Bolívia aprova referendo após pressão popular

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de 23 a 29 de outubro de 2008

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américa latina

Movimentos comemoram convocatória a referendo constitucional na Bolívia AVANÇO Após marcha e vigília de dezenas de milhares de pessoas, Congresso Nacional fecha acordo para a convocação da consulta Gmea/ABI

Igor Ojeda correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)

“A MARCHA foi fundamental. Porque os parlamentares sabiam que, se não aprovassem a lei convocando o referendo constitucional, iríamos fechar o Congresso”. As palavras de Patrícia Tellería, panificadora de Santa Cruz, no oriente boliviano, dão bem o tom do clima na Plaza Murillo, em La Paz, onde dezenas de milhares de pessoas faziam vigília para que o Parlamento boliviano aprovasse a lei de convocatória do referendo sobre a nova Constituição do país – no dia 21, a consulta foi convocada para 25 de janeiro. A concentração no centro da capital da Bolívia foi a culminação de uma marcha promovida pelos movimentos sociais que apóiam o governo do presidente Evo Morales, iniciada no dia 13, em Caracollo, no departamento de Oruro. Uma semana e cerca de 200 km depois, La Paz foi “tomada” pelos manifestantes. “A marcha foi de muito sacrifício, mas as organizações do oriente já têm experiência, já sabem como é. Nos trataram muito bem, ficávamos alegres que a marcha se massificava cada vez mais. E a consciência do povo mudou. Já saem a nos saudar, a nos felicitar”, comemora Patrícia, que lembra que os povos originários do oriente do país vinham pedindo uma nova Constituição desde a década de 1990. Segundo ela, os movimentos sociais de Santa Cruz, departamento cujas autoridades e comitês cívicos fazem dura oposição a Evo, se comprometem a garantir que a nova Constituição seja aprovada por 70% da população local. “O povo boliviano está cansado das manobras da direita. As minorias devem aprender a viver não como oposição, mas desfrutando o país que as maiorias vão construir”, diz.

Congresso modifica 100 artigos da nova Constituição de La Paz (Bolívia)

Ao centro, diante da imagem de Che Guevara, o presidente Evo Morales segura faixa

Festa

Mesmo “cansados das manobras da direita”, e exaustos com os sete dias de marcha e com as 24 horas de vigília na frente do Congresso, os movimentos não deixaram de comemorar, efusivamente, a lei que convocou o referendo constitucional. Após sua promulgação, por Evo Morales – no mesmo palco, montado na Praza Murillo, onde ele, juntamente com ministros e dirigentes de organizações sociais, esperou por quase um dia completo o debate no Parlamento – as dezenas de milhares de pessoas que se encontravam no local iniciaram um desfile em volta da praça, com muita música e dança. As diversas cores dos trajes típicos

e os sons dos instrumentos locais completavam o ambiente de alegria incontida. “Até agora, temos 12 dias de viagem, mas vou voltar feliz com o que foi aprovado aqui”, conta o indígena Antonio Soto Guatara, do departamento do Beni, na Amazônia boliviana, que participou dos 200 km da marcha. “Como disse o Evo, os que vão marchar já sabem que não vão comer nem dormir muito. Por isso, estamos contentes com a aprovação da lei”. Desde que saiu de Caracollo, no dia 13, a marcha dos movimentos foi ganhando, ao longo dos dias, cada vez mais adeptos. No caminho, os marchantes contaram com a solidariedade dos moradores locais, que con-

tribuíam com alimentos, água e, eventualmente, estadia durante as madrugadas. Na passagem pela cidade de El Alto (onde Evo Morales aderiu à caminhada) e, posteriormente, na entrada em La Paz, no dia 20, a marcha foi recebida por milhares de pessoas posicionadas ao longo do trajeto em direção ao Congresso, que aplaudiam e gritavam palavras de apoio.

Inimigos

Já na Plaza Murillo, os manifestantes começaram a exigir a aprovação da lei do referendo constitucional e, inclusive, a ameaçar fechar o Parlamento à força caso sua demanda não fosse atendida. Os ânimos iam sendo acalma-

Para se chegar a um acordo que possibilitasse a aprovação no Congresso, no dia 21, da lei de convocatória ao referendo sobre a nova Constituição boliviana, o governo do presidente Evo Morales aceitou a modificação de mais de cem artigos (de 408 no total) da nova Carta Magna. Assim, a consulta será realizada no dia 25 de janeiro de 2009. Caso seja aprovada, novas eleições para presidente e congressistas serão realizadas em dezembro do mesmo ano. Entre os acordos fechados, está o que contempla a reeleição de Evo Morales. Na proposta anterior, o mandatário boliviano teria direito a duas gestões caso fosse eleito no pleito que seria convocado após a aprovação da Constituição. Agora, Evo terá direito a apenas uma, além da que exerce atualmente. Outro ponto do acordo estabelece que o limite máximo de terra que uma pessoa pode ter (um referendo dirimidor, que será realizado na mesma data do constitucional, decidirá se tal restrição será de cinco ou dez mil hectares) não se aplicará retroativamente. Ou seja, as propriedades atuais que cumprem a função econômica e social não serão afetadas. Na questão das autonomias, a nova Constituição reconhecerá a departamental, a municipal e a indígena (antes, as regionais estavam incluídas). Mas, no caso de Santa Cruz, Beni, Tarija e Pando, seus estatutos autonômicos deverão se adequar ao novo marco constitucional. (IO) dos periodicamente pelo presidente, que pedia paciência aos movimentos. Logo após ter promulgado a lei de convocatória do referendo constitucional, Evo Morales agradeceu aos manifestantes por o terem ouvido. Além disso, justificou a decisão de abrir mão de sua reeleição. “Em nome da unidade do país, pelo processo de mudanças, renunciei à reeleição. Agora, posso ir contente para o cemitério, porque cumpri minha missão com o povo. Aí estão novos líderes que estão surgindo, crescendo. O Evo Morales já não é importante. Antes, governavam os doutores. Isso nunca mais vai acontecer. Esse processo é irreversível. Façam o que façam, di-

gam o que digam, o neoliberalismo não vai voltar”, celebrou. No discurso, o presidente boliviano criticou duramente a oposição regional, que anunciou não reconhecer os acordos fechados no Congresso para se aprovar a lei do referendo sobre a nova Carta Magna. “Ao rechaçarem tudo que foi modificado, entendo que eles são inimigos da autonomia departamental. São inimigos da pátria, porque estão rechaçando a nacionalização dos recursos naturais, o fato de que os serviços básicos sejam públicos. É hora de identificar os inimigos. Querem bases estrangeiras na Bolívia. Agora podemos ver quem são os entreguistas”, analisou.

ENERGIA

Perspectivas favoráveis às aspirações paraguaias em Itaipu Comissões técnicas do Brasil e do Paraguai, co-proprietários da hidrelétrica, iniciam diálogo a pedido dos presidentes Lula e Lugo Carmen Moreno de Havana (Cuba)

As lendárias reclamações paraguaias sobre o direito de comercializar a um preço justo seu excedente energético de Itaipu, e a vendê-lo a outros países, avançam, pela primeira vez, com perspectivas favoráveis. Comissões técnicas do Brasil e do Paraguai, co-proprietários da hidrelétrica, iniciaram o diálogo a pedido dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Lugo, reunidos em Brasília no dia 17 de setembro. A primeira jornada de negociações, efetuada na última semana de setembro, deu abertura à criação de duas subcomissões: uma de estudos energéticos, que analisa a livre disponibilidade da energia e o preço justo reclamado por Assunção; e outra financeira, que examina a dívida que a central mantém com a empresa brasileira de eletricidade Eletrobrás. Ricardo Canese, chefe da equipe paraguaia, disse que espera os primeiros resultados desses encontros no começo de 2009. As comissões técnicas se comprometeram com a construção de uma subestação elétrica de 18 milhões de dólares, que permitirá ao Paraguai receber e distribuir o total da energia que lhe corresponde. Também acordaram o início de um estudo de viabilidade para levar a cabo obras que permitam a navegação total sobre o rio

Paraná, dificultada pela hidrelétrica. Ambas comissões apresentarão um informe no dia 27 de outubro. O diretor paraguaio da represa, Carlos Mateo Balmelli, assegurou que as autoridades do país vizinho concordaram com duas das reclamações. O Paraguai utiliza somente 5% da cota de energia que lhe corresponde. O excedente deve ser comercializado com o Brasil a um preço estabelecido no tratado firmado em 1973, e não de acordo com o que rege hoje o mercado internacional. “O Paraguai não vem pedir nenhum tipo de privilégios. O que queremos é que a energia produzida pela hidrelétrica seja vendida pela Administração Nacional de Eletricidade (Ande) dentro do Brasil. Isso seria muito importante para o Paraguai”, explicou Balmelli. O funcionário e sua equipe conversaram com os executivos das empresas Tradener e Tractevel, ambas comercializadoras de energia no mercado de São Paulo. Alguns dos empresários paulistas – acrescentou Balmelli – mostraram interesse em construir, no futuro, outras represas hidrelétricas de menor envergadura que Itaipu para aproveitar o patrimônio aqüífero paraguaio.

Encontro Lula-Lugo

Ao fim de um encontro de mais de três horas com Lula, Lugo abriu novas possibilidades aos pedidos de modificação do Tratado de Itaipu, que

Marcello Casal Jr/ABr

Lula cumprimenta o presidente do Paraguai, Fernando Lugo: novas possibilidades

proíbe o Paraguai de vender a outra nação a energia que não utiliza. “Não há contradições”, assegurou, em alusão à busca de um acordo mais justo pela energia que gera a sociedade entre os países. Segundo Lugo, o Brasil está disposto a falar sobre os temas sem nenhuma dificuldade. A usina, localizada sobre o rio Paraná, a 350 quilômetros a leste de Assunção, gera cerca de 20% da eletricidade que o Brasil consome. O Tratado firmado em 1973 estabelece a divisão igualitária da energia e obriga o Paraguai a vender todo o seu excedente (quase 95%) com exclusividade ao Brasil. O Paraguai

recebe cerca de 300 milhões de dólares ao ano por essa energia, mas Lugo considera, “segundo o preço de mercado, que o pagamento justo tem que chegar a 2 bilhões de dólares, ou seja, entre seis ou sete vezes o valor atual”. Através dos anos, o Brasil têm mantido a postura de que esse assunto deve ser discutido a partir de 2023, quando vence o tratado. Agora, Lugo deixou claro que “o tema de Itaipu instalou-se definitivamente na opinião pública e não retrocederemos. Já tenho falado com Lula, com seu ministro Celso Amorim [Relações Exteriores] e com outras autoridades brasileiras”.

Como uma novidade em mais de 20 anos de exploração e administração comum, o vice-presidente paraguaio, Frederico Franco, assegurou que os gastos sociais da sociedade no rio Paraná poderão ser revisados pelos organismos de controle do Estado, seja o Congresso ou a Controladoria Geral. A intenção de transparecer os gastos sociais se mantém firme; nunca um diretor paraguaio chegou até o legislativo para explicar as atividades da instituição, manifestou.

Também Yacyretá

O presidente Lugo colocou entre as propriedades do governo, que iniciou em 15 de agosto

a recuperação do poder de decisão do Paraguai sobre a energia que se produz tanto em Itaipu como em Yacyretá, o complexo hidrelétrico que compartilha com a Argentina. Buenos Aires e Brasília impuseram cláusulas nos convênios para a construção das respectivas represas, que regulam o uso da energia e impedem ao Paraguai beneficiar-se do consumo. Contudo, não existe documento que respalde a descomunal dívida acumulada desde o início da construção, na década de 1970. Segundo cálculos elaborados no centro da campanha da Aliança Patriótica para a Mudança, o Paraguai importa bilhões de dólares em hidrocarbonetos. No entanto, os rendimentos produzidos na represa de Itaipu só alcançam 300 milhões de dólares. “34 anos de entrega, de doação, reclamamos o justo para o Paraguai, o faremos assim amanhã”, expressou Lugo. No caso da sociedade que compartilha com a Argentina e que ainda se encontra em construção, o Paraguai só utiliza entre dois e cinco por cento. Reverter a injusta situação dos corruptos acordos das grandes fontes de energia – como assinalou Stella Calloni em um artigo publicado pelo La Jornada – beneficiará a unidade sul-americana. “Sigo sonhando, como seguramente o terão feito esses grandes sonhadores que foram Bolívar, San Martín e outros tantos, com uma América Latina unida e irmã”, revelou Lugo.


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