Zine "isso é só literatura"

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Esse é um zine de escritos soltos, sua capa foi criada a partir da composição de uma foto do fotografo japonês Yamamoto Masao, que também ilustra com uma de suas fotos a página 11. Esse zine conta também com uma ilustração de Monstra, na página 05 e um conto de Arthur Prado na página 08.

Para saber mais de Yamamoto Masao: http://www.yamamotomasao.jp/ Para saber mais de Arthur Prado: http://movimentosinvoluntariosdamente.blogspot.com.br/ Para saber mais de Monstra: https://www.facebook.com/Monstra1385035074844751/?fref=ts&__mref=message_bubble

Boa leitura. Batata Sem Umbigo Outubro de 2016


Saio pela rua na expectativa de conseguir vender uns quadrinhos, o dia está quente apesar do inverno e o vento é seco. Paro em alguns bares, hoje o dia não está bom. Recebo sorrisos das pessoas que elogiam o trabalho, mas ninguém compra nada. Elas não entendem, mal sabem, que minhas contas seguem atrasadas e que fico contando com a boa vontade das pessoas que moram comigo. Não posso deixar de dizer que não são apenas sorrisos que recebo, têm também as caras feias, mal humoradas, pessoas que parecem sair de casa apenas para deixar o clima dos lugares por onde passam mais pesados. Compreendo aquilo que A. me escreveu há pouco tempo, parece que tem gente que perdeu o brilho do olhar e mal se pode saber se continuam humanas. Essas pessoas só sabem dizer não, e mesmo que lhes oferecessem uma sacola cheia de dinheiro, ou mais, um desejo prontamente a ser realizado, elas responderiam negativamente. Não. Não, e não! Esse tipo de gente me tira dos eixos, acabam comigo, me fazem perder a vontade, ainda mais em dias ruins como esse. Eu só queria pagar as contas em dia vivendo da arte que eu produzo, parece simples. Dou o dia como perdido, continuo vagando sem rumo por ruas antes inexploradas, procuro algum boteco em que possa beber alguma cerveja gelada. Contento-me com um posto de gasolina e gasto 3,80 em um latão de kaiser. O que eu queria mesmo era tacar o foda-se pra tudo, apanhar qual-


quer ônibus na rodoviária que me levasse pra qualquer fim de mundo nesse país. Parado no posto, bebendo meu latão, já levemente embriagado por conta do álcool, passa por mim um catador de latinhas, um senhorzinho de cabelos brancos e banguela usando um boné, entrego minha latinha para ele, e ele para um minuto para me pedir algumas moedas, falo que meu dia foi ruim, que tentei vender meus trabalhos e nada deu certo, que tinha dinheiro apenas para a lata que lhe entreguei, lhe ofereço um zine, ele aceita. Olha atentamente o trabalho, seus olhos brilham, ele agradece e diz que está tudo muito bem feito e que eu desenho bem, me dá um sorriso sem dentes e percebo que seus olhos brilham, muita coisa passa em minha mente nesse instante, sorrio por dentro. Há esperança. ######################## Ao longo das últimas semanas tenho sido um bom cidadão. Venho trampando pra caralho afim de tentar pagar as contas em dia, e mesmo sem êxito, tenho pago elas atrasado. Escrevi todos os trabalhos da faculdade, assim, Descartes, Rousseau e Aristóteles passaram pela minha mente. Escrevi um projeto para o Proac com o objetivo de sanar meus problemas financeiros futuros, não deu certo. Venho vendendo zines sempre que possível, ando pelas ruas, adentro os bares sempre pedindo permissão aos seus proprietários. As vezes logro sucesso, as vezes não. E por conta de uma coisa ou de outra, bebo umas doses de cachaça para continuar em frente. E ainda assim, no fundo de meu peito, tem um não sei o que que me incomoda. E sigo persistindo em sabê-lo.



Eu tenho uma vizinha que é louca. Têm dias que ela canta com uma voz já gasta pela idade ao longo da tarde inteira, são trechos de músicas gritados e muitas vezes incompreensíveis. Às vezes ela começa a gritar durante a madrugada, um monólogo tortuoso e abrupto, ela grita, chora e canta, sempre incompreensível. De vez em quando ela liga seu liquidificador por minutos, fico imaginando que ela talvez faça nesses momentos uma sopa mágica e se ela não é realmente uma bruxa que conversa com demônios ancestrais. Quase sempre, quando percebo que ela começa seu monólogo quando já esta tarde, me levanto de meu colchão e sigo até o lado de fora da casa a fim de conseguir ouvi-la melhor, deito-me na rede e acendo um cigarro e divago tentando entender essa língua estranha que ela fala. Acho que de alguma forma essa loucura toda separada apenas por uma parede de mim, me atrai. Ela vive sozinha e quase nunca recebe visitas, quando se passam muitos dias sem ouvi-la, me preocupo pelo fato de ela poder estar morta, um defunto ali ao lado consumido pela insanidade. Perco-me imaginando se,


caso isso acontecesse mesmo, se nós, em nossa casa, não seríamos os primeiros a sentir o odor da putrefação. Às vezes me martirizo por essa vizinha achando que ela precisa apenas de uma companhia, mas não sei se estou preparado para conviver com uma loucura maior do que aquela que ocupa minha cabeça. Eu nunca vi pessoalmente essa vizinha, seria possível eu me apaixonar? Ela é velha e sozinha, e não me lembro se eu já disse, ela é louca.

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Mais um café de Arthur Prado

Resolvi desligar a televisão e sair mais um pouco. Na rua abri um livro que ultimamente tenho gostado bastante. Umas dez páginas eu li e me fizeram tão mal que tive que parar. O café era requentado, provavelmente feito ainda de manhã. Na pia atrás do balcão a moça ia desfiando com as unhas um frango semi-cozido. Ela fazia um esforço extraordinário. "Tá bom o café?", "sim". Muitas vezes a mentira vale mais do que se pensa. Voltando à rua, a muralha de prédios obriga a dar voltas inúteis. Coincidentemente me agrada sempre gastar o máximo possível de tempo no caminho entre uma coisa e outra. As pessoas nas calçadas formam labirintos feitos de partes móveis. Poucas sensações se comparam ao que acontece quando nos empenhamos em andar o mais rápido possível entre elas sem atropelamentos. São obstáculos difíceis, sobretudo, as crianças que às vezes se soltam das mães para quase sempre rolarem sem nenhuma direção, geralmente atraídas por pombas ou coisas sujas jogadas no chão. Nessa situação o desespero das mães eventualmente acaba resultando bofetadas na cara de suas crianças. Toda mãe odeia sua criança em algum momento, é apenas consequência inevitável do amor incondicional. Talvez construir um ser humano dentro do próprio corpo ao longo de nove meses, dificilmente seja uma tarefa possível de compreender.


Invariavelmente, algumas colheres de açúcar são derramadas pra fora da xícara. Esse tipo de acidente gera ocasião para que as formigas trabalhem sem trégua. Vão levando os grãos de açúcar até que se acabem todos. São longas filas de formiga, trabalhando em cima do balcão, descendo até o chão, entrando em buraquinhos. Durante a atividade muitas morrem. Algumas são mortas por nós, que por vezes as matamos por distração, outras porque elas incomodam realmente. Algumas pessoas acreditam que as formigas tem alma, como todas as coisas vivas. Nem por isso é tão aceitável matar gatos quanto é, sem dúvida, matar formigas. Bem, então algumas delas morrem durante o trabalho que, ainda assim, segue acontecendo. Não é possível, superficialmente, dizer que tipos de formigas são aquelas que saem da fila para fazer uma oração ao lado do corpo das formigas mortas. No entanto há muitas que apresentam essa inclinação. Prestam suas homenagens e voltam ao trabalho, regrado como sempre.



“A distância que separa os sentimentos das palavras. Já pensei nisso. E o mais curioso é que no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é, seguramente, o que eu sinto mas o que eu digo.” - Clarice Lispector – Perto do Coração Selvagem (1944)



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