Entrevista com Apolônio de Carvalho

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De 29 de setembro a 5 de outubro de 2005

NACIONAL MEMÓRIA

Lições do jovem Apolônio de Carvalho Militante por natureza, lutou pela liberdade na Espanha e na França e, no Brasil, foi um dos fundadores do PT

ilitante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) na década de 1930 e integrante do Partido Comunista do Brasil (ainda sob a sigla PCB), até os anos 1960. Combatente antifranquista na Guerra Civil Espanhola (1936-39) e da Resistência Francesa contra a ocupação nazista (1942-44). Fundador do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), em 1968, para levar a cabo a luta armada contra o regime militar; e signatário da primeira ficha de filiação do Partido dos Trabalhadores (PT), em fevereiro de 1980. Tudo isso é pouco para dar uma idéia do militante completo que foi Apolônio de Carvalho, um grande brasileiro que o país acaba de perder, dia 23 de setembro. Foram 93 anos de idade e mais de 60 de militância comunista do tenente-general Apolônio Pinto de Carvalho, nascido a 9 de fevereiro de 1912, em Corumbá, MS . Sua trajetória se confunde com a história da luta pela democracia e, particularmente, da esquerda no Brasil. Para a entrevista à revista Sem Terra, 30 minutos. Foi o que sua companheira, Reneé de Carvalho, concedeu à reportagem, feita no dia 19 de agosto. Mesmo esses minutos foram o tempo suficiente para ele reafirmar que o socialismo é a forma superior de democracia. E explicar por quê.

M

Que lições os movimentos de esquerda podem tirar do século 20? Apolônio de Carvalho – Sou um velho militante, não de cultura tão ampla assim, nem dotado de capacidade de resumir ou fazer uma espécie de balanço desse quase um século que estou vivendo. Continuam as realidades de desigualdade e injustiças sociais, que vêm dos séculos anteriores. Convido vocês a fazer um passeio muito longo, desde a minha adolescência. Já nos anos 1920 do século passado, sentíamos o protesto do povo contra as arbitrariedades dos governantes, o desprezo pelas reivindicações e os desejos do povo. E sobretudo contra o contraste e as injustiças sociais. Iniciei a minha prática social antes da prática política, através dos movimentos sociais que pregavam a luta pela democracia, pelas liberdades e pela soberania nacional. Nós fomos sempre dominados pela pressão dos monopólios externos e internos. Deve ter sido difícil em outras épocas. Mas particularmente na nossa é difícil quando as contradições sociais se avolumam e se aguçam profundamente. Por exemplo, estamos saindo do século 20, que foi o mais cruel e contraditório de todos os séculos recentes. Todos os contrastes aguçados, uma sociedade marcada por duas guerras, terríveis extremos de pressão, genocídios racistas. Marcada por uma série de rebeliões e uma série de ditaduras militares e civis. No Brasil, 43 anos foram marcados por ditaduras militares ou civis. Mesmo assim, nosso povo foi abrindo caminho para a democracia. E os jovens, e depois os menos jovens (os que sendo velhos acreditam que a velhice é apenas a juventude amadurecida), continuamos na luta, que está cheia de promessas. Quais as principais conquistas da sociedade contemporânea? Carvalho – Passamos por conquistas sociais muito bonitas através da democracia, dos governos de frentes populares na Europa, experiências mais próximas do povo, em nosso país,

em certos momentos. Passamos também pelas experiências socialistas iniciais. Nos ensinam a compreender que só com o povo a gente pode fazer a luta, e a compreender também que as classes dominantes condenaram o nosso povo através da falta de educação, da miséria e das injustiças. É preciso um cuidado especial com o debate político com a população, com a formação política da grande massa do povo. As mudanças só podem ser feitas com o povo. No entanto, o povo não participa das grandes mudanças se não está convencido delas. Para se convencer, é preciso conhecer a realidade, ter idéia das forças que são favoráveis às mudanças e das que são terrivelmente contra; quem são aliados solidários na luta por justiça e por direitos humanos e, ao mesmo tempo, o conhecimento de quais são as forças renitentes. E nós devemos fazer o que vocês, do MST, fazem. Vocês são um exemplo. O empenho de debate político e de formação, de educação política. O que os movimentos sociais não podem esquecer? Carvalho – A grande experiência é essa: compreender que não se pode fazer nada fechando os olhos para a realidade. Temos companheiros que têm os mesmos horizontes que nós temos. Queremos a juventude do mundo através do socialismo. Mas há companheiros apressados, que querem o socialismo da noite para o dia. No mais tardar, amanhã depois do almoço. Ou, no mais tardar dos tardares, amanhã ao cair da tarde. Isso não pode acontecer. As pessoas mais conscientes podem lutar e encaminhar as coisas em um sentido de mudança, mas o povo não compreende de repente como fazer e como participar do processo. Esse é um dos maiores ensinamentos da trajetória recente.

Deveríamos pensar que democracia e socialismo não são coisas nem tão aparentemente distantes, nem tão contraditórias

Como colocar esses ensinamentos na prática cotidiana? Carvalho – É preciso, sobretudo, sentir que a realidade tem tantas contradições e contrastes que precisa ser modificada. Aí entram as leis gerais do caminho fundamental para compreender a necessidade das mudanças: as leis gerais da dialética. Primeiro, não se deixar levar nem pela mídia, nem pelas belas palavras dos demagogos. É a luta dos contrários. Em segundo lugar, a compreensão de que para chegarmos a horizontes novos, temos que passar por escalas,

vitais, como a terra. Além de ter a terra, é preciso ter condições para usá-la, para transformá-la por meio do trabalho produtivo e de formas novas de relação do campo-cidade. Esse é um trabalho magnífico que o MST já faz. No entanto, o MST é ainda uma força isolada na sociedade. Olhem os partidos de esquerda: todos têm muito pouco esforço de debate político interno entre seus filiados e militantes.

Fotos Ana Maria Straube

Igor Felippe Santos e Maíra Kubík Mano de São Paulo (SP)

Os partidos deixaram de lado a formação? Carvalho – Há muito pouco espaço para um cuidado especial com a formação política de seus filiados. Um exemplo é o PT. O partido conta hoje com 870 mil filiados. Participaram nos debates das primeiras prévias, em 2002, em cada Estado, apenas 270 mil filiados. Isso significa, que um filiado em três participou das discussões. Apenas esses militantes entraram na cidadania interna do partido. O restante se manteve alheio. Eram simples filiados. Isso significa que há uma distância muito grande entre as direções e as bases dos partidos de esquerda, de centro-esquerda e nos demais partidos também.

Carvalho: testemunho de luta pela democracia e defesa radical do socialismo

etapas sucessivas, formas novas de democracia, cada vez mais apoiadas no povo. Armando o povo com a formação, não só de cultura, mas de debate político. Formação e prática para abrir caminho para horizontes diferentes. São as passagens, as conquistas parciais sucessivas para chegarmos aos horizontes mais altos. É necessário ter um ideal de transformação da sociedade e ser fiel, desde que ele seja amplamente apoiado na grande massa da população. Os movimentos sociais e os partidos políticos têm programas de transformação. Precisamos saber ganhar o nosso povo, fazê-lo compreender que essa realidade é muito injusta e cruel, mas que é possível transformá-la. Como o senhor vê a democracia? Carvalho – A trajetória da sociedade e dos povos em geral, do nosso país e do nosso continente, tem momentos diferenciados. Há momentos de liberdades públicas. Momentos de formas de democracia com a presença do povo na arena social – como sempre esteve – mas também na arena política. A conquista de regimes de democracia é uma espécie de fio condutor da presença do povo nas transformações, com direitos vistos de uma maneira mais ampla. Não apenas o direito de pensar, ter religião, se locomover ou se expressar. Mas de ter condições de viver, pensar, pesquisar e debater. A população não consegue se apropriar ou compreender melhor os direitos de cidadania se está condenada a regimes de miséria, fome, desemprego e abandono por parte das forças dominantes. Democracia e socialismo são conciliáveis? Carvalho – Deveríamos pensar que democracia e socialismo não são coisas nem tão aparentemente distantes, nem tão contraditórias. As conquistas democráticas, populares, trouxeram a presença constante do povo à arena política, a visão clara por faixas cada vez mais amplas do povo das necessidades da nossa sociedade, dos seus flancos

mais atrasados com seu desejo de ganhar o direito de sonhar e de viver. Tudo isso representa os avanços constantes dos regimes de democracia. Através de suas etapas, nós nos aproximamos da forma mais humana e ampla de democracia que é o socialismo, que vai abranger com maior vigor e maior amplitude as faixas abandonadas e desprezadas da população, colocadas fora da ordem das preocupações das classes dominantes. No caminho da construção do socialismo, qual o papel do governo Lula? Carvalho – Hoje, há uma série de problemas a debater, de maneira fraterna e solidária. Sem a arrogância dos que se consideram donos da verdade absoluta e não admitem a troca de idéias. Lula não abandonou e não abandonará o caminho do socialismo por sua trajetória, história e origem. Também por sua identificação com o papel dos movimentos sociais e dos partidos políticos de esquerda que querem mudar a realidade existente. O socialismo é cada vez mais claro como uma necessidade, mas exige o avanço no nível de consciência dos trabalhadores e da sociedade em geral.

Para mim, o socialismo é a forma superior de democracia. A igualdade será produto de uma longa luta entre as classes que querem um mundo melhor, e as classes que têm receio de um mundo melhor Como avalia o papel dos movimentos sociais? Carvalho – Os movimentos sociais não podem ficar apenas na visão das mudanças ligadas exclusivamente a certos temas

Quando falo e sinto os jovens, eu tenho vontade de levantar os braços deles e agradecer a sua presença ativa como se gritasse aleluia Neste momento de crise e frustração, como fica a esperança do povo brasileiro? Carvalho – Quero ligar a esperança a algumas questões. Primeiro, à visão da pluralidade da realidade e, portanto, da necessidade de se transformar a sociedade. Segundo, à busca de explicações para os responsáveis pela realidade tão dura, e também das forças interessadas em mudar no campo das alianças políticas. Em terceiro lugar, aos caminhos de transformação. Muita gente quer, como todos nós queremos, o socialismo amanhã. Mas alguns querem um amanhã muito próximo de hoje. Um pensamento que parece mágico, que eu aprendi com um professor de universidade argentino: não vale apenas a gente olhar para a realidade e protestar contra ela, mas é preciso olhar para a realidade, armados da visão de um outro mundo melhor e da busca de condições para avançar. O que é o socialismo para o senhor? Carvalho – Para mim, o socialismo é a forma superior de democracia. Democracia não apenas no sentido das bandeiras da Revolução Francesa, como liberdade, fraternidade e igualdade. A igualdade será produto de uma longa luta entre as classes que querem um mundo melhor, e as classes que têm receio de um mundo melhor, e querem guardar sua ligação com um presente muito próximo do passado. O entendimento da longa luta deve estar casado, cada vez mais – aí eu falo particularmente para os jovens – com o sentido da responsabilidade. A presença dos jovens e das mulheres representa um contigente ativo, particularmente novo nos últimos 40 anos. Quando falo e sinto os jovens, eu tenho vontade de levantar os braços deles e agradecer a sua presença ativa como se gritasse aleluia.


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