re-escrita de tudo #03

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o terceiro número do zine re-escrita de tudo reúne uma seleção de textos e imagens publicados no blog reescritadetudo.blogspot.com de março à dezembro de 2010. nenhum crédito será dado ao autor, e isso basta.


viver isolado em meio à multidão é como receber convites diários ao suicídio. a cada dia que começa, a cada dia que passa, é preciso recusar o convite. à certa altura, recusar sem ter argumentos. a partir do momento em que me questiono "por quê estou fazendo isso?" e quando um "porque todo mundo faz", inconsciente, deixa de ser resposta possível, então está iniciado um caminho sem volta. a partir do momento em que o sentido das coisas mais banais só pode ser entendido como um absurdo completo, a falta de propósito cria raízes profundas na própria forma de vivenciar o mundo, vivenciar as experiências cotidianas mais comuns. então, a vontade de compreensão do mundo converte-se na mudez cerebral da alienação voluntária; e as imagens repetidas rápidas do mesmo trajeto do mesmo ônibus passam diante dos olhos sem a necessidade de interpretação, sem a possibilidade de interpretação do mundo urbano homogeneizado/homogeneizante. as imagens rápidas e repetidas do mesmo trajeto do mesmo ônibus são apresentadas como as imagens dos seriados americanos. quero estar em casa em frente à t.v. na hora certa do meu seriado americano favorito, avaliando os melhores personagens, vendo genialidade na bobagem enlatada repetida.



as relações humanas hoje em dia se parecem com as relações de mercado. isso quer dizer que as pessoas são produzidas como são produzidas as mercadorias. quando um casal gera um filho, suas possibilidades de consumo e seus valores são investidos neste filho. as relações entre as pessoas são possíveis a partir do momento em que se estabelecem pontos de afinidade entre elas. no mundo capitalista-urbano-industrialocidental-burguês-democrático-etc, os pontos de afinidade entre pessoas surgem da coincidência entre as mercadorias por elas consumidas, uma vez que valores, visão de mundo, forma de portar-se no mundo, são intermediados pelas mercadorias; circulam junto com as mercadorias, no ritmo em que a estrutura urbana permite, com a intensidade com que a indústria cultural é capaz de definir. então, os pais de família honestos investem em seus filhos através do que socialmente podem comprar-lhes e dizer-lhes. desse investimento cria-se no filho um certo valor (valor de troca, não o valor mencionado a cima, que é moral). esse valor se expressa na aparência, no vocabulário, nos gestos, no repertório de referenciais gerais. esse valor permite que o filho seja consumido por pessoas ou grupos formados a partir de investimentos semelhantes.



logo pela manhã as notícias do jornal de nome "bom dia brasil", vão aos poucos informando e entretendo. sempre aos poucos, nada de choques excessivos, nada de sequências excessivamente depressivas. queda de barracos na chuva, nascimento de pandas em cativeiro, terroristas, receita de bolo, fogo no orfanato, cultivo de orquídeas, fatos de brasília, gols da rodada. mau, bom, mau, bom...as imagens vão compondo contrastes absurdos, acompanhados pela mudança da expressão facial do apresentador: feliz, triste, feliz, triste... as imagens em contraste acumulando-se agressivamente na mente, compondo sentidos absurdos. desligo a televisão antes que comece o programa da ana maria braga; antes que me sinta forçado pelo programa de nome "mais você", a vomitar minhas vísceras pelo chão. depois disso, maquinalmente, devo ver meus e-mails. abro a internet na página inicial de notícias do "terra". eis que no mesmo espaço há notícias sobre o big brother, todas as a famosas que foram à praia (portanto de bikini) e todas as notícias mais sangrentas - o problema não é a exposição do sangue; o problema é a exposição do sangue pelo sangue, sem relação com sua causa social: o modo de produção capitalista. na internet a montagem do mundo em imagens desconexas não aparece apenas sucessivamente, como na t.v.; na internet as imagens são apresentadas simultaneamente, e junto com texto (escrito), e junto com links para vídeo, etc. em um momento vejo fotos da megan fox, no outro, na mesma página, a homenagem de facebook a um menino morto no holocausto! uma enxurrada de construções de imagens, de representações e mentiras sobre o mundo; as coisas e os valores deslocados no tempo e no sentido, tudo ao mesmo tempo, tudo como uma mesma coisa. hoje em dia a megan fox de biquini e o judeu morto em 1945 têm o mesmo fim: chamar a atenção do consumidor para os intermináveis anúncios de todas as mercadorias nas bordas das páginas da internet.



o homem de meia idade, classe média, pretensões médias, chegou ao topo do sucesso profissional - o único que tem, o único que consegue ver como sucesso. a essa altura seu salário permite trocar de carro a cada dois anos; em conversas informais esta possibilidade é narrada com seriedade e modéstia, como algo essencial mas reservado aos poucos capazes de planejamento, poupança, visão a longo prazo: estabilidade. o homemmédio vota no psdb a cada dois anos e se envergonha do operário que por hora ocupa a presidência: não importa que o pt governe para a classe média, o homem médio quer ser representado por alguém que fale francês, por alguém com formação. o homem médio, no auge de seu sucesso, pode comprar t.v. lcd, um computador mais atualizado; pode fazer planos para a compra de um blue ray player - porque logo o preço vai baixar, logo dvd não vai mais existir. alta definição, digital qualquer coisa, muito mais megapixels. entretanto, o homem médio não vê filmes - como, evidentemente, não lê mais que notícias de jornal. sua t.v. lcd com blue ray serve para alguns minutos de qualquer filme começado, e que não será visto até o fim; jornal nacional, futebol de domingo. computador novo, para não mais que verificar e-mails de trabalho. apenas o encantamento da técnica, o desejo de possuir algo que oferece possibilidades aparentemente incríveis. o homem cuja vida foi gasta na aprendizagem de procedimentos técnicos de trabalho, esgota na distração as vantagens que seu poder de consumo lhe oferece.



à essa altura não posso mais suportar que me dirijam a palavra para jogar conversa fora. em um prédio de 12 andares vivem dezenas de pessoas que não se conhecem e não fazem a menor questão de se conhecer. não posso suportar que um estranho no elevador comente sobre a copa do mundo como se isso nos unisse - sem falar nos comentários sobre frio, calor, chuva, etc. pouco me importa a copa do mundo. isso não o tornará menos estranho. chega o momento em que qualquer sinal de simpatia gratuita é sentida como ofensa. frequentemente coisas que não precisam ser ditas encontram alguém que não quer ouvi-las. à essa altura não posso mais suportar os intermináveis falatórios de senso comum; concordar apenas por cordialidade com absurdos ditos ao acaso. há quem aproveite todas as oportunidades para preencher os vazios com juízos preconceituosos sobre as coisas. 1- a televisão é o alívio do silêncio na mesa do jantar da família brasileira de classe média; tem-se a impressão de que é indispensável a presença da televisão contra o constrangimento do silêncio que se faz entre pessoas que não tem nada a dizer umas às outras, apesar de estarem constrangidas a viverem sob o mesmo teto. mas a televisão reproduz o silêncio e é solução contra a ocasião de dizer mais que palavras vazias; a televisão é solução contra o impulso latente de iniciar conflitos abertos. 2- o ocultamento da realidade da morte é o ponto central da aceitação da vida cretina à qual estão submetidas todas as pessoas na sociedade capitalista. o cotidiano gasto com trabalho alienado e distrações é possível pelo tabu que a afasta a morte da vida. aqueles que estão no fim da vida vão com o andar lento e palavras sem sentido saídas de cérebros danificados pelo tempo; remédios e arrependimentos. o olhar enigmático dos velhos é como uma ameaça.



na noite de sábado, o jovem de classe média sai à procura de fêmeas. natural, saudável. os bares de bairros de classe média são feitos para o homem jovem de classe média, pois o valor de 10 reais para mulheres e 15 reais para homens, apenas para entrar, deve evitar a presença do pobre e proporcionar boa oferta de mulheres - mas o atrativo da boa oferta de mulheres deve atrair o interesse de homens dispostos a contribuir com 15 reais... o homem jovem de classe média chega ao bar e confere, ainda pelo lado de fora, qual a situação da oferta de mulheres. avalia quantidade e qualidade, como quem escolhe carne olhando pelo vidro da geladeira do açougue, antes de decidir se seus 15 reais valerão a pena. avalia também a a concorrência, a quantidade de homens dentro do bar. neste momento nota que ao seu lado, fora do bar, há homens precavidos como ele, que fazem a mesma coisa. o sindicato resolveu fechar os portões do terminal central. isso durou quase uma hora. uma hora da tarde e o 3.30 lotado parado no terminal fechado, transformou-se em sauna de calor humano. à essa altura, as estudantes universitárias, já suadas e estressadas, sofrem por não terem seus próprios carros; reclamam porque estão atrasadas e perderão a primeira aula, "é uma falta de respeito", "um absurdo". em outra parte um homem de meia idade e, certamente, baixo salário, declara "se fosse em são paulo já tinha resolvido! chamava a tropa de choque e abria logo o portão". um motorista responde à pressão dos passageiros "não quer esperar, sai do ônibus e vai à pé!". outro motorista comenta com um cobrador "bando de vagabundos! a gente aqui querendo trabalhar!" não era greve, nem paralisação; o sindicato fechou os portões. ninguém sabe. de repente passa um louco e ri sozinho, depois um bêbado - no terminal central os bêbados são bêbados em tempo integral. finalmente o sindicato abre os portões; os ônibus saem e a vida segue. os mendigos continuam aos montes pelo chão, catando nos lixos, sujos, cambaleando.



a família feliz dentro do mcdonalds tem uma experiência feliz-colorida de sonho e comida artificial. pela fachada de vidro a filhinha do jovem casal bonito vê chegar rastejando uma mulher suja e de aparência envelhecida; roupa em farrapos e crianças de pele escura e suja: uma no colo e mais três pelo chão. a fachada de vidro do mcdonalds confirma para quem vê de fora, o sonho feliz-colorido artificial produzido pela propaganda. a fachada de vidro do mcdonalds impede o contato com os indesejáveis mas, acidentalmente, constrangeu a família feliz e estragou, por dois ou três minutos, a experiência colorida-maravilhosa mcdonalds. o jovem casal de pais lamenta que a filhinha, tão alegre, no dia de seu aniversário, tenha sido exposta a uma situação tão triste. eles têm, certamente, responsabilidade social e sensibilidade, "algo precisa ser feito para melhorar a condição dessas pessoas..." a família feliz dentro do mcdonalds tem certeza de que seu modo de vida nada tem a ver com a infeliz fatalidade da condição das pessoas esfarrapadas e sujas que a fachada de vidro acidentalmente permite ver. "essa condição precisa mudar..."



a diversão da classe média depende da atuação da polícia para a repressão cotidiana dos marginais. a polícia elimina o bandido que lesa a propriedade do funcionário bem sucedido de empresa multinacional; a polícia precisa matar o bandido antes que ele leve embora os bens comprados pelo filho da classe média com a mesada que permite que ele se dedique cuidadosamente aos estudos. esses bandidos são violentos como também são violentos os pedintes e mendigos que a policia retira da vista da classe média; os excluídos comentem a violência de estragar o fim de semana da classe média, fumando crack debaixo dos viadutos de toda a cidade. quando a polícia, sem nenhuma razão, abusa da força contra a classe média, a classe média percebe que existe algo de muito errado na sociedade; percebe que seus direitos não são respeitados como deveriam, e que é preciso fazer algo a respeito. a impessoalidade das relações pessoais chega ao seu limite no caixa do supermercado. a atendente cansada e mal paga repete pela milésima vez na mesma noite: "boa noite. cliente mais? cpf na nota?" a exploração integral das capacidades de seus funcionários pelo grupo pão de açúcar tem a aparência de atendimento diferenciado; o caráter mecânico do trabalho repetido de usar o leitor de código de barras é estendido ao contato da atendente com o cliente mais. a atendente veste o uniforme pão de açúcar, com os cabelos presos de acordo com o padrão recomendado e a fala presa de acordo com o padrão exigido. a distância que imediatamente há entre ocliente mais e a atendente contratada pelo pão de açúcar, torna-se, graças ao padrão de atendimento, distância entre gente e pedaço de máquina.



hoje em dia só tem valor o que pode servir para produzir lucro. só tem valor o que pode servir para produzir o lucro alheio; tem reconhecimento o sujeito que estuda para servir a uma empresa qualquer, um sujeito cuja formação lhe garanta um emprego com bom salário e motivação para contribuir com os ganhos da empresa que o paga bem. a universidade forma o profissional qualificado para o mercado de trabalho, e este é o sonho de todo cidadão honesto. esta função social da universidade coloca o estudante de ciências humanas no papel do bom leitor de textos, incompreendido e inútil. a universidade irreversivelmente atrelada ao poder do capital privado, aniquila a legitimidade e a importância do estudo das idéias. o estudante de ciências humanas, ideologicamente convencido da inutilidade de sua função, desiste. depois de desistir ele irá procurar um emprego decente que agrade seus pais. mas também há os melhores militantes anticapitalistas. eles também descobriram a inutilidade do estudo das ideias, dos conceitos, de todo esse trabalho lento de biblioteca e de compreensão teórica falida. os melhores militantes anticapitalistas entenderam que as transformações dependem de ações; descobriram que o estudo acadêmico de textos é perda de tempo elitista. involuntariamente, os melhores militantes anticapitalistas apoiam a opinião dos melhores militantes capitalistas sobre a inutilidade das ciências humanas.



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