, mas sem deixar isso muito explícito. Recortei e colei junto com eles, então, de certa maneira, eu influenciava. Mas eu não possuía muita alternativa: ou eu começava ou eles não faziam! Alguns eram mais proativos e junto desses era possível levantar questões: escolhíamos palavras-chaves que justificassem a escolha daquelas imagens e a reunião delas por afinidade. O resultado disso demonstrou uma ideia bem ampla do conceito de arquitetura, que envolve a casa, a historicidade dos edifícios, a mobilidade urbana, a ecologia, o planejamento, o design, a criação. Paralelo a isso, existia a possibilidade deles mudarem de “assunto” indo para o mapa de Vitória e marcando no papel vegetal os pontos que eles conheciam e outros que desejariam conhecer. A ideia de que a escola ambulante iria estacionar nesses lugares atraiu a atenção e o imaginário particularmente dos menores que me perguntavam se essa história de kombi- escola era de verdade. Ao dizer que sim, os olhos demonstravam uma alegria e se percebia a imaginação que isso despertava. Corriam para o papel para desenhar como seria essa Kombi e marcar os pontos para estacioná-la. Os maiores ainda não “se convenceram” da ideia. Devem achar que é uma conversa a toa para fazê-los desenhar. Dentro da racionalidade que lhes é imposta desde cedo, a ideia de uma escola na cidade é impensável na prática. Mas com o tempo, acredito que eles irão perceber. A dinâmica do grupo é interessante: ora se dispersam, ora se juntam em torno da atividade perguntando o que mais devem fazer. O curioso é que nem chegam a concluir o que estavam fazendo e pedem uma nova tarefa. Parecem-me um pouco condicionados a “trabalhar no automático”. Quando a atividade é reflexiva, prática e exige autonomia, normalmente se concentram por pouco tempo. QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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Dirigem-se muito a janela, que possui uma tela de proteção e observam o que acontece no pátio. Da escola não existem nem frestas para observar o que acontece para além dos muros. Eles me perguntam se podem sair para beber água, fazer xixi. Eu respondo que eles podem ficar a vontade e eles me olham surpresos com a resposta. As crianças pequenas me pedem a régua e quando não tem, acho isso ótimo porque elas podem se desvencilhar dessa rigidez e desenhar de forma mais solta. Percebi que um dos meninos não engrenava em nenhuma das opções de atividades e se dirigia sempre para janela a observar o pátio lá em baixo. Perguntei se ele estava bem, se não estava gostando de nada. Ele respondeu que estava com muito sono, havia acordado muito cedo e dormido tarde. Perguntando por que ele havia ido dormir tão tarde, me respondeu: coisa de adolescente, tia. Fico até mais tarde no computador, Playstation, televisão. Ele tem treze anos. Queria fazer em casa e trazer o trabalho pronto na outra aula. Essa frase é muito recorrente. Eles entram e saem da sala e acho isso muito bom. Circulam e pegam para observar outros objetos da sala de artes onde estamos desenvolvendo as oficinas. Percebo aqueles que ficam próximos, curiosos, ajudando a mim e aos menores. Mas é interessante perceber a impaciência de permanecer em na sala embora ela seja mais ampla e numa configuração mais próxima dos ateliês. Novas crianças aprecem de repente perguntando se podem participar da oficina. A “aula de arquitetura”, como conhecida, ganhou esse caráter disforme, dinâmico, heterogêneo (crianças de várias idades juntas), descontínuo e de adesão espontânea. Costumo frisar que eles não são obrigados a estarem ali, que não estão sendo avaliados. Mas que vamos fazer coisas interessantes juntos. As novas crianças que entraram, percebendo que a oficina já vinha acontecendo há algum tempo, procuram se interar do assunto. Novamente uma delas me perguntou se essa escola na kombi era de verdade. Eu disse que sim, mas que para ela acontecer era preciso que.....e antes que eu terminasse a frase ela completou: que todos colaborem. NOTA Conversando com Nadia, coordenadora do turno integral, pensamos na viabilidade de adquirir uma Kombi, em um ferro velho, talvez. Por algum incidente que havia ocorrido na escola aquele dia, alguns guardas municipais estavam lá e um deles ouvindo nossa conversa disse da possibilidade real de utilizar umas das Kombis ociosas presentes no estacionamento de alguma das Secretarias Municipais. 68


montagem_19 QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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Relato oficina #03 [26 de junho de 2013] Iniciamos a conversa em roda e com uma cartolina branca no centro. Achava que essa seria a melhor opção de tornar as ideias visíveis, mas, pelo contrário, intimida um pouco por ser visto por todos. O medo de errar, o receio com a caligrafia, ortografia e com a própria coerência do que pensam me pareceu ser o motivo do desinteresse. Mas mesmo assim, começamos... Perguntei se eles estavam acompanhando os protestos e reivindicações que o país está vivendo, se chegaram a ir em alguma manifestação na rua (no domingo anterior, pais de alunos da escola organizaram uma passeata das crianças). Começamos a conversar sobre isso, olhar algumas imagens e vídeos na internet e aos poucos fomos escrevendo no cartaz as principais “bandeiras” levantadas e o que elas revelavam. Normalmente se lembravam das bandeiras de ordem: fora dilma, o gigante acordou, #vemprarua, nós somos o governo, acesso universal a educação, sou professora mas queria ganhar o salário de ‘puta’, somos os filhos da revolução, somos o futuro da nação.... Das imagens da internet e do vídeo “História #25 – vem pra rua”, outros assuntos despertaram interesse, como: mídia, suas ideias não correspondem aos fato; que só os beijos te tapem a boca; pois paz sem voz, não é paz é medo; se fosse público não seria pago; direito a cidade.... A partir dessas, menos imperativas, pedi que olhássemos para o mural no papel Kraft que fizemos na oficina anterior (imagens que remetiam ao que é arquitetura) e tentássemos ver em que medida as reivindicações das manifestações tinha relação com os temas que levantamos, como mobilidade (meios de transporte), planejamento, espaço público, moradia. Relacionei esse recente e enfático chamado de ocupação das ruas da cidade com as ideias da escola ambulante e acrescentei que a Kombi estava sendo providenciada. Então, precisaríamos continuar a escolha dos locais para estacioná-las. Mostrei como funcionava o Google Street View e como usar os marcadores. A possibilidade de caminhar pelas ruas era bem encantadora. Todos queriam encontrar suas casas, mas depois que uma primeira menina identificou seu prédio em Jardim da Penha, alguns voltaram atrás na ideia de expor onde moravam. O receio pela comparação se dava ao fato de que um morava em Bairro da Penha e outro em André Carloni. Mas como tudo se deu de forma descontraída, começamos a caminhada pelo Bairro da Penha (alertados de que iria começar um tiroteio virtual) e percebi o interesse dos demais por uma realidade tão contrastante com bairros como Jardim da Penha e Mata da Praia. Depois de encontrar sua casa, apontou com muito orgulho, embora ressaltasse a falta de reboco, pichações e lixo acumulado na calçada. O fato de que apenas um deles morar em André Carloni (município da Serra), gerou a indagação do porque ele não estudar próximo de casa. Ele disse que preferia estar ali apesar de ser realmente desconfortável o longo trecho que percorria. Mas não existiam boas escolas próximas de sua casa e que a solução seria ga70


rantir o acesso universal a educação, com um numero de escolas mínimas por região.

[montagem_20_mapa gerado a partir da localização das casas com marcadores do Google Street View]

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Relato oficina #04 [03 de julho de 2013] Continuamos a marcação das casas no Google Street View com o restante da turma que havia faltado na oficina anterior e acrescentamos em cada marcação a maneira como se deslocam da casa até a escola: a pé, bicicleta, ônibus e quais linhas, carro, etc...

Relato oficina #05 [10 de julho de 2013] Confraternização no Parque Pedra da Cebola como parte da agenda da escola.

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Relato oficina #06 [31 de julho de 2013] Chegamos com o ônibus na praia. Apesar de ter reforçado a necessidade de que todos juntassem garrafas pet e pesquisassem as maneiras de fazer a prancha/jangada, não o fizeram. Levei uma quantidade suficiente e um breve noção de instrução de como construir. O primeiro contato com o projeto Prancha Ecológica foi durante uma visita à Vitória do grupo catarinense que estava percorrendo o litoral brasileiro divulgando as possibilidade de reuso da garrafa pet e promovendo oficinas de construção das pranchas na própria praia.

[montagem_23_mobilidade urbana em Vitória_a água e suas possibilidades]

Essa breve noção que levei comigo foi proposital, primeiramente por sentir que essa primeira tentativa poderia gerar um protótipo de estudo. Não comprei todo o material recomendado. Lidamos mais com o improviso e com a ausência de um manual. Além disso, senti que era necessário que as crianças conduzissem a atividade e que embora a todo o tempo esperassem uma primeira iniciativa dos adultos, pouco a pouco uns se sentiram mais hábeis a criar os padrões de conexão entre as garrafas, outros, em recortar a garrafa após perceberem a maneira mais adequada e econômica, outros, a interface entre elas (passando a fita isolante) e assim, já era possível visualizar o objeto antes abstrato e isso era motivador. Gerava-se também a curiosidade acerca da eficiência da prancha (será que ela suportará o peso de uma pessoa, será que vai entrar água nas garrafas, será que se manterá estável?). E assim alguns termos surgiram (alguns termos que no domínio das maiores eram repassados aos menores): segueta (ou serra de arco), estabilidade, estruturação, encaixe, ....E surgia também o desejo de finalizá-la para testá-la no mar. Percebo cada vez mais que o interesse e fôlego para uma atividade se dão à medida que a ideia toma forma. O espaço entre abstração e concretude dentro de uma infância docilizada é marcado por inseguranças e uma suposta ideia de incapacidade em dominar corporalmente uma ação (como cortar, fixar, criar lógicas construtivas, etc...) A construção da prancha ganhou notoriedade em toda a escola e pediram que na semana seguinte a atividade fosse novamente realizada. Encontramos as indicações dos materiais mais recomendados (canos de PVC, selante de poliuretano e gelo seco) e com base no protótipo vamos tentar criar uma prancha mais resistente e durável.

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imagem 18 registro de campo das atividades desenvolvidas em duas escolas de Minas Gerais. Fonte:Maria Cecilia Alves. 2013

Descrição da proposta de trabalho realizado por Maria Cecilia Alves em duas escolas de Minas Gerais

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“Este trabalho conta com uma parte prática e experimental, na qual ministrei, como voluntária, aulas de arquitetura em duas escolas. Inicialmente, no Instituto Educacional Ebenezer (IEE) localizada no município de Contagem e posteriormente na Escola Municipal Edson Pisani (EMEP), localizada no Aglomerado da Serra em Belo Horizonte. Para Casa de Arquitetura - Práticas Educativas Arquitetônicas é o título deste trabalho. A expressão para casa de arquitetura surgiu dos próprios alunos quando intitulavam alguma atividade para ser realizada em casa. Pareceu-me muito adequada para representar a intenção deste trabalho. Demonstra a assimilação e aceitação desse novo assunto pelos alunos. Vista por outro ângulo, a expressão me remetia a um desejo de se fazer entender a casa (ambiente comum e cotidiano) como arquitetura, excluindo a idéia de que arquitetura corresponde somente a um grupo seleto de edifícios extraordinários. Levar o que se aprende nas aulas para a casa, seja como forma de atividade ou como conversa e comentário é ampliar o saber arquitetônico para a família e aproximá-la da escola. É inegável a relevância da participação da população na produção do espaço, no entanto observa-se que há uma carência em relação à reflexão da concepção espacial e ao conhecimento construtivo. Tomemos como exemplo as moradias. É raro, encontrar alguma casa ilesa de deficiências estruturais, problemas de umidade ou insuficiência térmica. Problemas esses, recorrentes em casas de alto padrão, de classe média ou em assentamentos precários, claro que nesses últimos, a ausência de recursos contribui para ampliar a vulnerabilidade da edificação. A relação entre a escola e a cidade passa a ser ainda mais necessária, a partir do momento em que é adotado o sistema de “tempo integral”. Os espaços da escola precisam ser ampliados para comportar mais crianças em um mesmo intervalo de tempo. Uma importante alternativa é expandir a escola para seu entorno e transformar a cidade em um território educativo. Portanto, é fundamental desenvolver uma cultura escolar espacial, que incentiva a aproximação entre os territórios e permita reconhecer o potencial educativo que há nos lugares. Ao perceber que a arquitetura é algo inerente à vida humana, seja como moradia, espaço urbano ou territórios educativos, se faz necessário tornar comum a capacidade de compreendê-la e produzi-la com qualidade. Todos são responsáveis por cuidar, preservar e melhorar o ambiente ao redor. É incontestável a presença da autoprodução do espaço na realidade brasileira, no entanto, há uma lacuna no que diz respeito ao conhecimento técnico construtivo tanto quanto a análise crítica da situação espacial como um todo. É fundamental desenvolver maneiras de incentivar a autonomia arquitetônica da população, tornando-a capaz de compreender e interferir no espaço.”


Todos os processos do trabalho desenvolvido junto às crianças foram registrados em um diário de bordo utilizado para memorizar os acontecimentos e sistematizar o trabalho. As atividades realizadas foram: • • • • • • • • • • •

O que é arquitetura A casa por dentro e por fora O cômodo predileto, os materiais e a família Casa na caixa de sapato Os pontos cardeais e o relógio solar O bairro e o relevo Formas geométricas As etapas da construção O projeto Tijolo por tijolo A opinião dos alunos

imagem 19 registro de campo das atividades desenvolvidas em duas escolas de Minas Gerais. Fonte:Maria Cecilia Alves. 2013

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|infância e institucionalização escolar| É interessante se pensar que nem sempre o sentimento da infância existiu, o que não significa dizer que as crianças eram desprezadas ou que por elas não existisse afeição. Considerando como ponto de partida a sociedade medieval, o que não existia era uma consciência da particularidade infantil. Apenas tivessem condições de viver sem a solicitude de sua mãe ou ama, ingressavam na sociedade dos adultos e não se distinguiam mais destes. “Não existem representações coletivas onde as crianças pequenas ou grandes não tenham seu lugar, amontoadas num cacho pendente do pescoço das mulheres, urinando num canto, desempenhando seu papel numa festa tradicional, trabalhando como aprendizes num ateliê, ou servindo como pajens de um cavaleiro.” Ariès (1981, p.156) Uma mudança na atitude com relação às crianças começa a surgir nas camadas superiores da sociedade dos séculos XVI e XVII em função, sobretudo das tendências na arte, na iconografia e na religião em exprimir uma “personalidade infantil” e o sentido poético e familiar a ela atribuídos. Numa sociedade em que as formas exteriores tinham uma importância muito grande, como modo de distinguir a criança do adulto e delinear essa nova concepção, a maneira de vesti-las (um traje especializado) teve grande importância na sinalização das mudanças ocorridas. Procurou-se então, imprimir imageticamente esse novo sentimento criado que particularizava a criança por sua ingenuidade, gentileza e graça e fonte de distração e relaxamento para o adulto. Tão novo quanto o movimento de paparicação das crianças, começou a surgir entre os moralistas e educadores do século XVII um sentimento reativo de hostilidade e irritabilidade aos mimos e uso recreativo da infância. Esse novo sentimento passa a considerar mais desejável que as crianças estejam separadas dos adultos por acreditar que dessa relação, além de se tornarem mimadas e mal-educadas, poderiam ver sua natureza inocente ameaçada. Foi sob uma perspectiva de resguardo da infância e de sua distinção nos jogos sociais (trabalho, lazer, relações afetivas e sexuais) que se desenvolveu toda a educação até o século XX.

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“O apego à infância e a sua particularidade não se exprimia mais através da distração e da brincadeira, mas através do interesse psicológico e da preocupação moral.” ARIÈS (1981, p.162) Embora reconhecida a particularidade infantil, atribuía-se a ela um sentido negativo de incompletude e imperfeição expresso, por exemplo, em um tratado sobre educação de 1646: “Só o tempo pode curar o homem da infância e da juventude, idades da imperfeição sob todos os aspectos. (...) é não mais do que um esboço grosseiro do homem racional”. (Balthazar Gratien, El Discreto, 1646) Tentava-se penetrar na mentalidade infantil para melhor adaptar a seu nível os métodos da educação. Mas esse interesse psicológico, moral e físico impunha que se desenvolvesse nas crianças uma razão ainda frágil sobre a qual recairia a preocupação maior de fazer delas homens honrados e racionais. Tendendo a conciliar a doçura e a razão, os educadores do século XVIII sustentavam a necessidade de ao mesmo tempo preservar e disciplinar. Esse sentimento por sua vez passa a fazer parte da vida familiar tendo os pais como fortes aliados. A preocupação com a higiene e saúde física também assimilada no meio familiar cada vez mais encolhido e centrado na tutela da criança, encontrava também objetivos morais: “um corpo mal enrijecido inclinava à moleza, à preguiça, à concupiscência, a todos os vícios” ARIÈS (1981, p.164). A família higienizada e anefasta se institucionaliza a partir da nova noção de infância que passa então a agregar os dois sentimentos anteriormente criados: o da paparicarão e o da disciplina orientada pela racionalidade dos costumes. Compõe esse universo o controle sobre as intensidades e devires: a expressão da emoção não necessariamente (re)apresenta a emoção. Existe então todo um campo de sentimentos não expressos genuinamente, ou expressos sob variados simulacros como meio de se garantir a aparência de normalidade. É interessante perceber como essa criação estava alinhavada às circunstâncias de uma época, e em virtude disso, o papel da mulher, o lar, a rua, a cidade, a psicologia e a educação se modificaram radicalmente. Não seria possível dissociá-los, visto que são construções mútuas. Mas o enfoque que procuro dar com esse trabalho refere-se mais a maneira como esses novos constructos conduziram a um outro modo de ocupação e apropriação da cidade, na qual a lógica domiciliar e a escola passaram a assumir locais de ordem frente ao “caos” da vida pública. E esse ponto toca diretamente a arquitetura e o urbanismo. QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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São pontos chamados por muitas das propostas desenvolvidas junto às crianças, como a escola ambulante e a oficina invenção da cidade pelas crianças (em Diamantina), no entanto, as reflexões desse tópico se reservam a indagar as condições de emergência da escola e da cidade: • a noção de infância e que prática orienta; • a construção de um espaço específico de

educação e moradia e a desqualificação de outros modos de ensino e vida existentes; • a obrigatoriedade da escola e o encarceramento domiciliar; • o corpo de especialistas que fala pelas crianças e não com os saberes por elas produzidos.

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|conexões entre uma arquitetura menor e uma educação menor| O conceito de “menor” já se encontra ao lado de outros substantivos para além de sua filiação original: a literatura. “Menor” não é propriamente uma qualidade atribuída à arquitetura, a educação ou a literatura. Refere-se às condições táticas que se desenvolvem no âmbito do estabelecido, institucionalizado. Derivado do trabalho crítico de Gilles Deleuze e Felix Guattari a respeito da literatura produzida por Franz Kafka, judeu checo que escreveu em língua alemã, “menor” caracteriza-se como prática de uma minoria numa língua maior (não no sentido de minoritário e sim da menor parte, do que se encontra a margem). De toda forma, as três categorias diretamente relacionadas a uma atitude menor são o forte coeficiente de desterritorialização, a ligação do individual com o imediato político e o fato de que tudo adquire um valor coletivo, ou seja, mesmo que o enunciado seja assumido por uma singularidade, esta, desde já, articula uma ação comum, pois antecipa as condições coletivas de enunciação. “É a literatura que se encontra carregada positivamente desse papel e dessa função de enunciação coletiva e mesmo revolucionária: a literatura é que produz uma solidariedade ativa apesar do ceticismo, e se o escritor está a margem ou a distância da sua frágil comunidade, a situação coloca-o mais à medida de exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade.” (DELEUZE GUATTARI 2003, p.40) Uma intervenção menor é um agenciamento, ou seja, uma prática, ação concreta que parte de um conhecimento voltado para as relações sociais, reflexões políticas, econômicas e morais. Deve funcionar como uma máquina desmontável, apta a tratar e exercitar conteúdos coletivos de expressão. Sendo assim, frente às politicas públicas de educação e instituição do pedagógico, a arquitetura menor aqui declarada assume seu caráter de resistência ao sair de seu local de excelência e produzir junto com a educação versões menores das versões oficiais. Ou seja, a rede múltipla da arquitetura, anunciada por uma individualidade (professor) passa a habitar o campo de imanência da educação segundo o aporte de criação de conceitos em que para cada conteúdo novo, novas expressões foram produzidas garantindo uma significação política de uma minoria (as crianças) num trabalho afetivo em que o professor não fala em nome próprio. 80


Os vínculos com a privatização e o neoliberalismo econômico prevalecem também no campo da arquitetura e do urbanismo que se coligam significativamente com a mercantilização da cidade. Grande parte dos arquitetos se alinha a essas condições deixando de contestá-las. Trabalhamos na inviolabilidade das linhas de limite da propriedade. Entretanto, outros arquitetos propõe a reordenação da arquitetura para setores precários que estejam fora de seu raio habitual de ação, pois de fato, é urgente a redefinição dos termos da disciplina para as demandas contemporâneas. Ainda há temas incompreendidos, problemas colocados subliminarmente, como a educação, o âmbito político, econômico ou os assuntos de propriedade. Suavizar esse véu de incompreensão requer um trabalho ao microscópio, pois diz respeito às interpretações formais e subjetivas dos diversos agentes da cidade e, portanto constituem um momento tático frente aos planos estrategistas. Uma “arquitetura menor” e uma “educação menor” conectadas enxergam nessas problemáticas o motor de novos pensamentos, o inusitado, anti-conformista e, sobretudo atuante num campo de imanência, no qual pensar é criar. Uma escola com asas, por exemplo, nos ajuda a vislumbrar o desejo de desenclausurar a infância da escola! Acompanhando as transformações das paisagens psicossociais, uma arquitetura e uma educação menores foram canais para uma cartografia de afetos. Carona para existencialização, desmanchamento de certos mundos e formação de outros. 6 Uma conduta “menor”, por assim dizer, como prática cartográfica é se deixar vibrar, embarcar na constituição de territórios existenciais, processo de produção de realidade que é o desejo, munido exclusivamente de um tipo de sensibilidade que se propõe prevalecer como equipamento de campo.

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ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo, 1989. online QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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arrematando

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Neste trabalho, a escola de ensino fundamental foi apontada como espaço possível para difusão de outros modos de saber, fazer e viver, mediados pela multiplicidade de conhecimentos da arquitetura e do urbanismo. A escola, porém, lugar que deveria contribuir para ampliação das possibilidades do ser humano, frequentemente é caracterizada por uma estrutura rígida e controladora. A valorização da ordem sobrepõe às necessidades de expressão do sujeito em uma lógica repressora. A arquitetura e urbanismo também esbarram em questões muito semelhantes: incluem o disciplinar da forma e o ordenamento da urbe, o desenho e o projeto são atribuições de arquitetos sobrepondo-se a subjetividade dos usuários dos espaços. A arquitetura e a escola, como reflexo das pretensões da modernidade científica, política e militar circunscreveram um lugar “próprio” no contexto social. Adquirindo consistência institucional, delimitando seus objetos e instrumentos, suas atribuições específicas, passaram a regular suas relações internas e negociar com outras práticas construtoras e usuárias do espaço. Sendo assim, passaram a deter um poder estratégico de manipulação das relações de força. Em contrapartida a essa face “preliminar” do campo da arquitetura e da educação, esse trabalhou exigiu um recurso tático, próprio de quando não se tem condições de um projeto ampliado e consequentemente não se obtém individualidade institucionalizada. Tem-se que jogar num terreno cuja regra é exterior e se ocupa o lugar do “outro”. Deve-se operar por “astúcia” em relação ao tempo, aproveitando-se das ocasiões.7 E nesse sentido, a proposta se deu pela via de uma intervenção “menor”, entendida como um agenciamento coletivo de desejos que colocou o trabalho como um laboratório de experimentações discursivas, poéticas e sociais a fim de se observar como as crianças se apropriavam, usavam e descartavam significados, coisas, espaços e expressões. “Não há agenciamento maquínico que não seja agenciamento social de desejo; não há agenciamento social de desejo que não seja agenciamento coletivo de enunciação”. (DELEUZE GUATTARI 2003, p.139) Ainda que com todas as deficiências e dificuldades, a escola é vista neste trabalho como lugar de encontro e oportunidade que, no entanto, exige transformações em sua estrutura. A arquitetura é apontada aqui como indicação de ferramenta para auxiliar as escolas na reinvenção da relação com o território e também contribuir com os processos já existentes: promover integração entre os conteúdos, agregar ações práticas aos conteúdos teóricos e aproximá-los de uma realidade cotidiana. QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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E ainda, o incentivo a uma cultura que valorize o conhecimento espacial contribui para a consolidação de uma boa arquitetura, expressa em uma cidade democrática, justa e em moradias agradáveis e adequadas a realidade de seus moradores. Não caberia uma avaliação da proposta, não se tratou de uma avaliação participativa (“O que ficou?” ou “Quais foram os resultados?”). A “avaliação” foi processual pois fez a vida variar, a intensidade encontrou passagem, vias para expressão, pontes de linguagem e se deu pela voz das crianças. E o vídeo que se segue serve como uma mídia a mais para essas vozes.8 E como mensurar isso tudo? O “produto” desse trabalho foram acontecimentos. Foram as risadas, o atrevimento, o choro, o movimento, as perguntas... Mais do que uma conclusão, quem fazeu agulha_práticas arquitetônicas para educação, arremata um ponto de uma sequência de laçadas do crochê. Mas quantos outros arranjos diferentes de laçadas se desdobrariam em outras experiências do fazer? Aqui se encerra abrindo caminhos para a busca de novas formas de se fazer educação e arquitetura. Ainda há muito a ser explorado diante das infinitas possibilidades que os dois campos unidos podem oferecer. Esse trabalho apresenta entradas e deseja abraçar as múltiplas saídas como indícios para os próximos passos.

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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 1998. p. 97-102 O vídeo “quem fazeu agulha práticas arquitetônicas para educação” se encontra em mídia digital anexado ao fim deste volume e disponível nas redes sociais através do endereço eletrônico: https://www.facebook.com/photo.php?v=213055182197624&set=vb.167136376789505&type=2&theater

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“As coisas não são difíceis de serem feitas, difícil é nos colocar em estado de fazê-las” ...Brancusi... QUEM FAZEU AGULHA | práticas arquitetônicas para educação

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referências bibliográficas ANDRADE, Claudia Castro de. A fenomenologia da percepção a partir da autopoiesis de Humberto Maturana e Francisco Varela. Griot: Revista de Filosofia, Amargosa, v. 6, n. 2, p.98-121, dez. 2012. Disponível em: <http://www.ufrb.edu.br/griot/images/vol6-n2/8-A_FENOMENOLOGIA_DA_PERCEPCAO_A_PARTIR_ DA_AUTOPOIESIS_DE_HUMBERTO_MATURANA_E_FRANCISCO_VARELA-_Claudia_Castro_de_Andrade. pdf>. Acesso em: 23 nov. 2013. ARIÈS. Philippe. Os Dois Sentimentos da Infância. IN.: ______. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. BICCA, Paulo. Arquiteto, a máscara e a face. São Paulo: Projeto, 1984. BOSI, Antônio de Pádua. O artífice. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 15, n. 28, p.291-294, 2010. BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia – Histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. FERRO, Sérgio. O canteiro e o desenho. São Paulo: Projeto Editores Associados, 1982. FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2011 GAUSA, Manuel, GUALLART, Vicente & MÜLLER, Willy et al. (orgs.). Diccionario Metápolis de arquitectura avanzada. Ciudad y tecnologia en la sociedad de la información. Barcelona: Actar, 2000. GREGOTTI, Vittorio. O território da Arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1975. HERTZBERGER, Herman. Lições de Arquitetura. 2ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1999. LENGEN, Johan Van. Manual do Arquiteto Descalço. São Paulo: Editora Empório do Livro, 2008. MATTOS, Adriano Corrêa. A dádiva de Dédalo: um diálogo entre literatura e arquitetura. Belo Horizonte, v.5,p. 113-120, dez. 2002. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20 Tese%2005/12-Adriano-Mattos-Correa.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2011. 86

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.


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Simulador Financiamento CAIXA Habitação. Disponível em <http://simuladorcaixaonline.com/minha-casa-minha-vida/>. Acesso em: 03 junho 2013

índice de imagens imagem 01 estandarte da cooperativa Mulheres Reais em Diamantina. fonte: acervo do 45° Festival de Inverno da UFMG. 2013 imagem 02 queda de Ícaro após voa escapatório do Labirinto de Dédalo. fonte: http://1.bp.blogspot. com/_X7rWpVubd7E/S-hzah4M6WI/AAAAAAAAABM/TwmvQwMoJWM/s1600/d%C3%A9dalo+e+%C3%ADcaro.jpg imagem 03 peça em tecido costurado e digitalizado. fonte: acervo do autor. 2013 imagens de 04-07 montagens para livreto de relato da experiência de uma escola ambulante em Belo Horizonte. fonte: acervo do autor. 2011 imagem 08 trabalho em macramê da artesã Ana Por El Mundo, Itaúnas, ES. fonte: Vinícius Binotte. 2011 imagem 09 montagem de um inflável na Semana de Arquitetura da EA-UFMG. fonte: Pedro Parrela. 2011 imagem 10 estruturas feitas com palitos de picolé. fonte: http://www.unochapeco.edu.br/static/data/portal/noticias/fotos/640x480/3587.JPG imagem 11 atividades com desenhos de ambientes montados no chão da sala de aula. imagem 12 estrutura geodésica montada com jornal. fonte: http://4.bp.blogspot.com/_ewGdBCzawak/TDDpcZC8rQI/AAAAAAAADPQ/tAhV-n4iEOo/s320/cabaninhajornal1.jpg imagem 13 alternativas de lazer e transporte. fonte: https://pt-br.facebook.com/ProjetoPranchaEcologica imagem 14 apropriação do espaço público na rua Sapucai, Santa Tereza, BH. 2012. fonte: http://www. hojeemdia.com.br/polopoly_fs/1.31992.1347234543!/image/image.JPG_gen/derivatives/landscape_315/ image.JPG imagem 15 narrativa de cidades recriadas a partir do recurso de dobradura em livro. fonte: http://www. corraini.com/admin/tmp/files/copertine_all/377-AAVV_popville_int5.jpg imagem 16 icosaedro de Laban, parte de sua teoria de analise dos movimentos. fonte: http://peacefulpiaffer.tumblr.com/image/53964542020 imagem 17 croquis de escalas e níveis, Laban Centre Archive. fonte: http://www.antarcticanimation.com/ content/thesis/gestureandline.php imagem 18 material de registro de campo em duas escolas de Minas Gerais. Fonte:Maria Cecilia Alves. 2013 imagem 19 material de registro de campo em duas escolas de Minas Gerais. Fonte:Maria Cecilia Alves. 2013

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|diario de bordo| [montagem_01_o que acham do seu bairro e da sua escola?] [montagem_02_o que acham do seu bairro e da sua escola?] [montagem_03_a medida das coisas vem do tamanho da gente] [montagem_04_como fazer caber?] [montagem_05_ a casa é tipo a gente só que maior] [montagem_06_expansão para dentro] [montagem_07] [montagem_08] [montagem_09_cabra-cega] [montagem_10_uma escola, muitas escolas] [montagem_11_novos suportes, novas espacialidades] [montagem_12] [montagem_13] [montagem_14_o bem comum_diamantina] [montagem_15_como seria uma escola dentro de uma Kombi e que estacionasse em pontos diferentes da cidade] [montagem_16_como seria uma escola dentro de uma Kombi e que estacionasse em pontos diferentes da cidade] [montagem_17] [montagem_18] [montagem_19] [montagem_20_mapa gerado a partir da localização das casas com marcadores do Google Street View] [montagem_21] [montagem_22_lanche no parque pedra da cebola] [montagem_23_mobilidade urbana em Vitória_a água e suas possibilidades] montagens com material do registro de campo. fonte: acervo do autor. 2013

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