Entrevista com Manuel Correia de Oliveira Andrade

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RUMOS DA NAÇÃO

ENTREVISTA

O conceituado geógrafo e historiador pernambucano atribui aos movimentos sociais e populares a tarefa de manter a pressão sobre o governo e fazer com que o presidente se sinta apoiado para agir contra os interesses da direita

Para Manuel Correia, povo deve “puxar” Lula contra a direita

BF - Quais deveriam ser as ações do governo para encaminhar a reforma agrária? MCA - Primeiro: o governo precisa entregar as delegacias do INCRA a pessoas que tenham compromisso com a reforma agrária. Na América Latina, foram criados institutos de reforma agrária mais para impedir o seu desenvolvimento. No caso da Venezuela, por exemplo, a lei de reforma agrária começava dizendo o que “não pode” e não “o que pode”. Muitas reformas agrárias desapareceram na América Latina, como é o caso do México, da Bolívia. Onde deu certo foi em Cuba, que sofre uma pressão internacional tremenda. Outra coisa que acho fundamental é o apoio da Igreja. Não se faz nada no Brasil sem o apoio da Igreja. BF – O Brasil é um país muito diversificado. A reforma agrária não poderia ser aplicada como receita a todas as regiões.

MCA - Em Estados como Santa Catarina, há pequenos proprietários, pessoas acostumadas a dirigir uma pequena empresa. Em muitas áreas do Nordeste, não mais proprietários rurais, há os trabalhadores que recebem salários devido à produção da cana-de-açúcar. Isso, por exemplo, provoca conflito de interesses entre o pessoal trabalhador do Agreste e da Zona da Mata. Enquanto o pessoal da Mata está lutando por salários maiores e melhores condições de trabalho, os do Agreste estão mais interessados na posse da terra. É preciso saber conciliar os dois grupos. A reforma agrária tem que ser feita de baixo para cima, de forma que interesse ao povo e que o povo a aceite. Fui comunista, não agüentei, saí com pouco tempo, porque eles eram muito teóricos. Elaboravam uma teoria baseada em princípios formulados no século 19. Marx não mandou ninguém copiar. Marx mandou que se pensasse em função de determinados princípios. Isso eu aprendi com Caio Prado Júnior, que foi meu mestre e que devia ser mais discutido. Eu tenho muito respeito pelo MST por isso, ele vive voltado para a realidade, ele estuda a realidade.

“Ou você chuta o apoio da bancada ruralista ou não faz a reforma agrária” BF - Durante a campanha, Lula prometeu revogar uma medida provisória do governo anterior, que proibia por dois anos a realização de vistorias em terras que tivessem sido ocupadas. A bancada ruralista do Congresso pressiona Lula, contra a revogação da MP. Qual avaliação o sr. faz da capacidade de Lula levar a cabo as reformas reclamadas pelo povo? MCA - Esse jogo está dentro da própria lógica do governo Lula. Quem ganhou a eleição foi Lula, não o PT. O brasileiro é muito personalista, tanto que Lula se elegeu, mas a maioria dos seus candidatos a governador foram derrotados. Lula quis fazer acordos com áreas mais reacionárias da política, incluindo o PP de Paulo Maluf. E eu vi o Severino Cavalcanti declarar nos jornais que havia uma aproximação ideológica muito grande entre o PP e o PT. É demais! Se o Lula não revogar aquela MP, ele vai perder prestígio. Lula precisa ter muito cuidado: subiu muito, pode cair. E esses ruralistas formam um grupo extremamente radical. Fernando Henrique era um homem de

Geógrafo e historiador, Manuel Correia de Andrade nasceu em Vicência (Pernambuco), em 3 de agosto de 1922. Fez o curso secundário no Recife, onde também formou-se em Direito, História e Geografia. Professor universitário aposentado, tem mais de cinqüenta livros publicados, entre os quais A terra e o homem do Nordeste (1963), considerado um clássico entre os estudos da geografia humana brasileira. Coordenou vários estudos à frente do Departamento de História da esquerda, é um dos grandes intérpretes da história brasileira, e fez um governo completamente diferente do que ele pregou. Fernando Henrique cedeu à pressão da bancada ruralista. Ou você chuta o apoio da bancada ruralista ou não faz a reforma agrária.

Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, do Recife, e é considerado um dos mais respeitados estudiosos da realidade nordestina.

de estudo à Itália, Bélgica, Grécia e Israel. É membro do Conselho Científico do International Council for Research in Cooperative Development, com sede em Genebra, Suíça. Publica, constantemente, artigos na da imprensa pernambucana.

Entre 1956 e 1965, realizou cursos de pós-graduação em universidades do Brasil e da França. Também fez viagens que com a solução do problema da terra, e é inclusive um pouco assistencialista. Se eu tenho quatro filhos para dar de comer dentro de casa e não tenho pão, então tem que haver ações de assistencialismo, mas como meio, e não como fim.

BF – O MST retomou as ocupações e os ruralistas têm preparado suas milícias particulares. Como o sr. avalia esse processo de polarização? MCA - Eu não me espanto que o ruralista esteja armado. Armados eles sempre estiveram, podem não ter exibido as armas. Eles são fortes, têm poderes e o governo tem que ter força para demonstrar que é governo. Mas você observa que o governo não está tendo forças para enfrentar o crime organizado. Todo mundo sabe disso. BF - O governo Lula está completando 100 dias. Segundo dados do Ibope, tem 75% de aprovação. É possível fazer uma avaliação? MCA - É cedo. Cem dias é muito pouco tempo. Agora fiquei feliz que Lula tivesse esse apoio todo porque isso dá força a ele. Eu acredito que Lula tenha capacidade para governar o Brasil e tem sempre o poder de aglutinação. BF - O Programa Fome Zero pode alcançar o objetivo? MCA - Não sei. Primeiro, foi feito muito às pressas. Segundo, o meu amigo Graziano está avançando muito em função do problema paulista. Está se criando uma mentalidade “paulistana”, em que o que é bom para São Paulo é bom para o Brasil. O Fome Zero está mais preocupado com o problema da acumulação nas cidades do

Pe. Tiago - Eu fico olhando para este Brasil, 53 milhões de votos para Lula, mas também 53 milhões de pessoas que vão dormir com fome. A 40 minutos de carro do Recife, você entra em terras feudais vigiadas por exércitos privados. Os usineiros dizem “nós produzimos riqueza e emprego”. Mas só aqui em Pernambuco os usineiros devem quatro bilhões de reais aos cofres públicos. Isso faz parte do processo de concentração de riquezas. Nesses últimos anos 150 mil empregos foram perdidos na Zona da Cana.

“As oligarquias tentam ganhar posses dentro do governo para tirar a sua capacidade revolucionária” BF - Que forças o governo Lula pode mobilizar contra as oligarquias? MCA - Sou nascido de uma família oligárquica, não vou negar isso. No engenho Jundiá (Vicência), as famílias de meu pai, Correia de Oliveira, e da minha mãe, Costa Azevedo, que é de origem judia, têm influência política desde o século 18. Então, eu convivo com a oligarquia, são meus primos, meus amigos. A reação inicial foi contra Lula. Uma vez, me disseram: “Pernambuco é açúcar, então nós representamos Pernam-

buco”. Mas esse pessoal tem uma capacidade de adesão muito grande. E quando Lula começou a ter possibilidade de vitória, os mais abertos foram aderindo. E quando Lula venceu uma parte aderiu. Agora eles aderem, tentam ganhar posses dentro do governo Lula e então vão tentar tirar do governo Lula a capacidade revolucionária.

BF – O avanço do governo depende da correlação de forças... MCA - O problema não é só administrar corretamente, é administrar mudando para a esquerda. Você pode ter uma administração corretíssima, mas conservadora. Isso não adianta. O Brasil chegou a um ponto que, com 160 milhões de habitantes, está em 15º lugar como economia, mas está no 54º ou 56º lugar pelo IDH (índice de desenvolvimento humano). Não adianta tanta riqueza. É como discutir a proposta das vagas para negros nas escolas públicas. Eu concordo, mas não devia haver necessidade disso. O negro devia ter acesso a uma escola tão boa quanto a que o branco tem. Se ele tivesse acesso a uma escola de primeira classe, ele chegaria sem precisar de cota, né? Agora, em dando cota para o negro, devia dar para o índio também, que é muito esfoliado. E para o branco pobre, porque há uma quantidade enorme de branco na pobreza. BF - Lula pode conseguir articular os setores para “virar para a esquerda”? MCA - Espero que sim. Lula é um sujeito solidário. Ninguém pode negar. Um cara que nasceu no agreste, numa pequena propriedade, numa zona sujeita à seca, que a mãe teve que ir para São Paulo, torna-se líder sindical e se elege presidente da República pelo voto, esse é um homem predestinado. BF - Então os movimentos sociais devem continuar pressionando, puxando Lula. MCA - Devem continuar. Lula precisa que puxem ele. Qualquer presidente precisa se sentir apoiado, não pode ficar isolado. O papel das forças que são realmente de esquerda é estar sempre prontas para pressionar Lula ou qualquer outro governo, no sentido de manter os seus compromissos com o povo.

BRASIL DE FATO De 13 a 19 de abril de 2003

Brasil de Fato - Quais as expectativas da reforma agrária no governo Lula? Manuel Correia de Andrade - Sou partidário do governo Lula, embora haja muitos problemas. Eu acho que a reforma agrária é fundamental para a solução dos problemas brasileiros. E aí eu entro em choque com o meu amigo Graziano, tanto o Francisco quanto o Graziano da Zona da Mata – Silva. Reforma área entre o litoral e o agrária não é agreste, de solo fértil colonização, e vegetação de grande porte. Em não é divisão Pernambuco,ocupa de terras. E 8.465 km2 (8,6% da não é dádiva área do Estado) e de governo. reúne 42 municípios Os movimenAgreste – zona tos populares, entre a mata e a o MST, a Igrecaatinga, com solo ja através da pedregoso e escassa Comissão Pasvegetação. Em Pernambuco, ocupa toral da Terra, uma área de 24.489 a Contag e km2 (24,8% da área uma série de do Estado) e reúne 73 outros novos municípios movimentos devem manter pressão em favor da reforma agrária. Lula, como presidente, sofre pressões muito fortes dos vários setores. A atuação se dá no momento histórico, as coisas têm tempo para acontecer. Por exemplo, na Zona da Mata, houve essa crise nas usinas, muitos senhores de engenho já estavam falidos e os trabalhadores foram à justiça. Tiveram direito à indenização e os proprietários não tinham dinheiro para lhes pagar. Como eles estavam organizados, conseguiram que fossem pagos em terra. Em Vicência, muitas terras que eram de usinas hoje são assentamentos.

Quem é

Paula Reis Melo

papel das forças que são realmente de esquerda é estar sempre prontas para pressionar Lula ou qualquer outro governo, no sentido de manter os seus compromissos com o povo”, afirma o historiador e geógrafo Manuel Correia de Andrade, 80 anos. Filho de senhor de engenho e ex–militante do PCB (em 1944-

45), Correia de Andrade dirige o Instituto de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco (IDOC) e é membro da Academia Pernambucana de Letras. A reforma agrária é essencial para a solução dos problemas brasileiros, afirma o geógrafo, em entrevista que contou com a participação do padre Tiago Thorlby, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Nordeste e de Alexandre Conceição, da Direção Estadual do MST.

Paula Reis Melo

Paula Reis Melo, de Recife (PE)

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