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De 8 a 14 de fevereiro de 2007
NACIONAL REFORMA AGRÁRIA
Governo, mais uma vez, manipula os números Diferentemente do divulgado, mandato Lula não tem “o melhor desempenho da história do Incra” Arquivo MST
Tatiana Merlino da Redação uando o assunto é reforma agrária, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva parece ter dificuldade de lidar com os números. Dia 30 de janeiro, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) anunciou ter assentado 381.419 famílias e assim alcançado 95% da meta do primeiro mandato do governo Lula, prevista no Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). No entanto, o governo não divulgou a relação completa dos beneficiários, a forma de obtenção das áreas e os dados por projetos, o que dificulta a identificação do que realmente foi reforma agrária. “O que precisa ficar claro é que esse número não é referente apenas a novos assentamentos. Esse dado aponta a soma dos números de regularização fundiária, reordenação fundiária, novos assentamentos e reassentamento de famílias atingidas por barragens”, afirma o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, professor da Universidade de São Paulo (USP). Ao anunciar que quase toda a expectativa de assentamento do PNRA foi cumprida, e que se trata “do melhor desempenho da história do Incra”, o governo não leva em consideração suas próprias metas para o período 2003/2006: assentamento de 400 mil novas famílias; regularização de posse de 500 mil famílias; crédito fundiário para 127,5 mil famílias; recuperação da capacidade produtiva e viabilidade econômica dos atuais assentamentos; cadastramento georeferenciado do território nacional; e regularização de 2,2 milhões de imóveis rurais. De acordo com Umbelino, “mesmo sem termos os dados desagregados, pode-se ver o absurdo do não-cumprimento da meta. Basta somar os itens do PNRA dos novos assentamentos e regularização fundiária: as metas eram 400 e 500 mil famílias, respectivamente. Ou seja: considerando esses dois itens, eles tinham que atingir 900 mil famílias”, denuncia. “No entanto, como o governo não divulgou a relação completa, fica difícil questionar os números. O governo precisa publicar os dados para discutirmos com base em dados concretos, mas eu tenho quase certeza de que eles não alcançaram nem a metade da meta”, aponta.
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Números embaralhados escondem o que são desapropriações de terra de fato; regularizações e reordenações de assentamentos são contabilizadas em pacote único
De acordo com o MDA, a lista completa dos beneficiários da reforma agrária em todo o país estaria disponível “nos próximos dias para consultas no endereço do Incra na internet” constando “o nome de cada assentado, o número da carteira de identidade e a localização do assentamento”. Porém, até o fechamento da edição, uma semana após o anúncio do governo, as informações ainda não haviam sido publicadas.
INTERPRETAÇÃO CONFUSA Segundo pesquisa elaborada por Umbelino, de janeiro de 2003 a 31 de julho de 2006, apenas 83.359 famílias foram assentadas por meio de novos assentamentos, 85.052 por meio de regularização fundiária, 80.304 por reordenação e 1.670 por meio de reassentamentos, totalizando 250.385 famílias beneficiadas. “O problema é que o governo coloca como sendo uma coisa só. Ele faz isso propositadamente para deixar a interpretação de que a meta foi atingida”, avalia. Um documento do Incra obtido pelo Brasil de Fato também mostra dados preocupantes. Desde o início do governo Lula, foram iniciados 1.763 projetos de reforma agrária com capacidade para 173 mil famí-
lias, sendo que 141.858 já estão alocadas. “Esses dados revelam que esse governo não está fazendo reforma agrária”, diz o geógrafo, que afirma que, até julho de 2006, apenas 5.319 famílias foram assentadas por meio da criação de novos assentamentos. A confusão na divulgação dos dados da reforma agrária não é novidade. Os dados já tinham sido questionados pelos movimentos sociais em 2004, 2005 e 2006. Ano passado, quando o MDA anunciou ter assentado 127.506 famílias em 2005, o Brasil de Fato denunciou que, desse total, 82 mil não se referiam a projetos de reforma agrária, mas a reordenação e a regularização fundiárias.
NÚMEROS CONTROVERSOS A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) contestou os dados. Segundo Paulo Caralo, diretor de Política Agrária e Meio Ambiente da organização, “se tivessem sido assentadas quase 400 mil novas famílias, os movimentos sociais não teriam 220 mil famílias na beira das estradas. Temos praticamente o mesmo número que tínhamos em 2003”, afirma. Em 2003, 180 mil famílias estavam acampadas. Destas, apenas 67.300 foram assentadas até 31 de
Para entender os números Abaixo, as diferentes frentes de atuação do governo em projetos no campo, com o total de famílias beneficiadas, entre janeiro de 2003 e 31 de julho de 2006. Reordenação fundiária – Substituição ou reconhecimento de famílias presentes em assentamentos já existentes. Total de 80.304 famílias Regularização fundiária – Reconhecimento do direito das famílias (populações tradicionais, extrativistas, ribeirinhas, pescadores, posseiros etc.) de permanecerem nas áreas onde estão instaladas. Total de 85.052 famílias Reassentamentos fundiários de famílias atingidas por barragens – Proprietários com direitos adquiridos em decorrência de grandes obras de barragens e linhas de transmissão de energia realizadas pelo Estado ou empresas concessionárias ou privadas. Total de 1.670 famílias Reforma agrária – Assentamentos decorrentes de ações desapropriatórias de grandes propriedades improdutivas, compras de terra e retomada de terras públicas griladas. Total de 83.359 famílias
julho de 2006. No Distrito Federal, por exemplo, havia 797 famílias acampadas que foram assentadas ao longo de 2004 e 2005. Em 2006, outras 748 acamparam no Estado. Famílias que estavam acampadas em 2003 no Acre, Amazonas e Roraima foram assentadas nos anos seguintes, e em 2006 não havia acampados nos Estados.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) não se pronunciou pela ausência de informações e dados mais detalhados do trabalho desenvolvido pelo governo federal. E diz aguardar a publicação da relação dos assentados divididos por Estados, áreas desapropriadas, adquiridas ou em terras públicas.
SÃO PAULO
Serra acentua desmonte de universidades públicas Renato Godoy de Toledo da Redação Em apenas um mês de gestão, o governo de José Serra (PSDB) já atacou o ensino público superior paulista em duas frentes. No primeiro dia de mandato, decretou a criação da Secretaria de Ensino Superior que, na prática, deve funcionar como uma “super-reitoria”. Logo depois, o tucano anunciou que os repasses de verbas para as três universidades públicas – USP, Unesp e Unicamp – serão cortados em 15%. Ouvidas pelo Brasil de Fato, entidades representativas da comunidade acadêmica apontam que o pacote de Serra coloca em xeque a autonomia universitária, a qualidade do ensino e o seu caráter público. O Fórum das Seis – entidade que compreende as associações de professores e sindicatos de trabalhadores das três universidades – realizou no dia 1º uma
assembléia e redigiu um documento que classifica o pacote de Serra como uma das “mais violentas e autoritárias intervenções do governo do Estado na autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial das universidades estaduais paulistas.” O Fórum deliberou um calendário de mobilizações, em conjunto com os estudantes. Nas primeiras semanas de aula, as entidades irão realizar atividades para esclarecer aos calouros a nova conjuntura imposta pelo governo. “Vamos explicar que, quando eles fizeram o vestibular, a universidade era uma coisa; agora que estão matriculados a situação já é outra”, comenta Aníbal Ribeiro, diretor do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp). “O ataque do governo foi grande e nossa reação vai ser maior ainda”, promete. Na análise do presidente da Associação dos Docen-
tes da USP (Adusp), César Minto, as medidas de Serra corroboram um projeto de universidade formulado pelo PSDB, sustentado no discurso de que é “muito oneroso” um ensino público de qualidade, baseado no tripé ensino, pesquisa e extensão. Dentro dessa lógica, o Estado daria um aval para uma maior captação de recursos externos, ou seja, investimento privado. Esse processo, na visão dos órgãos representativos da comunidade acadêmica, compromete o caráter público da universidade.
A JUSTIFICATIVA O governo do Estado, por sua vez, argumenta que o pacote de medidas visa romper o “isolamento” das instituições de ensino: “as universidades não são ilhas isoladas, devem estar abertas à sociedade, buscar o entrosamento e o governo é um instrumento importante para isso”, justifi-
cou o secretário estadual da Casa Civil, Aloysio Nunes Ferreira, em entrevista à Folha de S. Paulo. Nessa linha, para “enquadrar” as universidades, os tucanos atuaram em duas vias: uma política, outra financeira. Primeiro, vincularam à recém-criada Secretaria de Ensino Superior, comandada por José Aristodemo Pinotti (PFL), o Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp), a principal instância deliberativa acerca das questões universitárias. Na outra ponta, o governo do Estado asfixiou o orçamento do ensino superior. No apagar das luzes de sua gestão, o ex-governador Cláudio Lembo (PFL) derrubou aumentos de verbas para as universidades negociados com o Palácio dos Bandeirantes e a Assembléia Legislativa de São Paulo. Lembo afirmou que tomou a medida após conversar com Serra.
O acréscimo dos investimentos foi uma conquista do Fórum das Seis que, após uma intensa mobilização, conseguiu que o governo paulista aceitasse investir 10,43% do que arrecada com o ICMS no ensino superior. O percentual antigo – e que agora voltará a prevalecer – é de 9,57% da arrecadação com esse imposto.
MAIS RESTRIÇÕES O corte de verbas não ficou nisso. Serra anunciou ainda que vai reter 15% da verba da universidade pública. Em janeiro, o tucano não repassou R$ 21,5 milhões do orçamento da USP e da Unesp. Para a tesoureira Adusp, Lighia Matsushigue, o contingenciamento é um “acinte”. “Estávamos pedindo mais verbas, justamente, porque os 9,57% não são suficientes para financiar uma educação de qualidade”, afirma. Na visão dela, a autonomia universitária torna-se
fictícia quando não há autonomia de gerenciamento financeiro. “Em função da escassez de verba, a USP da zona Leste, por exemplo, não tem laboratórios de pesquisa, nem sala para os professores. Sem um suporte financeiro do Estado, a universidade fica voltada aos interesses de mercado. Só haverá estudos relacionados ao que dá retorno financeiro, como já acontece em algumas unidades da USP”, diz a tesoureira, que prevê dificuldades para as instituições fecharem suas contas, inclusive para custear os gastos com pessoal. Para Aníbal Ribeiro, do Sintusp, a intenção do governo é realizar mais “ajustes”. “Sabemos que haverá enxugamento no quadro de funcionários e precarização do ensino. Questõesmateriais,como,porexemplo, os equipamentos dos Hospitais Universitários, também serão afetadas”, reitera. (leia mais sobre o modelo de gestão do PSDB na página 5)