Revista #Desalienando

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moda • decoração • viagem

1ª Edição - Dezembro, 2016

#DESALIENANDO.

13ª EMENDA De escravo a criminoso em uma emenda



NESTA EDIÇÃO 8. Existe mundo fora da nossa zona de conforto 12. A arte e coragem de Margaret Keane 16. Transpira SOM 23. 13ª Emenda 27. A alegria dos pés palito 31. Um lugar não comum 35. 10 anos da lei Maria da Penha 38. Aquela quarta-feira 40. Ângulos extremos 44. Esse abacaxi é nosso 48. Crônica da gentileza

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ENCONTROS Já dizia Vinícius de Moraes que “a vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida”. Se analisarmos o desenrolar da Vida, logo percebemos que vivemos um período complexo, em que o tempo escorre pelas mãos. A sociedade vive de forma agitada. O tempo é algo que se tornou caro e as relações e interações entre pessoas, igualmente, vêm se tornando cada vez mais superficiais. Como diz o filósofo e sociólogo polonês Zigmunt Bauman, vivemos em tempos líquidos, tudo é facilmente descartável... E no meio dessa caminhada chamada Vida, nada melhor que sermos surpreendidos com fabulosos encontros. Ah, os encontros! Quando são verdadeiros, tornam a vida ainda mais bela! Diariamente cruzamos com desconhecidos – alguma vez paramos para pensar o que essas pessoas poderiam nos trazer de informação? Já paramos para pensar que cada ser humano tem uma história fantástica, independente de afinidade ou não? E já paramos para pensar que por conta desses encontros ou desencontros aos quais a modernidade líquida nos condiciona, sempre haverá pessoas que de alguma forma estão dispostas a contribuir na nossa jornada – seja para nos ajudar a aprimorar uma ideia, proporcionar uma gargalhada ou contribuir para o nosso crescimento intelectual? Ou ainda para nos ajudar a seguir naquilo que acreditamos como ideal? Nessa arte do encontro, não poderíamos deixar de falar sobre a comunhão de pessoas que se dispuseram a levar informação ao leitor da revista #Desalienando. De alguma forma, todos nós, colunistas deste projeto, nos dispusemos a levar informação a você na busca por influenciar positivamente a sua Vida, através de conteúdo de música, arte, comportamento, liberdade... Ao discutir as pautas, ao pensar nos conteúdos, ao colocá-los no papel, ao diagramar as matérias ao fotografar e escolhe cuidadosamente as imagens, nos propusermos a um encontro com você! Portanto, caro leitor, seja bem-vindo a este encontro feito com muito carinho e informação.

Ele não pode mais ser adiado: com vocês, a revista #Desalienando.

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EQUIPE Camila Schubert Fotógrafa artística

Bárbara Miotto

Designer

Matheus Puga

Empresário do ramo de festas e moda

Gisele Moreno

Jornalista e Advogada

André Macarini

Empresário do ramo de moda

Agradecimentos: Thiago Lucali Mariana Rangel Ana Paula Antoniazzi Hostel Clothing

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Existe mundo fora da nossa zona de conforto

Viagem e Liberdade

texto de Mariana Rangel

EXISTE MUNDO FOR DA N O S S A ZO N A D E C O N F O R TO

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Liberdade não é loucura. Muito menos sinônimo de mochila nas costas e pé na estrada. Foi o que percebi depois de 12 meses viajando junto com o meu companheiro e foi então que me dei conta do quão difícil é ser livre. Demorou para que eu conseguisse fazer o que desse na telha sem me culpar por me ausentar dos pontos turísticos.

Demorou para assistir ao por do sol sem horário marcado, ou me acomodar na sarjeta como quem vai ao cinema assistir a multidão apostar corrida para ver a ponte, a igreja ou o forte. Era sempre uma luta. Explorar as cidades para além dos pontos turísticos “imperdíveis” era algo que tentávamos pôr em prática, entretanto, a maior dificuldade foi entender


as alternativas acenavam para mim, clamavam pela minha atenção e eu ficava ali, na vertigem da entrega. As possibilidades são vastas quando não há hora certa ou destino final, e isso alimentava meu medo. Medo que se travestia de segurança para me roubar o caminho. Pudesse eu definir a liberdade como uma brisa que bagunça meus cabelos enquanto corro para abraçar o mundo. Mas talvez, a única coisa que de fato posso dizer é que ela seja mesmo aterrorizante. Decidir quando se tem toda a liberdade de escolha sem nenhuma garantia, é amedrontador. E nesse jogo de aceitar quem sou e ao mesmo tempo renunciar ao que me prende, foram 22 países, 138 cidades, mudanças atrás de mudanças... Difer-

Existe mundo fora da nossa zona de conforto

que ser livre também significa aceitar que muitas vezes era eu quem saia como louca querendo ver a ponte, a igreja ou o forte. Por diversas vezes chegávamos a um novo lugar, com a mochila nas costas e mãos abanando. Sem reservas, sem sabermos para onde ir e totalmente livres para ser e fazer o que bem entendêssemos. As possibilidades eram incontáveis... Livres para correr ou para andar lentamente. Livres para olhar o céu ou reparar nos novos rostos. Livres, se o entusiasmo da chegada não fosse atropelado pela ânsia de encontrar mais que depressa um teto, um espaço delimitado que temporariamente pudéssemos chamar de nosso, e, enfim, sentirmos que tudo estava sob nosso controle. Todas

texto de Mariana Rangel

RA

“Pudesse eu definir a liberdade como uma brisa que bagunça meus cabelos enquanto corro para abraçar o mundo

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Existe mundo fora da nossa zona de conforto texto de Mariana Rangel

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entes comidas, diferentes moedas, trânsito, idiomas, costumes, quartos... Enfim, o mais difícil talvez não tenha sido o destino em si, mas o caminho entre cada um deles sem nenhum atalho para nossa zona de conforto. E nós que temos a mania de ir logo nos cercando de comodidades, não demorou muito para percebermos que era tarefa impossível construir nossa “zona segura” quando na verdade só estávamos de passagem. E sem querer lembrei que assim também é nossa vida por aqui, depois que a viagem acaba. Hoje, nesse momento em que vivemos, coloca-se a liberdade nos objetos que compramos, nos triunfos, nos aplausos, na loucura de fugir de casa. Conquista-la é quase um objeto indispensável na corrida à felicidade. E talvez seja mesmo, mas ela ainda está longe de ser um troféu que se conquista em fim de campeonato, ou mesmo algo que alcançamos assim, com o primeiro ônibus que pegamos para longe de casa. E essa dissimulada concepção de liberdade nos entretêm enquanto a procuramos nas insustentáveis levezas do ser. Penso que ela talvez habite entre os tantos “entretantos” e “porens”. Talvez transite de um lado para outro, manifestando-se e depois retirando-se do alcance, sem sair de vista. Impossível prender a liberdade dentro de nós. Os passos foram incertos e o caminho obscuro,

mas o fato é que não há mesmo liberdade acompanhada de segurança, como já dizia Bauman. É difícil me concentrar no presente quando o destino é certo e o caminho conhecido. Não ter certeza para onde vou, se vou chegar ou se vai dar certo me fazia abrir os olhos para o presente, me reinventando a cada momento. E foi preciso encarar a luta de abandonar a antiga segurança, as mesmices da vida corriqueira, os velhos hábitos e convenções culturais, para percorrer caminhos até então nunca trilhados. E também foi preciso deixar de cercar-me de confortos do lado de dentro, para que não esquecesse de espiar o que mais existe do lado de fora.... Nesse caso, o que estava do lado de lá da minha zona de conforto era a melhor experiência da minha vida! E então, quando me perguntaram o que foi mais difícil durante esses 12 meses, não pensei nos motoristas malucos, na comunicação difícil, nas travessias de fronteiras, nem nos hotéis de lençóis amarelados. Pensei na tremenda dificuldade que foi sentir-se vulnerável para poder desfrutar da fragilidade que é ser livre. Agora eu começo a perceber que é nos momentos de vulnerabilidade que reside o tempero, a mudança...a vida.


texto de Mariana Rangel

Ainda existe mundo fora da nossa zona de conforto

hostel


A arte e coragem de Margaret Keane

Big Eyes

texto de André Macarini e Gisele Moreno

A ARTE E A CORAGEM DE MARGARET KEANE

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Margaret D. H. Keane (cujo nome de batismo era Peggy Doris Hawkins), nascida em 1927, é uma grande artista norte-americana, detentora de um inovador ponto de vista sobre a arte: pintava crianças e animais com olhos grandes, profundos e cheios de

melancolia. Margaret – como todo ser humano - tinha sonhos e um deles era casar-se. Margaret era uma mulher divorciada e mãe solteira na década de 1950, quando conheceu Walter Keane, um homem que lhe sorriu e lhe


O abuso na arte Na primeira exposição de suas obras ao público, todos os quadros de Margaret estavam assinados com o nome de seu marido, Walter Keane. Aquilo foi uma estratégia de Walter, que por ser um homem de contatos, sugeriu a Margaret que assinasse as obras com o nome dele, pois assim teriam mais êxito nas vendas. Margaret concordou, pois já havia vendido suas pinturas por apenas 1 dólar! Ao passar dos anos, o dom de

Margaret fez de seu marido um homem extremamente famoso, e cada vez mais pessoas se encantavam por suas pinturas. Ao passar dos anos, o dom de Margaret fez de seu marido um homem extremamente famoso, e cada vez mais pessoas se encantavam por suas pinturas. Com o aumento da fama e fortuna, Walter começou a mudar seu comportamento em relação a Margaret, que já não tinha mais vida social, nem mesmo algo que a motivasse a viver. Margaret passou a viver sob um completo abuso psicológico por parte do marido. Walter obrigava Margaret a

Texto de André Macarini e Gislee Moreno

deu afeto. Margaret não teve dúvidas e em poucos meses se casou - e aí começa a sua história.

A arte e coragem de Margaret Keane

“Os olhos são a janela da alma...”

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A arte e coragem de Margaret Keane texto de André Macarini e Gisele Moreno

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pintar desenfreadamente. Toda renda e fama era destinada a ele, que frequentava a alta sociedade e vendia as obras como autoria própria para as maiores celebridades. Margaret estava cansada física e psicologicamente, pois já não tinha mais opinião nem liberdade, quando então fugiu com a sua filha para o Hawaii. Anos distante, Margaret um dia ligou e pediu o divórcio a Walter, que aproveitou a oportunidade para chantageá-la: só assinaria o divórcio se Margaret pintasse 150 novas telas, para que ele pudesse tê-las para venda até os seus últimos dias de Vida. Margaret atendeu ao que fora imposto pelo marido, tamanha sua vontade de conseguir se divorciar. A filha de Margaret foi quem a encorajou a abrir um processo de plágio e difamação contra o ex-marido – aquele seria o primeiro caso de difamação do Hawaii. Walter negou a versão da mulher e afirmou ser o verdadeiro autor das obras. Foi então que o Juiz do caso teve uma perspicaz ideia para solucionar o embate, já que ambos afirmavam serem os autores das pinturas - cara a

cara em audiência, na frente do Juiz, Margaret e Walter foram intimados a fazer uma tela e Walter se recusou, sob o pretexto de que estaria com dor no ombro, enquanto Margaret, em 53 minutos, fez a tela mais inspiradora de sua vida. O Júri condenou Walter a pagar a Margaret uma indenização no valor de 4 milhões de dólares, no ano de 1968.

Margareth pinta até hoje, com 89 anos, e Walter morreu pobre e esquecido no ano de 2000 A coragem para romper com o abuso Levar o próprio marido ao Tribunal foi o ato de maior coragem de Margaret Keane, que por anos foi submetida ao anonimato e a uma exploração sem limites de Walter. Margaret teve todo o seu dom e sua obra usurpados pela ganância desenfreada do marido, em uma relação de abuso físico e psicológico.


A intrigante história de Margaret Keane ganhou as telas de cinema sob os olhos do excêntrico

A arte e coragem de Margaret Keane

“Grandes Olhos” (2015)

diretor Tim Burton. O filme, lançado no Brasil em janeiro de 2015, foi estrelado por Amy Adams no papel de Margaret e por Cristoph Waltz (Oscar de melhor ator coadjuvante em Bastardos Inglórios, em 2010, e Django Livre, em 2013) no papel de Walter. “Grandes olhos” rendeu à Amy A`dams o Prêmio Globo de Ouro de Melhor Atriz no ano de 2015. Tim Burton se declarou um apreciador de Margaret Keane, cujas obras perturbadoras e com uma explosão de sentimentos expressados pelos grandes olhos marcaram profundamente a sua infância.

texto de André Macarini e Gisele Moreno

Margaret pintava olhos cheios de angústia e melancolia, e com esses olhos assistiu o seu companheiro usurpar o seu dom e talento, impondo-lhe o anonimato, o isolamento e a tristeza. Margareth encontrou na batalha judicial a forma de recuperar a sua dignidade, e a sensibilidade do Juiz ao fazê-los pintar foi a prova incontestável de seu talento e da história de abuso vivida por anos.

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Transpira SOM texto de Thiago Lucali

TRANSPIRA SOM

Uma reflexão sobre o autodesenvolvimento através da música

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Na medida em que ampliamos nosso entendimento sobre a música e sua linguagem, temos a intenção de construir uma ponte entre suas manifestações e a nossa vida, extraindo dessa forte ligação uma prazerosa experiência de arte, musicalização e autoconhecimento.

O Ser Musical Incrível perceber como a música é fundamental em nossas vidas. Não importa se estamos entre aqueles que gostam, amam ou preferem viver sem ela. Todos lembrarão alguma canção que marcou uma época, uma história, uma noite, uma mudança (...). Sem dúvida, aquelas férias não seriam as mesmas sem as noites de música com os amigos. Airton Senna com seu tema da vitória. Enfrentar o trânsito das grandes cidades sem música tocando na rádio

texto de Thaigo Lucali

Transpirar o som não pretende eliminar o calor daquilo que é quente, que dilata ou que funde. Nem refrescar o calor do combate, conter a febre dos grandes calores de verão. Muito menos ignorar o ardor e a vivacidade de uma expressão acalorada, que eleva a temperatura de certos momentos. Escorrer o som pelos poros - e certas substâncias nele dissolvidas - preza por liberar em nós uma espécie de endorfina sonora, por todos os lados, por dentro e por fora. Conversão de som em energia, que renova e torna fresco. Refresca o vinho e a água, a vida e a morte. Refresca as cores do quadro, traz a mudança de vista, a mudança de ponto. Nesse texto pretendo refletir algumas situações do dia a dia onde a música demonstra seu poder de emocionar e seduzir - ou de expressar, como disse Schoenberg, “a natureza deste e de outros mundos”.

Transpira SOM

Uma reflexão sobre o autodesenvolvimento através da música

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Ouviver a música:

texto de Thiago Lucali

Transpira SOM

Olhar para si mesmo como um compositor e as próprias criações musicais como um processo de autodesenvolvimento

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tornaria a situação ainda mais impraticável. Ela está ali, aqui, em qualquer lugar. Está no canto dos pássaros, no fenômeno do eco quando o homem tentou se fazer ouvir a grandes distâncias. Está no soprar do vento pelo canavial ou pela fresta da janela. Na corda do arco do caçador, no martelo do pedreiro. Na escola que passa sambando, no movimento mudo das constelações que passa em expansão no céu (...). Está em nós, no extrato da vida e do mundo. Num apito, num rito, no grito surdo da torcida que empurra o jogo. De uma tranquila caminhada a uma aventura, no trabalho e no lazer, na dor e no prazer. Numa conversa sincera – ou não. E ainda, naquele que domina o seu instrumento, na agitação de um átomo ou dos amigos na mesa do bar. No pulsar cadenciado de um coração. Resumindo nas palavras de J. Jota de Moraes, “pois música é, antes de mais nada, movimento. É sentimento ou consciência de espaço-tempo. Música é igualmente tensão e relaxamento, expectativa preenchida ou não, organização e liberdade de abolir uma ordem escolhida; controle e caos. Ritmo; sons, silêncios

e ruídos; estruturas que engendram formas vivas. Alturas, timbres, intensidades e durações: uma maneira de pensar e de sentir”

A música e o homem As sonoridades que presenciamos e promovemos no dia a dia podem ser enxergadas além da fenomenologia do som. Cada objeto sonoro, quando desvendado, revela um universo de significação, cheio de referências e hipertextos da nossa vida. Uma vez inseridos nessa atmosfera sonora que nos influencia, estamos sendo diretamente envolvidos e estimulados por sua dinâmica. Há uma trilha sonora interna atuando sem cessar em nossa intimidade. Experimente sair de sua casa para caminhar na rua ouvindo algumas músicas durante o trajeto. Quais impressões são reais e o que é efeito do som e de seus atributos? Dependendo dos estímulos provocados em nosso campo de percepções, o trajeto pode se tornar mais receptivo ou desconfortável, as pessoas


Transpira SOM

Transpirando o som Quando percebemos a música não somente naquilo que o hábito convencionou chamar de música e sobretudo onde existe a mão do ser humano, nos deparamos com novas formas de ver, representar, transfigurar e transformar a nós e o mundo. O que eu toco? O que eu ouço? Se eu pudesse aumentar o volume da minha existência, que tipo de música eu ouviria? Em qual afinação do mundo eu permaneço? Ao sorver o som por esse prisma, todos podem ser músicos. Hoje, em um universo visto não mais como algo fechado ou imóvel, mas relativizado e em expansão – como o proposto pela física moderna –é possível olhar para si como um (bom?) compositor e as próprias criações musicais como um processo de autodesenvolvimento. Algo assim como ouvir, ver, viver - “ouviver a música” na expressão concentrada de Décio Pignatari.

texto de Thaigo Lucali

pelo caminho podem nos dar a impressão de estarem mais hostis ou amistosas. Outro exemplo de demonstração dessa força seria alterar a trilha sonora de um filme. Com a mudança da trilha original, nossa percepção e registro das cenas ganham outras impressões e significados. Fazendo uma relação com nossas vidas, a cada momento encaramos as nossas situações com algum script sonoro, envolvendo o que está sendo vivido em um mundo de representações próprias, com predisposições internas que podem potencializar ou empobrecer nossas vivências.

Viva o som e boas criações!

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13ª Emenda texto de Gisele Moreno

13ª E M E N DA De escravo a criminoso em uma emenda

Terra da liberdade. Para quem?

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É surpreendente quando nos deparamos com a estatística de que os Estados Unidos da América, embora abrigue apenas 5% da população mundial, é o país onde estão 25% dos presos do Globo. Vale dizer, de cada quatro pessoas encarceradas na Terra, uma está nos EUA. O encarceramento em massa nos Estados Unidos da América

não é uma coincidência, mas sim a consequência de políticas governamentais muito bem delineadas para atender finalidades perversas, notadamente relacionadas a um imperativo do sistema econômico daquele país: o Lucro.


13ª Emenda Nesse contexto, o recém lançado documentário “13ª Emenda”– dirigido por uma das mais importantes ativistas negras do país, a cineasta norte- americana Ava Duvernay -, com produção exclusiva da NetFlix e que chegou à rede de streaming no dia 7 de outubro, toca em uma ferida que parece sangrar cada vez mais: a violência a que os negros são historicamente submetidos. Não à toa o Documentário “13a Emenda”, em

menos de um mês de seu lançamento no NetFlix, já é aclamado como a melhor produção exclusiva da Rede até hoje. E é uma obra desse culhão que a edição de lançamento da #desalienando vai abordar, o que não te isenta de sentar no sofá o quanto antes e dedicar menos de 2 horas para ter uma verdadeira aula da questão racial nos Estados Unidos, a qual parece dialogar intimamente com a realidade dos negros no Brasil. Se “13a emenda” é um cardápio farto para saber o que está por trás da questão racial nos EUA e no

“Somos produtos do que os nossos ancestrais escolheram, se formos brancos. Se formos negros, somos produtos do que os nossos ancestrais não escolheram” encarceramento em massa vivido por aquele país, essa reportagem é só uma entrada, para despertar no leitor o apetite por ver e rever essa obra

texto de Gisele Moreno

13ª Emenda

impecável, coerente e certeira.

O debate é urgente.

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13ª Emenda texto de Gisele Moreno

Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição por um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado. A abolição da escravidão e a brecha internacional da lei. A 13a emenda foi votada e ratificada pelo Congresso Americano no ano de 1865, e previu a inconstitucionalidade da escravidão – ou seja, aboliu o sistema escravocrata. Mas por trás das palavras aparentemente vitoriosas da 13a Emenda, é clara a brecha que ela trazia consigo: “salvo como punição por um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”. Essa ressalva no conteúdo da Emenda aparentemente inofensiva - foi a brecha legal para que os negros passassem de escravos a criminosos, o que era de total interesse das elites, já que as prisões permitiam o trabalho forçado dos detentos em prol de interesses privados. A escravidão, antes de qualquer outro aspecto, é um sistema eminentemente econômico. A

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abolição da escravidão, mais que uma revolta ideológica naqueles aos quais interessava essa forma de exploração, significou uma expressiva perda de poder econômico. Nessa medida, aos olhos dos brancos, era necessária uma outra forma de continuar se valendo da exploração extremamente lucrativa do negro. E a partir dessa brecha existente no texto da 13a emenda, os negros passaram a ser fortemente perseguidos e acusados de crimes bizarros, tais como vadiagem e outras condutas, cujo grau de abstração era suficiente para a criatividade dos brancos em usá-las contra os negros, verdadeiros bodes expiatórios. Uma vez encarcerados, os negros voltariam a ser mão-de-obra forçada, atendendo interesses econômicos perversos. O documentário “13a emenda” faz um breve passeio histórico ao relembrar o lançamento


13ª Emenda

Em 1915 já haviam se passado 50 anos da abolição. Mas os negros não podiam votar, nem tomar banho de praia. Liberdade para quem? De Nixon a Obama. Da cocaína ao crack. Avançando no tempo, “13a emenda” chega na fatia cronológica pano de fundo da Obra: da década de 1970 até os dias de hoje. Os Presidentes Richard

Nixon (1969- 1974) e Ronald Reagan (1981-1989) foram protagonistas em defender a “Lei e Ordem” e declarar “Guerra às Drogas”, política pública levada a cabo pelo conservador Bill Clinton (1993-2001).

Fica claro todo o jogo corporativo para manter o trabalho forçado como política de mercado. Sob o pretexto de que era necessária uma Guerra às Drogas e à criminalidade, Nixon, Reagan e Clinton propõem políticas perversas que resultam em encarceramento em massa da população estadunidense. As drogas e a criminalidade são tidas como inimigo número 1 dos EUA, e são postas no alvo dos Presidentes, que inflamam a população sobre as questões em discursos de viés punitivista e pouco esclarecedores, sempre pautando as drogas como questão de segurança pública e não de saúde. É curioso que o lapso de maior crescimento da população carcerária - que até 1970 se mantinha estável - é de 1980 a 2000, em que o número de presos duplicou a cada década. Em 1985 houve o boom do crack nos Estados Unidos, droga extremamente nociva e que passa a ser altamente consumida nos bairros pobres, habitados por

texto de Gisele Moreno

do filme “O nascimento de uma nação”, de 1915. Considerado o primeiro blockbuster do cinema e uma obra-prima racista, em que o homem negro é estereotipado como criminoso estuprador que persegue mulheres brancas, o filme de 1915 chegou a ser exibido na Casa Branca para centenas de pessoas. Associar o negro ao mal era um mantra da sociedade estadunidense, principalmente do alto escalão, e essa estereotipagem foi propagada aos americanos com uma força quase irresistível, sempre legitimada pela mídia e pelo poder público.

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13ª Emenda texto de Gisele Moreno

negros e imigrantes. O baixo preço do crack é o que faz com que ele se popularize nos bairros da periferia e ganhe adesão de negros e hispânicos, enquanto a cocaína era a droga dos filhinhos de papai – pelo seu alto custo, é consumida em bairros ricos.

E aí está uma engenhosa manobra do Legislativo para fomentar a perseguição aos negros: o Congresso, em tempo recorde, estabeleceu penalidades obrigatórias para o crack bem mais duras que para a cocaína em pó. Para se ter uma ideia, o porte de 30 gramas de crack submetia o indivíduo a uma pena duríssima, a qual só seria parecida ao usuário de cocaína que portasse 3kg deste pó. Ou seja, o usuário de cocaína deveria portar 10 vezes mais quantidade da droga para ter uma pena similar a do usuário de crack. Essa desproporção não fazia sentido algum, exceto como instrumento de encarceramento de negros e imigrantes. Fiel ao seu discurso de combate a criminalidade, Bill Clinton, em 1994, idealizou o que chamou de

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“Lei Criminal do Século 21”, considerada por ele como visionária, mas que consistia em medidas nada modernas: um endurecimento da segurança pública, com medidas de viés punitivo e que tinham por finalidade combater a criminalidade, considerada inimiga no 1 dos EUA. O curioso é que entre os anos de 1990 a 2000, em que foi viabilizada a tal Lei de combate ao crime, a população carcerária dos EUA deu o seu maior salto: de pouco mais de 1 milhão em 1990 para mais de 2 milhões de encarcerados na virada do século - o que evidencia os interesses obscuros e perversos da medida, que em nada melhorou a segurança do país. O aumento do encarceramento não refletia qualquer melhora na segurança pública do país. Muito longe dessa realidade, a referida Lei de Clinton nada mais significou que um verdadeiro surto de aprisionamento negro.

Recentemente, Bill Clinton reconheceu publicamente o fiasco dessa Lei: “Passamos do ponto”.


Quem lucra com a punição? A chamada indústria carcerária dos EUA é definida por uma das ativistas negras mostradas no documentário como um Monstro. E a sensação é que nenhuma definição seria mais apropriada. Conforme o documentário avança, não há como não ser tomado pela sensação do quão somos ingênuos. Ideais como a ressocialização dos detentos parece ser um folclore, que beira a utopia em meio a tantos interesses reais perversos, sempre associados ao lucro, que norteiam o encarceramento em massa norte- americano.

Acordo de pena: como não aceitar? O encarceramento em massa interessa a muitos. Os EUA prendem muito, e o fazem intencionalmente, simplesmente porque o encarceramento atende intere$$es de muitos. Em síntese, eles não querem perder presos porque o modelo econômico precisa disso. Nessa medida, há uma verdadeira caça às bruxas ou, melhor, caça aos negros, cuja situação historicamente fragilizada e periférica os torna excelentes alvos para esta ação governamental.

Nesse contexto, o acordo judicial se mostra um instrumento perverso, altamente eficaz, pois conta com um fator que torna vulnerável qualquer ser humano: o medo de um cenário pior. É lendário o ditado que diz que “é melhor um pássaro na mão que dois voando”. Na perseguição aos negros é assim. Só que ao contrário. Não se fala em pássaros; se fala em pena. Mas não é pena de pássaros. É pena de cadeia.

texto de Gisele Moreno

A aprovação de uma lei muito mais dura para o crack se comparado à cocaína foi manobra ardilosa do Congresso para fomentar a perseguição aos negros e imigrantes.

13ª Emenda

30g de crack e 3kg de cocaína: mesma pena.

Aceita acordo de 3 anos de pena ou quer ir pra julgamento e correr o risco de pegar 15? Uma pergunta exatamente como essa é feita para um negro, abordado e conduzido sem qualquer motivo plausível. A partir daí, inicia-se o jogo perverso: aceita 3 anos em acordo ou arrisca pegar 15? Quase uma roleta russa. Assume-se um crimeque não cometeu, com medo do que poderia ocorrer em um julgamento, dada a completa perversão do cenário em que estas pessoas são inseridas.arum

97% dos presos fazem acordo.

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13ª Emenda

Em cada 10 pessoas encarceradas, sequer uma tem a audácia de enfrentar esse jogo cruel e sentar na cadeira dos réus. Nem a consciência mais limpa tem coragem para tanto risco. Mesmo sabendo serem inocentes, o jogo é aceito, afinal a disputa de forças indica, sem piedade, pra que lado a corda pode estourar.

Você faria diferente? E assim fomenta-se a indústria carcerária. Um dos únicos rapazes negros que teve a coragem de não aceitar o acordo, Kalief Browder, ficou preso quase três anos esperando julgamento, quando todas as acusações contra ele foram retiradas e

ele foi libertado, face a completa inexistência de provas de crime. Cumpriu anos de pena por um crime que não cometeu e acabou solto. Mas os danos foram irreversíveis. Dois anos após ter sido solto, Kalief se enforcou na sua casa no Bronx, aos 22 anos.

“Se eu tivesse me declaro culpado, ninguém teria prestado atenção em mim. Eu teria sido só outro criminoso.” Kalief Browder O documentário demonstra diversas empresas que lucram fortunas às custas do sistema penitenciário, a exemplo da SECURUS, empresa

texto de Gisele Moreno

Obama foi o primeiro presidente a ir pessoalmente a um presídio dos EUA.

de serviço telefônico que lucrou 114 milhões em um ano com contrato com presídios, cujos preços das ligações são inflados, porém inquestionáveis para o familiar que espera ansioso a ligação do seu ente encarcerado, sujeitando-se aos abusivos valores cobrados.

Onde estamos, para onde vamos? Em um cenário tão cruel e desumano, em que o Governo se curva aos interesses lucrativos de corporações e o sistema de justiça criminal legitima toda essa barbárie, é quase impossível se pensar em perspectivas. De qualquer forma, sob a presidência de Barack Obama, os Estados Unidos da América assistiram a primeira queda do encarceramento desde os últimos 40 anos. Embora representem 40% dos presos dos EUA, os

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negros são apenas 6,5% da população daquele país. A chance de um negro ser preso nos EUA é de 33,3% contra 5,88% de chances do branco ter esse destino. Isso não é coincidência.

O encarceramento em massa do negro é produto de um processo histórico secular. O que fica claro com o documentário é que a humanidade, mesmo após milhões de anos de existência, parece não ter compreendido o que sequer exige compreensão: vidas negras importam.


texto de Gisele Moreno

13ÂŞ Emenda

hostel


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texto de André Macarini

A Alegria dos Pés Palito

A ALEGRIA DOS PÉS PALITO


A maioria das pessoas não sabe, mas os felizes pés palitos surgiram após a segunda Guerra mundial (1939-1945). Os pés palitos vinham sempre acompanhados de cores gritantes nos móveis, como azul, vermelho e amarelo - entramos na Era das cores: momento alegre e cheio de curvas na arquitetura doméstica.

que todas as casas tinham móveis divertidos em uma grande explosão de cores. Agora imagine você: móveis com pés amarelos, paredes azuis, quadros coloridos e cadeiras de bolinhas... tudo para esconder o sofrimento e angústias vividos por anos dentro dos lares no período da Guerra.

Trazendo alegria para dentro das casas, esses móveis encantadores tiveram a difícil tarefa de esconder os sentimentos e perdas causados pela Guerra, como uma válvula de escape para uma nova Era que precisava fazer da alegria a protagonista dos lares. Ícone dos anos 50, os pés palitos fizeram sucesso no mundo inteiro, tendo chegado ao Brasil no início da década de 60 em grande estouro, simultaneamente ao início da pop art, que surgiu na Inglaterra na década de 50 e teve o auge nos EUA na década de 60.

Do pé palito à Woosdtock Começa um novo momento: a década “paz e amor”, que iniciou uma revolução chamada Woodstok (fim de 1969). Entrando nos anos 70, bandas como Pink Floyd, The Doors, Janis Joplin e artistas como Robert Rauschenberg, Roy Lichtenstein e Andy Warhol estavam iniciando suas grandes obras junto a esse movimento, e nada casaria melhor com os pés palitos do que um bom rock e uma pop-art. Algo mais completo do que cores, rock e LSD? Entramos na Era da liberdade, em que movimentos no mundo inteiro fizeram parte dessa década texto de Thaigo Lucali

A febre no Brasil durou até o fim dos anos 70, em

Transpira SOM

Decoração

Esquecidos por uns e idolatrados por outros, hoje esses móveis “fofos” e históricos são considerados peças de luxo e bom gosto, com toques refinados.

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A Alegria dos Pés Palito texto de André Macarini

maravilhosa: nos EUA houve o primeiro manifesto feminista com a queima dos sutiãs; o Brasil vivia a repressão militar; vitória dos “vietcongues” no fim da Guerra do Vietnã. Essa foi grande década das cores: conquistamos a liberdade de expressão. Esquecidos por uns e idolatrados por outros, hoje esses móveis “fofos” e históricos são considerados peças de luxo e bom gosto, com toques refinados. Encontramos essas raridades, cheias de personalidade, em grandes marcas de decoração. Esquecidos porém marcantes e clássicos, hoje

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os pés palitos são sinônimo de luxo e bom gosto de uma história apaixonante, transformadora e revolucionária. Estamos fazendo uma deliciosa viagem a essa época, afinal nossa atualidade tem sido uma grande Guerra, não só individual, mas mundial. É preciso resgatar a Alegria dos lares, e os pés palitos são peças-chaves para cumprir essa missão com estilo.


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Um Lugar Não Comum

Goetheanum de Dornach

texto de Matheus Puga

U M LU G A R NÃO COMUM

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Que o mundão é um lugar fascinante a ser desbravado não há dúvidas. Existem inúmeros lugares fantásticos a serem frequentados, cada um com sua singularidade, cultura diferente e algo novo a ser visitado e descoberto. Sou uma pessoa que

ainda quer muito conhecer do mundo, ainda quero desbravar o meu amado Brasil, a América Latina [...] Quero conhecer milhares de lugares diferentes, emergir sob novas culturas e ter profundas


Um Lugar Não Comum Por motivos do destino, tive a oportunidade de visitar a Suíça duas vezes. Não conheci cidades indispensáveis de um roteiro de viagem tradicional, como Zurique, Genebra ou Berna. Fui a uma cidadezinha chamada Dornach que não tem mais de sete mil habitantes. Não imaginava que esta cidade pequenina a cerca de quinze quilômetros de Basel – quarta maior cidade da Suiça – marcaria profundamente a minha vida, pois

texto de Matheus Puga

experiências em novos ares com meu eu e com o novo universo que a viagem pode proporcionar. Estar em um lugar novo é uma experiência peculiar, que geralmente vem acompanhada de desafios, inseguranças, novas sensações, descobrimentos, manifestações de sentimentos como o de pertencimento ou não pertencimento e principalmente experiências profundas com nós mesmos.

A arquitetura chega a ser minúcia perto do processo de construção desse prédio e de toda a experiência interior profunda a que o indivíduo é apresentado ao visitar o local. 32


Um Lugar Não Comum texto de Matheus Puga

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minha passagem por lá se tornou uma das experiências mais extraordinárias que já tive. Ao chegar em Dornach, você se depara com uma construção impactante aos olhos, algo totalmente diferente de tudo que você já viu: Goetheanum - um bloco de concreto exuberante que leva o nome de um dos maiores poetas alemão – Johann Wolfgang von Goethe. É este lugar peculiar que quero apresentar a vocês! A arquitetura do lugar, sem dúvidas, é algo que chama atenção à primeira vista. O bloco de concreto retrata a arquitetura expressionista do século XX e o mais curioso é que a obra não possui

ângulos retos. Outro fato intrigante é que não é somente a arquitetura singular do Goetheanum que chama atenção. A arquitetura chega a ser minúcia perto do processo de construção desse prédio e de toda a experiência interior profunda a que o indivíduo O primeiro Goetheanum começou a ser esculpido em 1913, de forma totalmente manual: a sua construção foi feita a partir de duas cúpulas em madeira que foram pintadas por artistas locais do entorno da Basiléia e foi finalizado somente em 1920.


Um Lugar Não Comum e sua difusão pelo mundo, conhecer um pouco sobre a Antroposofia e todos os ensinamentos emancipatórios que Rudolf Steiner propôs como diretrizes para a humanidade. Minha passagem pelo Goetheanum me marcou, principalmente, pelas experiências fantásticas e de autoconhecimento que este lugar pôde me proporcionar. Dornach, a cidade localizada a cerca de 15 quilômetros ao sudeste da Basiléia, sem dúvidas, estará sempre presente em meus destinos de viagens como um refúgio, um desencontro do encontro com meu eu.

texto de Matheus Puga

Três anos após a inauguração, na noite que marcaria o primeiro dia de 1923, o local foi incendiado criminalmente, virando cinzas todos os esforços de Rudolf Steiner em construir um espaço cultural. Em março de 1924, Rudolf Steiner desenvolveu o projeto do segundo Goetheanum no mesmo local, entretanto a nova construção seria em concreto e marcaria o início da arquitetura orgânica e a sede mundial da Antroposofia. Mais de 700 atividades, desde congressos, conferências, tours, entre outras atividades. Foi neste lugar que tive a oportunidade de estudar um pouco mais a fundo sobre a pedagogia Waldorf

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10 anos da lei Maria da Penha

Quem é essa mulher e o que a sua luta diz respeito à nós?

texto de Gisele Moreno

10 ANOS DA L E I M A R I A DA PENHA

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Mais de 13,5 milhões de brasileiras se chamam “Maria” e trazem no corpo uma marca que mistura a dor e a alegria, como cantou Milton Nascimento em homenagem a tantas mulheres

que carregam o nome feminino mais registrado no Brasil. Dentre milhares de Marias Brasil afora, uma delas eternizou-se como Maria da Penha. Todos assimilam o seu nome, mas poucos conhecem o seu rosto. Maria da Penha Maia Fernandes


Maria, Maria É um dom, uma certa magia Uma força que nos alerta Uma mulher que merece Viver e amar Como outra qualquer Do planeta

Maria, Maria É o som, é a cor, é o suor É a dose mais forte e lenta De uma gente que ri Quando deve chorar E não vive, apenas aguenta (...)

10 anos da lei Maria da Penha

dormia - após meses no hospital e inúmeras cirurgias, Maria voltou para a casa paraplégica, sem movimentos da cintura para baixo. Na segunda tentativa, Viveros tentou eletrocutála durante o banho, sabotando o chuveiro elétrico. Viveros agredia não só a esposa como também as filhas, colocando-as debaixo do chuveiro com água fria. Maria da Penha foi submetida a um verdadeiro cárcere privado. Viveros não permitia que recebesse visitas nem se relacionasse com o mundo fora da casa. Só em 1991 – quase uma década após a primeira tentativa de assassinato – é que Maria conseguiu sair de casa, amparada por uma ordem judicial. O processo movido contra Viveros, permeado por irregularidades e anulações, se arrestou por anos. O caso de Maria da Penha chegou até a Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998. Em abril de 2001, a Corte determinou que o Brasil prendesse Viveros e recomendou que fossem garantidas mais proteções legais para as mulheres. Maria da Penha lutou por 19 anos e 6 meses para conseguir uma punição

texto de Gisele Moreno

(Ceará, 1945) é uma farmacêutica que virou símbolo de resistência e luta contra a violência doméstica, cujo engajamento culminou na aprovação da Lei 11.340 de 2006, que leva o seu nome e completou dez anos de vigência. Mas a estrada percorrida por Maria da Penha até conseguir resultados efetivos foi longa e difícil. A história de Maria da Penha começou em meados de 1970, quando fazia Mestrado em São Paulo e conheceu o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. Eles se casaram em 1976, ano em que tiveram sua primeira filha e foram viver em Fortaleza, já que tinham concluído os estudos em São Paulo. Maria da Penha conta que, após sair a naturalização de Viveros - por conta do casamento e das filhas – ele mostrou a verdadeira face, e mudou de comportamento da água para o vinho. Maria da Penha ficou perdida ao conhecer um outro lado do então marido. No ano de 1983, Maria da Penha sofreu fortes agressões de Viveros, o qual tentou matá-la por duas vezes. Na primeira delas, Viveros atirou em Maria à queima-roupa enquanto ela

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10 anos da lei Maria da Penha texto de Gisele Moreno

ao agressor. Viveros foi condenado a oito anos de prisão - ficou menos de dois.

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10 anos da Lei Maria da Penha No dia 7 de agosto de 2006, cinco anos após o Brasil ter sido condenado pela Corte Internacional de Direito Humanos pelas negligências com o caso de Maria da Penha, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 11.340. A Lei, batizada de “Maria da Penha”, ampliou o conceito de violência contra as mulheres, ao abranger não só a violência física e sexual, mas também moral e psicológica. A Lei elevou as penas e determinou a criação de estruturas para atendimento a mulheres agredidas, bem como estabeleceu mecanismos legais para medidas urgentes, como a retirada de mulheres de casa com manutenção da guarda dos filhos e o afastamento físico do agressor. Comemorando a primeira década de sua vigência,

as estatísticas apontam uma redução de 10% dos casos de mulheres assassinadas em decorrência de violência doméstica, segundo ativistas. Maria da Penha, hoje com 71 anos, continua percorrendo o Brasil proferindo palestras e debates sobre esse tema que tanto nos afeta. O caminho a ser percorrido é grande, mas a Lei Maria da Penha traz consigo as marcas de uma batalha que pertence a todos. Por conta de um marido agressor, Maria da Penha perdeu a mobilidade das pernas, mas não a capacidade de mobilizar todo um país na luta pelo respeito às Marias deste Brasil afora, que possuem a estranha mania de ter fé na vida.

Avancemos!


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texto de Gisele Moreno

10 anos da lei Maria da Penha


texto de AndrĂŠ Macarini

Aquela quarta-feira

AQUELA QUARTA-FEIRA


Aquela quarta-feira ta-feira foi longa, a chuva foi lenta, a música nos lavava e os quatro estávamos embriagados de sentimentos misturados, tentamos nossa rotina, tentamos fazer comida, tentamos rir, tentamos tudo... Foi quando percebemos que o que precisávamos era de silêncio e abraços, olhares e entendimentos. Foi um dia difícil, fantástico e estranho... Doze anos depois, esse dia me volta, com todas as cenas, sentimentos e mais uma vez (apesar da primavera) o vinho está sobre a mesa - faço um brinde em memória aos três que aqui não estão. Sinto o sol iluminando a escuridão de minha alma, as hortênsias pedindo chuva e eu pedindo a paz dentro de uma cabeça cheia de marcas e um coração pronto para amar cada dia mais. Quem nunca teve suas noites sombrias? Noites sem explicação, sem entender se são boas ou ruins, sem saber se está só ou cheio de só. Então deixo aqui minha melancolia de uma quarta-feira, que não era de cinzas, mas mais cinza que nunca.

texto de André Macarini

Era quarta-feira, chovia de uma forma diferente, na janela escorriam lágrimas – ao menos parecia. Dentro, uma melancolia tomava conta do espaço todo. Fora, uma alegria escorria pelas hortênsias azuis do inverno. O atraente vinho tinto me seduzia como uma bailarina solitária ao som de Tchaikovsky - era como seu eu visse aquela apresentação e de repente minha alma era aquela cena, enfeitiçado pela música que me tocava por dentro, em cima de um palco vazio e sem plateia, sem aplausos. Ao meu redor tinha uma lareira acesa e a garrafa de vinho sobre a mesa de madeira maciça, com cadeiras antigas que rugiam a idade e o peso, já não importava mais o fascínio pela vida: só me admirava ao fundo aquela senhora e seus baldes de água com papeis fazendo luminárias, com um sorriso de esperança, uma vida difícil, mas uma artista de alma, que através de seus papeis levava luz àquela casa. De repente éramos quatro: um peso de viver, uma alegria entristecida, objetivos e sonhos. Essa quar-


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Ângulos extremos

ÂNGULOS EXTREMOS

texto de Camila Schubert


Ângulos extremos texto de Camila Schubert

Acredito que a gente aprende a prestar atenção, a observar cada detalhe da vida e consequemente a gente se interessa pela vida, pelas coisas, pelas pessoas, por aprender.. É o que me move todos os dias, assim como acordar um dia num lugar onde tudo é grande - os motoristas, as pessoas tentando, vida, arranha-céus, festas, salto alto, perfumes fortes, shoppings, véu, dinheiro, pessoas, luz.

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Ângulos extremos texto de Camila Schubert

Dia seguinte acordar com alguém passando sede, vendendo pedras, 1 dihans para amarrar meu lenço embaixo de 40 graus celsius, sandálias desgastadas, mãos calejadas, esperança, ter o céu como teto, ter sua cultura enraizada, sorriso..

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Ângulos extremos

É disso que eu gosto, do contraste, do extremo, da experiência de poder viver os dois, sem preconceito, não é pior ou melhor, são meios, vidas..

texto de Camila Schubert

E de eternizar um retrato e uma lembrança desse senhor sempre me dizendo conforme andávamos: “Dont worry, be happy!”

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Esse abacaxi é nosso texto de André Macarini e Matheus Puga

ESSE ABACAXI É NOSSO

A construção da marca Hostel Clothing

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De onde surgiu o nome Hostel? Primeiramente, surgia ideia de “hospedar” artistas que serão sempre rotativos dentro da marca, pois queríamos algo itinerante e adaptável! Trabalharemos todo tipo de arte - afinal, arte nunca é demais. Para esta primeira coleção, convidamos os artistas Tarsila Schubert - com a sua arte de rua - Milton Puga - com a arte clássica - e Marcos Caracho, grande arquiteto com a arte de traços. Eles desenvolveram estamparias para levar a arte para as ruas: uma forma de expressar todo tipo de arte em

um lugar só, como uma galeria completa.

O que envolve a marca? Temos todos os tipos de roupa - masculina e feminina. No entanto, para a primeira coleção resolvemos focar mais no público masculino. Além disso criamos móveis de conceito vintage, trabalhando essas artes, em que cada um pode expressar em um móvel aquele sentimento de liberdade fora dos padrões. A Hostel também é a idealizadora e apoiadora da revista #desalienando, que difundirá cultura, conceito e comportamento através de uma leitura simples e bastante informativa, recheada de novidades culturais e temas muitas vezes não pautados pela grande mídia. O conteúdo da #desalienando permitirá ao leitor abrir sua cabeça para diferentes ideias, nada convencionais e muito instigantes. Esse será o grande diferencial deste veículo de comunicação idealizado pela Hostel e que circulará gratuitamente. Além disso, a #desalienando será produzida de forma colaborativa, através de textos e conteúdos produzidos por pessoas unicamente interessadas em difundir conhecimento e ideias, sem qualquer finalidade lucrativa ou remuneração, pautadas unicamente na vontade de dialogar. =)

texto de André Macarini e Matheus Puga

Fundar uma marca é descascar um abacaxi enorme. Um não, vários! Costureiras, tecidos, ideias, logotipo, nome, layout, público alvo, artes, cores, fornecedores, colaboradores, designer, noites em claro e muito café, haja abacaxi! E a inauguração? Fazer convites, expor ideias, a música, o live-paint, a arte urbana, a arte clássica, a arte de traços, todo mundo vai? Vão gostar? O que vão achar? No entanto, resolvemos arregaçar as mangas e descascar o abacaxi! Mesmo que todo novo desafio nos dê um frio na barriga, resolvemos encarar esse projeto com o maior carinho e empenho! Vamos falar sobre conceito e filantropia, apresentamos a vocês a marca Hostel.

Esse abacaxi é nosso

‘Esse abacaxi não é meu’, ‘prêmio abacaxi do ano’, são frases que cansamos de ouvir quando o desafio é grande

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Esse abacaxi é nosso texto de André Macarini e Matheus Puga

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Qual o fundamento da marca? Quando pensamos em fundar a Hostel, logo nos veio o questionamento: “quanto e como podemos ajudar para melhorar um pouco o meio em que vivemos? Como tornar o mundo da moda, por exemplo, um universo mais orgânico e de impacto?” A Marca Hostel surge em um cenário de transformações sociais e culturais, em que as necessidades de consumo se fundem aos ideais de uma sociedade mais igualitária e sustentável. Partindo desse pressuposto, pensamos em desenvolver uma marca que não só vista os nossos clientes, mas nos preocupamos em desenvolver uma marca completa que tem como fundamento o acesso a arte, cultura e informação para pessoas cujas possibilidades financeiras são mais restritas. Por exemplo, como primeiro projeto já estabelecemos que parte do valor de venda será destinado a aulas de pinturas

para adolescentes! Acreditamos que a arte, seja ela em qualquer instância, é uma excelente forma de emancipação. Ainda sobre o projeto, nossos artistas “hóspedes” escolherão as melhores telas e disso faremos novas peças de moda e móveis víntages, sendo que todo o valor arrecadado dessas artes serão destinados às famílias desses adolescentes. É aquela parada de ciclo! De incentivar também! Além disso, iremos promover intervenções como a da estamparia urbana já realizada, oficinas e cursos profissionalizantes para crianças e adolescentes que tenham interesse em causar impacto e distribuir cultura para a comunidade em que vive. Nos preocupamos também com a produção local, quase tudo que produzimos é de Bauru e região!

Mas só tem artistas na hostel? Não, a Hostel tem uma linha completa de roupas


Esse abacaxi é nosso

“quanto e como podemos ajudar para melhorar um pouco o meio em que vivemos? Como tornar o mundo da moda, por exemplo, um universo mais orgânico e de impacto?”

Como você gostaria de refletir a sua marca no mercado? A Hostel é uma forma de expressão de seus fundadores: queríamos algo que fosse de encontro com aquilo que gostamos, praticamos ou temos como ideal! O mercado da moda, por exemplo, vem sofrendo algumas mudanças, as pessoas estão mais conscientes e exigentes com o que consomem e cada vez mais as marcas terão de se atentar! A nossa ideia é quebrar os padrões de tudo ser certinho. Queremos levar informação através de nossos produtos, envolvendo sustentabilidade, arte e sociedade. Esse é o tripé da nossa logo - tudo tem três lados, são três artistas e três conceitos, três tipos de arte e três projetos: roupas, moveis e revista! Nossa ideia é sermos vistos como uma marca completa, sem comparativos, afinal, não somos fabricantes de roupas, e sim de informações e identidade.

Como surgiu a ideia de ter esses três projetos diferentes em uma marca só? Como dito lá em cima, é um abacaxi (risos). Primeiro, fomos fazer as camisetas e os fornecedores nos deram um prazo longo. Enquanto não chegava a data de entrega dessas peças, resolvemos fazer os móveis - mais um prazo longo nos foi dado. Quando as camisetas chegaram, faltavam os móveis e resolvemos fazer a revista. Enquanto fazíamos a revista, resolvemos fazer a linha de roupas feminina e a linha de camisaria masculina... foi aí que, desde o primeiro passo, passamos cinco meses descascando esse Abacaxi!! Uma coisa foi levando a outra, e tudo foi se encaixando. Envolvemos mais de 20 pessoas diretamente nesse projeto para que tudo isso se realizasse. Agora é o frio na barriga que não passa: temos um evento para duzentas pessoas convidadas, mais um abacaxi: “vai ser bem aceito?” - mas esse abacaxi já não é mais nosso, esse abacaxi agora é de vocês, e temos certeza que vocês adorarão descascar um pouco disso, porque tudo está incrível!

texto de André Macarini e Matheus Puga

e móveis que irão se aperfeiçoar conforme hospeda novos artistas em novos locais e em novas coleções. Os artistas complementam a nossa história - é como aquele acessório que você mais ama: não dá pra ficar de fora! A arte é o que nos motiva, e porque não espalhar mais dela pelo mundo?

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Gentileza

CRÔNICA DA GENTILEZA

texto de Gisele Moreno


Gentileza`

bege da sala de Seu Mário. Certo dia uma música de altura incômoda ecoava pela minha casa. Cogitei que aquela perturbação era fruto da falta de bom senso de algum vizinho qualquer. Quando sai lá fora, qual não foi minha surpresa ao ver alguns carros estacionados defronte à casa de Seu Mário, cuja porta estava aberta, indicando um trânsito inédito de pessoas. Aquilo era muito inusitado. Olhei as placas e vi que alguns carros eram de outras cidades, e soube que eram os netos de Seu Mário que estavam de visita ao avô, recém viúvo. A música era extremamente alta e o incomodo inevitável. A forma comum de proceder nesses casos é ligar para a Portaria pedindo que a casa seja intimada a desligar ou abaixar o som. Era a noite e caso eu reclamasse certamente o pedido seria de que desligassem. Apesar do meu desconforto com aquele barulho desnecessário, fui tomada por uma sincera alegria de imaginar o que aquele momento significava ao Seu Mário. Se a mim, com 30 e poucos anos, o barulho incomodava, imagine a ele, com seus mais de 80 anos? Certamente sua felicidade em ver a casa excepcionalmente preenchida era maior que qualquer outra sensação. Eu, por minha vez, consegui sentir uma gostosa alegria que fez adormecer o incômodo individualista que me fez ir até a porta descobrir de onde vinha aquele barulho. Sem perceber, pude praticar a idealizada gentileza. Percebi que ser gentil não é necessariamente um ato em si, mas também dar aquele pequeno passo para trás mesmo quando a felicidade alheia parece invadir um pouquinho nosso espaço. Ser gentil é ceder. Ser gentil é uma pequena declaração de amor pelo próximo.

Texto de Gisele Moreno

Ser gentil definitivamente está na moda. É um conceito que está ligado a pessoas finas, cultas, delicadas e atraentes. Me pego pensando quando é que terei a oportunidade de colocar a gentileza em prática. Seu Mário é o meu vizinho. Sua casa é de uma organização matemática. Na garagem, duas fileiras de piso intercalam-se com outras duas de grama, e ao que me parece o seu carro é estacionado milimetricamente acima das duas fileiras de piso. As de grama, assim como o resto do Jardim, devem ser aguadas dia sim dia não, sem falhas. A casa é branca e clássica. Na garagem, bem acima do carro, um pergolado. Fico imaginando que Seu Mário e sua esposa acordavam no mesmo horário todos os dias. Sobre o Seu Mário, as vezes o vejo no fim da tarde retornando a pé – tênis cinza, calção azul e camiseta branca, sempre - da padaria mais próxima, com a mesma quantidade de pães. Soube que a esposa do Seu Mário faleceu. Fico imaginando que o seu meticuloso cotidiano foi tomado por uma suave solidão. O vento que entra na janela (quase nunca aberta) certamente será mais sentido por ele. Não imagino que ele tenha amigos, até pela avançada idade. Parece que agora os pães trazidos à tarde serão menos. O cafezinho, que talvez era feito por sua mulher, agora será mais uma atribuição de Seu Mário, a ser cumprida pontualmente. Os dias se seguiram em um silêncio a mais que o normal. Parece que todos nós vizinhos sentimos um pouco a perda de Seu Mário, ao imaginar como deve ser difícil para alguém que vive tão calculadamente acostumar-se com uma mudança tão grande. Mas a perda alheia é rapidamente esquecida – nenhum de nós compartilha a solidão suave que parece ter se instalado, sem pedir licença, no sofá

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hostelclothing.com.br


“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Clarice Lispector


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