Zine re escrita de tudo #04

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o quarto número do zine re-escrita de tudo chega na banca trazendo a compilação de algumas postagens (textos e imagens) do blog homônimo datadas de janeiro à dezembro de 2011 . como já é de costume, nenhum crédito será dado ao seu autor. acesse: reescritadetudo.blogspot.com

sem mais... batata sem umbigo (editor desse zine imprestável)


o filho da classe média estudante de ciências humanas sai do supermercado com suas pequenas compras de fim de semana. do lado de fora do supermercado, um homem, uma mulher, uma criança, um cachorro, todos sujos, todos tristes: "dá uma moeda... 10 centavos já ajuda ..." o filho da classe média estudante de ciências humanas, por saber que um gesto solidário não mudará em nada a estrutura de reprodução da acumulação capitalista, mantém em seu bolso os 10 centavos. o estudante de ciências humanas filho da classe média sente culpa, consciência pesada, indignação, frustração e impotência diante da crueldade do mundo. toda essa agonia dura longos 15 minutos, até chegar em casa e abrir o portão, abrir uma cerveja, abrir o facebook, abrir um bom livro...



a vida na grande cidade é insuportável pela soma de duas coisas: o desejo irracional de ter um carro e o isolamento individualista. um pedestre mais mal-humorado mal pode conter seu profundo descontentamento ao notar que há apenas uma pessoa dentro da maioria dos carros que entopem as ruas, transformando a cidade em inferno. mude a direção: o carro da propaganda, é uma expressão de personalidade, uma manifestação da essência humana. cada indivíduo precisa de seu próprio carro; dar carona para um pedestre desconhecido é imprudência completa; o pedestre não deve sentir-se no direito de pedir carona a um desconhecido que vem de carro. a consciência separada que faz funcionar a propaganda produz continuamente a separação generalizada no espaço urbano.



alguma coisa de ruim aconteceu desde que comecei a ver big brother todos os dias. talvez seja apenas uma coincidência, mas não consigo mais escrever. deste modo, ao invés de comentar sobre bobagens e catástrofes do jornal nacional, é preferível transformar isto em um grande twitter; a notícia só serve enquanto é nova. o blog-twitter não serve nunca [sem sentido]. a palavra classe média é insuportável agora. o assunto "ciências humanas" é insuportável agora: essas ficções são desgraçadamente causadoras de obsessões desmedidas. reformar o mundo. o assunto "militantes" é totalmente insuportável agora.



"O burguês, para quem a vida se divide em negócios e vida privada, a vida privada em representações e intimidade, a intimidade na repugnante comunidade do matrimônio e na amarga consolação de estar completamente só, separado de si e de todos, virtualmente já é o nazista, ao mesmo tempo entusiasta e injuriante, ou o moderno habitante das metrópoles, que só pode conceber a amizade como social contact, como a aproximação social de indivíduos intimamente distantes." - adorno e horkheimer, indústria

cultural e sociedade

a televisão ocupa o centro da sala e o centro das relações pessoais em família. (a família é uma unidade de produção) a ordem estabelecida pela centralidade da televisão é mantida, quando preciso, pelo uso da força. não há mais festa, música ou diversão sem que se provoque na sociedade civilizada um incômodo insuportável. a família educada, incomodada com a diversão alheia é a forma definida de um tipo escravizado pelo trabalhoalienado-bem-assalariado. a atitude de retirar-se de situações nas quais possa acontecer algo além do monótono é encarada como etapa natural da vida: trabalhar para dormir/dormir para trabalhar; televisão...



agora que chegou o inverno, essas ana maria braga(s) da vida real dirão por aí que gostam do frio. essas ana maria braga(s) da vida real mal podem esconder sua tristeza crônica apesar da maquiagem e do corte moderno de cabelo; mas elas gostam do frio: a idéia de que no inverno as pessoas têm a oportunidade de se vestir bem é a mais pura expressão da separação entre realidade e concepção da realidade. miséria do gosto. as imagens espetaculares da europa associaram nas cabeças mais ingenuamente preconceituosas, roupa de frio e elegância. Na verdade, roupa de frio está associada a frio. às vezes é preciso ter um vocabulário de acordo. não adianta nada falar em faustão e a mercadoria. mercadoria não diz nada ao cidadão de bem. o cidadão de bem tem relação afetiva com os objetos que possui; relação afetiva pervertida: os objetos que possui o possuem e o definem. o discurso do consumismo maldoso já está incorporado até pela propaganda de banco. o banco quer fazer crer que não tem nada a ver com isso. o banco financia a sujeição aos objetos enquanto convence seus clientes que viver bem é uma questão de boa vontade.



no meu apartamento confortável, li textos sobre a injustiça do mundo capitalista. o livro custou R$40. no apartamento confortável existem bons sofás, tv lcd, forno microondas; carro na garagem, cerca elétrica. a leitura de textos sobre a injustiça do mundo capitalista, nessas condições, cria duas consciências: 1consciência crítica, 2- consciência pesada. quando a consciência crítica quiser aliviar a consciência pesada, eu irei trabalhar junto dos cortadores de cana e dos soldadores de peças de máquinas: I- com o trabalho proletarizado alcançarei a dignidade humana, II- com a devida adaptação dos textos sobre a injustiça do mundo capitalista ajudarei os trabalhadores a alcançarem a mobilização social. mas a consciência pesada tem fundamentos mais sólidos: eu sempre posso retornar ao apartamento confortável; o trabalhador digno é livre para escolher morrer de fome.



a família, por excelência, é o lugar da perpetuação da tradição. é de pai para filho que são transmitidos os valores mais antigos e mais consolidados. é na família, portanto, que se faz a resistência às propostas mais arriscadas; é na família que se preserva as ideologias e certezas que mantém firmes as estruturas da sociedade. na mesa da sala, o almoço preparado com afeto pela mãe e a palavra preocupada e sábia do pai transformam em ingratidão e semi-loucura o descontentamento do filho em relação ao destino que lhe cabe desde o berço.

"é a família que salva o meu rabo quando eu tomo no cu smac“ o filho bem educado de uma família razoavelmente estável cria aversão teórica/simbólica ao capitalismo. esta convicção o leva a modos alternativos de viver e à recusa de uma carreira reconhecida pelo mercado. apesar de tudo, este filho bem educado, diante de eventuais fracassos sempre poderá recuar estrategicamente para a família, onde será acolhido. o filho de uma mãe solteira, criado na favela, se quiser ser alternativo ao invés de ser obediente e humilde, será acolhido na cadeia - ou no hospício, como lima barreto.


as pessoas fazem o que podem.

elas fazem o bastante?


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