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De 22 a 28 de abril de 2004
AMÉRICA LATINA ENTREVISTA EXCLUSIVA
“Estamos vivendo uma nova onda rebelde Considerando a organização popular fundamental para garantir os governos democráticos, Hugo Chávez defende a
O
Brasil de Fato – Como evitar golpes como os que derrubaram João Goulart, no Brasil, e Salvador Allende, no Chile? Como evitar outro 11 de abril na Venezuela e fazer que os 13 de abril sejam permanentes na América Latina? Hugo Chávez – Como evitar que as oligarquias, impulsionadas e apoiadas pelo império, calem os processos de mudanças, cortando as esperanças? Como evitar, aqui nestas terras, que se cumpra a cínica expressão de Winston Churchill sobre a União Soviética: “É preciso cortar a cabeça do bebê antes que cresça”? Como evitar que os Herodes de hoje cumpram a meta perversa de cortar a cabeça do bebê da esperança? A experiência da Venezuela pode contribuir para evitar os golpes fascistas que derrotam governos democráticos e legítimos, sobretudo progressistas, com projetos de mudanças, como o de Allende ou de Goulart. No nosso caso, o golpe foi derrotado em 24 horas, pois o povo se colocou de pé quase de imediato. Um elemento fundamental é a organização popular. Eu a colocaria em primeiro
Golpe do 11 de abril – Nesse dia, em 2002, militares e empresários venezuelanos depuseram e seqüestraram o presidente Hugo Chávez. Os golpistas receberam apoio e dinheiro do governo estadunidense. Dois dias depois, após manifestações de apoio a Chávez por todo o país, ele voltou ao cargo. Caracazo – Levante de trabalhadores e estudantes de Caracas, em fevereiro de 1989, contra as políticas neoliberais do então presidente Carlos Andrés Pérez. Confrontos com a polícia deixaram centenas de mortos. Revolução bolivariana – Programa econômico, político e social lançado por Chávez para romper com a dependência da Venezuela aos Estados Unidos, acabar com a corrupção no poder público e enfrentar os problemas da população pobre, como falta de acesso à saúde e à educação. A revolução se baseia nos ideais do general venezuelano Simón Bolívar (1783-1830), que lutou pela independência de diversos países da América do Sul. Pedro Carmona – Empresário venezuelano que, após o golpe do 11 de abril, assumiu a presidência da Venezuela. Hoje ele participa da oposição a Chávez. 4 de fevereiro de 1992 – Rebelião militar liderada por Chávez para depor o então presidente Carlos Andrés Pérez. O levante fracassou e os rebeldes, incluindo Chávez, foram presos.
Discurso do presidente durante ato comemorativo do segundo aniversário do golpe que o tirou do poder por 48 horas
Quem é Filho de professores, Hugo Rafael Chávez Frias nasceu em 1954, na Venezuela. No interior das Forças Armadas, onde seguiu carreira militar, junto com outros oficiais, criou o movimento político inspirado em Símon Bolívar, libertador da América Latina. Em 1992, com cerca de 300 pára-quedistas, Chávez liderou a tentativa de tomar o Palácio Miraflores do governo neoliberal de Carlos Andrés Pérez. Mesmo com o fracasso da operação, antes de ser preso, Chávez falou em rede nacional e desde então passou a ser a principal opção política de caráter popular no país. Em 1999 foi eleito presidente e deu início ao projeto de revolução bolivariana.
lugar! Essas massas de povo que despertaram na América Latina, na Venezuela, no Brasil, na Argentina, no Equador, precisam estar organizadas. É necessário que os dirigentes, os líderes naturais, os líderes políticos, os líderes sociais sejam uma direção política consciente, que articulem um plano e ponham em marcha, no seio das massas, para elevar
A TV do Sul vai evitar que nossos povos assistam apenas a CNN progressivamente o nível de consciência e de organização. Simão Rodrigues dizia: “A força material está na massa e a força moral, no movimento da massa”. Eu, humildemente, na prisão, lendo Simão Rodrigues nas madrugadas, me atrevi a acrescentar uma terceira consigna, pois me parece que faltava a força material que estava na massa e a força moral que estava no movimento. A força transformadora está na massa consciente e organizada, em movimento acelerado e permanente. Muitos movimentos de massa fracassaram por falta de uma direção política, uma consciência, uma ideologia. Não tinham um aparelho, chamemos isso de aparelho ou de partido. BF – Às vezes as rebeliões vêm com um aitolá... Chávez – Sim, no Irã pode ser que sim. Às vezes são até subjetivos os aparelhos, mas vão se transformando em aparelhos concretos, em correntes concretas, enfim, em organização, consciência e ideologia, programa e direção, de forma tal que tenhamos uma massa organizada e consciente em movimento. Com uma direção determinada. E acredito que esse é o fator mais importante e foi o que salvou o processo venezuelano. Salvou inclusive a nossa vida e nos seguirá salvando das ameaças.
BF – Qual é o papel dos militares nos processos de transformação? Qual a importância da unidade cívico-militar? Chávez – Aqui o povo e as forças armadas voltaram a se reencontrar. Em 1989, em Caracas, vi quando os soldados foram enviados por Carlos Andrés Pérez para massacrar o povo que se levantou no Caracazo! Descarregaram a fuzilaria sobre os bairros pobres. Foram milhares de mortos. Falam em trezentos, mas foram milhares de corpos lançados em fossas comuns, que nunca apareceram. Exatamente no dia em que se completavam dez anos daquela tragédia, 25 dias depois de termos assumido o governo, começamos o “Plano Bolívar 2000”. Nesse dia, os militares saíram de todos os quartéis do país, mas já não iam com a metralhadora da morte e sim com armas carregadas de vida, para fazer trabalho humanitário! Era uma ação meramente conjuntural, mas era uma resposta de um governo que começava com grandes dificuldades econômicas, uma pesada dívida externa, a pobreza infinita que tivemos aqui durante todo esse tempo, mas com um gesto: as Forças Armadas saem para ajudar seu povo e desde então não pararam mais e não pararão. Agora estamos organizando os reservistas do Exército, todos os que passa-
ram pelas fileiras militares, junto com o povo pobre. Já temos 80 mil inscritos e aprovamos recursos extraordinários para uniformizá-los, para armá-los e para treiná-los. BF – Quais os antecedentes históricos dessa unidade cívicomilitar? Chávez – 99 % dos militares da Venezuela vêm dos bairros pobres, dos campos. É um povo das classes baixas, nem das classes médias. Na melhor das hipóteses, ascendemos socialmente no Exército e chegamos a ser um pouco classe média. Mas eu nasci em uma casa de palha. Um militar venezuelano que vem da classe alta é um extraterrestre, uma coisa estranha. Na tropa, os suboficiais também são de profunda extração popular. Porém, sabemos que isso não é garantia suficiente porque temos visto na América Latina, como aqui, militares arremetendo contra seu próprio povo. Na verdade, o processo revolucionário bolivariano resgatou as raízes militares de nossas Forças Armadas. Eu repeti um milhão de vezes aos militares venezuelanos: quando Simon Bolívar estava morrendo, acompanhado de Abreu de Lima – o grande revolucionário pernambucano, símbolo da integração de nossos povos – afirmou em sua última
Cláudia Jardim
presidente da Venezuela, Hugo Chávez, recebeu a reportagem do Brasil de Fato em uma área livre conjunta à sua sala de despachos – onde mandou construir um quiosque de palha que lembra a casa onde nasceu, para “manter vivas as raízes campesinas”. Seus traços de mistura afro-indígena sobrepõem-se ao seu cansaço evidente ao fim de um dia de trabalho e debates com internacionalistas de todos os continentes, que estavam em Caracas para o II Encontro Mundial de Solidariedade com a Revolução Bolivariana. Seu interesse pelo Brasil não disfarça o respeito apaixonado pelo pernambucano Abreu de Lima, general que lutou com Bolívar até o seu último respiro. “Por que não temos alguns desses bispos brasileiros por aqui?”, perguntou, ao ver, na edição 58 do Brasil de Fato, a foto de dom José Maria Libório Saracchio beijando os pés de um sem-terrinha na cerimônia do lava-pés da Semana Santa. Não há formalismos, a roupa é simples, mistura com naturalidade complexas análises políticas e versos de uma canção revolucionária do cantor venezuelano Alí Primera. Parece ver em cada brasileiro um Abreu de Lima...
proclamação que “os militares devem empunhar suas espadas para defender as garantias sociais!”. Anos antes, dissera: “Maldito seja o soldado que aponte as armas contra seu povo!”. Isso está entranhado profundamente nas Forças Armadas e, por isso, no golpe de 11 de abril, a elite governante de Washington, a CIA, a elite venezuelana com todos os seus recursos e analistas, a elite petroleira que tinha um governo paralelo, todos se equivocaram bastante. Pensaram que o povo venezuelano ficaria de braços cruzados diante do golpe fascista.
Juan Barreto/AFP
Beto Almeida enviado especial a Caracas (Venezuela)
Fundo latino americano poderia ser usado para erradicação do analfabetismo
BF – Como foi essa resistência? Chávez – Dia 13 de abril este palácio foi rodeado pelas massas, as cidades foram tomadas e a população começou a sair para as ruas. Como diz a canção: “E desceram, e desceram e desceram” (canção revolucionária de Ali Primera). Primeiro, um pequeno grupo, depois uma avalanche com bandeiras e com a Constituição, alguns com fuzis, outros com facões, uns cantando e outros chorando, e aí se levanta um povo campesino, obreiro e desempregado, os camelôs, os jovens estudantes. Um artigo escrito por um golpista conta como o ministro, o cardeal e os donos dos meios de comunicação estavam numa reunião, aqui no palácio, e alguém avisa que têm que evacuar o palácio porque estavam cercados! Eles saíram correndo pela porta de trás. Alguns não tiveram nem tempo de sair porque as tropas e o povo tomaram o palácio e os telhados, as portas. Pedro Carmona fugiu pelos fundos junto com os donos dos meios de comunicação, o cardeal fugiu pelo outro lado. Assim, nesse dia começou a evidenciar-se o resultado de todo o trabalho, do empenho, da fusão civil-militar. Foram as horas em que vivi no fio da navalha. Porque os golpistas já tinham dado a ordem da minha morte. Estava consciente de que essa gente que havia poupado minha vida em 4 de fevereiro de 1992 não cometeria o mesmo erro de novo. Mas a fusão civil-militar começou a brotar por todas partes e a
Com a Petrosul, teremos uma das maiores reservas do mundo consciência dos jovens militares salvou minha vida e deu tempo para que a pressão popular se unisse inclusive com chefes militares. O general Garcia Carneiro, que era ministro da Defesa, estava preso pelos golpistas. Mas com a ajuda dos soldados escapou pela janela do banheiro do Forte Tiúna e foi para a portaria onde as massas populares se concentravam, buscando aliança com os militares. Carneiro pegou um megafone e incentivou o povo à luta. Ouviram-se canções revolucionárias: “No basta rezar...” e todos cantaram, a tropa e o povo! Aí está uma fórmula, um povo unido, organizado, consciente, capaz de mobilizar-se e veja que se mobilizou sem ser convocado! Os meios de comunicação alternativos tiveram papel importantíssimo e são a outra parte da fórmula para impulsionar a rebelião. Assim como disse Che Guevara, “criar um, dois, três Vietnã na América Latina”, temos que impulsionar uma, duas, três mil emissoras de televisões e rádios comunitárias na América Latina, que convoquem e orientem o povo.