Zine re escrita de tudo #05

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Esse zine reúne uma seleção das publicações de janeiro à dezembro de 2012 do blog já abandonado pelo seu autor, reescritadetudo.blogsspot.com, nenhuma autorização foi dada, além da vontade de seguir mesmo que de maneira esparsa a finalização desse compilado de escritos e imagens pelo seu editor, batata sem umbigo... Sem mais...


a construção da imagem de hitler por hollywood tornou o nazismo a expressão do mal puro na terra. consequentemente, as condições históricas a partir das quais ele surgiu foram apagadas, como se ninguém tivesse nada a ver com isso, além de uma geração inteira de psicopatas alemães. deste modo, as donas de casa, os pais de família e os estudantes universitários, abominam os campos de concentração ao mesmo tempo em que enchem a boca para aprovar o antigo massacre ocorrido no carandiru, a pena de morte e, depois de duas cervejas, a eliminação sistemática de certos indesejáveis vagabundos, inúteis ao funcionamento de uma sociedade honesta.



as pessoas bem informadas discutem detalhes intrincados sobre o funcionamento de esquemas específicos de corrupção, desvio de dinheiro público, etc. a mídia dominante repete eternamente escândalos políticos, até que eles se tornem espetacularmente normais. "fora alckimin!" ;entre uma série americana e um jogo novo de video game, a opinião pública educada acredita que é necessário eliminar o indivíduo que (temporariamente) ocupa o poder, quando, na verdade, o MAL está na estrutura do poder do estado: acordos entre o aparelho repressivo do estado e gangsters particulares acontecerão eternamente, como desdobramentos decorrentes da lógica de acumulação do capital... mais que isso, o MAL está nas convicções, nos valores e nas atitudes mais cotidianas da sociedade, que sustenta e legitima o poder do estado. mais que isso, o estado existe para que o indivíduo-consumidor-cidadão seja deixado em paz, enquanto ajuda a movimentar a economia nacional, preenchendo com brinquedos maravilhosos o vazio de sua existência. o estado existe, além do mais, para que o indivíduo-consumidor-cidadão possa responsabilizá-lo por eventuais atrocidades realizadas para a continuidade da existência do próprio indivíduo-consumidor-cidadão.



se educação fosse mais que do que domesticação, adestramento e alienação não existiriam escolas. se não existissem escolas as responsabilidades dos pais seriam ainda maiores que a de garantir a sobrevivência dos filhos. enquanto a escola é a instituição pela qual é possível terceirizar a formação das crianças, os pais não precisam dizer muito sobre o mundo, a vida e a morte; seu papel é apenas o de evitar que as crianças falem com a boca cheia e digam palavras feias aprendidas na rua: nada disso evita que os filhos tornem-se completos estranhos e que o estranhamento torne-se recíproco. a escola existe por duas razões: 1- para que os pais não percam tempo com crianças e possam dedicar sua existência ao trabalho sem sentido, mas assalariado. 2- para que, desde cedo, as crianças sejam acostumadas a acreditar que responsabilidade é estar obrigado, que tempo é dinheiro, que a família tradicional é o objetivo natural do ser humano, e (em casos mais graves) acreditar que cristo sacrificou-se para salvá-las do pecado.

se a formação das crianças fosse responsabilidade de quem as colocou no mundo, o mundo seria menos monótono. um pai que se colocasse a responsabilidade de apresentar ao filho mais que o time de futebol pelo qual ele deve sofrer, talvez não tivesse motivos para acreditar que fosse dever da escola cumprir o papel que sua ignorância não lhe permite cumprir. deste modo talvez não passasse pela cabeça dos pais a necessidade de entregar seus filhos a professores especialistas, detentores de conhecimentos indispensáveis (os logarítimos, a fisiologia celular, o período regencial, etc).



a cobradora do ônibus mal consegue entrar na cadeira de cobradora. diz que o espaço é pouco e os passageiros mal educados batem a roleta na perna dela até quase a fratura exposta. o velho triste ao lado aproveita para dizer e compartilhar tristezas, mostrar seu desacordo sobre o mal do mundo. isso durou umas dez vinte palavras. o velho triste permaneceu a longa viagem toda, até o terminal-central, olhando para a cobradora. o velho triste queria a oportunidade da dor da cobradora como ocasião para romper sua mudez solitária. nada aconteceu. se ela reclamasse mais ele poderia ter dito mais; poderia ter criado aproximações pela identificação que causa o sofrimento proveniente de um mal maior e comum. mas esse mal maior comum permanece indistinto, insuperável, invisível, romantizado.



tem gente que deseja uma felicidade simples. não se prender eternamente a uma única pessoa pelo casamento; não ter filhos porque o mundo não vale a pena. não ter conta em banco, não pagar plano de saúde e seguro, não trabalhar. não precisar de dinheiro. ter uma felicidade simples significa ser livre de vínculos de longo prazo: é aí que se descobre o mal encarnado no emprego estável e na instituição familiar. em certas frações da juventude da classe média, a necessidade de escapar da monotonia dos dias repetidos criou o desejo de uma vida imprevisível, na qual fosse real a possibilidade constante de aventuras. no entanto, entre o desejo de não precisar de salário para não precisar seguir ordens e a convicção de que não se deve ter filhos para não ter dependentes, aparece a condição de estar entre a liberdade para fazer o que quiser e uma rotina fragmentada por interesses isolados de curto prazo.



o problema do mundo é que as pessoas não percebem que existem.

a exposição cotidiana dos fatos pelo jornalismo, faz parecer óbvio que é nas pequenas coisas que está a realidade. uma fila de gente pobre, acordada desde as cinco da manhã na porta do hospital público. a conclusão implícita é que "não tem o que fazer". o economista/sociólogo comentador de direita diz que tem que privatizar, o de esquerda diz que tem que estatizar. as coisas todas estão sobrando. por que jesus ressucitou lázaro se lázaro teria que voltar a morrer?



a atual expectativa pelo fim do mundo é expressão legítima da visão de mundo do tipo social que hoje domina o mundo e que vai dominando-o cada vez mais até que seu entendimento particular das coisas seja convertido em verdade evidente. a concepção cristã de tempo é linear. compreende o período do antigo testamento até o ano zero e depois disso até o retorno de cristo e o apocalipse. a cultura maia, como muitas culturas da américa antes da chegada dos europeus, tinha uma concepção cíclica de tempo, na qual estava implicada uma sucessão contínua de fins e recomeços. nesse sentido a ideia de fim para os maias nada tem que ver com a ideia de fim para os contemporâneos ocidentalizados. "fim do mundo": a ideia de "mundo" para os maias nada tem que ver com a ideia de "mundo" para os contemporâneos. para os contemporâneos não tem sentido pensar em "ideia" de mundo: o mundo é o mundo, o fim é o fim, o tempo é o tempo. o fim do mundo cristão, relacionado ao milênio, era um problema real para os europeus que viram chegar o ano mil. hoje ele é tratado como piada que encobre, se não o medo, uma desconfiança de que talvez isso possa mesmo ser verdade. trata-se, primeiramente, da característica básica da cultura que hoje domina o mundo: o total desapego ao conhecimento e o fascínio por boatos vindos do nada, mas tornados consistentes pela repetição na televisão e no facebook. em segundo lugar, como elemento constitutivo e profundamente arraigado à cultura que hoje domina o mundo, é a incapacidade implícita de reconhecer que possa existir visão diferente da sua, que hoje é para todas as pessoas, indubitavelmente a expressão pura e justa da natureza.


o problema do mundo ĂŠ que as pessoas nĂŁo percebem que existem.


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