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Solidão é um sentimento do mundo Sentimento do Mundo ainda não existia. Não tinha cor nem pauta nem corpo, só a idéia e o nome. O empenho em torná-la real trouxe à tona a solidão. Além disso, esta primeira edição chega sozinha – aguardando, é claro, a chegada das próximas, quando vier a primavera, o verão, o outono... Enquanto espera o inverno passar, esta edição solitária se oferece para fazer companhia a você nesses meses que convidam a ficar recolhido em casa. Definir sentimentos não é coisa de dicionário. Para apresentar a solidão, Sentimento do Mundo recorreu aos relatos dos entrevistados, à observação dos repórteres e à sensibilidade das diagramadoras. Nas próximas páginas, a solidão motiva a procura por um par e é encontrada no fim do mundo. O sentimento também é retratado no niilismo que leva a buscar apoio em algo que nem se vê, e ainda inspira dicas para quem opta por estar antes só do que mal acompanhado. Sentimento do Mundo espera despertar sentimentos em você. Boa leitura e bom inverno! Sentimento do Mundo
[editorial]
Qual é, afinal, o sentimento do mundo? Na verdade, os sentimentos são vários. Sentimos amor, prazer, inveja, orgulho, superioridade, inferioridade, felicidade, saudade, e não meramente sentimos, mas agimos impulsionados por isso. Sentimento é parte da engrenagem que move o mundo, as gentes, os povos. Foi o que moveu Carlos Drummond de Andrade a escrever o poema e o livro homônimo a esta revista, e é a lógica em que Sentimento do Mundo se inspira para olhar ao redor, procurando enxergar, nos fatos, os sentimentos que os motivam. Sentimento do Mundo percebe como o mundo é a partir da suspeita de que a história – pessoal e coletiva – começa quando um indivíduo sente e age. Sentimento do Mundo também é um paradoxo. “Sentimento” remete a intimidade, mas, junto a “mundo”, revela que as experiências mais únicas e intransferíveis assemelham-se às de outras pessoas e podem ser compartilhadas, tecendo a rede das relações sociais. Sentimentos manifestam-se aos montes e ao mesmo tempo, mas falar de todos eles de uma só vez é complicado. Por isso, a cada trimestre, Sentimento do Mundo elege um sentimentotema, inspirado pela estação do ano.
[sumário]
6. Expediente 7. Colaboradores Quem participa quem tem fé nunca está só 20. Não sei se vou te
é azul Um ensaio fotográfico remonta cenas de Edwar 48. Fala Capricornianos falam sobre sua relação com
8. Entrevista Manoel Carlos e uma conversa sobre novelas, telespectadores e solidão 16. Olha amar Em busca do par perfeito 26. O tempo e o vento Érico Veríssimo inspira um retrato da remota Patagônia argentina 34. A solidão rd Hopper 40. Plano B Algo em comum entre leitores e super-heróis 46. Pensa Artigo sobre “Se meu apartamento falasse” m a solidão 50. Usa Dicas para quem quer ficar sozinho 52. Perfil Laura 54. Fim
desta edição
Um dia na igreja de São Judas Tadeu:
[expediente]
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Redação e edição: Débora Fantini, Luciano Falcão e Luiza de Andrade Projeto gráfico e diagramação: Júlia Freitas, Lívia Marotta e Olívia França Colaboradores: Alice Vasconcellos, Ana Lúcia Andrade, Ana Luiza Gomes, Bruno Nunes, Pedro Ferraz Cruz Agradecimentos: Bruno Souza Leal e Paulo Bernardo Vaz Ana Carolina Aderaldo, Café Tomé, Francisco Guerra Ferraz, José Luiz Penido, Marco Severo, Maria Cristina Freitas Elias, Maria Margarida de Souza, Terezinha Albernaz Impressão: Gráfica e Editora O Lutador Tiragem: 300 exemplares
Capa: Interferêcia sobre “Sol de Manhã” (Morning Sun, 1952), de Edward Hopper. Columbus Museum of Art, Ohio, EUA. Sentimento do Mundo é uma publicação trimestral, lançada no início de cada estação do ano.
Envie sugestões e críticas para sentimundo@gmail.com
sentimento do mundo
ANA LÚCIA ANDRADE Graduada em jornalismo pela PUC-MG, mestre em Artes Visuais pela UFMG e doutora em Ciências da Comunicação – Cinema pela USP. É professora do departamento de Fotografia,Teatro e Cinema da Escola de Belas Artes da UFMG. O que fez: artigo para a coluna Pensa. O que faz quando está só: "ouço música, danço. Além disso, adoro ir ao cinema sozinha."
ALICE VASCONCELLOS Graduada em Comunicação Social pela UFMG e graduanda em Design Gráfico pela Escola de Design da UEMG. Atua na área de criação publicitária. O que fez: ilustrações para a seção Usa. O que faz quando está só: “depende do humor ; ) – músicas calminhas, se tiver deprê, ou músicas pra dançar sozinha em casa, se tiver a fim.”
BRUNO NUNES Graduado em Design Gráfico pela Escola de Design da UEMG. Atua como ilustrador. O que fez: ilustrou o mascote da edição. O que faz quando está só: “assistir a filmes, escutar música ...”
ANA LUIZA GOMES PEREIRA Graduada em Publicidade pela PUC-MG. Atua como designer. O que fez: ilustrações para o Perfil e para a capa. O que faz quando está só: “Sonho!”
PEDRO FERRAZ CRUZ Geógrafo pela UFMG e mestrando em Tratamento da Informação Espacial pela PUC-MG. Atua como cartógrafo na área da consultoria ambiental e tem a fotografia como hobby. O que fez: fotos para O Tempo e o Vento. O que faz quando está só: "raramente fico sozinho, mas gosto de aproveitar o silêncio para ler e escrever também."
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[colaboradores]
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[entrevista]
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Se revista tivesse som, certamente você estaria ouvindo bossa nova. Um piano melancólico e alegre começaria a canção com sabor encantado de Vinícius e Tom.
Se tivesse gosto, seria de chope gelado. Se tivesse cheiro, maresia. Mas só há palavras, e, a essa solidão dos sentidos, resta a imaginação, capaz de trazer o Leblon para dentro das páginas. Com ele, virão as Helenas, guerreiras de um cotidiano cheio de verduras, vizinhos, trabalho, filhos e amores - que se parecem tanto com nossa mãe, com aquele amigo, com nós mesmos. De lá também virá o morador mais ilustre, inventor de um universo que já existe, apenas à espera de ser contado.
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Tramas
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MANOEL C ARLOS FALA A SENTIMENTO DO MUNDO SOBRE A CONSTRUÇÃO DOS PERSONAGENS A PARTIR DOS SENTIMENTOS, O
DRAMATURGO
A RELAÇÃO DE SOLIDÃO DO PÚBLICO COM A TELENOVELA E SOBRE SUA PRÓPRIA RELAÇÃO COM A SOLIDÃO E COM AS NOVELAS
[Por Luiza Andrade e Luciano Falcão Fotos Júlia Freitas] no Rio de Janeiro, mais precisamente no Leblon, que o paulista Manoel Carlos tece suas tramas cheias de histórias de gente comum vivendo uma vida comum. Aqui, ser comum vai além de ser classe média urbana _ sempre privilegiada pelo novelista. Significa ser irremediavelmente humano. A intensidade que permeia sua obra parece misturar-se com a vida. Trabalhou, observou, entendeu, casou-se algumas vezes, teve cinco filhos, perdeu um, envelheceu, escreveu novelas. Com elas, manipulou os sentimentos dos personagens e do público, seja quando falou em doação de medula, seja quando fez uma mãe trocar bebês para poupar a filha. Nas suas 14 obras, entre novelas e minisséries, a tônica foi o relacionamento _ e as mulheres. "Os personagens femininos são os mais ricos, as mulheres externam mais, dizem mais. Sou francamente atraído por elas", justifica. Na próxima trama, ele quer falar de casamento e AIDS _ a doença que levou seu filho e que, quase vinte anos depois, acha que já consegue abordar. Na TV desde o início (de ambos), Maneco fala para as massas através do veículo "maldito" por grande parte dos intelectuais. Ele dá de ombros: "existe preconceito, e não é só com a televisão. Parece que tudo que faz um grande sucesso não é muito bom. Uma peça que arrasta um grande número de pessoas, um livro que vende muito, nada é muito bom". E nem teria porque se preocupar. Com um salário altíssimo e audiência irrepreensível, ele entope o apartamento de livros, DVDs e gatos. Sim, ele sabe empregar seu dinheiro. Só e com afeto, ele nos recebeu em sua casa para uma tarde de conversa. Carinhoso, sempre “povoado” de amigos, filhos, amigos dos filhos, Manoel Carlos guardou nas entrelinhas sua maior companhia: os personagens. "Quando termina uma novela, aí, sim, sinto solidão. Fico vazio, vazio. Preciso quase que imediatamente pensar em uma outra e criar personagens para conviverem comigo”.
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Sentimento do Mundo Nas suas novelas, a gente observa que os personagens são construídos a partir dos sentimentos, em seu caráter mais humano.Você tem mesmo essa preocupação? Manoel Carlos Tenho muita preocupação. Quando faço a sinopse, pego cada per-
sonagem e traço um perfil dele. Escrevo uma página, até duas, com as coisas que ele gosta, as coisas que ele quer, como ele é, enfim, uma preocupação em humanizar ao máximo. SM Na sua obra, parece que os personagens são mais importantes que os acon-
tecimentos - que são dados em função das motivações desses personagens.Você acha que suas novelas são menos maniqueístas por conta disso? MC Procuro não ser. Isso já começa com a minha protagonista, que é sempre uma mulher cheia de defeitos. Às vezes, de imediato, o público idealiza aquela protagonista e não percebe.Todas as Helenas que escrevi _ todas elas _ enganaram o marido e os filhos. Elas sempre são mentirosas. Com isso, procuro mostrar que, apesar de serem heroínas na novela, elas têm problemas inerentes à condição humana. Em "Mulheres Apaixonadas", por exemplo, a primeira fala da Helena é "estou cansada do meu casamento". Imagina uma heroína confessar que não gosta mais do marido _ e esse marido é o Tony Ramos... Quando estou numa festa e alguém me chama de lado e me diz "vou te contar uma história que aconteceu e que dá uma novela", eu já sei que não dá. São histórias tão extraordinárias que não dão novela. Contam que o tio morreu, ressuscitou e... Aconteceu com o tio, mas não acontece em novela. Os movimentos extraordinários não me agradam. Gosto do que é factível, cotidiano. SM Em algum momento você foi obrigado a "chapar" um personagem por medo que não houvesse aceitação do público? MC Nunca. Evidentemente, me preocupo muito com a audiência. Todos nos preocupamos. A gente não é bem-pago assim para a novela não dar audiência. Quando isso acontece, não frustra só a TV Globo, mas deixa de cumprir seu principal objetivo, o de entretenimento de massa. Ela tem que ser gostada pelo maior número de pessoas, pobres e ricos, no sertão da Bahia. Quando "Por Amor" estava no ar na Rússia, esteve no Brasil o balé Kirov. O maior sonho das bailarinas era conhecer a Regina Duarte. Veja, bailarinas clássicas, tão envolvidas com outro tipo de atividade artística, apaixonadas pela novela.
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“TODAS AS HELENAS QUE ESCREVI _ TODAS ELAS _ ENGANARAM O MARIDO E OS FILHOS. ELAS SEMPRE SÃO MENTIROSAS.“ SM As Helenas reuniram características do ideal da mulher moderna, que não é feminista, mas que agrega as conquistas desse movimento, conciliando o afeto com a independência. Suas Helenas têm uma vida que não passa necessariamente pelo casamento, embora ele seja considerado e importante.Você acha que a mulher independente hoje é aquela que suporta a solidão, que suporta não estar casada? MC Acho que solidão é uma coisa difícil de ser suportada, mas há muitos pontos de vista para ela. Não me sinto solitário por estar sozinho. Às vezes, todo mundo viaja aqui em casa, e é um apartamento muito grande, e me dou muito bem: vejo filmes, escuto música, leio, escrevo. Às vezes, a casa está cheia, e fico solitário. Acho que a mulher moderna sabe lidar melhor com seus sentimentos. Procuro fazer uma mulher com altos e baixos, que se dá muito bem só, que até expulsa as pessoas de casa para ficar sozinha e fica feliz assim. SM Podemos estar enganados, mas observamos que muitas vezes há uma
correspondência entre a história de vida dos intérpretes e dos personagens que eles representam nas suas novelas _ como a Giulia Gam representar uma mulher ciumenta e a Vera Fisher, uma que rivaliza com a filha.Você confirma? MC Não há engano nenhum. É evidente que aproximo tudo. SM Você, que já atuou, pensa que é mais orgânico representar um sentimen-
to pelo qual já se passou?
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MC No caso da Vera Fisher, eu que já tenho o hábito de fazer isso, fiz com mais força até. Ela estava em crise com o marido e estava pra perder a guarda do filho. Então, fiz ela ser muito boa mãe porque isso tem influência no júri, no juiz, no processo todo. E ela é uma boa mãe, mas é uma mulher cheia de excessos. Se bebe, bebe um litro. Se dança, dança até as seis da manhã. O caso da Giulia Gam com o [Pedro] Bial estava na cara. Separou, teve briga, soco, pontapé, e é claro que aproveito essas coisas. Uma novela em que fiz isso mais acentuadamente foi "Baila Comigo", em 1981. Fernando Torres fazia o protagonista e como somos muito amigos _ estamos comemorando 50 anos de amizade _ eu conhecia os pais dele. Então tinha uma cena em que o Fernando falava do pai, mas falava do pai verdadeiro, porque eu contava histórias que sabia do pai dele. Com isso, ele chorava muito. SM A televisão e, sobretudo no Brasil, a telenovela funcionam como instrumento de escape para muita gente, que projeta sua vida nas tramas fictícias. Em que medida viver a vida de um personagem pode aplacar a solidão de quem só tem aquilo como diversão, como companhia? MC Ah, isso é fantástico. Eu acredito que a televisão, no mundo inteiro, é a grande companhia de todas as pessoas. Além de uma fonte de informação, é uma fonte de viagem. No caso da novela, é uma grande fuga, independente de a novela ser realista.
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SM Você se sente responsável de alguma forma em exibir para essas pessoas um mundo diversifi-
cado e mais realista? MC Na novela, brinco o tempo inteiro de ser Deus. Dou um filho pra uma, mato o outro, dou um câncer,
faço o outro viajar. A gente manobra isso como se fossem marionetes que, no meu caso, são muito próximas à realidade. A novela leva hábitos muito estranhos ao Brasil todo. Uma vez fiz uma viagem por lugares tão atrasados e vi meninas muito pobres com a botinha da Xuxa. É um pouco constrangedor. E um pouco inevitável. Novela vende tudo, vocês não podem imaginar. É só botar uma atriz com um baby-doll que no dia seguinte o telefone da Globo não pára, com gente perguntando onde pode comprar a roupa. Quando "Presença de Anita" terminou, tudo foi a leilão. Tudo vira produto. SM Sua novela reflete demais esse tempo do agora, onde os papéis de
mocinho e vilão podem ser confundidos, relativizados. Até onde é possível traçar perfis psicológicos complexos num veículo de massa como é a TV? Até onde ela te permite ir? MC Aprofundar não dá. Às vezes a gente tenta fazer um pouco mais em um per-
sonagem. Mas não dá pra ficar muita raso, na superfície. SM Principalmete porque você está se propondo a relatar o cotidiano, e os
papéis são tão relativos, com momentos de vilania e de mocinho. MC E minhas vilãs nem são tão diabólicas. Na Branca [personagem de "Por Amor", interpretada por Suzana Viera], o maior gesto de vilania era discriminar o filho, mas ao mesmo tempo ela era apaixonante. Minhas vilãs são muito sedutoras. SM A televisão é um canal muito responsabilizado pela alienação, ao deixar
telespectadores centrados na tela e solitários do mundo. Existe uma tendência em quebrar essa redoma ilusória com as campanhas sociais, por exemplo, pela doação de medula óssea ou pelo desarmamento. Por outro lado, esse mershandising social é encarado com críticas, por massificar comportamentos oriundos de uma lógica burguesa, que dita o que é certo e o que é errado. Como você enxerga isso? MC Isso pode ocorrer. No caso das minhas novelas, me preocupo realmente em
fazer com que, além de vender edredom, isqueiro etc, venda também boas campanhas, como a doação de medula. No caso de "Mulheres Apaixonadas", eu legislei no país. Fiz criminalizar a violência doméstica. Fiz com que os velhos tivessem leis protetoras. Então, acho altamente positivo "vender" isso para o público. Quando traz informação, a novela pode ser muito mais útil que uma propaganda paga pelo governo.
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14 SM Você costuma dispensar a ajuda de colaboradores para a escrita de uma novela. Em contrapartida, é obrigado a dividir a autoria com milhões de pessoas. É confortante ou desesperador saber que não está só nesse projeto? MC É muito bom. Caminho todos os dias pelo Leblon, é
religioso. Sou conhecido aqui como se fosse a Vera Fisher, porque ando há quase 30 anos e vou a todos os lugares. Converso com o português da padaria, paro em todas as bancas de jornal, entro em bancos, vou à floricultura da Guiomar, quero saber o que ela está achando da novela... e mudo muita coisa por causa disso. Relaciono-me muito bem com meu público. É solitário quando escrevo sozinho, mas ao mesmo tempo estou acompanhado de tantos personagens que, quando termina uma novela, aí, sim, sinto a solidão. Fico vazio, vazio. Preciso quase que imediatamente pensar em uma outra e criar personagens para conviverem comigo. SM Você é um pouco flaneur, não? Já declarou várias vezes que costuma observar as cenas do cotidiano, a resposta das pessoas nas ruas, a gente comum. A observação é o seu principal instrumento de trabalho? MC Sem dúvida nenhuma. E tenho uma memória prodigiosa, felizmente. Lembro de frases inteiras que minha mãe dizia quando era menino, coisas que eu dizia, meu pai, meu tio, meus amigos. Tenho um livro chamado "lixo" em que anoto tudo o que me interessa. Também leio jornal com tesoura na mão. No domingo, a banca me entrega jornais de todo o Brasil. Pego um jornal de Fortaleza, do Rio Branco e passo os olhos. Se encontro uma coisinha que aconteceu lá no Ceará, eu recorto, ponho a data e colo. Às vezes, estou sem nenhuma inspiração para fazer o capítulo, então passeio por esse "lixo". Observo muito, escuto muito e tenho boa memória. São armas fundamentais para quem tem que escrever de 45 a 50 páginas por dia. SM A sua próxima novela está prevista para estrear no meio do ano que vem. Quais sentimentos você pretende abordar na próxima trama? MC Tenho algumas coisas pensadas. Já escolhi a vilã _ vai ser a Lílian Cabral. Já pen-
sei em fazer da Helena uma mulher do Ministério Público, que se preocupa com problemas sociais. AIDS e crianças com síndrome de down também são muito interessantes. AIDS, principalmente, porque vejo que houve um relaxamento depois do AZT, então penso em fazer um homem que infecta a esposa porque tem relação bissexual. Eu perdi um filho de AIDS em 1988 e sempre quis abordar o tema. A Lílian Cabral vai ser uma mulher ressentida, que estraga casamentos. Já usei isso em outra novela, mas muito pouco. Na verdade, quem escreve novelas em que ninguém voa, escreve sempre a mesma novela, porque todo mundo tem vizinho, pai, mãe, empregada. Não há nada novo _ a não ser a maneira de contar.
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15 SM Você já deu algumas pistas ao longo da entrevista, qual é sua relação pessoal com a solidão? MC Não sou alegre, mas me considero feliz. Sou feliz sem alegria e tenho uma boa relação
com a solidão. Dou-me bem sozinho, não fico desesperado. Claro que com a idade a gente vai ficando mais preocupado com isso.Tenho filhos de 52 e de 13 anos.Talvez minha vida não seja tão solitária, tão desagradável [A Júlia já chegou? _ ele pergunta sobre a filha à empregada, e vira-se para nós: Ela está voltando amanhã para Nova Iorque, está morando lá. _ de novo para a empregada: Ela já providenciou tudo? Ah, então 'tá bom.] Eu tive cinco filhos, então sou tão povoado que as coisas passam de maneira diferente pra mim. Há casais que não têm filho ou cujos filhos casam e a convivência fica muito difícil. Nos Estados Unidos os filhos vão morar fora com 18 anos, então fica aquele casal que apaga as luzes muito cedo e vêem TV. Vão ficando sozinhos e se amargurando. Lá o problema da solidão é muito grave. No Brasil, não, as pessoas conversam com amigos e vizinhos. Eu tive a sorte de ter esse monte de filhos e “SOLIDÃO É QUARTO DE HOTEL. VOCÊ SAI, ANDA, acho que nunca me cansei das minhas três mulheres [ele viveu dois casamentos de dez anos cada e está casado pela terceira vez há 25 PASSEIA, MAS CHEGA UMA HORA EM QUE VOCÊ TEM anos] porque sempre tive filhos com elas. QUE VOLTAR PARA O HOTEL.” Solidão é quarto de hotel.Você sai, anda, passeia, mas chega uma hora em que você tem que voltar para o hotel. Minha mulher e eu viajamos muito e sempre levamos porta-retratos. Acho que me dou bem com solidão, mas nunca experimentei estar só, só. Solidão está muito ligada ao sofrimento. Mas também com introspecção, privacidade. E essa eu não acho ruim.
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Segura na mão de Deus
[Por Débora Fantini Fotos Júlia Freitas e Olívia França]
ROMEIROS DIRIGEM-SE TODO DIA 28 AO SANTUÁRIO DE SÃO JUDAS TADEU, EM BELO HORIZONTE, EM BUSCA DE GRAÇAS E RESPOSTAS
... apóstolo glorioso, fiel servo e amigo de Jesus, o nome do traidor foi causa de que fôsseis esquecido por muitos, mas a Igreja vos invoca universalmente como patrono nos casos desesperados, nos negócios sem remédio... Voltados para a imagem, os fiéis reunidos no Santuário de São Judas Tadeu, em Belo Horizonte, rezam em uníssono a oração que repara a injustiça cometida contra o santo. Confundido com o homônimo Iscariotes _ que até hoje é queimado nos sábados de Aleluia por trair Jesus com um beijo _, Judas Tadeu _ que justamente por pregar o Evangelho foi morto a golpes de alabarda, uma machadinha _ ficou no ostracismo até o século 14. "Foi quando Santa Brígida recebeu a missão de difundir a devoção a São Judas Tadeu. Se Deus fez questão, é porque São Judas é poderoso mesmo, daí a fama de santo das causas impossíveis", explica o padre Pedro de Sousa Pinto, pároco do Santuário. Graça encaminhada, a maioria dos fiéis sai apressada, afinal é quinta-feira e passa das sete da manhã. Nos bancos se acomoda uma nova leva, que aguarda a missa das oito. Ao longo do dia serão celebradas outras seis, hora sim hora não. É assim o dia 28 de todo mês, embora o oficial seja em outubro, lembrando a data do martírio. "Pelas missas passam 21 mil pessoas, mas deve vir mais de 60 mil. E em outubro deve beirar cem mil", calcula padre Pedro, que divide as celebrações com dois padres da paróquia e eventuais visitantes. Até as oito horas, pelo menos mil pessoas passaram por ali. É o número de santinhos que a estudante Luciana da Silva Ferreira, 19 anos, e o namorado, Ernesto Domingos Júnior, acabaram de distribuir. "Ele estava no CTI, e me senti incapaz de ajudar. Prometi distribuir um milheiro se ele melhorasse", conta a moça, frisando que freqüenta o Santuário religiosamente.
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Religiosamente ou não, muitos vão ao Santuário orar, acender velas, beijar a fita e depositar aos pés da imagem pedidos dobrados com esperança verde como a túnica do santo dos desesperados, que surge replicado: são crianças fantasiadas para pagar promessas. Entre as grades que organizam a fila para chegar à imagem, a doméstica Elenice Nunes, 51 anos, afirma ir todo mês: "não dá pra enfrentar as dificuldades sozinha, é preciso a força de Deus". A secretária desempregada Maurília Pereira da Cruz, 58 anos, emenda: "ter fé é como estar perto do pai e da mãe, bem seguro. É só pedir que Deus apóia, aliás, nem precisa pedir". E relata como o filho e um casal de noivos foram salvos de um acidente de carro. "Nem os presentes quebraram, só as imagens de São Judas e São Cristóvão", conta ela, que se diz beata. Mas na fila também há espaço para quem rejeita o catolicismo. "Tem horas que a gente não se basta. Se não acreditar em nada, está perdido", diz a médica Paula Morais, 46 anos. inverno 05
Ela alega não concordar com os dogmas da religião, mas há três anos esteve no Santuário para pedir a aprovação do filho no vestibular. Graça alcançada, volta todo dia 28 e aproveita para fazer mais pedidos. O motorista Juraci Rocha Queiroz, 42 anos, pegou dois ônibus para chegar a tempo de assistir à missa das dez. É um sacrifício que se impôs há 20 anos. Do lado de fora da igreja, ainda que sobre lugar nos bancos, medita, buscando fé em si mesmo: "Deus está dentro de mim. A vida não é como essas novenas, que dizem que você vai conseguir tudo no nono dia. É luta, correr atrás. O que tenho, é por mérito meu". "Aprecio a meditação em silêncio, à luz de vela.Vejo em filmes e acho bonito, um dos meus lugares favoritos é a capela das velas", afirma Juraci. No cômodo quente anexo ao Santuário, milhares de velas consomem-se, enquanto avivam a esperança de quem as deixou ali. Os camelôs _ a maioria crianças e adolescentes _ oferecem pacotes com dez a R$ 1. Verônica Bartolomeu, 16 anos, vende velas nos dias 28 há dois: trabalha de cinco da manhã às sete da noite e fatura, em média, R$ 70. "É melhor do que ficar à toa em casa", contradiz-se a garota que afirma ser estudante.
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Segundo contam, o Santuário não foi o responsável pelo batismo do bairro, mas sim uma moça chamada Graça, amante do sujeito que loteou a região. "Seria tão bom se o nome do bairro tivesse sido dado por causa do Santuário. Aqui é uma espécie de pára-raios onde o pessoal vem buscar o apoio verdadeiro, que nunca se ausenta", lamenta padre Pedro. Nem todo mundo. Uma fila que começa na praça e desce a rua até a entrada da igreja entoa sua ladainha, que não é direcionada ao céu: Me dá uma ajuda aí, moço. É pras criança... No coro de mulheres, crianças, deficientes e quase nenhum homem, sobressai a voz lamuriante mas forte. É uma senhora, assentada no chão de pedras como uma estátua de Buda _ mas não concede, pede dinheiro. À sua frente, Simone Aparecida de Souza, 38 anos, está ali "porque muita gente vem pagar promessa e dá ajuda", fala, enquanto o filho Jean, 4 anos, pede "mais uns" a um homem que distribui pão com mortadela. Mas na sacola tem apenas trinta sanduíches, "um pra cada um", o homem retruca. "A gente ganha mais é roupa e uns trocados, cesta é difícil. De manhã deu mais dinheiro porque tinha pouco [mendigo]", diz Simone. O frio afastou os outros mendigos, mas perto do meio-dia eles começam a chegar, e, às
O Santuário de São Judas Tadeu foi construído na década de 60 para atender à demanda do bairro das Graças, região Nordeste. As romarias só começaram vinte anos depois, estimuladas pelo pároco, padre Mesquita, que divulgava ferrenhamente a novena em honra ao santo. A maioria dos romeiros chega de ônibus. Saltam na avenida Cristiano Machado e sobem a rua Geraldo Faria de Souza, interditada. Atravessam duas fileiras de barracas que vendem artigos religiosos, bijuterias, comida e outros produtos. Na praça Poá, trombam com homens camuflados. São sargentos e subtenentes do Exército que habitam as casas gêmeas do entorno da praça com suas famílias. "É um transtorno, mas ninguém se queixa. E se queixassem, como é que segura esse povão?", indaga padre Pedro. "Nem preciso contatar os órgãos públicos. A Polícia Civil manda as viaturas, a BH Trans muda o itinerário dos ônibus, a prefeitura organiza as barracas", afirma. O serviço médico cabe a uma empresa contratada pela paróquia. Além dos funcionários _ que agendam as intenções das missas, a R$ 1,50 cada _ e do grupo de Ministros da Eucaristia _ que distribui as hóstias _, 60 voluntários de colete verde recolhem o ofertório, distribuem o Jornal São Judas Tadeu e dão informações.
dezesseis horas, a fila está completa. "É um problema social, mas, desculpa a expressão, essas pessoas se tornaram profissionais da mendicância. Tem uns que chegam na véspera, de Kombi, jogam futebol a noite inteirinha e no outro dia...", relata padre Pedro. "Mas isso não é da competência da gente, seria do poder público. Exploração de crianças, isso o Conselho Tutelar que devia olhar. Fica chato acionar esses negócios, parece que a gente não quer."
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Quase sete da noite, a artesã Mailza da Silva Gomes, 40 anos, que há uma década expõe na feira do Judas, desmonta a barraca de bijuterias. "Depois das seis, não vem mais ninguém", diz. Ela reclama que o movimento de fiéis diminuiu muito nos últimos cinco anos, por causa da construção de outras igrejas. "Tem igrejas de São Judas no Eldorado, em Betim, Sarzedo, Ibirité e [Ribeirão das] Neves. No Betânia estão construindo uma com capacidade maior que a do Santuário", enumera padre Pedro, para quem o movimento no bairro das Graças não mudou. "O número de fiéis aumentou, mas eles têm outros lugares para ir, mais perto de casa", acredita. A comerciaria Maria José Vieira, 40 anos, concorda que "passa muito menos gente". Apesar disso, ela mantém a banca armada até as dez. Ao contrário da devota Mailza, que se incomoda em passar os dias 28 trabalhando, Maria José dispara: "então não posso trabalhar dia nenhum, porque todo dia é dia de Deus". Evangélica, diz que, segundo a Bíblia, "quem não conhece Deus é só criatura. Depois que conhece, a gente vira filho dEle, e Ele cuida, protege e salva".
Segura na mão de Deus, segura na mão de Deus, pois ela, ela te sustentará. Não tema, segue adiante e não olhe para trás. Segura na mão de Deus e vai. Alguns fiéis acompanham a letra pelo painel eletrônico estreado seis missas antes, mas a maioria sabe a letra de cor e canta de olhos fechados. Pela última vez no dia, padre Pedro anuncia a bênção final. Erguem-se terços, velas, imagens, livros de rezas, mas também fotos, chaves e, principalmente, carteiras de trabalho. Uma hora mais tarde, a igreja esvazia rapidamente, e as portas são fechadas, cumprindo o aviso da faixa estendida na entrada: ESTE SANTUÁRIO PERMANECERÁ ABERTO ATÉ AS 22 HORAS.
A procura
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rocura-se. Moreno, alto, magro, sincero, baixinho mesmo, fiel, companheiro, olhos claros, disponível. É só olhar em volta e escutar o que os solteiros têm a dizer para perceber que o mundo clama por um par. Pudera, não é fácil levar a vida sozinho, um paradoxo quando se pensa que as novas tecnologias deram ao homem a possibilidade de trabalhar e se divertir sem se encontrar. No entanto, há necessidades de outra ordem que solicitam a presença de alguém ao lado. Só que encontrar esse alguém pode não ser nada fácil e, para atrapalhar essa busca, muitos ainda teimam em perpetuar clichês como “no dia em que você menos esperar, ele cruzará o seu caminho e aí... será para sem-
pre.” Mas pode ser que ninguém cruze o seu caminho. E se cruzar, pode ser apenas para te perguntar as horas, embora seja bastante provável que, um dia, você se relacione com alguém. Para encurtar o tempo de espera, algumas pessoas tomam medidas mais radicais – ou mais objetivas. E o mercado de agências matrimoniais adora quando isso acontece. No catálogo telefônico de Belo Horizonte, constam apenas três, mas outras oito agências locais funcionam pela internet. Roberto Mattorelli, dono de uma das maiores agências da cidade, defende o negócio: “o perfil da nossa agência é sério, de pessoas sérias à procura de um relacionamento sério”. Roberto já trabalhou como jornalista no norte de Minas, e hoje dá continuidade ao projeto da
Não sei se vou te amar [ Por Luciano Falcão Fotos Olívia França ]
NO
UNIVERSO DOS QUE PROCURAM UM PAR, O
ÁRDUO CAMINHO PARA ENCONTRAR A PESSOA MAIS PRÓXIMA DO IDEAL
esposa, que resolveu partir para o ramo das dietas. Para provar a tal seriedade, ele mostra as duas fichas de cadastro: na primeira é traçada a personalidade – se o cliente se considera, por exemplo, esclarecido, sensível, higiênico. Em seguida, descreve-se a aparência, especificando cor dos olhos, da pele, tamanho e peso, entre outros aspectos. E não adianta mentir, já que para realizar o cadastro tem que incluir foto – mas sem ousadias: “não aceitamos fotos de sunga, maiô ou biquíni para evitar o desvirtuamento de pensamento”, avisa. Os dados são lançados no sistema, que cruza as informações e seleciona os pares mais adequados a cada cliente. As fotos servem de desempate: o cliente decide quem é “mais apresentável”. Roberto se orgulha ao falar
dos 150 casais unidos pela agência em oito anos de serviços prestados, embora reconheça que o mercado não correspondeu às suas expectativas. “Se o governo piora, menos clientes vêm gastar”. Ele julga o serviço indispensável para os divorciados – quase 70% da clientela –, carentes de uma ajuda profissional: “são pessoas que perderam a prática da paquera, que não sabem o que vão encontrar na rua”. Os mais tímidos merecem tratamento especial, mas têm que pagar mais por isso. Um tratamento complexo, com acompanhamento psicológico, pode custar R$ 195, o pacote de três meses, mais que o dobro de um caso simples, que sai a R$ 75. A psicoterapeuta Maria Luiza Vasconcelos atende os clientes que solicitam o pacote especial por uma espécie
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de convênio com a agência. Segundo ela, na maioria das vezes, a baixa auto-estima impede as pessoas de encontrarem um amor: “teve uma adolescente que só via defeitos nos rapazes que encontrava na agência e não conseguia levar nada adiante com nenhum deles.” Em alguns casos, as pessoas nem encontram os selecionados: “muitas vezes são pessoas gordas demais, que não têm coragem de se apresentar”. O cineasta Daniel Roscoe, de 28 anos, não se considera um homem feio, mas admite certa timidez. Prefere conhecer as meninas previamente por uma conversa na internet para evitar aqueles enganos típicos de primeiro encontro. Há cinco anos, viajou para o Rio de Janeiro a trabalho e, como era de costume, entrou em um chat. Começou a conversar com Amanda, que, na época, tinha 16 anos. Ela morava em Divinópolis e ele, em Belo Horizonte. A afinidade ficou clara em algumas horas de conversa, eles trocaram telefones e a história teve um desfecho feliz.
O encontro – Estou indo aí! – A essa hora? Já é meia-noite. – Me espera que eu estou chegando. No janeiro seguinte àquele primeiro contato, Daniel não agüentou. Estava se sentindo só, e, afinal, a distância entre Belo Horizonte e Divinópolis é de apenas duas horas. Durou até menos. Amanda, que se preparava para dormir na casa de uma amiga, foi para o meio-fio esperar por aquele que já amava: “já gostava dele por telefone”. Quando se virou para comprar um cachorro-quente, o avistou pela primeira vez. Only you can make this world seem right... – No começo fiquei meio sem graça – ele diz. – Ele já chegou me dando um beijo. – O que mais me chamou a atenção foi o sorriso dela. – Já sabia que ele era careca – ela ri. Moram juntos há um ano. Em fevereiro, se casaram oficialmente. Os filhos podem vir a qualquer momento. sentimento do mundo
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“PARA
ESTAR COM ALGUÉM É PRECISO ENFRENTAR A PRÓPRIA SOLIDÃO”
Na entrevista a seguir, a psicanalista Maria Elizabeth Timponi de Moura discute o papel do parceiro amoroso
A relação amorosa é capaz de suprir a solidão? A psicanálise constatou que o objeto de amor está intimamente ligado a uma dimensão idealizada do próprio sujeito, assemelhando-se ao que ele foi, ao que ele julga ser ou ao que ele quer ser. Sendo assim, pode ser que, paradoxalmente, a relação amorosa seja a solidão por excelência. Por que, para muitas pessoas, é tão insuportável ficar só? Nesse campo as generalizações são perigosas, já que várias significações são dadas ao “estar só”. É possível, por exemplo, que o insuportável em estar só refira-se à idéia de estar excluído, ou a outros sentimentos dolorosos. De qualquer forma, é possível verificar que, quando as pessoas estão disponíveis para se dedicarem àquilo que desperta nelas um grande e genuíno interesse, o sentimento de solidão arrefece. Na procura por um namorado, há quem recorra ao intermédio de agências e sites. Em alguns casos, as pessoas têm algum tipo de contato, mas não se o encontro pessoalmente. Por que elas não conseguem conhecer os parceiros que dizem amar? Talvez elas não se disponham a confrontar-se com as próprias inibições ou limitações no que se refere ao relacionamento amoroso. O outro pode ser apenas um personagem dentro da obra de ficção que cada um constrói a seu modo. Pode ser que simplesmente as pessoas apreciem o fato de, nos encontros virtuais, “não precisar de depilar”, revelando, talvez, pouco interesse em perder algo de si para entrar em uma relação. Por que existe uma cobrança da sociedade em relação a quem não namora ou não se casa? Há um movimento que começa na família, escola e grupos sociais. É lógico que o acasalamento vem atender a uma condição inerente ao ser humano, que é a de não se bastar, esse fato não pode ser menosprezado. Por outro lado, é possível assistir hoje a uma aceitação cada vez maior de modalidades de relacionamento mais arejadas e realistas, visa a atender muito mais às pessoas envolvidas do que ao que se espera delas. Por que, de um modo geral, espera-se tanto do parceiro amoroso? Ao longo da vida, parece que o homem tem que desvincular o amor de uma idéia, primitiva e imaginária, de que o outro pode suprir tudo o que lhe falta. No contexto da pós-modernidade, quais são os desafios lançados ao homem no campo do amor e dos relacionamentos? Conciliar o amor com a possibilidade de independência. Na pós-modernidade, as pessoas têm menos “necessidade” de estar com o outro, em termos concretos. E falta tempo. Nessa medida, o parceiro vira um problema para quem tem muito o que fazer e para quem persegue a realização de algum projeto pessoal. As facilidades do mundo atual supostamente preenchem essa lacuna, mas os sintomas estão aparecendo, como a depressão.
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O desencontro Deseja-se muito de um parceiro. Essa é uma conclusão possível quando se ouve os relatos de quem não está satisfeito com o amor escolhido. Amanda, a protagonista da cena anterior, já reclama dos momentos em que Daniel chega tarde do trabalho e dorme imediatamente. No entanto, ela reconhece que precisa ficar só em alguns momentos e tenta aproveitar a ausência do marido para isso. “A relação amorosa é quase uma relação consigo mesmo. Para estar com alguém, é preciso estar diante da própria solidão porque o parceiro amoroso tem limitações e não é capaz de suprir todas as suas necessidades”, diz a psicanalista Maria Elizabeth Timponi. Os motivos que aceleram o fim de uma relação variam, também, de acordo com os gêneros. Os homens alegam que o excesso de cobrança e possessividade mina a convivência. Entre as mulheres, a reclamação campeã é a falta de companheirismo. “Ele não gostava de música e me podava”, desdenha Yara Gontijo, 50 anos, que se divorciou do marido há alguns anos. “O afeto pelos sobrinhos substituiu”, diz. Rafaela Fernandes, de 15 anos, discorda: “faz falta não ter um namorado. É um carinho diferente, que os seus amigos não conseguem te dar”. Mas pondera: “a pior coisa que existe é se sentir só junto com alguém”. E quando as coisas não vão bem no relacionamento, há vários recursos para resolver ou protelar as decisões: discussões intermináveis da relação para tentar chegar ao “cerne da questão”. Ou uma viagem de final de semana para espairecer e reacender a “chama da paixão”. Ou um “tempo” para pensar melhor no que fazer. Ou uma simpatia. Ou consultar as cartas. “As pessoas sofrem quando percebem que a sobrevivência delas depende de alguém”, é o que conclui a taróloga Consuelo Brandão, 70 anos, baseada em sua experiência. Segundo ela, as pessoas – tanto homens quanto mulheres – reclamam de incompatibilidade. Pelo mesmo motivo, ela própria separou-se três vezes e, hoje, considera-se feliz em um novo romance. “As pessoas mudam e o que é mais adequado para elas muda também”. Mas desaconselha o enlace a qualquer preço:“muitos dos meus clientes estão juntos por carência e já descobriram que não é isso o que querem”.
A procura (bis) Pronto. Acabou. Não é mais. Você está só novamente. E novamente você sai à procura. Mas onde? Imagine um lugar onde as pessoas procuram. Não um lugar qualquer, onde isso até pode acontecer, mas um lugar onde, da música à decoração, dos sorrisos aos cigarros, tudo confabula para o objetivo de sair dali acompanhado. Estamos em uma famosa casa de shows da cidade. Daquelas tradicionais, com dança de salão às terças. O público é heterogêneo: Corcel, Audi, enfermeira, empresário, manicure. Do lado de fora, a porta dourada sugere mistério. Lá dentro, tudo é vermelho, tudo remete ao amor, à paixão – menos o teto, que parece um exótico iglu, sentimento do mundo
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DIREITOS branco e oval, com estalactites (aquelas formações que pendem do teto das grutas). No scotch-bar, homens solitários tomam um drink e paqueram. O funcionário público Lauro Ramos, 47 anos, é um deles. Enquanto bebe um whisky, prefere não confessar que deseja a mulher da mesa ao lado. Diz que nunca se casou e que já conheceu muita gente ali. Há um ano, flertou com uma mulher, e a história terminou em namoro. E terminou em término há pouco tempo: “o bom de estar só é que a gente está livre para encontrar alguém.” Foi tanto que eu te amei, e não consigo... A seleção de músicas não é aleatória, embora misture estilos que não se encontrariam em uma mesma festa. De Bee Gees à Zezé di Camargo, o importante é falar de amor e embalar os casais. A pista de dança é estratégica e serve de pretexto para uma abordagem mais incisiva. ”Estava na pista e a convidei para dançar. Como estava quente, soprei o pescoço dela pra ela achar que era o ar-condicionado e aproveitei para dar um beijo.” Foi assim que o motorista Wanderley, 49 anos, conquistou a recepcionista Luzia, 50 anos, com quem está junto há três anos. Wanderley se sentia só na época, mas garante que é freqüentador antigo da casa e que nunca foi ali para paquerar: “venho para dançar. Se rolar, tudo bem.” Começa a ficar tarde, e muitos vão embora. A música muda e fica mais sugestiva. Hoje a geripoca vai piar, vaaaaaai, vai piar a noite inteira, vai... Nas mesas centrais, estão os casais que vieram juntos ou aqueles que acabaram de se conhecer. Nas mesas laterais, homens e mulheres se amontoam, deixando bem clara a disponibilidade. A garçonete Maria Aparecida dos Santos, 39 anos, não esconde a frustração de estar sozinha. Há cinco anos, o marido faleceu. “Hoje dancei com um homem, mas não sei no que vai dar”, diz. Parece que já sabe. “Para distrair a solidão, eu choro”, entrega. T.A., 49 anos, não está na casa de shows, mas também deseja encontrar um amor. Está em casa, à espera. Tem tentado. Os homens que conheceu na internet revelaramse problemáticos demais. Sair à noite também não lhe parece a melhor opção. Às vezes, a solidão é encarada com prazer, nos mínimos detalhes. Às vezes, porém, é sinônimo de desperdício: “as pessoas foram feitas para viverem juntas, para irem ao cinema, jantar”. E, ao falar da sua solidão, fala de todos: “lidar com a solidão é lidar com você mesmo.” Tinha cá pra mim / Que agora sim / Eu vivia enfim o grande amor / Mentira... inverno 05
IGUAIS
Eles também latem por um par. Cansaram da rotina fatigante e solitária entre os humanos, sem uma companhia que possa entendê-los melhor. Os donos sensíveis à causa captam o pedido e recorrem a uma agência matrimonial para bichos. Na internet, existem várias. Em uma delas, a clientela abrange cães, gatos, aves, cobras, hamsters e iguanas. O procedimento é basicamente o mesmo das agências para humanos. Há um cadastro para descrição da aparência, obviamente menos elaborada: “cobra preta da cabeça vermelha” – relata um dos clientes. A possibilidade de destaque também passa pela lógica humana: se tem pedigree ou já participou de competições, a chance de arrumar um pretendente aumenta, como é o caso da surucucu branca que acumula os “primeiros lugares no Nacional Snake Show e no Torneio Internacional de Animais Peçonhentos”. Características da personalidade também são importantes para que o dono do animal faça a melhor escolha. “Independente, decidida e ativa” – escreve o dono de um hamster fêmea. Mas avisa: “faz um cocô muito fedido”, expondo sua “ratinha'' a um constrangimento inadequado à paquera. Para fazer o cadastro, não é obrigatório o envio de fotos, e o dono preenche dados pessoais para ser avisado das opções encontradas. Bizarrices não são permitidas, os pares têm que ser da mesma espécie. Além de promover o encontro desses casais, os sites oferecem serviços para os donos orgulhosos alardearem as proezas do bichinho, mas como se o próprio animal estivesse contando. O texto em primeira pessoa ajuda a dar veracidade: “olá , eu sou a Baixinha. Tenho dois anos e minha dona se chama Marisa.” Tétrico, se não fosse fofo: “uma noite eu estava dormindo em cima do computador, pois lá é muito quentinho. Acordei passando mal e vomitei sobre o aparelho”. E os donos aproveitam da autoria para se promoverem: “sabe o que ela [minha dona] fez? Nada, apenas limpou”.
O Tempo e o Vento VIAJAR
PELA PATAGÔNIA ARGENTINA É CONHECER UMA TERRA DE NINGUÉM, MARCADA PELO ISOLAMENTO GEOGRÁFICO – A DENSIDADE POPULACIONAL NÃO CHEGA A DUAS PESSOAS POR QUILÔMETRO QUADRADO
[Por Luiza de Andrade Fotos Pedro Ferraz Cruz e Luiza de Andrade]
“‘Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando’ – costumava dizer Ana Terra. “
E
stava ventando no dia da partida de Buenos Aires. No ônibus, ainda com o bafo forte que vinha da capital, começavam a tilintar cuias e bonbillas para preparar o mate. Na Argentina, como em toda a região de cultura gaucha, o hábito de tomar chimarrão é generalizado e sem horários. Na janela, as estâncias vêm e vão, sempre do mesmo tamanho, sempre de gado. Às vezes se revela um campo de girassóis. São tantos e tão lindos como na obra de Van Gogh. Às vezes, uma plantação de soja ou de milho, e as rodas de vento já denunciam a briga com a seca e a longa amizade com o movimento do ar. Aos poucos, as estâncias se espaçam, quase somem, e tudo começa a ficar remoto. A noite cai, depois amanhece, e não tem fim a paisagem sempre igual, sem descida ou subida. Curva é notícia de primeira página. Puerto Madryn é a primeira parada. Localizada na província de Chubut, é uma cidade de 50 mil habitantes que “explodiu” nos últimos cinco anos. Ruas largas, caminhonetes e casas grandes – muitas ainda em construção – revelam uma Argentina alheia a crises. No verão, as praias calmas do Golfo Novo atraem banhistas de todo o sul patagônico, chileno ou argentino. Um programa incompreensível para brasileiros, já que o vento chega a doer os ossos mesmo em janeiro, apesar do sol forte. No inverno, a preferência é pelo recolhimento em casas bem protegidas e com aquecedores.
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Gladys conta que é assim em todo o interior do país. Ela tem três filhos e é dona de um albergue em Puerto Madryn. Faz apenas um ano que a família se mudou para lá, por iniciativa sua. O marido, dentista, ainda clinica na cidade natal de 5 mil habitantes e a poucos quilômetros dali, Sierra Grande. Os três meninos são simpáticos e falantes. O mais novo, Tomás, conhece times do futebol brasileiro e só sai da internet para treinar inglês com algum hóspede. Sagaz, parece conhecer o mundo. Mas não. Diz que viajar, nunca viajou. Só para Sierra Grande, onde nasceu e morou. A conversa ressalta a imensidão, dá lugar à percepção de distâncias que quase estiveram apagadas. As horas de estrada sem curva trazem à mente a lembrança da paisagem imutável – e sem rostos. Quase não há gente pela Patagônia, as cidades são afastadas e quase sempre pequenas, mas surpreende não encontrarmos “caipiras” em tanta lonjura.Talvez seja o porto, sempre cheio de peixes, de modas, de gentes. Já é hora de partir.
Depois de um dia ensolarado, o cair da tarde em Puerto Madryn – por volta das 21h – inunda o céu de lilás e atrai turistas para o cais
Na borda da praia estão os resquícios das primeiras habitações da região, construídas por galeses na época da fundação da cidade, em 1865. Alguns descendentes ainda estão por lá, servindo chá para excursões de turistas europeus atraídos pelo grande tesouro da região: a Península Valdés. O passeio para a península começa às sete da manhã. Do microônibus, vez por outra se pode ver os tímidos guanacos – parentes do camelo - e, com sorte, os pumas, ameaçados de extinção. O mar passa a rodear a estrada de cascalho. É a travessia do istmo que leva à vila de Puerto Pirâmides. Lá aparecem baleias para dar à luz durante os meses de junho a dezembro. Ao norte da península, leões marinhos tomam sol na vastidão de praias. As fêmeas, sem “juba”, são disputadas pelos machos, que se esbarram e grunhem. Depois, surgem elefantes marinhos, gordos e cinzentos, mas de bom gosto: escolheram a praia mais bonita. Mais ao norte, formou-se uma pingüinera. Simpáticos, os pingüins passam o dia caminhando daquele jeito engraçado, cavando ou namorando. No passeio de barco, dá para mergulhar ou ver pássaros, mais leões marinhos e fósseis de baleias gigantes marcados nas pedras, que falam sobre os tempos em que a Patagônia não passava de fundo de mar. De volta a Puerto Madryn, o estranhamento. São 23h e as ruas estão lotadas. Restaurantes, sorveterias e lojas – inclusive de brinquedos, cheias de crianças. Em compensação, não é permitido ter fome entre 13h e 17h, quando não há absolutamente nada aberto e quase ninguém fora de casa. Aqui, a siesta é sagrada.
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29 Falésias, águas azuis e uma fauna exótica: são pumas, leões e elefantes marinhos, guanacos, baleias e os divertidos pingüins, os atrativos da península Valdés
“Em certas noites Ana ficava acordada debaixo das cobertas, escutando o vento, eterno viajante que passava pela estância gemendo ou assobiando, mas nunca apeava seu cavalo; o que mais podia fazer era gritar um – ‘Ó de casa’ – e continuar seu caminho campo em fora. Passavam-se meses sem que nenhum cristão cruzasse aquelas paragens.” “Por cima de tudo, a luz dourada da manhã e o céu azul de uma palidez parelha e rútila de esmalte e duma inocência de pintura primitiva. A paisagem tinha a beleza plácida de um poema acabado, a que não se pode tirar nem acrescentar a menor palavra” Agora que a paisagem já começa a ser familiar, o encanto redobra. Não há ninguém nas terras assim tão longas, vazias, não há sinal de intervenção humana, não há. Na estrada, alguns poucos caminhões vêm no sentido contrário. No ônibus, gente simples, que cruza distâncias para rever um parente, trabalhar ou sabe-se lá. No embalo do veículo velho, sem mudanças, sem repente, a viagem é para o sono ou leituras. Depois, um breve espiar pelas janelas revelam montanhas e vales, que parecem artificiais no lugar do mesmo, mostrando que sim, ainda dá para ser mais intenso. O céu é enorme e sem nuvens, e as tonalidades passeiam pelo lilás, azul claro, escuro, rosa e suco de uva. À esquerda, já é noite, à direita, sequer crepúsculo. No banco ao lado, um homem de meia idade retirou seu caderno sem pauta. Parece poeta, pintor. Só não é comum. Com canetas, desenha a paisagem de surpresas. Seu olhar é um mistério - não parece admirado nem acostumado. O instante ainda tem o cheiro forte de mate de que ninguém enjoa. Dali a pouco já é Comodoro Rivadavia, o destino de quase todos os passageiros. Até Rio Gallegos ainda faltam boas horas. inverno 05
Da capital da província de Santa Cruz, Rio Gallegos, até El Calafate a vista segue igual: estepe e céu. As mudanças aparecem bem perto da vila, quando se vê o Lago Argentino e as montanhas cobertas de neve. El Calafate tem oito mil habitantes e começou a ser povoada no final do século 19 por homens que enfrentaram o clima seco e frio da região. Nos pés dos Andes, possui uma relação forte com o Chile, país que está apenas do outro lado da cordilheira. Não faltam atrativos para quem vem de fora. Inúmeras lojas de artesanato, livros, mapas, bicho de pelúcia, toda sorte de produtos que compõem a rede semântica da Patagônia incrementam o turismo. Por toda a vila estão agências de viagem e deliciosas chocolaterias, que vendem doce de todos os sabores. Inusitado é o número de sorveterias, um espanto para uma cidade que tem apenas oito horas de luz no inverno e cujas 18 horas de claridade do verão nunca permitem uma camisa sem mangas. Do parque nacional Los Glaciares, que cobre 600 mil hectares, desprendem 47 geleiras. A mais conhecida, chamada Perito Moreno, é de uma beleza estrondosa. Para vê-la, deve-se rodear parte do Lago Argentino e entrar no parque. Depois de muita poeira, envereda-se por bosques cheios de pinheiros e musgos, responsáveis pelo odor que parece já preparar a alma para o por vir. O glaciar aparece discreto, com pequenos blocos de um azul profundo e brilhante boiando soltos pelo lago. Depois, ele
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surge inteiro, mas é só de perto que se tem noção de seus 50 metros de altura. A profundidade parece não ter fim, mais ou menos quando a gente, depois de grande e de muito ouvir falar, olha para o mar. Os olhos inundam-se com uma visão que se prega à retina e que é capaz de dar uma outra dimensão à natureza. Estrondos do gelo caindo fazem a gente pensar nas coisas que estão sempre
paradas e que parecem não mudar nunca. Mas mudam. Caminhando pela cidade, ainda se pode ver pistas de esqui e parte da lagoa que se transforma em local de patinação no gelo no inverno. Mais um pouco e nos deparamos com uma espécie de oásis: o pequeno parque municipal é uma laguna rodeada por bichos, cheia dos raros tons de verde capazes de
atrair todo o tipo de espécies que sinta fome. Longe da aridez e dos tons de marrom da região, dá pra ver de perto uma família de coelhos selvagens, ser perseguido por uma leva de patos ou atacado por gaviões. Assustador, mas o medo não tira o encanto de descobrir a vida se recriando no inóspito. Um pouco como encontrar um amigo em um domingo perdido.
“O anoitecer sopra para dentro do quarto seu bafo quente temperado pela fragrância dos jasmins e das madressilvas, de mistura com odores acres de resinas e ramos queimados. Vem lá de baixo da cozinha um cheiro familiar e aperitivo de carne assada e batatas fritas. [...] Esta é a pior hora do dia para um cristão ficar sozinho – reflete Rodrigo.”
Na Argentina o arroz é escasso e o feijão, improvável. Não há variedade, mas sobra sabor. A pedida típica e simples é bife à milanesa, papas fritas e ovos estalados. Ou o famoso bife de chorizo, bem suculento e mal passado, com papas fritas – sempre elas! Para lanchar, café e muitas empanadas – salgados recheados com carne moída e ovos. Nos restaurantes, peças inteiras de boi, espetadas no chão, fazem o típico asado patagônico. Nenhum dos estabelecimentos se priva das paredes de vidro, que permitem ver a carne da calçada. Talvez seja essa a explicação para
existirem tantos cachorros em toda a Patagônia: eles devem ficar vidrados. Talvez seja pela amizade dos homens que, na falta de outros humanos, povoam a região com os amigos quadrúpedes.
“Naquela tarde de princípios de novembro, o sueste que soprava sob os céus de Santa Fé punha inquieto os cata-ventos, as pandorgas, as nuvens e as gentes; fazia bater portas e janelas; arrebatava de cordas e sentimento do mundo
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Tierra Del Fin Del Mundo é o outro nome de Ushuaia, a cidade mais austral do planeta. A viagem é longa e cansativa, só não se pode dizer que seja entediante. O ônibus parte e em poucas horas já é preciso descer para dar saída da Argentina e, depois de filas e carimbos, temos o Chile. É a mesma paisagem, agora com cercas e ovelhas de todos os lados. Só não há gente.
Olha lá, agora sim! É um homem de poncho e seu cão pastor, guiando os animais. O ônibus pára em um congestionamento. É a fila da balsa para atravessar o estreito de Magalhães. Todos devem descer do veículo e fazer o trajeto no segundo andar, onde bate o vento gelado que limpa tudo. O céu está um pouco fechado e faz muito frio. Sorrisos, gritos: é uma toninha – um primo do golfinho. Quarenta minutos e estamos em terra. Deste lado, a margem é rodeada por campos minados, a explicar a importância estratégica de dominar a principal passagem para a Terra
do Fogo. Anda-se um pouco até chegar a mais uma fronteira. Descida, fila, carimbo. Mais alguns quilômetros e tudo de novo. Estamos na Argentina. Algumas horas e paramos em Rio Grande, a primeira cidade maiorzinha desde Rio Gallegos. A maioria fica; uns poucos embarcam no novo ônibus, que deve nos levar até Ushuaia. Planura, planura, planura até avistar os lagos – o Fagnano e o Escondido. A paisagem se torna pitoresca. Surgem vales enormes e profundos, curvas assustadoras e muitos pinheiros, indicando a ponta final dos Andes. Já é noite e a viagem não quer terminar.
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No entorno da laguna de Calafate, estão observatórios que convidam a curtir os hábitos das inúmeras espécies, sobretudo aves, que vivem ali
cercas as roupas postas a secar nos quintais; erguia as saias das mulheres, desmanchava-lhes os cabelos; arremessava no ar o cisco e a poeira das ruas, dando à atmosfera uma certa aspereza e um agourento arrepio de fim de mundo.”
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ÉRICO VERÍSSIMO Em 2005 comemoram-se 100 anos de nascimento do escritor gaúcho nascido em Cruz Alta. Em “O Tempo e o Vento”, seu romance mais célebre, Érico Veríssimo (1905 - 1975) retrata a saga de uma família desde o século 18 até 1945, traduzindo em prosa o espírito da cultura gaucha, a vida nas estâncias, o gado, os sabores do mate e do churrasco, a influência dos castelhanos, o lidar com o clima seco, a amizade profunda com o vento, o tempo – e a solidão. Os trechos usados na matéria foram retirados da trilogia “O Tempo e o Vento”.
Os passageiros cochilaram, acordaram, e parece mesmo que não vai chegar. Mais uma curva e ela aparece, uma baía de luz, com seus navios atracados e um farol – iluminada como um parque de diversões. Dá vontade de chorar, mas ninguém chora, só ri. E aplaude. É mesmo o fim do mundo. Quando amanhece, outra beleza. Com arquitetura inglesa – marca que também está nos rostos –, Ushuaia é uma cidade de cores e 50 mil habitantes, rodeada por serras e pelo monte Martial. O canal de Beagle, que liga o Atlântico ao Pacífico, recebe cruzeiros turísticos e navios da guarda argentina que patrulham sem parar. É impossível andar pela avenida costeira, faz um frio impressionante. Na rua paralela estão os inúmeros cafés, pubs, restaurantes, free-shops e lojas de couro, lã e todo o tipo de artesanato para atender turistas que vêm do mundo todo. Próximo à cidade está o par-
que nacional Tierra Del Fuego. Ele foi criado nos anos 60, a fim de preservar os bosques subantárticos, e permite visitação.Também dá para subir – com uma caminhada espinhosa e carona do teleférico – até o glaciar Martial, e se deparar com uma vista encantadora do canal. Ushuaia começou a ser colonizada em 1902, com a transferência de um presídio que abrigava condenados à pena perpétua ou de longa duração. Entre os presos famosos, estão o escritor Ricardo Rojas, o anarquista Simón Radowitsky e até o cantor Carlos Gardel – que, especulam, deve ter estado lá. Extinta em 1947, a prisão abriga um museu que reconta os tempos de disciplina rígida e trabalhos forçados. Na mesma construção, está o Museu Marítimo, que permite navegar pelas antigas histórias de descoberta dos mares antárticos e informações sobre as atuais expedições.
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As temperaturas são as mais baixas da Patagônia, e o clima é ainda mais instável. O canal de Beagle é responsável por trazer chuvas que podem aparecer e sumir em instantes. Só uma coisa não muda: o frio. A média no verão é de 10ºC. No inverno, com ruas inteiras de gelo, os termômetros marcam 1ºC de dia e –7ºC à noite. Nessa estação, muitas vezes a neve impede a saída da cidade por vias terrestre, fecha a pista de aviões e se torna difícil deixar Ushuaia, já que não há transporte regular de passageiros pelo mar. Muito afastada do umbigo do mundo, aqui as pessoas parecem ainda mais sintonizadas que em Puetro Madryn. Pablo, por exemplo, estuda turismo e ajuda a cuidar do jardim de infância que recebe turistas nas férias. Para ele, Brasil não é Pelé ou carnaval. Ele coloca um CD em homenagem ao país. É pura bossa. E pede um favor: ensinar a falar o nome de seus cantores preferidos - mas não tem jeito, ele só consegue dizer Xoau Xilberto e Xilbreto Xil. Depois essa bossa embala o coração e do Brasil dá saudade, essa palavra que dizem que é só nossa. Hoje, lembrando do arco-íris que todos os dias enfeitava o cais de Ushuaia, dá saudade desse lugar perdido, que é o fim do mundo, mas que poderia ser o começo.
“Quanto ao resto, eram sempre aqueles coxilhões a perder de vista, a solidão e o vento.”
Não dá para contar os infinitos tons de azul do glaciar Perito Moreno, nem quantas vezes os blocos de gelo caem cortando o silêncio
PARA VER A PATAGÔNIA REBELDE, 1974, HECTOR OLIVEIRA Retrata a história real de imigrantes europeus que trabalhavam na Patagônia argentina no início do século 20. Com idéias anarquistas, eles organizavam sindicatos e paralisações. Em resposta, o exército executou um verdadeiro massacre. Anos depois, o general responsável pela ação do governo seria assassinado pelo anarquista Simón Radowitz, que esteve preso em Ushuaia. HISTÓRIAS MÍNIMAS, 2002, CARLOS SORÍN Três personagens partem do pequeno povoado de Fitz Roy em direção ao Puerto de San Julian. Com motivações diferentes - recuperar inverno 05
o cachorro, entregar um bolo de aniversário ou buscar o prêmio de um programa de TV -, os três seguem numa viagem de descobertas, enquanto atravessam 300 km de aridez, imensidão e beleza. PATAGÔNIA EXPRESS, SEM DATA, WALTER SALES O cineasta adquiriu os direitos do livro homônimo de Luís Sepúlveda e pretende filmar o caso de dois fugitivos norte-americanos que se escondem na Patagônia e são perseguidos por um marginal também dos EUA. Baseado em fatos reais, é um faroeste latinoamericano passado na virada dos séculos 19 e 20. A conferir.
A solidão é azul
[ensaio]
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NO PALCO, Nova Iorque e suas cenas urbanas. Uma mulher sentada em um bar, uma outra que toma sol na janela, alguém lendo revistas num hall de hotel e, ainda, a imensidão do mar. O cotidiano inspira Hopper, o pintor que traçou uma América perdida marcada pela Depressão, por Freud, por anônimos e sua existência profunda, de puro espírito blue. Aqui um ensaio fotográfico recria algumas de suas cenas, transpor tando para a Belo Horizonte atual os ares dos Estados Unidos de meados do século 20.
Foto inspirada no quadro Sol de Manh達, de 1952
Foto inspirada no quadro Domingo, de 1926
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Foto inspirada no quadro Aut么mato, de 1927
EDWARD HOPPER (1882 – 1967) nasceu e morreu em Nova Iorque. Estudou na Europa durante a ebulição de movimentos artísticos como o Cubismo e o Futurismo, embora não tenha seguido tais linhas. Sua obra foi responsável por influenciar filmes da época, como Psicose, de Hitchcock, e, em contrapartida, inspirou-se no cinema. Seus quadros retratam as banalidades do cotidiano urbano, com paisagens e personagens solitárias. Para saber mais: www.hopper.com Hopper, de Rolf Güinter Renner. Ed. Taschen
Texto Luiza de Andrade Fotos Júlia Freitas e Lívia Marotta Modelos Maria Margarida de Souza, José Luiz Penido, Ana Carolina Aderaldo Produção de moda Luiza de Andrade, Maria Margarida de Souza
Plano B [Por Débora Fantini Fotos Olívia França]
LENDO
REVISTAS EM QUADRINHOS, FÃS
ATRAVESSAM A ADOLESCÊNCIA ENTRE REALIDADE E FANTASIA E FAZEM AMIGOS DE PAPEL E DE VERDADE
sentimento do mundo
O
jornalista Heitor Valadão, 26 anos, tem boas lembranças da adolescência passada na companhia dos amigos Matt, Peter e Bruce. O primeiro desses camaradas de nomes gringos, ele conheceu aos 12 anos, durante uma viagem de Belo Horizonte a Joinville, em Santa Catarina. Foi um amigo em comum que apresentou os dois. “Ele me entregou uma revista e disse: olha, você vai ler isto. Se não gostar, realmente quadrinhos não são para você”, lembra. Durante as 24 horas de viagem, Heitor percorreu fascinado as páginas de “Demolidor – A queda de Murdock” e acompanhou o sofrimento do super-herói nas mãos do gangster Wilson Fisk que descobrira que Matt Murdock era a identidade secreta do Demolidor. No retorno a Belo Horizonte, Heitor encontrou em bancas e livrarias Peter Parker e Bruce Wayne, respectivamente o Homem Aranha e Batman, e uma série de outros personagens, de quem, ainda hoje, é amigo do peito. Literalmente. Ele costuma vestir uma camiseta estampada com um escudo oval amarelo e um morcego inscrito, o mesmo do feixe de luz que varre Gotham City à procura de criminosos.“As histórias não são apenas batalhas. Os personagens têm uma identidade secreta e tentam levar uma vida normal. Os roteiristas tocam em temas que você pensa, ‘poxa, já passei por isso’, e a gente acaba perdendo a noção da realidade”, conta Heitor. Sob a identidade secreta, os personagens costumam ser o oposto de um super-herói. Peter Parker, por exemplo, é um nerd que apanha dos colegas fortões; Matt Murdock é cego e também sofre com um bando que atazana sua vida; Bruce Wayne é um órfão soturno; Bruce Banner, o Hulk, um cientista incompreendido; Logan, o Wolverine, um desmemoriado. Até Clark Kent, o Super Homem, enfrentou dilemas existenciais por não poder revelar a amigos e amadas quem era. “De uma maneira ou de outra, os superheróis têm problemas de relacionamento e sentem solidão. Afinal, não é fácil carregar a humanidade nas costas e se esconder dos vilões e do resto do mundo”, analisa Heitor. É justamente esse misto de superpoderes inverno 05
e fraquezas que permite a identificação entre leitor e personagem. “Todo mundo quer se sentir único, uma pessoa diferente das outras. Não no mal sentido, mas a gente quer ter uma coisa que ninguém mais tem”, admite.
Anti-herói O leitor de quadrinhos é “normalmente menino, feio, nerd, que não arruma namorada”, descreve Heitor, reconhecendo a própria imagem. “Comecei a ler quadrinhos na época em que parei de fazer exercício e comecei a engordar, a me sentir feio. Na escola, fui parar numa sala onde não conhecia ninguém, me relacionava com os colegas, mas não sentia que tinha amizades ali”, recorda. Foram as histórias em quadrinhos que o ajudaram a enfrentar os dilemas da adolescência. “É uma época em que, ao mesmo tempo, a gente se fecha para se proteger, mas quer encontrar alguém que nos entenda. Pra mim, esse alguém compreensivo acabou sendo os quadrinhos”, diz. Já para o ilustrador e professor de desenho Alexandre Starling, o Alê, a leitura é a desculpa perfeita para a reclusão ou “solidão escolhida”, como prefere chamar. Ele julga que a segunda profissão exige demais da sua “cota de convivência”. “Quando ela esgota, procuro me isolar para relaxar, e a leitura, de quadrinhos ou não, é uma atividade que se encaixa bem nessas horas”, conta. Mas Alê também associa os quadrinhos à exclusão, principalmente quando se lembra do contato com as primeiras edições em inglês dos X-Men, que pegou nas coisas do pai. “Minha mãe me ensinou a ler muito cedo, então não dava para compartilhar aquilo com os colegas”, explica. Mais tarde, confessa, fazia o tipo “cara fechada”. “Era meio arredio, mas não era ar de superioridade, e, sim, coisa de adolescente. Não era para ser levado a sério”, justifica-se. Além de arredio, o adolescente Alexandre também era “fraquinho e não jogava futebol direito”, mas faz questão
Atacado por uma aranha, Peter Parker adquiriu superpoderes. Mas sem uniforme, o Homem Aranha ataca de fotógrafo
42 de frisar que “não ficava em casa lamentando não ter uma menina”. Hoje, aos 28 anos, Alexandre convive com dezenas de adolescentes na escola onde dá aulas, a Casa de Quadrinhos, em Belo Horizonte. Um de seus alunos, Fabrício Paula Siqueira, 19 anos, elege Wolverine como seu personagem favorito e destaca a dificuldade de relacionamento do personagem com os demais XMen, mutantes como ele. Fabrício se diz quieto e tímido, embora menos do que era aos 16 anos. Só reclama que a mãe ainda o julga retraído demais e, para provar que já “melhorou”, revela que superou a vergonha de mascar chiclete em público. “Achava que todo mundo estava me olhando, mas agora faço isso numa boa”, afirma. Já Carlos Eduardo Rodrigues Silva, de 16 anos, gosta de ler livros e quadrinhos desde cri-
"Leitor de quadrinhos é meio autista", diz Carlos, mas...
Nem tão solitário assim, Batman vinga o assassinato dos pais amparado por um staff de robins e batgirls
ança. Estudante do 1º ano do Ensino Médio, é quieto em sala, mas o motivo não é a timidez: “procuro ser exemplar”. Seu lado tímido atrapalha “um pouco” quando o assunto é meninas, mas ele encontrou um meio de se aproximar delas, a internet. “A aproximação rola mais pelo MSN. ‘Fico’ muito pouco, mas é porque prefiro namorar”, admite.
Playboyzinho O quadrinista Guilherme Balbi, 23 anos, afirma não se encaixar no perfil traçado por Heitor e Alexandre e aponta a si mesmo como uma exceção. “Todo mundo se surpreende quando falo que sou quadrinista. Sou comunicativo, gosto de esportes e meu jeito de vestir é mais playboyzinho”, descreve-se. É a primeira habilidade que ajuda Guilherme a não se sentir um peixe fora d’água em meio aos
... Heitor defende que quadrinhos também são ponte
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43 colegas de profissão e da faculdade de Artes Plásticas. “Gosto de companhia. Uma vez me perguntaram meu hobby e respondi: ‘pessoas e desenhos’”, conta. Os quadrinhos entraram na vida de Guilherme aos 11 anos, por causa da hiperatividade. “Procurava alguma coisa para fazer à noite,
mas não gostava de televisão, então, pedi a minha mãe para assinar as revistas da Abril Jovem e aí meu pai me emprestou seus exemplares antigos”, lembra. Depois de um dia de muita brincadeira e partidas de basquete com amigos da vizinhança, ele ainda tinha pique para passar a madrugada lendo ou desenhando. “Já deixei de dormir para ler, mas
Entre uma folheada e outra, Carol, Carlos e Heitor travaram conversas e amizades
nunca dispensei uma saída por causa disso”, ressalta. Mas, aos 15 anos, uma mudança de cidade afastou Guilherme dos amigos de infância. “Pela primeira vez, experimentei um período de solidão. Me sentia muito mal, foram os piores meses da minha vida”, afirma. Para burlar a falta de companhia, assistia a muitos filmes, lia bastante e desenhava mais do que nunca. “Usei os quadrinhos como válvula de escape e acabei superando a fase ruim, mas hoje, solidão, só se for voluntária”, diz. Monitor na Casa de Quadrinhos, Guilherme descreve a maioria dos alunos como retraídos e solitários. “Eles chegam, cumprimentam e
vão pro canto deles. Mas quando você vai até lá e pede para mostrarem os desenhos, falam pra caramba”, conta. Luhan Dias Souza, 17 anos, considera-se quieto durante as aulas de desenho e na escola, onde cursa o terceiro ano do Ensino Médio, mas afirma que adora conversar, preferencialmente ao vivo. “E, mesmo assim, não tem coisa mais chata do que alguém mexer no celular durante a conversa. Até cruzo os braços”, indigna-se. Ele namora uma menina da mesma idade, que conheceu num barzinho, mas admite que a solidão é bem-vinda para desenhar ou ler livros de Paulo Coelho e quadrinhos do Superboy.
Desde criança, Bruce Banner tinha dificuldade em se integrar. Sob a forma de Hulk, ela aumentou
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"Nerd de carteirinha", Carol prepara dissertação sobre Batman
44 Rarlos Blando Oliveira, de 17 anos, é outro aluno que desconstrói o estereótipo do leitor de quadrinhos. Freqüentador de barzinhos na Savassi, Rarlos gosta de “aproveitar a vida e sair para conhecer pessoas”. Ele se julga carismático e diz que os outros se aproximam dele por causa de seus bons conselhos.
Menina também entra Apesar de se julgar uma “nerd de carteirinha”, a estudante de pós-graduação em Psicologia Social Ana Carolina Cunha é exceção em um meio onde predominam homens – tanto leitores quanto personagens. Mas revela que se sente mais à vontade entre outros fãs do que com a turma da adolescência. “Enquanto eu assistia à Guerra nas Estrelas e lia quadrinhos, o pessoal ia ao show da Banda Eva. Eu ia junto para não ficar em casa com minha mãe, mas não me sentia parte do grupo”, lembra. Uma de suas personagens favoritas é Mary Jane, mulher de Peter Parker/Homem Aranha, que julga solitária. “Ela sabe que o marido tem uma responsabilidade que vai além da relação dos dois, e é lógico que o apóia. Mas é um pouco difícil, porque ela tem que segurar as pontas enquanto ele salva o mundo”, explica. Os dois formam o casal preferido de Carol, que se identifica com o lado independente de Mary Jane.“Eles têm uma coisa meio Ulisses e Penélope. Ela está sempre esperando por ele, mas não deixa de tocar a própria carreira de modelo e atriz”, ressalta. Outra personagem bastante independente é a ex-batgirl Oráculo, uma hacker que vive em frente ao computador, recolhendo e repassando aos super-heróis as informações de que eles precisam. Paraplégica, sua cadeira de rodas não tem alça. “Oráculo não quer ser um fardo na vida de ninguém, isola-se para não admitir que é fraca, como todo mundo é. Sou meio cabeça dura também”, reconhece. Para Carol, no fundo a personagem nutre um grande medo de enfrentar as dificuldades de um relacionamento amoroso. “Não dá para entender tudo o que o outro pensa, porque tem coisas que ultrapassam o pensamento. É mais fácil se fechar do que correr o
risco de se machucar”, avalia. O medo confunde-se com orgulho e egoísmo, como no personagem Morpheus, de Sandman.“Ele é um romântico byronista que idealiza demais a parceira e a relação. Se ela não corresponde ao que ele quer, manda pro inferno e sofre por isso, mas não dá o braço a torcer”, analisa, remetendo-se à história em que o personagem condena a amada Nada ao inferno, já que ela se recusa a abandonar seu reino por ele.
Galaxy Rangers “Existe um cer to preconceito de que você começa a ler quadrinhos e se isola, se fecha e não é isso. As pessoas já têm esse perfil e, por isso, lêem quadrinhos”, afirma Heitor Valadão. Alexandre Starling concorda que nem todo mundo encara a leitura de quadrinhos como uma fuga sentimento do mundo
45 saudável. “Na sociedade nor te-americana existe uma preocupação com as pessoas solitárias, que podem se tornar psicopatas. Eles têm um certo medo de quadrinhos, vídeo-game, televisão, dessa junção de fantasia e dificuldade de relacionamento”, avalia, embora alerte que não é possível generalizar. Heitor, por exemplo, defende que as atitudes dos personagens acabaram influenciando positivamente a formação da sua personalidade. “Tento ser legal com as pessoas, fazer o certo. Pelo menos uma vez por dia, ouço alguém falando ‘você é bonzinho demais’. Mas, se a outra pessoa está feliz, me sinto bem”, diz. Além disso, baseado na própria experiência, ele aponta a capacidade de os quadrinhos promoverem encontros, e não apenas isolamento. “Como qualquer tipo de mídia, os quadrinhos são, ao mesmo tempo, um alienador e uma ponte, eles podem fazer você se relacionar com outras pessoas”, afirma. Por isso, o círculo de amizades de Heitor não se restringe a Matt, Peter, Bruce e outros camaradas de papel. Ana Carolina Cunha e o professor universitário Carlos Quintão, de 30 anos, são alguns dos amigos que fez em função da paixão por quadrinhos. O trio mantém o site “A Galáxia” (www.agalaxia.com.br), onde publica resenhas de filmes e quadrinhos. Os textos são sérios, mas, para assiná-los, os resenhistas assumem a identidade de “Galaxy Rangers”. Carlos é Kas, Heitor, Gelogurte, e Carol, Katchiannya. Além dos nomes, os personagens também têm cara própria, devidamente ilustrada.
Ponto de encontro Heitor conheceu Carol na livraria Leitura da Savassi, um dos principais pontos de venda de quadrinhos em Belo Horizonte. No fundo da loja, uma placa com a inscrição “RPG” aponta o segundo andar. Depois de atravessar pilhas de livros estocados, vêemse as prateleiras recobertas de revistas – e, contradizendo a placa, poucos cards de RPG, mostrando que o furor do jogo passou. Nessa espécie de clubinho, entre uma folheada e outra se engata uma conversa. “Venho aqui há um tempo e encontro as mesmas pessoas. Chega um dia que, sem perceber, você cria coragem e pergunta pro cara se ele já leu a revista tal, e a conversa não pára mais”, conta Raphael Mancini, 17 anos. Quem, além de ler, dedica-se também a desenhar, traz sempre um desenho, aguardando a deixa para puxar papo e sacá-lo do bolso. “Nem sei se quero ser quadrinista, mas fico matando o tempo com essas coisas.Trago os desenhos mais doidos pra ver o que o pessoal acha”, afirma Luiz Henrique Guimarães, 15 anos. As discussões sobre qual super-herói venceria um duelo ou se o novo roteirista é melhor que o antigo parecem não ter fim. Mas não acabam em briga, pelo contrário, muitas vezes, marcam o surgimento de amizades que podem durar para além da adolescência – como o hábito de ler quadrinhos.
O leitor de quadrinhos tem cara de nerd, playboy, menino, menina...
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[pensa]
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Solidão no celulóide BILLY WILDER
SUBVERTE A WIDE-SCREEN PARA FALAR DE SOLIDÃO [Por Ana Lúcia Andrade Ilustração Lívia Marotta]
Fotograma que revela Baxter (Jack Lemmon) dormindo num banco do Central Park: de forma simples e brilhante, a solidão do personagem é sintetizada no enquadramento
O cinema sempre tratou de questões temáticas referentes à natureza humana. A solidão é um dos temas recorrentes e foi abordada sob diversos ângulos pelos grandes cineastas da sétima arte. Dentre eles, destaca-se Billy Wilder em seu filme “Se meu apartamento falasse” (The apartment – EUA – 1960), que abarca a solidão nas grandes cidades, através de uma fábula cínica e melancólica que se tornou um clássico do entretenimento inteligente hollywoodiano. No filme, Jack Lemmon interpreta Baxter, um dos milhares de funcionários de uma companhia de seguros que empresta seu apartamento para os encontros extraconjugais de seus superiores, a fim de se promover na empresa. O solitário Baxter se apaixona por sua colega Fran Kubelik (Shirley MacLaine), sem saber que ela é a garota que seu chefe leva até seu apartamento. Segundo o próprio Wilder, o “ponto de partida foi esse personagem e esse tema: um homem que se deixa explorar, um solitário que volta de noite para casa e se deita na cama ainda quente dos amantes”. Logo no início do filme, a idéia da solidão do personagem é evidenciada. Com uma trilha musical melancólica ao fundo, é apresentada a rotina de Baxter: ele coloca um prato congelado no forno; lava as vasilhas; faz um brinde a si
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47 mesmo e toma um drink; recolhe o lixo e o coloca para fora; janta diante da televisão e, na falta de um programa que o interesse, decide ir dormir. Assim que se deita, o telefone toca. Um executivo do escritório deseja utilizar seu apartamento naquela noite, pois acabara de conhecer uma garota em uma boate. Baxter não consegue negar-lhe o pedido e acaba saindo de casa, passando a noite no Central Park. A imagem de Baxter acomodando-se em um dos enormes bancos vazios do parque sintetiza sua vida solitária, convidando o espectador a se envolver com o personagem. Em sua obra, Wilder trabalhou a solidão tanto no que se refere ao conteúdo quanto à concepção formal. Uma vez que “Se meu apartamento falasse” foi filmado em wide-screen (uma lente anamórfica que comprime a imagem, alargando-a, proporcionando maior visão periférica e ampliando horizontalmente o senso de profunidade na cena), Wilder procurou potencializar o efeito de ampliação do espaço, amplificando visualmente a solidão de seu personagem, principalmente quando este surge sozinho no enquadramento. Curiosamente, acreditava-se que o wide-screen seria a melhor forma de se filmar épicos, com grandes multidões em cena. Wilder
Ana Lúcia Andrade é autora do livro “Entretenimento Inteligente: o cinema de Billy Wilder”, entre outros. inverno 05
provou que a funcionalidade desse formato panorâmico é muito mais ampla e, em seu filme, conseguiu concretizar a solidão do personagem através da composição dos enquadramentos. Baxter é um solitário em meio à multidão, que normalmente aparece no centro do quadro, mesmo quando rodeado de pessoas. À medida que ele vai sendo promovido, mudando para salas cada vez maiores, sua solidão também aumenta. Mas quando sua amada Fran está com ele, os dois ocupam as extremidades do quadro, compartilhando, assim, suas solidões. Como questiona a grande Clarice Lispector: “Será o amor entregar a própria solidão a outra pessoa?” Wilder não só abordou bem o tema da solidão como o imprimiu no celulóide. “Se meu apartamento falasse” sintetiza a idéia da funcionalidade cinematográfica entre forma e conteúdo, diante de um tema inesgotável que sempre fascinou os grandes cineastas da sétima arte.
[Por Luiza Andrade e Luciano Falcão]
"Gosto de estar só porque não tem ninguém para me irritar." Vítor Germano, 8 anos, estudante, compenetrado com os livros
Elielza Campos, 51 anos, professora, mulher de um capricorniano, em um bar, cercada de gente
"Meu marido é tímido e não costuma comparecer aos programas. Às vezes, para assistir televisão sozinho, tranca a porta do quarto e não deixa ninguém entrar."
RESPONDEM
"Levo a solidão bem, mas, quando aperta, recorro a festas e barzinhos. Já para ouvir música, compor e tocar, prefiro estar só". Henrique de Souza, 28 anos, estudante, com um amigo na fila para o show
Letícia Castilho, 33 anos, atriz, em casa, trabalhando no computador
Edméia Melo, 56 anos, psicóloga, comprando um livro em companhia do marido
"Não me incomodo com a solidão. Ela é, de certa forma, um encontro comigo, necessário para continuar produzindo e me relacionando bem."
C APRICORNIANOS
"Sou performer e ficar só é fundamental para criar. Nos meus últimos trabalhos, estive sozinha em cena. Fiz a iluminação e o figurino por conta própria. Diante da própria solidão, você fica mais próximo de você e, conseqüentemente, mais próximo do outro. Na cena, sinto que estou com todos."
consultora de imagem, de saída para o trabalho
Poliana Espírito Santo, idade não revelada,
"Às vezes, estar só é necessário e prazeroso. Aproveito esse tempo para pensar, desenhar e escrever. As pessoas me consideram extrovertida, mas sabem que tenho meus momentos de introspecção."
[fala] 48
Qual a sensação de estar só?
inverno 05 E
SATURNO
DÉBORA FANTINI
EMPRESTA AOS CAPRICORNIANOS
POR
O senhor dos anéis
Alexandre de Oliveira, 20 anos, "ocioso", com a namorada em uma lanchonete
"Não é aflitiva, gosto de ficar sem ninguém por perto. Já fiz uma viagem sozinho pela Estrada Real, a pé, e preferi dispensar companhia. Foram dias de viagem, só eu e a mochila, e tive muito prazer."
"Acho horrível. Se não estou acompanhado, estou com problema." Jefferson Silva, 29 anos, digitador, trabalhando
"Não é estranha. Preciso ficar sozinho para pensar nas minhas coisas, ter o meu espaço. Ficar o tempo inteiro com alguém é desagradável. Ler e ouvir músicas são as melhores coisas para fazer quando estou só." Rodrigo Melgaço, 24 anos, ator, em casa, cozinhando para si
Um dia, porém, Gaia cansou-se e pediu ao filho Crono para castrar o pai. A audácia rendeu-lhe o reino e o medo doentio de perder o poder, que o fazia devorar seus filhos. Mas um deles, Zeus, conseguiu escapar. Já adulto, ele resolveu enfrentar o pai e libertar os irmãos. Destronado, Crono refugiou-se em uma ilha, sem nenhuma companhia. Essa ilha localiza-se no ponto mais afastado do Sistema Solar, a uma distância de 1.509 milhão quilômetros do Sol, onde está Saturno. Crono é o nome pelo qual os gregos chamavam o planeta e significa "tempo". Segundo a astrologia, o planeta rege o inverno e os capricornianos, nascidos entre 22 de dezembro e 20 de janeiro. "Saturno rege a velhice, o que explica a ligação com a escuridão e o frio - o inverno tanto na estação quanto na existência. Duas características suas são a inibição e a introspecção, que levam à reflexão e, conseqüentemente, à sabedoria e entendimento", caracteriza a astróloga Barbara Abramo. "Pode deixar, que eu faço sozinho", é a resposta do capricorniano a quem ousa oferecer-lhe ajuda, pois acredita que ninguém pode executar uma tarefa tão bem quanto ele próprio. Afinal, só ele coloca todo seu potencial a serviço da sociedade. A missão exige isolamento, sacrifício ao qual o capricorniano não hesita em se submeter e pelo qual almeja reconhecimento. A conotação negativa de características como auto-suficiência e introspecção rende aos capricornianos a fama de anti-sociais do zodíaco. "Como vivemos numa época que privilegia o hedonismo, é difícil enxergar a positividade de Saturno. No entanto, todo filho sabe como é bom chegar em casa e ter abrigo, comida e atenção dos pais. É o planeta em ação, nos dando senso de compromisso e responsabilidade", afirma a astróloga. Dentro do perfil descrito pela astrologia, entretanto, pode haver nuanças: "a posição de Saturno no mapa astrológico - assim como a do Ascendente, o aspecto que um planeta faz com este ponto e daí em diante - irá acrescentar colorido à análise, diferenciando-a do tipo ideal descrito nos manuais".
ERA UMA VEZ um casal apaixonado: Urano e Gaia. Os dois faziam amor incansavelmente, gerando uma prole que vivia presa no ventre da mãe.
CARACTERÍSTICAS QUE
INDIVIDUALISMO SÃO ALGUMAS DAS
INTROSPECÇÃO, AUTO-SUFICIÊNCIA
"Prazerosa. Gosto de ficar sozinho, o problema é quando você se distancia da realidade a ponto de se excluir socialmente." Ricardo Vasconcelos, 44 anos, professor universitário, passeando com a filha em um shopping
"É a pior coisa que existe, pior até que falta de grana. Dependo da companhia feminina, senão nada se encaixa. Gostaria de ter vindo com amigos, para chegar mais fácil nelas. Mesmo assim, não desanimo." Carlos Eduardo Wilson, 23 anos, motoboy, no show da banda carioca O Rappa
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O tempo passa e as pessoas mudam, um processo inevitável que interfere em todas as escolhas que você faz na vida, da música predileta ao círculo de amigos. E por falar neles, que tal aquele velho conhecido que nem pode ser chamado de amigo porque já não tinha muito a ver com você na época, e que, agora, anos depois, caminha na sua direção para te dar um abraço e dizer: “quanto tempo, hein?”. Nada resta a fazer a não ser exercitar sua generosidade. Finja que está ouvindo, ele precisa falar - mas você não precisa ouvir. Alguns movimentos de cabeça e hãhãs em seqüência ajudam a dar a impressão de que você participa do monólogo. Quando tudo estiver sob controle, relaxe e viaje nos seus pensamentos porque o mundo é burocrático demais e você merece coisa melhor. Um banho de espumas, por exemplo. www.lush.com.br
C AROS AMIGOS
[Por Luciano Falcão e Luiza de Andrade Ilustrações Alice Vasconcellos]
A viagem pode ser longa ou de curtíssima duração, e o constrangimento pode se instalar em qualquer uma dessas situações. Quando se está em um elevador ou em um avião alguém pode sentar ao seu lado e puxar uma conversa. É bom conhecer novas pessoas, mas, por favor!, sem forçar afinidades só por que não há nada mais para fazer. Se naquele dia o horóscopo te orientou a ficar na sua, tome algumas providências. No elevador, pegue o celular e simule uma ligação. Mas se a viagem está só começando e o companheiro ao lado já ensaia um batepapo, leia um livro do início ao fim, dando intervalos entre um cochilo e outro. E torça para chegar logo! www.siciliano.com.br www.nokia.com.br
13º ANDAR
ESPERA MORRER SOZINHO, PASSAR A VIDA SEM AMORES, NÃO TER CRIANÇAS A PRESENTEAR NO
NATAL, FAMÍLIA PARA O ALMOÇO DE DOMINGO, FESTAS DE ANIVERSÁRIO REPLETAS DE AMIGOS E PRESENTES OU, PELO MENOS, A CERTEZA DE ALGUÉM DO OUTRO LADO DA LINHA PARA SOCORRER DE UM SURTO DEPRESSIVO ÀS TRÊS DA MANHÃ. MAS NÃO É PRECISO TER NENHUM DESVIO DE CARÁTER, CONDUTA MORAL QUESTIONÁVEL OU PROBLEMAS GRAVES DE RELACIONAMENTO PARA QUERER FICAR SÓ DE VEZ EM QUANDO, PORQUE A SOLIDÃO TAMBÉM É UMA QUESTÃO DE SANIDADE MENTAL.
NINGUÉM
[usa] 50
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PARADISO
“Antes só do que mal acompanhado” é uma máxima que parece ter sido feita para o sexo. Não é porque você não encontrou sua metade da laranja, ou sequer um par atraente, que vai deixar adormecer seu lado sensual. Para se divertir sozinho, as opções são os vibradores com disfarce. Tem de todo tipo: esmalte com a ponta vibratória, batom, soldadinho inglês e Papai Noel. Em comum, a vantagem de poder esquecê-lo em qualquer canto sem correr o risco de a visita reparar. Outra possibilidade é o colchão inflável que esconde em um dos lados um orifício estratégico. Pode ser levado a qualquer lugar, sem causar suspeitas. www.sextoy.com.br
PAPAI NOEL
Cinema é programa que pode ser feito a dois, a três ou a muitos, mas a verdade é que, para ver um bom filme, não faz muita diferença estar só ou acompanhado. Pode até ser bem prazeroso ir ao cinema sozinho. É que os filmes têm o poder de nos conduzir a um mundo cheio de imagens e pessoas onde a nossa entrada é particular, solitária e intransferível. Experimente ir às terças e quartas à tarde, quando o tráfego é mais tranqüilo e o seu mergulho na tela é mais garantido. Sem interferências. Espaço Unibanco Belas Artes Rua Gonçalves Dias, 1581- Lourdes. Usina Unibanco de Cinema Rua Aimorés, 2424 - Santo Agostinho
CINEMA
PRA UM
Pasta al limone Doure uma colher de sobremesa de cebola picada em um pouco de manteiga. Acrescente uma colher de sobremesa de suco de limão, uma colher de chá de raspas da sua casca e 200 ml de creme de leite. Mexa bem, tempere com sal, pimenta do reino e noz moscada e retire do fogo antes que ferva. Cubra a massa al dente com o molho e salpique raspas de queijo parmesão.
O momento da comida é, por excelência, de comunhão, encontro e conversas, por isso, comer sozinho é quase um pecado. Gostoso de cometer. Quem cozinha sabe: dispensa-se aquela trabalheira danada que sempre faz queimar algum prato e deixa qualquer chef louco – mesmo que, à mesa, a comida desapareça em dez minutos. Sozinho, você coloca os ingredientes que mais gosta sem se preocupar com quem não come cebola ou detesta aliche. Miles Davis no som, um bom vinho tinto e uma salada acompanham bem esta receita:
PRATO
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CONHEÇA LAURA, UMA
soalidade: “às vezes me sinto uma visita aqui”. Qualidade: não se importar. Defeito: o de se repetir. “Você já contou isso mil vezes”, diziam as colegas do Sacré Coeur. Prato predileto: macarrão ao alho e óleo. Do que se orgulha: de ser uma pessoa ocupada. “Sempre invejei aquelas pessoas que diziam não ter tempo.” Um prazer: de fazer o tempo render. Música preferida: “As aparências enganam”, interpretada por Elis Regina Um sonho: ter olhos verdes. “Se bem que ter olhos verdes seria como não dizer tudo ao meu marido.” Um filme: “As Horas”, de Stephen Daldry. Momento difícil: Quando foi internada em uma clínica ou hospital por motivo não revelado. “Foi horrível. Todos me olhavam, mudos.” Um dia marcante: Quando não suportou a beleza das rosas que comprara, dando-as à amiga Carlota. “Parecem artificiais de tão lindas.” Um arrependimento: ter dado as rosas. “Eram lindas e eram minhas e, mesmo assim, eu dei. Coisa bonita é para se dar ou para se receber. Não é para se ter e, muito menos para se ser.”
Ambiente: sua casa. Se destaca pela arrumação impecável e impes-
arrumá-las novamente.
Programa de TV preferido: a série “Mulher Procura” do GNT. Mania: de arrumação. Costuma desarrumar as gavetas para poder
com o meu cabelo marrom, minha pele morena e meus olhos marrons”.
Idade: 42 anos. Profissão: dona-de-casa. Personalidade: metódica, com um certo horror à confusão. Roupa preferida: vestido marrom com gola de renda creme: “combina
[perfil] 52
“Quando estou só, bebo leite”
MULHER COMUM
[Por Luciano Falcão Ilustrações Ana Luiza Gomes]
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Seria bom poder entrevistar alguns personagens de livros ou filmes. Uma ocasião ideal para pegar o gravador e exigir que eles se expliquem melhor. Que expliquem “aquela parte” ou “aquele pensamento”, que se justifiquem por aquela atitude aparentemente incoerente. Ou que digam qual a sua música preferida. Essa vontade só passa quando se pensa no prazer que é ler as histórias e completá-las por conta própria, o que aquela personagem quer dizer ou está sentindo. Os personagens de Clarice Lispector certamente não dariam entrevistas. Eles dificilmente dividem com alguém o que se passa consigo, tampouco com um jornalista à procura do que se entende por fato. Quase nada e quase tudo acontece à personagem Laura do conto “A Imitação da Rosa”, do livro “Laços de Família”, escrito em 1960. Enquanto espera solitária o marido chegar
do trabalho, procura não pensar demais em sua vida para evitar ser acometida pelo desejo, “uma extravagância”. Mas acaba pensando. E, ao se dar conta da beleza perfeita de uma rosa comprada na rua, mergulha em pensamentos comprometedores. Nos demais contos é quase sempre assim. Basta a solidão de um pensamento para o mundo interno vir à tona e inundar de “perigo” a aparente tranqüilidade cotidiana. E aí já é tarde. Como é para todos que se arriscam, nos livros e fora deles, à solidão negligente de mergulhar em si próprio e se engasgar com o conteúdo. Ou com um copo de leite. “Mas quando viu as horas lembrou- se, num sobressalto que a fez levar a mão ao peito, que se esquecera de tomar o copo de leite”. (Clarice Lispector)
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[fim]
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“Solidão é a gente demais...” Guimarães Rosa
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