UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE ARTES VISUAIS CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARTES PLÁSTICAS
Andréia Ferreira dos Santos
Os meus medos sรณ eu os vejo
GOIร NIA 2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE ARTES VISUAIS CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARTES PLÁSTICAS
Andréia Ferreira dos Santos
Os meus medos só eu os vejo
Trabalho apresentado à banca examinadora da faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás para a obtenção de título de bacharel em Artes Visuais. Orientadora: Profa. Dra. Carla de Abreu
GOIÂNIA 2016
Andréia Ferreira dos Santos
Os meus medos só eu os vejo Trabalho de conclusão de curso de graduação da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais
Aprovado em: ____ de _______ de _____.
BANCA EXAMINADORA __________________________________________ Paulo Petronilio Petrot – UnB, UFG
__________________________________________ Samuel José Gilbert de Jesus – FAV/UFG
__________________________________________ Carla de Abreu – FAV/UFG (orientadora)
À peixinha que habita em mim e ao Felipe.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora Carla de Abreu. Por me acolher com extremo carinho, generosidade e fornecer o suporte para que esse trabalho se concretizasse. À minha família. Pela paciência em todos os momentos possíveis, em especial aos meus pais, Márcia e Antônio e ao meu sobrinho, Antônio. À minha preciosa amiga Rayani. Pelas infinitas conversas e trocas de inquietações, angustias e levezas. Aos professores e aos funcionários da Faculdade de Artes Visuais/ Artes Plásticas. Ao meu admirável amigo Felipe. Pelo amor e apoio. Às minhas amigas e professoras Adriana Delbó, Carmelita Brito, Márcia Zebina, Marcela Castanheira e Cássia Oliveira.
RESUMO O meu trabalho é problematizado a partir da seguinte questão: porque o sentimento de estranheza diante de corpos dilacerados pela guerra, corpos disformes e personagens do circo dos horrores geram em mim o sentimento de medo e desconforto? Com essa problemática busco desenvolver e esclarecer a metamorfose que o olhar sofre diante dos sentimentos de desconforto causados em mim por essas imagens. A transformação do olhar estará permeada ao longo de todo este trabalho, mostrando como o olhar passa de uma posição de mero observador para se fundir no olhar do outro que é observado, chegando a se multiplicar em uma interminável rede de seres que se entrelaçam em uma troca mútua de olhares. Palavras-chave: estranhamento; olhar; reconhecimento; alteridade.
LISTA DE IMAGENS Figura 1. Andréia Ferreira, sem título. 2015...........................................................................................12 Figura 2. Andréia Ferreira, sem título. 2015. Verniz sobre papel, 1,20 x 80cm......................................13 Figura 3. Goya, Os desastres da guerra, nº 30, 1810. Água-forte, ponta seca, buril, 14 x 17 cm...........15 Figura 4. Francis Bacon, Crucifixion 1965. Óleo sobre tela. Cada painel 197,2 x 147 cm. Bayerische Staatsgemäldesammlungen, Munich.....................................................................................................16 Figura 5. Hieronymus Bosch, O Juízo Final 1506-1508 (Fragmento). Óleo sobre Madeira, 60 x 114cm, Munique Bayerische Staatsgemäldesammlungen......................................................................18 Figura 6. Pieter Brueghel, o velho, Gret, a louca 1562 (Fragmento). Óleo sobre painel, 115 cm × 161 cm, Museum Mayer van den Bergh, Antwerp.......................................................................................19 Figura 7. Patrícia Piccinini, O Tão Esperado. 2008. Silicone, fibra de vidro, cabelo humano, madeira compensada, couro, vestuário, 152x80x92cm..........................................................................................20 Figura 8. Circo The Barnum and Bailey...............................................................................................24 Figura 9. Andréia Ferreira, Os meus medos só eu os vejo. 2014. Vídeo digital.....................................25 Figura 10. Cena do filme Freaks, 1932.................................................................................................26 Figura 11. Andréia Ferreira, sem título. 2015........................................................................................28 Figura 12. Fotografia de Joseph Merrick, 1889.....................................................................................29 Figura 13. Andréia Ferreira, sem título. 2016.......................................................................................30 Figura 14. Andréia Ferreira, sem título. 2016.......................................................................................36 Figura 15. Andréia Ferreira, sem título. 2016.......................................................................................37
LISTA DE TABELAS Tabela 33
1..................................................................................................................................................
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................8 1. OS MEDOS GANHAM CORPO...................................................................................... 10 1.1 O OLHAR DE ESTRANHAMENTO 10 1.2 CORPOS DILACERADOS: FRANCISCO DE GOYA E FRANCIS BACON..................14 1.3 CORPOS GROTESCOS: BOSCH, BRUEGHEL E PATRÍCIA PICCININI....................17 2. COMO EU VEJO E COMO ME OLHA: DO ESTRANHAMENTO PARA O RECONHECIMENTO......................................................................................................... 22 2.1 A RELATIVIDADE DO FEIO................................................................................................22 2.2 O PARADOXO DO CIRCO DOS HORRORES......................................................................23 3. A FRAGMENTAÇÃO E MULTIPLICAÇÃO DOS OLHARES:....................................... 31 3.1 A ALTERIDADE DO MONSTRO.........................................................................................31 3.2 UM OLHAR CALEIDOSCÓPICO........................................................................................34 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 39 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 40
INTRODUÇÃO Quando estou sozinho tenho a cabeça cheia de crianças mortas, fico permaneço deitado no quarto rodeado de tristeza e crianças mortas. José Luís Peixoto
Este trabalho apresenta algumas questões que foram levantadas ao longo dos estudos em minha graduação no curso de Artes Visuais ao perceber o inevitável sentimento de “estranho” que sentia diante de algumas imagens que estão fora de um padrão de normalidade. Quando estou só, momento em que não consigo fugir da solidão e tenho que enfrentar os meus medos e “monstros”, percebo que sou arrebatada por uma impotência diante dos meus sentimentos que se contornam e se afiguram em imagens de desassossego, de perda dos padrões confortáveis do olhar disciplinado. Tudo que é diferente gera em mim essa sensação de “estranho” e é justamente essa sensação que me motiva a continuar a pesquisar o sentimento de impotência que sempre me atravessa diante imagens que estão fora de um padrão de normalidade. Estar só, inexoravelmente perpassada pelo inesperado, para mim, é sempre um desafio. Domínio e ausência de domínio, controlar o incontrolável – talvez compraza à quem o desespero é uma mera metáfora. Enfrentar o indiscernível é enfrentar a monstruosidade latente dentro de nós. Ver é também assustar-se por dentro. O meu trabalho será problematizado a partir da seguinte questão: porque o sentimento de estranheza diante de corpos dilacerados pela guerra, corpos disformes e personagens do circo dos horrores geram em mim o sentimento de medo e desconforto? Com essa problemática 13
tentarei desenvolver e esclarecer a metamorfose que o olhar sofre diante dos sentimentos de
desconforto causados em mim por essas imagens. A transformação do olhar estará permeada ao longo de todo este trabalho, mostrando como o olhar passa de uma posição de mero observador para se fundir no olhar do outro que é observado, chegando a se multiplicar em uma interminável rede de seres que se entrelaçam em uma troca mútua de olhares. O método do trabalho almejará construir uma poética visual, produzindo, também, um objeto artístico. A poética é, então, o caminho a se percorrer. A esse respeito, Sandra Rey (2002) faz uma analogia interessante e muito provocadora ao dizer que a pesquisa em arte assemelha-se de uma utopia, pois a utopia define-se como algo que não tem lugar e meta. Durante o processo de produção de uma obra, não temos como precisar o seu destino final, já que este depende diretamente da própria trajetória transcorrida da produção da obra (o fazer poético). É nesse momento que podemos identificar a importância da poética, visto que ela é encarregada por dar o amparo teórico e filosófico da obra. A pesquisa em poética, segundo Sandra Rey, se fundamenta nos estudos que abordam a obra em sua iniciação, portanto o objeto da poética é a obra se fazendo baseada em três critérios: liberdade, que é a expressão da singularidade; errabilidade, como direito de enganar-se; e, eficácia, sendo o reconhecimento do erro e consertar. A errabilidade, sendo já um pressuposto para todo fazer artístico, não é tratada neste trabalho apenas como uma estratégia metodológica, uma vez que ela está também no conteúdo deste trabalho. Podemos compreender o aparecimento do monstro como algo sempre inesperado que escapa ao padrão confortável de normalidade, quebrando a previsibilidade dos acontecimentos: o monstro representa, para mim, a falta de controle sobre a vida e as coisas da natureza. Este trabalho será dividido em três capítulos. No primeiro capítulo, irei mostrar os
marcos teóricos fundamentais, perpassando pelo conceito de estranho. Uma outra questão a ser tratada será a da relação conjunta do olhar e do estranho com o grotesco, relacionando essa temática com as obras de alguns artistas como, por exemplo, Francis Bacon, Bosch, Brueghel e 14
Patrícia Piccinini. No segundo capítulo, irei abordar sobre o feio e alcançando o debate sobre o
paradoxo do circo dos horrores. Nesse sentido, analisarei como o circo dos horrores representa metaforicamente e imageticamente um paradoxo inerente ao sentimento inicial – o paradoxo entre padrão e despadrão, medida e desmedida, controle e descontrole. Por fim, no terceiro capítulo mostrarei como confluem poeticameho de um caleidoscópio que representará a metamorfose e multiplicação do olhar. Ao final, penso que o conhecimento adquirido com o este trabalho, acrescentará possibilidades de exploração no desenvolvimento pessoal de uma poética artística - o que nem sempre foi possível durante o curso. De outro lado, creio que esse conhecimento pode, talvez, ampliar o leque de opções e desenvolvimento de poéticas para os futuros estudantes do curso de bacharelado em Artes Plásticas.
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1. OS MEDOS GANHAM CORPO [...] a inquietante estranheza não está nunca muito longe. Jean-Jacques Courtine A Razão adormecida cria monstros. F. J. de Goya y Lucientes
Um primeiro capítulo é uma porta de entrada. Ao final, voltaremos a sair por ela? Creio que não. Adentrar o mundo do estranhamento é sair do mundo do doméstico. O estranho é um labirinto e não uma casa: a repetição de suas esquinas nos causa vertigens e embaraços desconfortáveis que nos transformam (que me transforma!). Encontrar - ou inventar? - uma saída significa transfigurar-se, ganhar uma nova forma, uma nova imagem de si a partir do enfrentamento do caminho e de suas esperadas imprevisibilidades. Este capítulo se dedicará a abrir a porta para o duro caminho inicial do estranhamento, onde os medos ganham corpos e se moldam em figuras informes e desformes. O aniquilamento do corpo pelas fatalidades da guerra (mesmo os combates de vida e morte da vida cotidiana), refletidas por Goya e Bacon, representam o alheamento inicial deste sentimento. Os corpos grotescos, fusão (imaginaria ou não) de diferentes naturezas, também nos trarão imagens desconfortáveis da transmutação do corpo humano (Bosch, Brueghel e Patrícia Piccinini). Enfrentar o corpo estranho é perguntar-se pelos limites do que pode ser o corpo humano.
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1.1 O OLHAR DE ESTRANHAMENTO
O sentimento de medo diante daquilo que nos ultrapassa me faz perder a estabilidade e a suposta harmonia em que o olhar fixo da normalidade está inserido, gerando, por sua vez, uma “estranheza” diante daquilo que nos deparamos de frente. A noção de estranho parece representar bem este sentimento de disparidade inquietante. Sigmund Freud, em um artigo intitulado O estranho, escrito em 1919, nos traz a noção etimológica da palavra estranho: A palavra alemã ‘unheimlich’ é obviamente o oposto de ‘heimlich’ [‘doméstica’], ‘heimisch‘ [‘nativo’] – o oposto do que é familiar; e somos tentados a concluir que aquilo que é ‘estranho’ é assustador precisamente porque não é conhecido e familiar. Naturalmente, contudo, nem tudo o que é novo e não familiar é assustador; a relação não pode ser invertida. Só podemos dizer que aquilo que é novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho; algumas novidades são assustadoras, mas de modo algum todas elas. Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para tornálo estranho (FREUD, 1996, p. 239).
Freud entendia o estranho como aquilo que nos causa desconforto e nos deixa intranquilos, inquietos. Nesse sentido, no capítulo sobre o inquietante, presente no livro A História da Feiura, Umberto Eco, retomando essa ideia de Freud, nos traz a noção do feio de situação, entendido como quando não conseguimos explicar uma situação podendo ser inquietante e até aterrorizante. “O que nos assusta ou nos apavora é algo que não acontece como deveria acontecer.” (ECO, 2014, p. 311). Esses momentos de estranhamento ocorrem pela alteração do curso natural das coisas. Segundo ele, Schelling explicou esse estranhamento como o reafloramento do que deveria estar escondido e, Ernest Jentsch, descreveu o estranhamento como uma situação inusitada em que já não somos capazes de explicar. Assim como Schelling, Freud também compreendia o inquietante como um retorno ou reafloramento de algo que estava ou deveria estar oculto. Com o intuito de tentar exprimir essa motivação inicial dos sentimentos de estranheza, iniciei minhas experiências em tornar visíveis esses sentimentos no ateliê de práticas operacionais 17
do bidimensional. Em um primeiro momento encontrei algumas limitações por estar usando
um suporte bem maior ao que habitualmente estava acostumada a usar e, além do mais, materiais diferentes – tais como caneta, lápis de cor, giz pastel oleoso. Comecei usando verniz e um pigmento que normalmente é usado para fazer tatuagens, tentando fazer pinturas que fugissem da caricatura, modo pelo qual eu estava acostumada a produzir. Confesso que, apesar do nervosismo diante dos colegas, gostei muito da experiência e dos resultados que esse novo material proporcionou, possibilitando uma melhor visualização do trabalho também por ter uma proporção maior. O primeiro resultado obtido a partir dessa experiência foi uma produção visual que expressa um conjunto de seis olhares diferentes (figura 1) como forma de descobrir as possibilidades que o material poderia me dar e qual caminho deveria ou não seguir nos próximos trabalhos.
Figura 1. Andréia Ferreira, sem título. 2015. Verniz sobre papel, 80 x 1,20 cm. 18
Usei o vermelho e uma pequena variação para o roxo na série monocromática com o
objetivo de ressaltar, não o rosto – corpo, órgão – e sim o olhar de quem é afetado por aquelas sensações de estar diante do “estranho”. Em outra experiência tentei usar a variação da cor preta para a cinza, mas ao misturar o pigmento branco percebi que a tinta perdia a transparência, o que apresentou uma opacidade que não foi satisfatória e, de certa forma, acabou afetando o resultado final. Tentei resolver colocando uma quantidade maior de verniz e pigmento preto, mas as formas iam se perdendo na medida em que aquela mistura entrava em contato com o suporte – além de não obter muito sucesso, pois a tinta perdeu uma das características que mais me haviam chamado a atenção, a transparência. A utilização do pigmento vermelho se justifica pelo motivo de ser uma cor muito forte e que de certa forma nos remete às expressões mais viscerais da experiência caótica da vida humana. O vermelho, ademais, viabilizou de forma inesperada uma transparência no resultado final do trabalho plástico que outros pigmentos como, por exemplo, o branco, o cinza e o preto não haviam alcançado. Apesar do surgimento inesperado que a transparência propiciou, ela foi bem aceita por traduzir melhor a etéreidade (esvaziamento) dos traços, evitando uma delimitação fixa das marcações do desenho e acolhendo com precisão a desejada representação da transformação da identidade nos olhares. O olho que vela em momentos de fuga é o mesmo que desvela em momentos que estamos sós e temos uma única alternativa: encarar esse “estranho” – desprazer que muitas vezes, denominamos de monstruoso. A impressão que sinto diante dessa situação de encarar o estranho é que mesmo quando encontro um caminho de fuga, tentar me desvencilhar desses pensamentos, sinto que estou sendo observada por vários olhos. Com pinceladas rápidas e tentando não me preocupar muito com as formas, as pinceladas cobrem aos poucos o suporte, sendo preenchidas por espaços meio cheios e meio vazios de tinta, compondo e ocupando todo o espaço. Percebo que as formas que ganham corpo, muitas vezes 19
gritam por socorro em silêncio, um silêncio ensurdecedor com um poder inexplicável de sufocarme com um simples olhar.
Figura 2. Andréia Ferreira, sem título. 2015. Verniz sobre papel, 1,20 x 80cm. 20
Olho, esse ser redondo que “sabe que o que se isola se arredonda, assume a figura do ser que se concentra em si.” (BACHELARD, 1974 p. 241). É a parte do corpo redonda e que muitas vezes assume essa posição de ser, a escolhida para mostrar em algumas produções visuais, os meus medos mais internos. É nesse sentido que tento estabelecer relações com conceitos como “estranho”, ou “monstruoso”. Nesses momentos tão singulares e tensos, o olho acaba perdendo toda característica que o categoriza como um órgão sensorial – a visão, para transformar-se em um “ser-aí”, que está sempre observando e revelando todos os meus medos e angústias.
1.2 CORPOS DILACERADOS: FRANCISCO DE GOYA E FRANCIS BACON Tanta é a morte que nem os rostos se conhecem, lado a lado, e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso. Cecília Meireles. Guerra.
Podemos ver delineadas de forma paradigmática as imagens do estranhamento e da debilidade de nossas emoções na temática trágica do horror da guerra, muito bem representadas (e vivenciadas intensamente) na série de gravuras intituladas Os desastres da Guerra do pintor e gravador espanhol Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828). Ao olhar para a gravura de número 30 (figura 3) pertencente à sequência de 80 gravuras dos Desastres da guerra – divididas por Goya em três temas, a saber, guerra, fome e crítica sociopolítica – podemos observar com maior evidência e quase que de forma escancarada na composição da 21
obra um amontoado de cadáveres. O dilaceramento dos corpos – a transfiguração dos corpos em
cadáveres (o que um dia foi corpo, naquele momento da representação é apenas um cadáver), a disposição aleatória dos corpos (como se tivessem sido arremessados), uma cabeça separada do corpo ao centro da cena, pés e mãos espalhados acidentalmente, uma criança junto a uma mulher, possivelmente sua mãe, os corpos-cadáveres retorcidos – torna a imagem explicitamente e angustiosamente incomensurável, fazendo surgir novamente o sentimento de estranhamento diante dos momentos caóticos e perturbadores do trágico sentido da existência humana.
Figura 3. Goya, Os desastres da guerra, nº 30, 1810. Água-forte, ponta seca, buril, 14 x 17 cm1 1 Disponível em: < https://art.famsf.org/francisco-jos%C3%A9-de-goya-y-lucientes/estragos-de-la-guerra-ravages-war-pl-30-series-los-desastres-de >. Acessado em 24 de junho de 2016. 22
O desordenamento da obra causa em mim uma perda de sentido da realidade e de
qualquer relação de domesticidade com a cena, assumindo nesse momento a metáfora do “espelho deformador”. Eu olho para a obra, mas não me identifico com os corpos que estão representados, o que me faz perder qualquer noção de familiaridade com aquela realidade extrema, pois, ao ver alguém que já está morto, me causa uma sensação de anomalia, uma quebra das expectativas naturais e sou mais uma vez surpreendida por um sentimento de estranheza. É, portanto, do próprio cenário do horror diante da imagem do corpo sem forma que aparece a noção de estranhamento. A desfiguração dos corpos está presente também de maneira marcante nas obras do artista Irlandês Francis Bacon (1909-1992). Assim como Goya, Bacon também produz as suas obras sob influência da trágica existência da vida humana diante de um mundo em guerra. Ao se tratar do sujeito moderno, Bacon sempre o representa de maneira trágica e violenta. Em uma entrevista (MAUBERT, 2010, p. 31) o artista diz sobre a sua pintura em relação ao corpo-carne: “minha pintura é primordialmente do instinto. É um instinto que me leva a pintar a carne do homem como se ela se espalhasse para fora do corpo, como se ela fosse sua própria sombra. Vejo-a dessa maneira. O instinto está misturado à vida. Tento me aproximar o objeto o mais perto de mim e gosto desse confronto com a carne, essa verdadeira escoriação da vida em estado bruto”. Bacon, em sua obra Crucifixion, representou corpos dilacerados, compreendidos não como corpos ligados à ideia de um organismo inteiro e coeso, mas como pedaços de carne do que um dia teria sido um organismo. Sobre isso Gilles Deleuze em Francis Bacon: lógica da sensação, afirma:
Esse fundo, essa unidade rítmica dos sentidos, só pode ser descoberta ultrapassando-se o organismo. (…). Para além do organismo, mas também como limite do corpo vivido, há o que Artaud descobriu e nomeou: corpo sem órgãos. ‘O corpo é o corpo. Ele está sozinho. E não precisa de órgãos. O corpo nunca é um organismo. O organismo são os inimigos do corpo’. O corpo sem órgãos se opõe menos aos órgãos do que à organização dos órgãos 23
que se chama organismo. É um corpo intenso, intensivo. Ele é percorrido por uma onda que traça no corpo níveis ou limiares segundo as variações de sua amplitude. O corpo, portanto, não tem órgãos, mas limiares ou níveis. (DELEUZE, 2007, p.51)
Figura 4. Francis Bacon, Crucifixion 1965. Óleo sobre tela. Cada painel 197,2 x 147 cm. Bayerische Staatsgemäldesammlungen, Munich2
Justamente por não conseguir reconhecer um corpo estirado no chão e outro pendurado em uma parede, que tais imagens geram em mim uma sensação de desconforto. Ao olhar para o tríptico eu até consigo perceber a presença de uma mulher nua no canto esquerdo da tela e dois homens sentados ao fundo da terceira tela, mas, o meu olhar, inconscientemente se prende às
representações destes corpos sem a ordem que os caracterizariam como um corpo-organismo, com formas cômodas e confortáveis ao meu olhar. 2 Disponível em: <https://i1.wp.com/www.guggenheim.org/wpcontent/uploads/1962/01/64.1700_ph_web.jpg?fit=1200%2C533&ssl=1>. Acessado em 16 de outubro de 2016. 24
1.3 CORPOS GROTESCOS: BOSCH, BRUEGHEL E PATRÍCIA PICCININI Umberto Eco, novamente em A História da Feiura, traz à tona a noção da Integridade, muito utilizada na estética medieval por Tomás de Aquino para definir o feio, algo que me ajudará a compreender aqui a ideia do corpo grotesco. Nesse sentido, Eco esclarece que, segundo o autor medieval, algo seria belo se mantivesse a sua inteireza ou integralidade harmônicas. Sendo assim, a ausência ou excesso de um membro ou de um órgão e a mistura de membros entre seres diferentes (influenciadas, nesse caso, pelo imaginário e conteúdo imagético bíblico cristãos) definiriam aquilo que poderíamos chamar de feio grotesco. Wolfgang Kayser (2009, p. 20) refere-se a uma frase de Albrecht Dürer sobre a temática pictórica dos sogni dei pittori, mostrando como a concepção do mundo cristão, ainda presente no imaginário barroco, estava influenciada por aquele ponto de vista estético sobre a Integralidade de Tomás de Aquino: “Mas tão logo alguém queira realizar sonhos, poderá misturar todas as criaturas umas com as outras”. O primeiro aspecto dessa frase de Dürer, e que define uma das características mais destacáveis do grotesco, é a da mistura ou hibridização entre dois ou mais domínios/mundos de conteúdos de imagens: “a mistura do animalesco e do humano, o monstruoso como a característica mais importante do grotesco” (KAYSER, 2009, p.24). Embora essa mistura dependa da imaginação humana, ela não pode, porém, ser apenas entendida como uma mera ilusão ou sonho, como foi caracterizado por Dürer no início de sua frase. A transformação da realidade através da mescla de diferentes figuras (o animalesco e o humano em um mesmo corpo) não surgem a partir de “visões livres” (2009, p. 36) da realidade, mas da junção absurda e, ao mesmo tempo, verdadeira (em sua potencialidade atual), de uma realidade efetivamente assustadora: (…) no tocante à essência do grotesco, não se trata de um domínio próprio, sem outros
compromissos, e de um fantasia totalmente livre (que não existe). O mundo do grotesco é o nosso mundo – e o não o é. O horror, mesclado ao sorriso, tem seu fundamento justamente na experiência de que nosso mundo confiável e aparentemente arrimado numa ordem bem firme, se alheia sob a irrupção de poderes abismais, se desarticula nas juntas e nas formas e se dissolve em suas ordenações. (2009, p. 40). 25
Ainda que em um cenário acentuadamente cristão, Hieronymus Bosch (1450-1516)
representa em algumas de suas obras (das quais destacarei a terceira parte do tríptico do Juízo Final, intitulada O Inferno) a exteriorização de imagens desvinculadas da realidade cotidiana e influenciadas pelas descrições fantásticas dos textos apocalípticos bíblicos, mas que não podem ser de maneira nenhuma compreendidas como falsas ou como sonhos. Para ele, o estranho e desproporcional cenário surgido de “uma mistura aterradora de elementos mecânicos, vegetais, animais e humanos” (2009, p. 34) - peixes alados, homens disformes, monstros engolidores de pessoas, insetos gigantes etc. - era o mais potencialmente verdadeiro e temivelmente possível.
Figura 5. Hieronymus Bosch, O Juízo Final 1506-1508 (Fragmento). Óleo sobre Madeira, 60 x 114cm, Munique Bayerische Staatsgemäldesammlungen3 3 Disponível em < http://pt.wahooart.com/@@/9GZMAV-Hieronymus-Bosch-Ju%C3%ADzo-Final> Acessado em: 23 de outubro de 2016. 26
Em Pieter Brueghel (1525/30-1569) essa relação entre o grotesco e a realidade é transposta
para a vida cotidiana. Nele não há mais um pano de fundo religioso relevante que justifique a mistura grotesca das figuras humanas e animais. Os monstros parecem representar mais os temores e inquietações da vida urbana do que uma representação do imaginário cristão. Segundo Kayser, em Brueghel “o noturno o infernal e o abismal (...) irrompe em nosso mundo familiar e o põe fora dos eixos. (...) É a inserção (...) das visões espectrais de Bosch no mundo de todos os dias” (2009, p. 36). Em sua obra Gret, a louca, é bastante perceptível a presença dessa mistura entre o animalesco e o humano. No fragmento da parte inferior esquerda da imagem podemos observar um ser que lembra muito uma joaninha com um rosto bem humanizado e, logo ao lado, também temos outro ser segurando uma colher com sua boca-ânus, estando de ponta-cabeça, conectado a um par de pernas sem o tronco que ligue essa cabeça ao membro.
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Figura 6. Pieter Brueghel, o velho, Gret, a louca 1562 (Fragmento). Óleo sobre painel, 115 cm × 161 cm, Museum Mayer van den Bergh, Antwerp.4
Um segundo aspecto que caracteriza o grotesco, consequente ao da mistura ou hibridização entre dois domínios normalmente distinguíveis (o mundo dos homens e o mundo dos animais ou criaturas não-humanas), é o do “horror ante seu caráter abismal” (2009, p .39). A desordenação e informidade das figuras grotescas faz surgir a experiência do “alheamento” do mundo, tornando a realidade e todos os seus padrões convencionais em um “mundo às avessas”, “fora dos eixos”, e, em última instância, angustiante. Tal característica está ligada, segundo gostaria de interpretar, ao sentimento de descontrole da vida: “a surpresa como perplexa angustia diante do aniquilamento 4 Disponível em < http://foetusman.tumblr.com/post/130061902559/scribe4haxan-dulle-griet-mad-meg-1562> Acessado em: 23 de outubro de 2016. 28
do mundo, o grotesco adquire uma relação subterrânea com a nossa realidade” (2009, p.31). As obras recentes da artista australiana Patrícia Piccinini (1965) me fazem remeter ao que acabamos de conceber como corpos grotescos. Apesar do salto histórico de quase quatrocentos anos, compreendo que a ideia da hibridização e do estranhamento angustiante permanecem representadas de forma clara em suas esculturas.
Figura 7. Patrícia Piccinini, O Tão Esperado. 2008.5 Silicone, fibra de vidro, cabelo humano, madeira compensada, couro, vestuário, 152x80x92cm.
A escultura O Tão Esperado (fig. 7) representa, porém, algo que ultrapassa o simples estranhamento. Embora eu possa reconhecer nela os traços grotescos surgidos da hibridização 5 Disponível em <http://og.infg.com.br/in/17747662-8bd-b7c/FT1086A/275/2015-856693904-long_awaited_front. jpg_20151009.jpg > Acessado em 10 de outubro de 2016. 29
entre o humano e o animalesco, retratados na figura do ser que está deitado sobre o colo da
criança, o movimento da obra transmite, acima de tudo, uma situação de troca afetuosa entre a criança e o ser grotesco. A hibridização aqui está sendo levada a um nível superior de uma contradição, não apenas da forma, mas também do sentimento que surge ao se observar a obra. Segundo acredito, é essa, talvez, a principal mensagem que Patrícia Piccinini quer nos transmitir com a sua produção. Fico ao mesmo tempo, num misto de sentimentos: por um lado, espantada com a figura monstruosa de um ser aparentemente idoso que está sobre o colo de uma criança, cujo rosto é mais alongado do que um rosto humano poderia ser, a mão tem os dedos curtos demais e que lembram mais um pé do que uma mão e o que poderia ser os dois pés é apenas um mesmo membro com os dedos todos grudados uns aos outros remetendo a uma calda de foca ou sereia; mas, por outro lado, também fico acolhida pela cena reconfortante de uma delicada troca de carinhos: ambos os seres descansam, um sobre o outro, e se apaziguam da vida perturbadora do estranhamento e do arbítrio dos olhares julgadores. 2. COMO EU VEJO E COMO ME OLHA: DO ESTRANHAMENTO PARA O RECONHECIMENTO
Por que a Natureza produz monstros? Porque não há nela um propósito no resultado de sua formação. Ludwig Feuerbach
Podemos também encontrar a sensação perturbadora causada pelo sentimento de estranho ao nos deparar com objetos que podem ser compreendidos, em certo sentido, como feios. Como tentei mostrar, a categoria do estranhamento me leva não a aversão do objeto por
si, mas ao sentimento de descontrole diante do desequilíbrio da vida, o discernimento de que não tenho um domínio sobre as coisas da natureza que culminará, como mostrarei no próximo tópico deste capítulo, precisamente no Paradoxo do Circo do Horrores. 30
2.1 A RELATIVIDADE DO FEIO
Umberto Eco, em seu a livro A História da Feiura, faz uma distinção muito importante entre o feio em si e o feio formal. O feio formal, ao contrário do feio em si, é sempre relativo a um padrão de beleza que determinará as ausências ou excessos que podem caracterizar um objeto como feio, por exemplo: “o desequilíbrio que a imagem de uma boca desdentada nos causa” (ECO, 2014, p.19). O feio aqui é caracterizado pela falta do que deveria (exigência de um padrão) estar presente (os dentes que faltam). Há uma ideia geral, lembrada por Eco, de que a compreensão daquilo que reconhecemos como belo ou feio é determinado por padrões culturais e temporais – ainda que tenham tentado, em outros casos, dar um caráter universal a essas compreensões. Sobre essa ideia da relativização cultural do feio e do belo, ele nos afirma em História da Feiura: Para um ocidental, uma máscara ritual africano pode parecer horripilante – enquanto, para um nativo pode representar uma divindade benévola. Em compensação, para alguém pertencente a alguma região europeia, poderia parecer desagradável a imagem de um Cristo flagelado, ensanguentado e humilhado, cuja aparente feiura corpórea inspira simpatia e comoção a um cristão. (2014, p. 10).
Apesar dessa relativização cultural, ainda assim houveram tentativas de impor um padrão de normalidade baseado em supostas superioridades etnocêntricas e antropocêntricas, nas quais “a beleza e a feiura são definidas em referência a modelos específicos”. (idem, 2014, p. 15). Embora essas ideias etnocêntricas, muitas vezes geradoras de preconceitos, devam ser obviamente evitadas, o que me interessa de tudo isso é compreender que o feio é sempre uma contraposição a um padrão de belo. Aqui tomaremos como pressuposto apenas a ideia de que existe um padrão, independente da sua aplicação ser contingencial ou universal. Tal padronização torna belas certas características e feias todas as outras que não se encaixam nela. 31
A partir disso podemos considerar que as figuras que tomamos como “estranhas” ou
anormais (o monstruoso de que falará Jean-Jacques Courtine) confirmam a própria noção de que há um padrão de normalidade nos nossos julgamentos estéticos: “O monstro é sempre uma exceção que confirma a regra: é a normalidade do corpo urbanizado do cidadão que o desfile dos estigmatizados diante da objetiva convida a reconhecer no espelho deformador do anormal” (COURTINE, 2011, p.280). Com tudo isso, assumo neste trabalho que o feio não é apenas uma figura estranha em si e por si. O que me interessa nele é a perda da medida do olhar confortável simbolizado pelo desequilíbrio dessas figuras que me fazem perceber novamente a imponderabilidade e a própria desmedida da vida – sentimentos presentes desde o início como motivadores desta pesquisa. 2.2 O PARADOXO DO CIRCO DOS HORRORES O circo dos horrores é um paradoxo. Podemos compreender o surgimento e a essência do circo como “uma exposição espetacular das habilidades humanas” e que, além disto, “tende a reafirmar a supremacia do homem diante dos animais e da natureza” (BOLOGNESI, 2010, p.11). Dessa maneira, ao inserir nas atividades dos espetáculos circenses um momento dedicado a exibir ao público dos seus espetáculos pessoas e animais com deformidades físicas, o circo traz para dentro de si algo contraditório a sua essência, uma vez que os “monstros” confirmariam, não um domínio, mas que a natureza extrapola as tentativas trágicas e ilusórias do homem de dominá-la: (...) os monstros, acidentes da natureza, com todo tipo de excentricidade, com as coisas mais bizarras [...] abrigadas somente por dois grandes lençóis suspensos a uma corda, com um cofre, em cima de uma cadeira, para por um dinheiro da renda do espetáculo. (COURTINE, 2011, p. 263).
Os shows de aberrações (freaks shows), ou circo dos horrores, se espalharam e se consolidaram na Europa e América do Norte a partir do final do século XIX até meados do 32
século XX. Neles eram exibidos, visando unicamente o lucro, seres (homens e animais) em diversas condições de anomalias diante de uma plateia seduzida por aquelas extraordinárias “bizarrices” da natureza. O circo dos Barnum and Bailey, por exemplo, exibia entre as suas atrações as gêmeas siamesas, o homem cachorro, a mulher barbada, o garoto lagosta, uma família de albinos, a mulher tatuada e o homem coruja.
Figura 8. Circo The Barnum and Bailey. Imagem digital6
Na tentativa de representar o paradoxo existente no circo dos horrores e a falta de domínio que tenho sobre os meus pensamentos ao visualizar estas imagens, produzi um vídeo (figura 9) em que registrei o momento de representação da sensação de ser observada e de observar as imagens dos monstros, figurados ali como os freaks que aparecem inesperadamente como flashs no ato de produção.
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Disponível em < http://universoretro.com.br/freak-shows-um-mergulho-nas-bizarrices-do-circo-dos-horrores-do-seculo-19/> Acessado em 17 de outubro de 2016. 33
Figura 9. Andréia Ferreira, Os meus medos só eu os vejo. 2014. Vídeo digital. Acervo Pessoal.
Aqui reaparece aquela noção de errabilidade de que fala Sandra Rey (2002, p.138), reconhecendo no momento criativo da obra um caráter de imprevisibilidade. Durante o vídeo tentei mostrar como a interposição abrupta dos freaks, enquanto seres que invadem o momento de solidão, marca a perda dos padrões seguros no contato com a “normalidade” da vida. Apesar disso, destaco que o padrão de normalidade dever ser questionado e assumido criticamente, pois esta noção tem aqui um papel importante. É justamente da dualidade entre normal e anormal que podemos compreender a natureza do circo dos horrores. 34
Nesse sentido, Jean-Jacques Courtine (2011, pp. 289-290), em sua retomada da história
do circo dos horrores a partir da análise da corporeidade humana, afirmou sobre a relação entre normalidade e anormalidade: O anormal vai permitir [...] compreender o normal, e confunde-se a fronteira que os mantinha separados; passa a ser “impossível dizer onde acaba o estado normal e onde começa a anomalia, dado que esses dois estados não podem ter um limite bem claro” 7.
Para além do vínculo necessário entre o normal e o “estranho”, podemos detectar que essa normalidade cria também repulsa diante da diferença. O corpo “estranho” passa a ser visto, não apenas como aquele que nos permite confirmar o nosso próprio padrão, mas como o que é radicalmente oposto a nós mesmos – é a partir dele que reconhecemos também aquilo que não somos ou o que não gostaríamos de ser. Há nessa oposição uma transformação da identidade causada pelo não reconhecimento diante do outro daquilo que poderíamos ter em comum. Tod Browning (1880 – 1962) em seu filme Freaks, de 1932, retratou a vida de algumas dessas pessoas no ambiente do circo dos horrores. O enredo do filme gira em torno fundamentalmente do conflito pela aceitação entre o mundo dos freaks e o mundo dos humanos ditos “normais”. Em uma cena (figura 10) em que os freaks fazem um jantar para o casamento do recém milionário Hans (um artista anão do circo) e a interessada Cleópatra (uma das poucas artistas do circo sem anomalias), eles celebram e cantam com alegria a união inesperada e comovente dos dois noivos: “Nós te aceitamos! Você é uma de nós”, cantam eles para Cleópatra. Ao final da festa, já embriagada, Cleópatra, porém, acaba por revelar a sua aversão e desprezo velados, humilhando todos os presentes e se recusando a pertencer aquele grupo e a tomar da mesma taça que eles. 7
Também Foucault, sobre isso, destaca a importância da relação entre a norma e a anomalia: “a norma não tem por função excluir, rejeitar. Ao contrário, ela está sempre ligada a uma técnica positiva de intervenção e de transformação, a uma espécie de poder normativo” (FOUCAULT, 2002, p. 62). 35
Figura 10. Cena do filme Freaks, 1932. Imagem digital8.
O estranhamento representado nesta cena mostra a repugnância total causada pela ausência de qualquer reconhecimento de semelhanças com o outro. O paradoxo inerente ao ambiente do circo dos horrores torna-se bastante claro aqui em um sentido negativo. As tentativas de harmonizar, de colocar em comunicação pacífica os dois contextos (do monstro/ freaks e do humano/natural) se frustram diante da absoluta antipatia e rejeição por um dos lados. Assim, há apenas a repulsa e o acolhimento se torna impossível, a negação é total. 8
Disponível em < http://image.toutlecine.com/photos/f/r/e/freaks-la-monstrueuse-parade-1932-02-g.jpg > Acessado em março de 2016. 36
Estar fora de um padrão de normalidade, como disse Gisele Pinheiro dos Santos (2007),
é “ser considerado feio, ou estar fora de um padrão vigente, e não se adequar ao mundo social, é estar ‘a parte’. Assim o excesso de peso ou a ausência de um rosto simétrico, de acordo com o modelo apresentado pela mídia em nossa época produz um certo estranhamento estético” (p. 07). Portanto, estar fora da normalidade representa tudo que foge desse padrão e gera a sensação de estranho ou, como disse Umberto Eco, desequilíbrio. Os monstros exibidos nos circos dos horrores entre os séculos XIX e XX causavam, acima de tudo, uma dupla situação de estranheza: nos espectadores e nos monstros. Durante as exibições dos monstros podemos perceber um estranhamento no olhar de quem observa o monstro com os rostos que expressam o espanto cômico de estar diante daquilo que está vendo, ou alívio por não estar no lugar do outro. Muitas vezes os expectadores encontravam como único subterfúgio, a explosão de risadas. Do outro lado está o estranhamento no olhar do monstro que, ao olhar para o expectador, expressa um abalo perante o espelho deformador: Compreender a atração que a exibição dos fenômenos vivos exercia sobre o público exige, então, que se lhe oponha resistência, para deslocar a atenção destes para o ato de ver como tal. Aí se pode dar conta da onipresença dessa perturbação do olhar, provocada pelo cartaz que convida a contemplação (COURTINE, 2011, p. 271).
Quis representar na figura 11 justamente esse momento do duplo sentimento de estranhamento. O primeiro vindo do estranhamento de quem observa o monstro e o segundo o estranhamento do monstro ao olhar para os seus expectadores. Os dois olhares, colocados numa mesma composição e sobre o predomínio do tom vermelho, intencionam exibir o encontro desses do olhar, unidos pelo mesmo sentimento de estranheza diante do outro.
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Figura 11. Andréia Ferreira, sem título. 2015. Verniz sobre papel, 80 x 1,20cm.
Esse trabalho é uma tentativa de exprimir a inseparabilidade desses dois olhares de forma que nunca poderão existir um sem o outro, uma vez que “a monstruosidade depende do olhar que se põe sobre ela. Não se acha tanto enraizado no corpo do outro quanto agachada no olhar de quem observa” (COURTINE, 2011, p.330). E por fim, um acaba fundindo-se no outro e já não somos capazes de identificar onde um começa ou onde o outro termina, e tudo se torna 38
apenas um conjunto de olhares meio perdidos em um espaço ocupado pelo tom visceral da cor vermelha.
Em seu filme de 1980, The Elephant Man, o diretor norte-americano David Lynch (1946) retrata a vida aflitiva do personagem real Joseph Merrick (1862-1890), designado de o “homem elefante” por suas anomalias proeminentes no corpo e, sobretudo, no rosto. Ao longo da obra cinematográfica, é mostrada a espetacularização da vida de Joseph, mesmo em seus momentos mais positivos. Utilizado como fonte de lucro por seu “dono” que o exibia a troco de dinheiro, Joseph é descoberto por um médico que o acolhe em um hospital em busca de seu tratamento, o que não evitou, entretanto, a continuação de sua espetacularização. Mesmo em um ambiente hospitalar o estranhamento permanecia afetando a vida de Joseph. O grito de espanto da enfermeira ao abrir a porta do quarto em que Joseph se encontrava não é, porém, unilateral. Torna-se possível perceber com essa cena o duplo estranhamento dessa troca de olhares. O estranhamento tem sempre como reação um outro estranhamento: Joseph, acostumado até então ao olhar sádico e curioso das exibições circenses, também se espanta com o espanto inesperado da enfermeira. Se, antes, a exibição de sua imagem gerava algum tipo de prazer perverso e lucrativo, o susto gratuito da enfermeira o faz questionar a sua humanidade (“Eu não sou um elefante! Eu sou um homem!”, grita, por fim, Joseph em uma outra cena futura).
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Figura 12. Fotografia de Joseph Merrick, 1889.
Imagem digital. Tamanho 756 x1110 pixels9. 9 DisponĂvel em < https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Josephmerrick1889.jpg > Acessado em março de 2016. 40
No decorrer dessa trajetória, e depois várias tentativas de representar o encontro do duplo
olhar de estranhamento, percebi que na imagem estava faltando algo para transmitir melhor essa ideia de invasão súbita e constante do sentimento corporificado do duplo olhar da estranheza. Diferentemente do vídeo, uma possível produção visual com tinta e papel não poderá retratar de forma ininterrupta as constantes aparições dos monstros, tendo que colocá-las simultaneamente, como procurei demonstrar na Figura 13:
Figura 13. Andréia Ferreira, sem título. 2016.
Imagem digital. Tamanho variado.
Com o objetivo de representar de forma mais clara a questão da transparência e fugacidade 41
que apareceram de forma inesperada e que permeou boa parte dos meus trabalhos, produzi na
figura 13 com auxílio de um software (Photoshop), uma sobreposição da figura 11, sobre uma das fotografias de um dos personagens do circo dos horrores (Homem Elefante), almejando representar o encontro de dois olhares que são tomados por essa sensação mútua de estranheza de um pelo outro. Com a sobreposição obtive um resultado plástico autêntico e satisfatório, pois a transparência da imagem do encontro dos olhares sob a fotografia permitiu uma fusão delas, na qual não se consegue discernir uma da outra, simbolizando a imersão de um olhar no outro: olhar o monstro é olhar para nossas próprias deformidades. Isso me permite vislumbrar ainda uma outra camada nessa relação de troca de olhares. O reconhecimento mútuo através da fusão dos olhares, ainda que inicialmente como estranhamento, faz nascer ainda um outro sentimento, mais profundo, da afinidade ou empatia desses olhares. Reconhecer o estranhamento do outro e enxergar o seu próprio estranhamento faz transformar o olhar enviesado originário tornando-o mais compassivo com a alteridade. Esse será o tema do nosso próximo capítulo. 3. A FRAGMENTAÇÃO E MULTIPLICAÇÃO DOS OLHARES (...) quando ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder. Tudo está ai. Georges Didi-Huberman10
Transformar o desconforto do “olhar estranhado” em uma agregação do olhar do outro, da alteridade exterior, é escapar do seu próprio olhar, perder o seu horizonte insuficiente para 10 DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 34.
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estender-se à visão plural e multiplicada do mundo e de si. “Tudo está aí”, porque enxergar com plenitude é ver além de si, ir em direção ao outro para enriquecer a si mesmo, proliferando-se em uma visão caleidoscópica da realidade.
Compreender a alteridade e a diferença do monstro exige explorar a sua natureza limítrofe entre o comum e o estranho, o normal e o diferente. Mais do que ver nele uma simples identidade, a fusão com o monstro tem de enfrentar a inelutável perda de si, reconhecendo nas diferenças uma chave para o reconhecimento mútuo.
3.1 A ALTERIDADE DO MONSTRO
José Gil (2000), em seu texto intitulado Metafenomenologia da monstruosidade: o devirmonstro, traz a noção de alteridade no contexto da investigação fenomenológica sobre os parâmetros e limites do que seria a monstruosidade, sobretudo, na sua relação com o mundo humano. A familiarização do monstro e a sua presença mais constaste no cotidiano (ou uma banalização, segundo José Gil) só foi possível graças a transformação nos critérios daquilo que é considerado monstruoso e tal transformação estaria ligada a uma mudança na maneira como o homem enxerga a sua situação – cada vez mais instável e indefinível? – no mundo. Não nos inquietamos mais apenas por seres mitológicos e ingenuamente grotescos, mas também pelas efetivas “aberrações” que ainda habitam nosso imaginário e que nos fazem questionar a nossa humanidade: o homem elefante, anões dos freaks e todos os seres teratológicos11 são, segundo o autor, os que nos atraem cada vez mais agora na atualidade.
A atração pelos monstros se manteve, de alguma forma, segundo o autor, estável ao longo dos tempos. A classificações taxológicas da biologia que visavam ordenar o mundo e o homem a 11
A teratologia “especialidade médica que se dedica ao estudo das anomalias e malformações ligadas a uma perturbação do desenvolvimento embrionário ou fetal”. 43
partir de certos padrões normais, não conseguiu suprimir e satisfazer, entretanto, o nosso interesse
“imaginário” pela monstruosidade. A teratologia não se rendeu às aspirações pacificadoras e normalizadoras das classificações biológicas, mantendo-se no campo das exigências fantásticas em que o homem questiona e sente abalar os limites da sua humanidade. Esperamos que os monstros nos causem vertigem e incertezas sobre nós mesmos “porque necessitamos de certezas sobre a nossa identidade humana ameaçada de indefinição. Os monstros, felizmente, existem para nos mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser”. (GIL, 2000, p. 168). Desde Frankenstien (mostro artificial, criação total do homem) e com o surgimento da manipulação genética, passamos a questionar ainda mais o limite da nossa humanidade: “até que grau de deformação permanecemos ainda homem”? (GIL, 2000, p.168). A artificialidade dos humanóides (seres-limite entre o homem e aberração) coloca em questão, sondando até o seu limite máximo, a naturalidade da identidade humana: “até onde podemos levar o artifício sem prejudicar a nossa identidade humana ‘natural’?” (2000, p. 169). Nessa polaridade entre a naturalidade e a artificialidade do homem é que surge a pergunta contemporânea pelos limites do que é ser um homem e o que é possuir um corpo humano. A fronteira para o monstruoso se encontra agora na contradição entre o estado natural do homem e do mundo e a sua disposição antinatural/paradoxal para a artificialidade e a modificação da natureza. Há uma dificuldade em categorizar o que é a identidade do ser humano, contemporaneamente, justamente porque os antigos parâmetros que garantiam ao homem “uma imagem estável de si próprio” (GIL, 2000, p. 170) foram postos em questão pelo paradigma da artificialidade, do não natural. A curiosidade atual pelo monstro surge dessa cisão entre a naturalidade expandida do mundo e a nova compreensão de si do homem a partir da artificialidade: “os monstros são absolutamente necessários para continuar a crer-se homem”. (Idem, 2000, p. 170). A busca pela definição do homem não se dá, porém, a partir de uma mera oposição: o 44
homem não é simplesmente um não-monstro. O lugar e a identidade do homem e do monstro
no mundo estão inseridos num sistema mais complexo de relações, numa espécie de cadeia relacional e segmentada dos seres. Essa estrutura cósmica da cadeia dos seres representa as diversas interrelações entre todos os seus componentes (os planos da divindade, da humanidade e da animalidade) compreendendo-os em um convívio constante com a alteridade (o Outro). A transformação da compreensão que o homem tem de si mesmo faz alterar os limites e a abrangência do plano da humanidade do homem e das transgressões que ocorrem em suas fronteiras, fazendo surgir o monstro como um sinal, um símbolo da quebra da estabilidade da estrutura dos seres. O domínio do anômalo e do monstruoso se contrai ou se expande conforme o âmbito da naturalidade (humana) se amplia para englobar nos parâmetros da sua normalidade os que antes eram vistos como anômalos e monstros: por exemplo, os deficientes mentais e os povos indígenas Americanos12; isto é, conforme essa estrutura se altera, se move, surge como consequência os monstros ou a dignificação humana deles. De acordo com Gil, quando um plano se aproxima do outro é que são produzidas as anomalias, por exemplo se a divindade perpassa a fronteira da humanidade nascem os monstros teratológicos e, se o animal invade o âmbito humano, surgem os monstros fabulosos, parte humanos, parte animais. Portanto, sempre que se rompe as fronteiras dos diversos níveis da cadeia cosmológica de seres surge o monstruoso.
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Essa informação está presente no livro A pedagogia do monstro (2000), de José Gil. 45
Tabela 1 – Hierarquia dos seres
Fonte: GIL, José. (2000, p 172).
Embora as fronteiras entre o homem e o animal e entre o homem e os deuses (seres “radicalmente outros”, fronteiras externas do homem) seja clara, as fronteiras-limite internas da humanidade representam, por sua vez, uma opaca “transformação da humanidade do homem” (GIL, 2000, p.173) na sua relação com uma alteridade limítrofe, difícil de ser reconhecida. Os monstros não são seres radicalmente outros em relação ao homem: “o monstro não se situa fora do domínio humano: encontra-se no seu limite” (Idem, p.170), são o “último ponto de referência do outro” (Idem, p.174), fora do qual o homem ultrapassa o seu domínio.
O monstro é uma fronteira e fronteiras são imprecisas, confusas, desfiguradas, são seres 46
de uma natureza ambígua, são seres “quase”: quase humanos, quase não-humanos. Ver um monstro significa cambalear pelos caminhos da instabilidade, pela corda bamba do descontrole de nossas vidas e pela imprecisão de uma definição segura de nossa identidade. Ver o monstro é olhar fragmentado para o mundo, multiplicando a visão de nós mesmos. 3.2 UM OLHAR CALEIDOSCÓPICO Mas, se encaramos os seixos com firmeza, diz ela, a multiplicidade se transforma em unidade, o que é de certa forma o segredo da vida (...). Virginia Woolf. O quarto de Jacob.13
Segundo percebo, a importante análise de José Gil chega à conclusão de que a vivência da monstruosidade é uma experiência de uma alteridade limite para o homem e que, embora não seja a de uma oposição total à ele, traz, ainda assim, dificuldades para um reconhecimento completo do monstro enquanto outro. Conviver com o monstro é conviver com a indefinição – ou, no máximo, com uma definição móvel, instável. Se essa interpretação do autor não nos permite alcançar ainda o ponto de uma
convivência totalmente harmoniosa com a alteridade da monstruosidade, em que se ultrapassaria a visão do monstro como uma quase-oposição à humanidade, isto é, em que se ultrapassaria a visão do monstro como um risco-limite iminente para a indefinição do homem, visto que o monstro é um equilibrista entre a humanidade e a não-humanidade, gostaria, ainda assim, de caminhar para a visão segundo a qual é possível dar ao monstro uma dignidade, ainda que com dessemelhanças, alcançando uma relação empática com ele. Não se trata, porém, apenas de dar uma dignidade humana ao monstro, mas de reconhecer nele a nossa comum instabilidade: somos todos seres instáveis e padecemos todos do descontrole da vida. As fronteiras em que habitam os monstros são, até certo ponto, invenções (artifícios) humanas(os) para delimitar um padrão de normalidade, distinguindo o homem “normal” como um ser supostamente superior aos outros e não reconhecendo a totalidade e individualidade das diferentes visões e vivencias 13
Cf. WOOLF, Virginia, 2008, p.180.
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diante da vida, para além da sua própria experiência, em que ele está inserido. Ver o todo é ver a totalidade fragmentada das partes, reconhecendo nelas a soma das diversas individualidades e singularidades. A fragmentação da imagem do monstro, fruto de sua natureza imprecisa e desequilibrada, não representa aqui uma perda da integralidade do todo, mas uma visão ainda mais precisa e detalhada da sua completude. Com o intuito de representar essa fragmentação enriquecedora, utilizei como instrumento poético e figura metafórica o caleidoscópio, um objeto criado pelo cientista escocês Sir David Brewster, no século XIX, composto por um tubo cilíndrico, em cuja parte interna são colocados três espelhos em ângulos de quarenta e cinco graus, formando, com isso, oito imagens duplicadas. A hibridização dos olhares de duplo estranhamento, representada anteriormente na figura 13 (ver pág. 23 do capítulo anterior), foi trazida novamente aqui para completar o seu percurso de transformação do olhar em direção ao reconhecimento completo da alteridade do monstro. Fragmentar essa imagem (figura 14), através do caleidoscópio, é fragmentar o estranhamento. Ver a imagem fragmentada do monstro não me causa o mesmo espanto que vê-la em sua inteireza. A fragmentação diminui e abranda a visão global de estranhamento do todo integral e coeso.
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Figura 14. Andréia Ferreira, sem título. 2016. Imagem digital. Tamanho variado.
A fusão aqui é mais intensa porque as imagens se mesclam de forma ainda mais confusa e indistinguível. A confusão, o desmembramento causado pela fragmentação das imagens de estranhamento, suscita um possível esfacelamento e diminuição do sentimento de estranheza, facilitando, paradoxalmente, a assimilação dos sentimentos puramente negativos anteriores que nos distanciavam quase por completo do monstro. 49
Embora a confusão das imagens torne-as imprecisas, justamente por isso, a digestão delas será facilitada. Fragmentar é digerir. O Caleidoscópio é um estômago para a transformação do olhar normalizado (disciplinado?), tornando o outro assimilável a nós mesmos. Uma cruel e difícil tarefa de convivência. De qualquer forma, digerir é também trazer para dentro de si o outro por completo. Digerir o outro: será esta a nossa única opção de reconhecimento mútuo com o monstro? A complicada empatia com a alteridade do monstro só pode nascer de uma transformação, assimilação, do outro? Assimilar o monstro a partir das semelhanças (a partir da digestão daquilo que temos em comum), ou seja, conceder uma humanidade ao monstro, embora seja uma tarefa necessária e o caminho mais fácil para o reconhecimento mútuo, não é, porém, suficiente para a compreensão de sua natureza ambígua e da simbologia que ele representa. O monstro é também um diferente, ainda que relativo, para o homem, assim como o homem é um diferente para o monstro. A sincera relação entre eles não pode nascer apenas de uma concessão piedosa por parte do homem que reconhece o monstro como um igual a partir da simples igualdade, a partir de uma medida comum, de um padrão em comum, desconsiderando o que eles tem, de fato, de distinto e singular. Nisso reside o desafio que a alteridade do monstro me faz confrontar: ver com igualdade as dessemelhanças, sair de si, sair do conforto dos próprios padrões para receber passivamente o ponto de vista, o olhar, do outro. Complementar à fragmentação e digestão está também a multiplicação do olhar. Enquanto a fragmentação é um olhar detalhado do todo, a multiplicação é o mesmo olhar do ponto de vista da autonomia das partes, ou seja, é ver um todo em cada parte, ver que cada fragmento é, ele mesmo, um todo para si. Cada olhar representa uma perspectiva própria e única.
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Figura 15. Figura 15. Andréia Ferreira, sem título. 2016. Imagem digital. Tamanho variado.
A figura caleidoscópica 15 é uma intensificação complementar da figura 14 porque nela a confusão torna as margens, os limites, as fronteiras simétricas das imagens fundidas ainda mais ilegíveis, integrando por completo as várias imagens. Uma nova visão do todo surge abrangendo a totalidade das partes sem que se desconheça em cada uma delas a sua própria independência.
As aparentes contradições não cessam de surgir: como a visão que reconhece a necessária multiplicidade e independência dos diferentes olhares pode fazer diminuir a fragmentação? Não se 51
trataria justamente do oposto, isto é, de ver que cada parte isolada é um todo independente? Como o olhar multiplicado, ao reconhecer cada parte como um todo isolado, pode fazer diminuir as fronteiras da fragmentação, formando uma nova visão, ainda mais homogênea do todo? O reconhecimento da pluralidade de olhares e da autonomia de cada olhar não torna, porém, incomunicáveis e inseparáveis as partes. Através de sua singularidade, cada parte transmite uma diferente visão perspectivada, agregando, na soma delas, a formação de um todo maior. Nenhuma parte pode, portanto, compreender a si mesma como sendo a visão privilegiada e única da totalidade, embora ela seja para si própria um todo menor. Olhar o monstro com estranhamento talvez seja apenas uma perspectiva limitada das fronteiras e barreiras criadas pelos padrões de uma suposta normalidade humana fechada em seu todo para si. O olhar humano não pode ser um olhar absoluto, enxergando no monstro e no mundo apenas um espelho de si mesmo e de suas normas. Ver com completude não é olhar pelo outro e dizer pelo outro, mas tentar ver através do olhar dele, tentar se colocar sob a sua perspectiva, sair de si para alcançar a diversidade dos olhares que enriquecem a visão que temos de nós mesmos e do mundo, formando uma visão mais harmônica com a alteridade em geral.
Na fotografia caleidoscópica final (figura 15) já não sou capaz de perceber o que é o meu olhar e o que é o olhar do outro, não porque haja nela a visão privilegiada de uma perspectiva que domina sobre as outras ou porque as imagens se anulem, se dissipem no anonimato, mas porque os olhares se complementam e se comunicam numa visão mais abrangente e empática com a realidade. Ver o monstro é ouvi-lo, captar a sua visão de mundo. Um olhar auditivo (a audição é passiva, dependente do outro): eis o ideal de nossa comunicação com o monstro. Ver o monstro é completar a visão defeituosa e limitada de nós mesmos.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Talvez seja uma surpresa dizer nesta consideração final que a temática deste trabalho vislumbrou, de forma mais geral e velada, tratar da incompletude da experiência humana, reconhecendo os limites do homem e o descontrole que nos ultrapassa, representados tanto pela deformidade do corpo estranho (dilacerado ou grotesco), como pelo freak, a deformação do corpo “normal”. Em nenhum momento, essas figuras disformes representaram para mim apenas um óbvio e preconceituoso estranhamento das imperfeições e irregularidades do corpo humano por si só. O que estava por trás desde o início desse sentimento de estranheza era a perda de uma referencialidade confortável, o que pode nos causar medo e insegurança. O corpo estranhado significa, para mim, – e ao fim deste trabalho penso que se confirmou isso – uma experiência limite da débil relatividade dos nossos olhares e padrões cruéis e cômodos. Uma importante revelação surgida ao longo do processo de poetização dos problemas aqui abordados foi o de perceber uma transformação do olhar inicial de estranhamento ou de descontrole diante da “monstruosidade” em direção ao acolhimento empático do outro. Tal transformação só foi possível graças ao reconhecimento da
incompletude do olhar humano. Quando os olhares, de quem observa e de quem é observado, se fundem, isto é, se complementam, a indiscernibilidade entre eles faz surgir a assimilação plural das diferenças e a diminuição das fronteiras repulsadoras. O inesperado sempre surge: para além do tema do descontrole e do imponderável que a monstruosidade representa, este trabalho alcançou uma dimensão ética não esperada, tendo que lidar, constantemente, com o problema da convivência com a diferença – o que pressupõe, em segundo plano, que a poética visual aqui contida também abarcou a ideia de que a atividade artística nunca basta a si mesma: a arte tem de intervir no mundo, tentar transformá-lo. A experiência que obtive ao elaborar as minhas obras (o vídeo, as fotografias, os desenhos,) serviu como uma tentativa (inconsciente?) de transformar o olhar de estranhamento diante das figuras disformes e despadronizadas em direção ao reconhecimento e à pretensa assimilação completa das diferenças, possibilitando um ambiente ético e social mais harmonioso e compassivo com as diferenças da alteridade. 53
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