Os ricos cobiçam a água do mundo

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ÁGUA

ÁGUA

ESPECIAL

ESPECIAL

No Fórum Mundial da Água, que se realiza em Kyoto, entre 16 e 23 de março, os países ricos, apoiados pelo Banco Mundial, tentarão convencer os “pobres” que a privatização das reservas de água doce é a melhor política para preservar reservas fundamentais para a sobrevivência da humanidade: em Cotia (SP) e outras cidades espalhadas pelos cinco continentes, fóruns alternativos vão debater estratégias que assegurem uma distribuição justa e equãneme de um bem que pertence a todos

A disputa global pelo “ouro azul” E

Philippe Rekacewicz, Le Monde Diplomatique, Paris, 2003

um quilômetro abaixo de nossos pés, existe água capaz de abastecer o Brasil por 3.500 anos ou o mundo por 300. O aqüífero Guarani, o maior reservatório de água potável subterrânea do mundo, atinge uma área igual à dos territórios da Espanha, França e Inglaterra juntos e atravessa oito Estados brasileiros. Essa água vem sendo lentamente filtrada pelo subsolo há 100 milhões de anos e tem uma qualidade que nenhum método de tratamento pode oferecer. Mais limpa e barata impossível. O Guarani, além de fornecer água a todos que tenham sede, poderia também movimentar estâncias termais, reduzir o consumo de energia elétrica em chuveiros, aquecedores e combater geadas graças a sua temperatura que atinge 50°C em algumas áreas. Mas os planos são outros. Sob

A

0

1 000

1 700

5 000

15 000 50 000 605 000 m3 por habitante por ano

Dado não disponível

1995 Vivant Univers

FONTE: Unep (da sigla em inglês para Programa da Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente)

2025 Porcentagem de exploração de água mais de 40%

20% a 10%

40% a 20%

o pretexto de melhor conhecer as características desta mina de “ouro azul”, o Banco Mundial (ligado ao Fundo Monetário Internacional) deu aos governos do Brasil,Argentina, Paraguai e Uruguai (por onde o aqüífero passa) R$ 50 milhões e, desde 2000, participa do “Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aqüífero Guarani”.

o secretário-adAqüífero - tipo de reserva junto de Recursubterrânea de água doce. Mantém recursos sos Hídricos, Sahídricos de excelente neamento e qualidade Obras do Estado de São Paulo, o engenheiro civil Rui Brasil Assis, atribuir um preço à água é o único meio de racionalizar seu uso.

Banco Mundial incentiva a privatização da água

No entanto, sob esse discurso de eficiência, leia-se privatização da água e sede de lucro. A transnacional suíça Nestlé praticamente esgotou as fontes das cidades mineiras de São Lourenço e Caxambu que, coincidências à parte, são citadas na redação do projeto de proteção do Guarani. Só com a venda de marcas de água engarrafada, a Nestlé fatura anualmente R$ 16,7 bilhões (oito vezes o orçamento do programa Fome Zero), o que faz os R$ 50 milhões “oferecidos” pelo Banco Mundial parecerem uma gota no oceano. ❑

Apesar do belo nome, este projeto não vê a água como fonte de vida. Vai com mais sede ao pote, na mesma lógica das empresas de água engarrafada que também “reconhecem a água como um recurso econômico, o qual tem um custo oportunidade e que não deve ser desperdiçado seja através da poluição ou uso ineficiente”, como diz justamente o ponto 4.1 referente ao financiamento do Banco Mundial. Nessa mesma lógica, segundo

Os bilhões da Nestlé

menos de 10%

FONTE: Unep (da sigla em inglês para Programa da Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente)

Ganância gera conflitos internacionais

LOCALIZAÇÃO Distribuição mundial apenas de água doce

Distribuição mundial de água doce e água salgada

E

EXTENSÃO DO AQUÍFERO

0,3%

Total de Água

■ 13% da população não tem acesso a água potável.

Proporção de água doce renovável

Água Doce 2,5%

69%

Água Salgada 97,5%

Fatos & Números – Brasil (OMS)

■ 70% das internações hospitalares são provocadas por doenças transmitidas por água contaminda.

30%

(OMS)

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De acordo com dados da ONU, nos últimos 50 anos, ocorreram 507 situações de tensão por água

geleiras e neves perpétuas

rios e lagos de água doce

reservas subterrâneas de água doce

outros

(OMS)

NOTA: Os dados citados foram arredondados FONTE: Unep (da sigla em inglês para Programa de Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente)

BRASIL Philippe Rekacewicz, Le Monde Diplomatique, Paris, 2003

três vezes maior que o dos palestinos. Para Paquerot, é impossível ter paz com um povo inteiro sem água. Apartheid da sede Além dos conflitos internacionais, o domínio das corporações tem criado outra situação intolerável: com a privatização da água, bilhões de pessoas são condenadas à sede, pois não têm dinheiro para pagar por esse recurso. O comércio acaba então servindo apenas às grandes potências que muitas vezes usam de modo ir responsável seus recursos hídricos. É o caso dos Estados Unidos, que desperdiçam por ano a mesma quantidade de água consumida em todo o continente africano. Segundo Sylvie Paquerot, a resistência ao processo de privatização precisa ser feita em todos os países e em todos os níveis. É ainda emblemática a vitória dos movimentos sociais bolivianos que, em 2000, organizaram uma greve geral que parou a cidade de Cochabamba, cujo controle do sistema de água tinha sido privatizado num acordo entre o governo, o Banco Mundial e a transnacional Bechtel. Após meses de protestos, as reservas de água foram retomadas e seu controle ficou sob a responsabilidade da própria população. ❑

km3 3500

km3 Estimativa

Previsão

Estimativa

3500

Previsão

Consumo

Exploração 3000

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Ásia América do Norte Europa África

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América do Sul Oceania

1925

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2000

2025

• • • • • • • • •

Área total - 839.800 km2 (100%) Goiás (6,5%) Minas Gerais (6,1%) Mato Grosso (3,1%) Mato Grosso do Sul (25,5%) Paraná (15,6%) Rio Grande do Sul (18,8%) AMÉRICA DO SUL Santa Catarina (5,9%) São Paulo (18,5%) • Área total - 1.194.800 km2 (100%) • Argentina (18,9%) • Brasil (70,3%) • Paraguai (6,0%) • Uruguai (4,8%)

FONTE: Unep (da sigla em inglês para Programa da Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente)

Brasil não tem estratégia definida governo brasileiro ainda não definiu claramente qual será sua estratégia quanto à questão da água doce. Apesar de defender a criação de programas para combater a seca e para melhorar a qualidade do abastecimento, precisa submeter todas as suas propostas às condições do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial (cuja principal orientação é “pôr tudo à venda”). Como não pode se dividir ao meio, o secretário de Recursos Hídricos, João Bosco Senra, participará inicialmente do Fórum de Kyoto, apelidado de Davos das águas, para depois tomar um avião e voltar correndo ao Brasil, pois é um dos debatedores do Fórum Social das Águas (espaço de crítica aos que vêem os recursos hídricos como mercadoria). De acordo com Senra,“a prioridade é o social e não o econômico”. No entanto, para o jornalista e ambientalista Washington Novaes, o setor das águas está cada vez mais submetido aos critérios de rentabilidade das grandes corporações e não ao interesse da população em geral.

O

Interesses claros Grande parte das contradições do atual governo é resquício dos oito anos de presidência de Fernando Henrique Cardoso, em que os investimentos públicos no setor ambiental foram mínimos (em 2002, 0,06% do Produto Interno Bruto) e o poder das corporações se fortaleceu muito.

O Brasil é uma das maiores reservas de água doce no mundo, com 20% do total disponível.“As corporações olham para cá e ficam sedentas por todo esse ouro azul”, comenta o geógrafo Aziz Ab’Saber. Para ele, a grande cobiça das potências hegemônicas é a Amazônia, que tem 80% de toda a água de superfície brasileira, que permite uma exploração mais barata por não necessitar de investimentos na perfuração. No entanto, os freqüentes casos de poluição e contaminação da bacia, como a do rio Iriri (afluente do Xingu), que colocou em risco a vida de 100 mil pessoas, assustam essas potências, pois causam a perda de muito dinheiro. A solução surge através do relatório do Banco Mundial sobre o Brasil, “Estratégia de Assistência ao País” (2000): “A privatização de várias empresas de fornecimento de água poderá melhorar as condições para se chegar a uma melhor administração de água de qualidade”. Nessa lógica da privatização e da mercantilização da água, a Área de Livre Comércio das Américas aparece como um facilitador, pois os países que assinarem esse acordo não poderão opor resistências à exploração do recurso por transnacionais. Sobre a Alca e a exploração da água, o secretário João Bosco Senra é enfático: “Seguiremos as decisões do governo”, isto é, mesmo se for em detrimento da sociedade. Colaborou Lauro Veiga Filho, de Goiânia

Famílias sem terra servem de escudo O assentamento imediato de milhares de famílias sem terra que estão acampadas em oito Estados pelos quais passa o aqüífero Guarani é por enquanto um dos únicos meios de protegê-lo contra as empresas que querem tomar conta de sua água e contra a contaminação dessa reserva por agrotóxicos. A presenca definitiva das famílias na região inviabilizaria os planos dos países ricos de explorar o aqüífero sem serem incomodados. Além disso, as famílias sem-terra plantam pensando na sua saúde e na variedade dos alimentos que vão comer. Evitam, assim, ao máximo, o uso de agrotóxicos. Coisa que não acontece com os grandes proprietários, que escolhem apenas uma cultura e não se importam em usar muito veneno, desde que produzam mais e mais rápido. Em Sao Paulo, a própria Secretaria do Meio Ambiente pensa em, um dia, proibir a agricultura que utiliza fertilizantes e pesticidas em cima do aqüífero. Mesmo assim, os governos ainda preferem os acordos com as transnacionais, que rendem mais dinheiro, à reforma agrária. Os acampamentos sobre o aqüífero se espalham pelos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Minas Gerais e Goiás por regiões que trazem água em seus nomes como Iaras, Águas de Santa Bárbara, Lençóis Paulista e Pontal do Paranapanema.

8 de março de 2003

uitas das guerras do século 20 foram por petróleo – mas as guerras do século 21 serão por água.” Já em 1995, o então vice-presidente do Banco Mundial, Ismael Serageldin, previra que a crise da água gerava e estava preparando lutas entre povos no mundo todo. Para ele, os organismos internacionais e as corporações eram o único meio de conter esses conflitos, pois poderiam racionalizar a exploração e o uso da água. No entanto, hoje em dia, percebe-se que é justamente o contrário: a globalização econômica, com a expansão da privatização de indústrias e de reservas de água, é uma das responsáveis por esses conflitos. Segundo a pesquisadora canadense Sylvie Paquerot, as transnacionais não aplicam um “modelo social” de exploração da água,“é a lei da selva, onde prevalece o mais forte e, no quadro atual, é sempre o aspecto econômico”. Nesse sentido, por regularem o mercado, acentuam tensões entre países que, ávidos por um recurso tão valioso, querem dominar as reservas dos outros. De acordo com dados da ONU, nos últimos 50 anos, ocorreram 507 conflitos internacionais por água. E, com o progressivo esgotamento das reservas, esse número só tende a crescer. No Oriente Médio, desde a metade do século 20, já houve 18 guerras por água. A maioria delas levada a cabo por Israel, que conquistou 40% do suprimento de água subterrânea por ocupações militares. Além disso, o governo desse país oprime pela sede o povo palestino, que luta pela sua autonomia: o consumo dos israelenses é

■ A coleta de esgotos é feita em apenas 49% das residências.

0,9%

BRASIL DE FATO

■ No séc. 20 a população mundial triplicou e o consumo de água cresceu 6 vezes. (Organização Mundial de Saúde) ■ O comércio global de água movimentou em 2001 um trilhão de dólares. (Banco Mundial) ■ A descarga de um banheiro gasta tanta água quanto o consumo diário de um habitante de um país em desenvolvimento. (OMS) ■ 80% de todas doenças em países subdesenvolvidos são disseminadas por meio do consumo da água. (OMS) ■ 2,2 milhões de pessoas morrem por ano devido a doenças associadas à falta de água potável. (OMS) ■ 1/3 da população mundial vive em locais de escassez de água; até 2025 esse índice pode chegar a 2/3. (ONU)

Aqüífero Guarani um tesouro ameaçado

Escassez de recursos hídricos

Marcelo Netto Rodrigues De Genebra

João Zinclar

8 de março de 2003

BRASIL DE FATO

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Fatos & Números – Mundo

Philippe Rekacewicz, Le Monde Diplomatique, Paris, 2003

Água potável disponível em 2000

Marcelo Netto Rodrigues

ntre os dias 16 a 23 de março, a cidade de Kyoto, no Japão, será a “capital mundial da água”. Com a presença de representantes de praticamente todos os países do planeta, será realizado o 3º Fórum Mundial da Água. Financiado pelo Banco Mundial, o evento servirá para traçar uma estratégia internacional para a questão Banco Mundial - Tem como objetivo “regular” da água. a política econômica dos Segundo o ambientalista Leonardo Morelli, países em desenvolvimento. este encontro visa apenas a ratificar que a água é um bem econômico e que o “eficiente FMI - Responsável pela “ajuda” a países em controle” das transnacionais é o único meio crise. De fato, funciona capaz de salvar o planeta. Nessa como uma ferramenta para manter a ordem perspectiva, o encontro de Kyoto é visto mais econômica que mais ou menos como o “Fórum de Davos” da satisfizer as grandes corporações. água, orientado pelos interesses das megacorporações. ONU - Criada em 1945, como espécie de É uma perspectiva extremamente parlamento mundial, mas preocupante, na medida em que se sabe que ineficaz face ao poder das grandes potências, a água potável do mundo está acabando. particularmente dos Esse recurso natural que parece ser infinito é, Estados Unidos. ao contrário, escasso e a maior parte de suas reservas não é renovável. A Terra é dominada pelas águas salgadas dos mares e oceanos, impróprias para o consumo (v. desenho ao lado). Não por acaso, a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou 2003 o Ano Internacional da Água Doce. A gestão deste recurso essencial à vida está totalmente fora de controle. Dia após dia, rios e lagos são poluídos e o desperdício é generalizado. Além disso, 50% das reservas mundiais já são atualmente exploradas. Nesse ritmo, secarão nos próximos 300 anos. Com o dramático esgotamento das reservas, a água torna-se recurso estratégico vital. Atentas a isso, as grandes corporações já encontraram o caminho para fazer desse recurso uma fonte de lucro. De acordo com o Banco Mundial, as transnacionais da água movimentam por ano mais de R$ 3,5 trilhões. Apenas duas delas, as francesas Vivendi e Suez, controlam juntas 70% desse mercado. Segundo o geógrafo Aziz Ab’Saber, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial pressionam os governos dos países subdesenvolvidos, ameaçando cortar empréstimos e financiamentos, para que entrem nesse jogo das corporações e privatizem o abastecimento e até as próprias reservas de água doce. No entanto, para ele, “a privatização é o fim da soberania” e só serve para levar esse recurso aos países ricos, principalmente os Estados Unidos, que são os que podem pagar. No mesmo período em que acontece a “Davos das águas”, em Kyoto, em cidades de cada continente, ocorrerão outros eventos para protestar contra a transformação da água em mercadoria. No Brasil, o Movimento Grito das Águas está organizando um Fórum Social das Águas, que acontecerá em Cotia (SP). Para Morelli, um dos coordenadores desse evento, “é preciso articular a sociedade civil para resistir à forma tirânica de domínio das transnacionais”. ❑

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