Assembleia Popular: Mutirão por um Novo Brasil

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De 27 de outubro a 2 de novembro de 2005

NACIONAL ASSEMBLÉIA POPULAR

Movimentos debatem um novo Brasil Gissela Mate de Brasília (DF)

“A

s eleições, apenas, não vão resolver os problemas do povo brasileiro. É preciso que a população participe diretamente das questões que vão definir os rumos da sua própria vida”. Foi nesse tom que o sociólogo Luiz Bassegio, da Secretaria Intercontinental do Grito dos Excluídos, definiu os objetivos da Assembléia Popular: Mutirão por um Novo Brasil, que começou dia 25 e vai até 28 de outubro, em Brasília. Reunindo milhares de militantes de todo o país para discutir um novo rumo político para a história brasileira, a Assembléia também tem como propósito estabelecer uma agenda unificada de ações para 2006. A iniciativa – que segue o espírito de mobilizações sociais como a Consulta Popular, organizada em 1999, e as Semanas Sociais Brasileiras, realizadas pelas pastorais sociais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – está sendo promovida por mais de 60 entidades religiosas e movimentos sociais, entre os quais a Campanha Jubileu Sul, a 4ª Semana Social, a Cáritas Brasileira, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Marcello Casal Jr./ABR

Milhares de ativistas se reúnem em Brasília para encontrar saídas que levem à justiça social

Representantes de movimentos sociais e de igrejas debatem um novo projeto político para o Brasil, durante a Assembléia Popular, em Brasília (DF)

direção nacional do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB). Os coordenadores do encontro fizeram críticas aos espaços de participação política atual e aos rumos neoliberais da economia brasileira. “Haverá mais arrocho social em 2006 e, além disso, a previsão é de que o Brasil pague cerca de R$ 175 bilhões em dívidas, no próximo ano”, diz Sandra Quintela, integrante da Campanha pela Auditoria da Dívida Externa. A economista considera que instrumentos como referendos e plebiscitos são essenciais à democracia.

CRÍTICAS As novas formas de participação popular vão ser definidas pelos debates da Assembléia, segundo esclareceram os organizadores – entre eles, dom Odílio Pedro Scherer, secretário-geral da CNBB; dom Demétrio Valentini, presidente da Cáritas brasileira; Sandra Quintela, economista do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS); e Gilberto Cervinski, da

O referendo do dia 23 de outubro, sobre a comercialização de armas de fogo, foi analisado por dom Odílio como exercício de participação popular, ainda que não tenha havido o debate político necessário. “O povo decidiu, mas não houve espaço de reflexão profunda sobre o tema. A sociedade entendeu que não pode confiar na segurança pública e isso soa como distorção do real significado que tem o Estado de Direito”, disse o secretáriogeral da CNBB. Complementando, dom Demétrio ressaltou que “faltou valorizar mais o debate. Parece que

formamos nossa opinião diante da televisão e a idéia do referendo é mais do que isso”, observa. “Enxergamos essa Assembléia como instrumento que vem sendo construído em nome de um projeto popular de sociedade”, explicou dom Demétrio. Bassegio acrescentou que o jeito que se faz política, hoje, “não serve mais ao povo do país”. Os integrantes da comissão organizadora da Assembléia reafirmaram, ainda, a independência dos movimentos sociais com relação ao governo. “Não nos reunimos para essa atividade com a idéia de

fazer críticas ao governo, mas para discutir o que é bom para o povo”, reiterou Bassegio. Um exemplo concreto da necessidade de debate público popular está na transposição do Rio São Francisco. “Do ponto de vista da racionalidade, não entendemos a transposição”, afirma o presidente da Cáritas. “O discurso oficial sobre a obra aponta melhorias para a população, mas temos muita experiência para afirmar que não é o povo pobre que irá se beneficiar com a transposição”, completa Cervinski, do MAB.

REFERENDO

Tatiana Merlino e Igor Ojeda da Redação O resultado do referendo sobre a proibição da comercialização das armas, dia 23 de outubro – o “não” venceu com 63,94% dos votos, contra 36,06% do “sim” – reflete um “equívoco” da população brasileira, que não confia na capacidade do Estado de garantir proteção aos cidadãos. Essa é a avaliação de ativistas de direitos humanos e apoiadores do “sim”, para os quais a sociedade deveria rejeitar as armas e exigir que o governo cumpra seu papel. O jurista e professor da Universidade de São Paulo (USP), Dalmo de Abreu Dallari, considera ingenuidade alguém achar que vai comprar um revólver “e sair por aí se defendendo”. Segundo ele, “se as pessoas acham que a situação está ruim, deveriam votar para mudar alguma coisa, não para manter tudo como está”. Os ativistas de direitos humanos também atribuem a vitória do “não” ao formato das campanhas veiculadas na mídia, em que o debate ficou centrado em duas frentes parlamentares, uma de cada lado. “A sociedade civil ficou à margem da discussão; o referendo se tornou exclusividade dos partidos e dos parlamentares”, critica Paulo Carbonari, do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

MANIQUEÍSMO Outro problema apontado foi a transformação do debate sobre a comercialização de armas em uma disputa maniqueísta, “uma falsa luta entre o bem e o mal, onde, de um lado, estava o cidadão, e do outro, os bandidos”, explica Carbonari. “O apelo emocional atrapalhou a

Valter Campanato/ ABR

Vitória do “não” abre brecha para endurecimento

Vitória do “não” poderá significar um avanço do conservadorismo na discussão das políticas nacionais

reflexão consistente”, diz. A campanha do “não” explorou bastante a questão do direito à defesa, enquanto a do “sim” não trabalhou com a idéia da defesa do direito coletivo, lembra Orlando Fantazzini, deputado federal pelo PSOL (SP). Para ele, o grupo do “sim” deveria ter atuado propositivamente, explicando que defendia o direito coletivo de não sofrer violência, “o direito à paz”. O deputado também acha que a campanha a favor da proibição da venda de armas deveria ter abordado melhor a questão das vidas perdidas em função do porte de arma. “Poderia ter sido reforçada a tese de que o cidadão não deve ser uma extensão da polícia, de que a questão de segurança pública é de responsabilidade do Estado e não do cidadão”, afirma.

O jurista Dalmo Dallari considerou a pergunta do referendo mal elaborada: “Muita gente ficou confusa. Imagine quantas pessoas votaram não ao controle da comercialização achando que era não às armas. Por isso, o resultado do referendo é duvidoso, não reflete exatamente o pensamento das pessoas”, avalia. A campanha do “não”, cuja propaganda dizia que o governo federal não investe na segurança, “mas quer tirar um direito que é seu”, tirou proveito do descontentamento da população. “Com as pessoas desconfiadas do governo federal, fica fácil fazer os eleitores se apropriarem do discurso conservador dos que eram contrários à proibição do comércio de armas”, analisa a socióloga Julita Lemgruber, diretora do Centro de

Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes.

AVANÇO CONSERVADOR Além da manutenção dos índices de violência em níveis alarmantes, a vitória retumbante do “não” poderá significar um avanço do conservadorismo na discussão das políticas nacionais. “Temo que a gente esteja abrindo as portas, nas próximas semanas, para um endurecimento da legislação penal. Lamento esse tipo de desdobramento, que já é evidente”, alerta Julita. No próprio dia do referendo, com as pesquisas dando ampla vantagem ao “não”, os deputados federais Alberto Fraga (PFL) e Luiz Antônio Fleury Filho (PTB), respectivamente presidente e vice-presidente

da Frente Parlamentar Pelo Direito da Legítima Defesa, propuseram a realização de plebiscitos sobre proibição do aborto, instauração da prisão perpétua e fim ou redução da maioridade penal (hoje de 18 anos). “Uma pessoa de 12, 13 anos, se sabe o que está fazendo, tem de ser julgada”, afirmou Fraga. No entanto, segundo Fantazzini, apesar de a “indústria da violência” achar, devido ao resultado, que a sociedade está seguindo a linha conservadora, esse setor “vai ter uma surpresa”, pois as pessoas não votaram “não” por convicção. “O que mais pesou foi o descontentamento com o governo federal, mais do que a convicção do direito pessoal a ter uma arma”, diz. Para Mariana, do Instituto Sou da Paz, muitas pessoas votaram contra a proibição simplesmente para defender liberdades civis, e não por acreditar em políticas reacionárias. “Quando o pessoal do ‘não’ quiser usar esse discurso, elas vão começar a se rebelar e dizer ‘não foi nisso que eu votei’”, acrescenta. Para o jurista Dalmo Dallari, mesmo que essas questões sejam levantadas, não existe a menor possibilidade de serem postas em prática pois, segundo ele, algumas delas são inconstitucionais, não podendo ser objetos de projetos de lei. Independentemente do resultado do referendo, a realização da consulta foi “um passo para aprofundar a democracia” no país, na opinião de Paulo Carbonari. “A sociedade civil demorou muito para se apropriar desses mecanismos”. Dallari concorda: “É um instrumento de democracia direta previsto na Constituição que nós não temos usado. Esse é o momento de acelerar sua utilização, que é democratizante”.


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