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De 30 de dezembro de 2004 a 5 de janeiro de 2005
NACIONAL MÍSTICA
Superar a lógica do egoísmo e da violência Para o teólogo Leonardo Boff, falta ao Brasil o mesmo que para todo o mundo: mais democracia e paz
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Brasil de Fato – No Oriente Médio, alegando proteger a população de seu país, o Exército de Israel assassina e oprime todo um povo, o palestino. Em Felisburgo (MG), em 19 de novembro, milícias assassinam seis sem-terra, para impedir a reforma agrária em uma propriedade. As duas situações, diferentes em dimensão, parecem apontar para o mesmo fenômeno: cada vez mais, a política se resolve com violência, e só com violência. Como chegamos a este ponto? Leonardo Boff – Os fenômenos remetem a um dado cultural. Todas as sociedades históricas, hoje, procedem da era patriarcal – uns dez mil anos atrás – na qual o homem acumulou em suas mãos todo o poder, tornando invisível a mulher. As instituições típicas do patriarcado são o Estado, a racionalidade analítica, as leis, o exército, a guerra e o uso da violência como forma de resolver problemas humanos e sociais. O capitalismo exacerbou estas características. Ele sempre recorreu no passado e recorre ainda hoje à violência para fazer valer sua vontade e enquadrar os problemas. Assim fazem o presidente George W. Bush, dos Estados Unidos, e o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, entre outros. Assim fazem os latifundiários entre nós e no mundo inteiro. Geralmente eles usam o aparelho controlador e repressivo do Estado como a polícia, porque sempre procuram se articular com a política em seu benefício. Mas se esta não lhes é favorável, eles mesmos praticam a violência direta.
Houve uma “violação de mandato”. Lula se elegeu pregando uma agenda e, ao ganhar, aplicou outra BF – A paz e a democracia são sonhos impossíveis? Boff – A paz e a democracia, por sua natureza, possuem forte densidade utópica. Quer dizer, são anseios que nunca vão se realizar plenamente na história. Nem por isso são destituídos de sentido. Os anseios, as utopias e os sonhos nos desinstalam, nos obrigam a caminhar e a buscar sempre novas formas de democracia e de paz. São como as estrelas. Nunca podemos alcançá-las. Mas são elas que nos iluminam as noites e orientam os navegadores. Portanto, paz e democracia são sistemas abertos, perfectíveis e sempre aptos a novas incorporações e formas de realização. BF – O mercado nos ensina e estimula a sermos competitivos, a não olhar para trás ou para os outros. “Vença, a qualquer custo”, diz o outdoor na rua. No mundo contemporâneo, o homem está fadado ao egoísmo e à solidão? Boff – No ser humano, e mesmo
O presidente Lula recebe carta de popular, durante visita a Aracaju (SE)
em todos os seres vivos, há duas forças sempre coexistentes e em tensão: a força da auto-afirmação e a força da integração. Cada um precisa se auto-afirmar, dizer o seu “eu”, caso contrário é eliminado ou engolido por outros. Mas, ao mesmo tempo, intui que não sobrevive sozinho. Tem que buscar uma integração em um todo maior que é o seu gênero, que lhe garante a reprodução e a sobrevivência. Ocorre que estas forças podem estar dissociadas. Ou alguém se reafirma de forma tão exclusiva que não vê ninguém a não ser ele mesmo, ou se funde no todo maior que desaparece em sua identidade. A auto-afirmação excludente gerou historicamente o capitalismo, a propriedade privada sem sentido social, a cultura ocidental que se julga a melhor do mundo ou o cristianismo que pretende ser o único detentor da revelação divina. A fusão gerou o coletivismo no qual os indivíduos perdem sua identidade e se transformam em meros números. Houve um tipo de socialismo que se igualou ao coletivismo. Ambos os sistemas fracassaram em termos humanos porque geraram violência, exclusões e permanentes tensões. Hoje, a expressão maior do capitalismo é o mercado. Ele só é competitivo e nada cooperativo. Por isso é violento e faz tantas vítimas. Se não buscarmos o equilíbrio dinâmico e sempre tenso entre auto-afirmação e integração, jamais teremos sociedades pacíficas e justas. A democracia como valor universal, especialmente a democracia participativa e social, se revelou como a forma mais adequada de respeitar o indivíduo e valorizar o social. BF – Espaços como o Fórum Social Mundial, ou a própria luta dos movimentos sociais, oferecem alternativas a isto. Podem ser postos em prática, em nível mundial? Boff – Só podem ser postas em prática aquelas iniciativas que acumularam força tanto na sua elaboração teórica, como na sua
viabilização prática. Creio que todos os movimentos ligados à idéia de cooperação, solidariedade, parcerias, respeito das diferenças, convivência e democracia a partir de baixo conseguiram organizar práticas alternativas que se opõem à mera concorrência e ao darwinismo social. O fato de organismos multilaterais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros terem que incorporar linguagens novas, como desenvolvimento social, índice de desenvolvimento humano, cláusulas ambiental, de direitos humanos e de democracia, sustentabilidade e outros, mostra a pressão dos movimentos sociais mundiais, pois todos estes valores são contraditórios àquelas instituições. Penso que, no mundo, progressivamente, se vai criando uma onda de pensamento, de práticas e de pressão de tal monta que o sistema vai cedendo espaços para o novo e, no termo, será totalmente superado. Então começa outro paradigma civilizacional, com outras chances para a vida, para a liberdade e para a história dos seres humanos, agora na fase nova, a fase planetária.
BF – Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente da República envolto em uma aura de mística de esperança. Em sua avaliação, a aura desapareceu? Por quê? Boff – Talvez seja cedo para dizer uma palavra mais essencial sobre o governo Lula. Estimo que devemos trabalhar com a categoria transição. Ele poderia representar a transição de um modelo neoliberal e privatista de Estado para um modelo social e federalista. Como em toda transição, existe um elemento de continuidade e de novidade. A continuidade reside no aspecto macroeconômico. E a novidade nas políticas públicas que têm como ícone o Fome Zero.
A globalização destrói o bem comum e impossibilita uma democracia mais social Ocorre que a transição está ainda em curso. O objetivo é bom e correto. Mas suspeito que tenha escolhido meios que, por sua natureza, não levam a este objetivo, como o tipo de macroeconomia vigente com seu superávit primário, altas taxas de juros e pagamento sustentado da dívida. A forma de mudar essa equação, que não fecha, é pressionar fortemente o governo e o presidente para que mude os meios. Caso contrário, o povo conserva a esperança de
Divulgação
o mundo, há dois paradigmas em disputa. O dominante, ligado ao mercado, prega o egoísmo e a acumulação de capital, e se baseia no uso constante da violência. Em contraposição, e surgindo do seio do povo, desenvolve-se uma visão alternativa do mundo, solidária, participativa e justa. A avaliação é do teólogo Leonardo Boff, para quem, espaços de resistência, como o Fórum Social Mundial, podem levar à derrocada do sistema dominante.
BF – Para militantes e pessoas preocupadas em mudar a situação do mundo, que valores devem ser trabalhados e recuperados? Boff – Creio que todos os valores ligados à integração, à solidariedade, à participação, à construção coletiva, ao feminino e à dimensão espiritual da vida ajudam a elaborar um novo sonho de convivência humana. Em termos de virtudes, penso que se fazem imprescindíveis a hospitalidade de todos com todos, a convivência, o respeito, a tolerância, a comensalidade (comer juntos) e a paz (como meio e como meta).
Wilson Dias/ABr
João Alexandre Peschanski da Redação
mudanças, mas perde a confiança que este tipo de governo vá fazêlas. Lentamente, a esperança está deixando o plano alto e volta à planície, onde sempre esteve. BF – Em sua avaliação, após dois anos, quais os erros e acertos do governo? Boff – A bem da verdade, houve uma “violação de mandato”, quer dizer, o presidente se elegeu pregando uma agenda e, ao ganhar, aplicou outra. E não explicou suficientemente ao povo o por quê da mudança, quando prometeu que qualquer mudança importante iria ser explicada a todos. Creio que, a médio e longo termo, o prolongamento da política macroeconômica neoliberal é deletério para um projeto de nação autônoma e articulada soberanamente com o processo de globalização. Esse tipo de economia destrói o bem comum e impossibilita uma democracia participativa e mais social. No máximo, garante a governabilidade do sistema imperante, mas não é bom para as mudanças necessárias. Se houve esperança no presidente, faltou-lhe ousadia para o novo. O acerto foi dar importância ao social com as várias políticas públicas, mas devemos reconhecer que elas não têm centralidade, o que faz com que sejam apenas compensatórias, e não substantivas. Centralidade, mesmo, ocupa ainda a economia de tipo capitalista e neoliberal. BF – Na situação atual, no mundo e no Brasil, de onde tirar esperança? Boff – Creio que nenhum poder imperante político, cultural e religioso é gerador de esperança, no sentido de abrir a possibilidade real de um outro tipo de humanidade, outro tipo de relação entre os povos e para com a natureza. Está tudo viciado. Mas há imensas reservas de esperança e do novo nas massas humanas, no povo. Embora dominado e humilhado, há nele espaços de sonho, de liberdade, de práticas solidárias, de criatividade em todos os sentidos, que permitem vislumbrar uma forma diferente de organizar a vida e plasmar o futuro da humanidade e da Terra. Ocorre que ninguém dos políticos e dos líderes de qualquer poder está disposto a escutar o povo e valorizar o que ele inventou para sobreviver e dar sentido à vida. Eu acredito na força das redes nacionais e mundiais dos movimentos populares. Elas poderão acumular tanta energia de resistência, de crítica e de proposição de alternativas que, no momento de uma crise mundial que seguramente virá, e com vítimas incontáveis, poderão assumir a hegemonia e organizar o destino humano de forma mais segura e integradora. Talvez então surja a governabilidade global.
Quem é Autor de mais de 60 livros, Leonardo Boff é um dos principais teólogos do mundo. Foi professor em diversos centros de estudo e universidades no Brasil e exterior, como o Instituto Teológico Franciscano, em Petrópolis (RJ), as universidades de Lisboa (Portugal) e Harvard (Estados Unidos). É um dos intelectuais que participaram da elaboração da Teologia da Libertação, que une indignação em relação à miséria e o discurso da fé cristã. Em 1984, por causa de sua luta em defesa do povo, foi submetido a um processo pela Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, no Vaticano, e foi punido. Em 1992, novamente alvo de investigação, renunciou às atividades de padre. Em 2001, recebeu o Prêmio Nobel alternativo, em Estocolmo (Suécia).