7
De 8 a 14 de abril de 2004
NACIONAL CONJUNTURA
“Brasil-ornitorrinco” perde o controle Francisco de Oliveira destaca papel dos movimentos sociais e compara Estado a animal disforme, que só acentua pobreza
Brasil tem a cara de um ornitorrinco. A irônica definição é do economista pernambucano Francisco de Oliveira, que em um recente ensaio comparou o estranho animal ao capitalismo gerado no país e que não dá mostras de mudança, mesmo com o Partido dos Trabalhadores no governo. Em entrevista ao Brasil de Fato, o aposentado professor titular de sociologia do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da Universidade de São Paulo, professor que não gosta de assim ser chamado pois está mais para “desensinar” do que para ensinar, aponta alternativas para o país.
Quem é O economista e sociólogo Francisco de Oliveira foi um dos fundadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), instituição que estuda as relações políticas na América Latina. É autor de vários livros, como Crítica da Razão Dualista, A Economia da Dependência Imperfeita e A Falsificação da Ira.
O
BF – Qual a origem disso? Oliveira – Essa concentração de renda não é produto apenas da longa história brasileira, é produto do novo. Foi a industrialização que fez isso. E, recentemente, o fato de a economia brasileira estagnar aumentou o grau de desigualdade. Apesar disso, se vêem novas manifestações do capitalismo central que só fazem aumentar a desigualdade. Eu cito o caso da grande mecenas da arte moderna brasileira, dona Iolanda Penteado, que está na minissérie da Rede Globo, Um só Coração. Dona Iolanda financiou os artistas que revolucionaram a arte moderna brasileira mas sua fazenda era administrada em regime da meação. Quer dizer, moderna lá na arte, com os pés plantados na coisa mais arcaica que é o sistema de meação na agricultura e na pecuária. O ornitorrinco é isso. BF – No livro, o senhor diz que o ornitorrinco não evolui devido à dívida externa. Há solução para isso? Oliveira – Há solução. Para os que crêem, até mesmo a morte tem solução, porque depois vem a vida eterna. Mas é preciso romper com certas condições externas preestabelecidas. Por exemplo, pode-se estabelecer um sistema de controle cambial, um controle sobre as contas de capital das transações correntes. Não precisa impedir importação, como o Brasil já fez. A reforma de 1952/1953, de Osvaldo Aranha, instituiu um sistema de taxas múltiplas de câmbio, por exemplo, que ordenava as prioridades do país. A importação de bens de capital era a prioridade
BF – Cite um exemplo. Oliveira – Como o Chile fez, por exemplo, qualquer capital só pode entrar ou sair do país depois de permanecer 180 dias. Isso já mata a questão um pouco, porque a especulação move os capitais de praça para praça, todos os dias. A partir daí é possível estabelecer controle. Todos os países fizeram isso e o Fundo Monetário Internacional foi obrigado a reconhecer. Há várias formas de fazer isso, desde as mais simples até as mais sofisticadas. O que não pode é um país periférico, que não possui nem 1% do comércio internacional, com a pretensão de
questão sempre esteve colocada, com a diferença de que os socialistas acreditavam também no progresso, mas por vias diferentes. Desde algum tempo, há uma desconfiança radical, que nasce de reflexões da filosofia alemã, sobretudo a partir do começo do século 20, porque o fascismo havia apresentado a outra cara do progresso. A partir daí começou uma reflexão filosófica rica e crítica que acentuou a desconfiança, postulando que esse tipo de progresso não é um desvio da modernidade, e sim sua plena realização. Isso é muito radical, pois é preciso pensar quais forças sociais sustentariam essa posição. É possível diversificar as formas de convivência, mesmo no mundo capitalista.
O Brasil-ornitorrinco é um país profundamente desigual que não tem mais como combater a desigualdade ter o câmbio livre. Isso não existe, é delírio, pois não é possível ter uma moeda internacional capaz de bancar esse jogo. E o Brasil sempre fez algo diferente. Como não tem moeda poderosa internacional, usa outros meios para obter os mesmos resultados. A novidade do período neoliberal é que eles passaram a acreditar que basta ter uma moeda instável para dirigir o movimento de capitais, alocar recursos na economia etc. Mas não é assim que a coisa funciona. BF – O senhor fala também do desenvolvimento truncado. Quem busca alternativas não deveria romper com esse paradigma de progresso? Oliveira – Antigamente, essa pergunta se chamava socialismo. A
BF – E o governo Lula nisso? Oliveira – O governo Lula foi eleito não com a promessa radical de romper com todos os modelos, mas com a promessa, menos ambiciosa, de encontrar meios e modos de diminuir um pouco a desigualdade na sociedade brasileira. Se medir o governo Lula pelos critérios mais radicais, a decepção será enorme. Mesmo os mais modestos, que estão medindo o governo apenas pela régua da atenuação das desigualdades, também já estão se decepcionando. Quer dizer, a régua do Lula não chega nem a tentar mudar um pouquinho as condições da sociedade. Com a atual distribuição de renda do país, não chegaremos a lugar nenhum. Chegaremos onde já estamos, no ornitorrinco.
BF – Qual é o papel dos movimentos sociais na busca de outros caminhos? Oliveira – Em uma sociedade como a brasileira, os movimentos sociais têm de ser nitidamente subversivos, desmontar a ordem constituída que mantém essa desigualdade abissal. Os movimentos sociais têm de envolver o governo e penetrar a carapaça de um partido que se transforma em partido da ordem. É extremamente difícil, porque a economia, a sociedade brasileira são muito complexas para serem administradas com qualquer simplificação da realidade. No governo, o PT simplifica demais essa realidade. E, ao simplificá-la, tende a reduzir tudo ao denominador comum da governabilidade, que para eles é ter maioria no Congresso. Aí, o governo consegue uma proeza extraordinária: nem Fernando Henrique teve no Congresso a maioria que o PT tem. Entretanto, não governa, enquanto Fernando Henrique, com menos, governou. BF – Por que essa paralisia? Oliveira – O governo Lula, salvo a reforma da Previdência, que deve ser posta entre aspas, não consegue andar, mesmo tendo maioria no Congresso. O que ele perdeu é a maioria social, até porque, como partido da ordem, tenta desmobilizar. E aí não tem no que se apoiar. Para ser viável, qualquer alternativa depende da capacidade de ter hegemonia no movimento social. Também é possível governar em outras situações, em uma ditadura, por exemplo. Mas uma ditadura não quer dizer hegemonia, e sim o contrário, pois governa pela força porque não tem consenso da sociedade. O governo está numa situação estranha: não tem hege-
Anderson Barbosa
Brasil de Fato – O que é o ornitorrinco e como o capitalismo no Brasil se transformou nisso? Francisco de Oliveira – Charles Darwin, quando viajava no Beagle (navio no qual percorreu o mundo, durante cinco anos, a partir de 1831), chegou na Austrália e encontrou o ornitorrinco. Toda a teoria da evolução esbarrou naquele animal. Aquilo não tem nem futuro nem passado. Várias correntes da evolução se encontraram nele e deu num bicho que bota ovo, mamífero cujos filhotes não mamam em tetas pois é o leite que escorre, tem bico de pato, esporão venenoso. Ou seja, é um truncamento total. Eu usei essa metáfora para mostrar uma sociedade em que várias formas da evolução capitalista se encontram e formam um bicho estranho. Formam um país profundamente desigual que não tem mais como combater sua desigualdade, uma sociedade em que 2,4% da população detêm 33% da renda nacional. Não há nada parecido em todo o mundo. Mesmo nos EUA não há uma concentração de renda tão espantosa.
número um, e a taxa de câmbio, a mais favorecida. Para perfumes franceses não havia nenhuma prioridade e a taxa de câmbio era a mais alta possível. Havia uma divisão de bens necessários, dos importantes até os chamados bens supérfluos. Não precisa chegar a isso de novo, basta estabelecer o controle sobre a conta de capital das transações correntes.
monia porque perdeu o consenso da sociedade, e tem maioria política, mas essa maioria não governa. O PT está no pior dos mundos.
Mariana Pessah
Carla Ferreira, Kátia Marko e Marcelo de Souza de Porto Alegre (RS)
Movimentos sociais se mobilizam contra integração do Brasil à Área de Livre Comércio das Américas (Alca)
BF – Quais as forças capazes de recompor esse quadro político no Brasil, hoje? Oliveira – As especulações que aparecem na imprensa não são à toa, até por causa do próprio presidente, que disse esperar que o PT se encontrasse com o PSDB. Com isso, está reconhecendo que perdeu a hegemonia e que há uma outra metade com a qual é preciso se juntar para governar. Portanto, isoladamente não há qualquer força capaz de mudar as diretrizes. Não está indicado ainda por onde haverá esta recomposição, e as siglas que estão aí pouco significam, são todas clones das duas originais que, no momento, são PT e PSDB. BF – Por que PT e PSDB são originais? Oliveira – São originais porque encarnam essa perseguição de que o capitalismo dê certo. Isso é basicamente o que as une do ponto de vista ideológico. Uma sigla se diz herdeira da socialdemocracia, o que é uma falsificação, pois em todos os países a social-democracia sempre nasceu do movimento operário. O PSDB não nasceu daí, mas é parte dessa família que aposta no êxito do capitalismo aqui. É isso que une o PSDB ao PT. Portanto, os dois partidos serão, por algum tempo, o centro de gravitação da política brasileira, e todos os outros são clones dessa formação. O PFL não representa força do capital alguma, a menos que se pense que o Maranhão é a força do capitalismo brasileiro. O que o PFL tem de orgânico no grande capital? Nada. E alguém consegue me dizer o que o PTB é, em qualquer parte do Brasil? O PDT está morrendo de agonia. E o PL provavelmente é só um grupo de evangélicos. BF – O senhor disse que a divulgação da fita do caso Waldomiro pela revista Época, da Editora Globo, foi uma forma de pressão para a liberação do empréstimo do BNDES. Isso é uma hipótese ou um fato? Oliveira – Eu trabalho com os elementos oferecidos. Não tenho nenhuma investigação especial nem conheço segredo de Estado, nem da Rede Globo. E não gostaria de conhecer porque é perigoso, pois termina sempre em morte. Eu me movo com os dados oferecidos pela própria imprensa, que sugerem a existência de uma artilharia pesada em torno das grandes dívidas das empresas de mídia. BF – O senhor acha que no Brasil os meios de comunicação têm condições de rearticular as forças políticas, a exemplo do que ocorreu na Venezuela? Oliveira – Eu não acho que os meios de comunicação tenham esse poder no Brasil. Mas a mídia, em muitos casos, faz a opinião pública e dirige a política, sobretudo em um setor sensível e perigoso como o da segurança pública. As políticas de segurança pública no Brasil estão orientadas basicamente pela mídia, pelo que repercute, pelas prioridades que coloca em ação. Os programas locais de televisão que apresentam o mundo-cão martelam diariamente na segurança pública. Aquilo é uma forma de formar opinião a respeito da segurança e de influenciar na política, pois criam o paradigma da solução da sociedade policial.