Arte e Cidade Imagens de Jacobina
Salvador - 2006 EDUNEB
ARTE E CIDADE: IMAGENS DE JACOBINA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA Reitor: Lorisvaldo Valentim da Silva Vice-Reitora: Amélia Maraux DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS IV Diretoras: Miriam Geonisse de Miranda Guerra, Ione Oliveira Jatobá NÚCLEO DE ESTUDOS DE CULTURA E CIDADE Coordenador: Alan Sampaio Vice-Coordenador: Adriano Menezes PROJETO ARTE E CIDADE Idealizadores: Alan Sampaio, Valter de Oliveira, Washington Drummond Organizadores: Alan Sampaio, Valter de Oliveira EDITORA DA UNEB Diretora: Naddija Nunes Revisão:Flávia Garcia Rosa
Conselho Editorial: Flávia Garcia Rosa / UFBA Diana Sepúlveda Tourinho / UFBA Naddija Nunes/UNEB Paulo Fernando de Almeida Souza / UNEB ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DA UNEB Diretor: Tony Vasconselos Coordenador do Núcleo de Design: Dilton Dória Editoração: Adriano Reis CENTRO CULTURAL EDMUNDO ISIDORO DOS SANTOS Diretor: Wellington de Mello e Silva APOIO: Fotografia das telas de Almaques e Cmatos: Fábio Carvalho Tratamento das imagens da Memória Fotográfica de Jacobina: Ari Jr., Idealógica
FICHA CATALOGRÁFICA : Biblioteca Central da UNEB Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB:5/592
Arte e cidade: imagens de Jacobina – Bahia: memória fotográfica; narrativas urbanas; cores da cidade / Organizado por Alan da Silva Sampaio; Valter Gomes Santos de Oliveira . – Salvador: EDUNEB, 2006 144p.: il. retratos ISBN: 85-86873-58-68 1. Fotografia - Jacobina(BA) - História. 2. Jacobina(BA) - História Obras ilustradas. I. Sampaio, Alan da Silva. II. Oliveira, Valter Gomes Santos de. CDD: 779.998142 Editora da Universidade do Estado da Bahia - EDUNEB Museu de Ciência e Tecnologia - Pró-Reitoria de Extensão - PROEX Avenida Jorge Amado, s/nº - Boca do Rio - CEP. 41.710-050 - Salvador-BA Fone +55 (71) 3371-0107 - R. 204 www.uneb.br E-mail: editora@listas.uneb.br
Para Monclar Valverde. A.S. e W.D. Para Núbia e Dante. V. de O.
Apresentação
No frontispício deste livro, “Lady Nalvinha” de Cícero Matos traz a cidade em suas orelhas, como adorno de sua beleza... Ela nos fita diretamente e ri, como se nos convidasse a percebê-la com outros olhos. A exposição Arte e Cidade é um convite da arte para a Jacobina que lhe serve de referência. Esta cidade composta de inúmeras histórias trágicas e cômicas, permeada de lendas e personagens que marcaram época, de feição barroca com seus traçados sinuosos, das serras e casas que colorem a paisagem repleta de ícones, símbolos, belezas e misérias, que serviram de inspiração para os artistas criarem as suas próprias Jacobinas. Com o patrocínio do Programa BNB de Cultura, o Núcleo de Estudos de Cultura e Cidade da UNEB reúne um conjunto de artistas que apresenta a cidade de Jacobina: histórias, cenas, panoramas, ruas, inscrições, símbolos, festas, personagens, em técnicas e estilos diversos. Além das imagens que constam na exposição, o livro traz um conjunto de textos que reflete sobre elas e sobre a criação artística. Todos os autores dos textos participam do Núcleo de Estudos de Cultura e Cidade. Para a elaboração desta publicação, os autores tiveram autonomia de produzir seu texto, daí a diversidade de forma e conteúdo. O Núcleo de Estudos de Cultura e Cidade (NECC) congrega professores e alunos das áreas de História, Letras, Geografia e Filosofia, que se dedicam a desenvolver pesquisas sobre temas relacionados aos fenômenos urbanos. Nós compreendemos que se faz mais do que necessário que a Universidade assuma seu compromisso social e intervenha diretamente na realidade urbana.
Através do Programa BNB de Cultura, o Banco do Nordeste promove o desenvolvimento regional. Incentivando a cultura no interior do Nordeste, assume seu compromisso social. Ele permite à comunidade local o usufruto de bens culturais, ao mesmo tempo em que lhe oportuniza a geração de emprego e renda. O NECC organizou em Jacobina, em outubro de 2005, a primeira exposição Arte e Cidade. A experiência de reunir diversos artistas de áreas e técnicas diversificadas em torno do tema da cidade foi o ponto de partida para a realização deste projeto. Sobre o mesmo título, Arte e Cidade: Imagens de Jacobina, acontecem, no Centro Cultural Edmundo Isidoro dos Santos, entre os dias 27 de outubro e 30 de novembro de 2006, três exposições: Memória Fotográfica de Jacobina, Narrativas Urbanas e Cidade em Cores. A exposição Memória Fotográfica de Jacobina é uma coletiva de imagens da cidade, do século XX. A seleção é de responsabilidade do professor Valter G. S. de Oliveira, a partir do acervo de sua pesquisa “A memória fotográfica de Jacobina: investigações sobre os fotógrafos e suas obras na cidade”. Com o mesmo título, ele apresenta, em um artigo, os artistas, seus estilos e a relação deles, enquanto fotógrafos, com a cidade. Composta de 36 obras, a mostra apresenta uma visão panorâmica da produção fotográfica local, com registros de Rosendo Borges, Carolino Figueiredo, Juventino Rodrigues, Aurelino Guedes, Osmar Micucci, Amado Nunes, Normando Lima (Cueca), Cirilo Rosa, Napoleão Menezes e Lindenício Ribeiro. A exposição Narrativas Urbanas reúne três trabalhos que possuem a fotografia como referência. Uma mostra coletiva composta de 30 obras dos fotógrafos Fábio Carvalho,
Normando Neto e Valter de Oliveira, que apresenta uma cidade polissêmica, através de imagens que variam e dialogam nos olhares, nas formas e nas técnicas de obtenção da plasticidade das fotografias. Os três fotógrafos já realizaram outros trabalhos em conjunto, como a exposição Luzes da Cidade, na Associação Comercial e Industrial de Jacobina ACIJA em 2001 e na UNEB em Caetité em 2002. Promoveram também apresentações digitais dentro do projeto Domingueiras, em 2005, e por último, participaram da mostra Arte e Cidade, ao lado de CMatos, Almaques, Glauber Carvalho, Wodrum (Washington Drummond) e Alan Sampaio. Fazem parte também da exposição um tríptico dos artistas Wodrum e Alan Sampaio e, deste último, a coleção Delírio Trágico, uma narrativa da cidade construída a partir de imagens fotográficas transformadas/realçadas/alteradas com traços de nanquim. Com relação aos textos, o primeiro artigo de Washington Drummond é uma reflexão sobre a recepção fotográfica – “um nominalismo da imagem”, uma filosofia da aparência – e uma visão das obras dos três fotógrafos jacobinenses. O segundo, situa Delírio Trágico na produção atual de cinema e quadrinho e na tradição simbolista em relação às utopias espaciais. Sobre o “Tríptico”, Luiz Henrique dos Santos Blume faz um comentário de caráter eminentemente social, atentando para o aspecto estético e histórico tanto da imagem quanto do grafite. Enquanto Drummond recusa a “leitura” da imagem numa linha antirepresentacionista, Blume faz uma leitura de imagens que mostram o tecido urbano grafado de palavras e “avisos”. A exposição Cores da Cidade é um passeio pictórico pelas histórias e lugares de Jacobina em 27 telas dos dois artistas plásticos, CMatos e Almaques, sob a responsabilidade de Alan Sampaio. O primeiro já realizou diversas exposições individuais e coletivas em Jacobina,
Salvador e pelo mundo afora. O segundo fez sua estréia na primeira exposição Arte e Cidade. As obras dos dois artistas privilegiam os símbolos, as manifestações culturais, os personagens de rua, os traçados urbanos, com uma sensibilidade para a alegria e para a miséria da cidade. De forma e conteúdo, eles dialogam com a arte moderna – fazendo arte moderna. CMatos é uma lenda em Jacobina. Luciana Vilela escreve sobre suas cidadesimagens. Adriano Menezes insere o “papagaísmo” de CMatos e de Almaques na antropofagia cultural brasileira. Alan Sampaio fez entrevistas com os dois pintores e apresenta um substrato. Antes de serem representações ou mesmo registros da cidade de Jacobina, as imagens são apresentações de certos aspectos seus, notados por olhares e “anotados” por técnicas diferentes. Para serem vistas, as imagens suscitam e requerem a imaginação. E a imaginação é irmã da memória – parceiras no reconhecimento. Por isso, a memória não é um arquivo e a imaginação não procede de um poder interior alheio ao seu tempo. Ao oferecer imagens que figuram (ou desfiguram) a cidade de Jacobina em épocas e perspectivas distintas, as exposições provocam a memória coletiva, divulgam os antigos e novos artistas, promovem a auto-estima da comunidade e instigam à reflexão sobre a própria cidade.
Organizadores
Sumário
Memória fotográfica de Jacobina: investigações sobre os fotógrafos e suas obras na cidade 11 VALTER G. S. DE OLIVEIRA
Narrativas urbanas I: a dramaticidade da luz
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Narrativas urbanas II/Delírio trágico: foto-desenho, cidade e utopia
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Uma história invisível: outras leituras da cidade de Jacobina
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O papagaísmo na pintura
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As cidades de Cícero Matos
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Conversa com pintores de Jacobina
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WASHINGTON DRUMMOND
WASHINGTON DRUMMOND
LUIZ HENRIQUE DOS SANTOS BLUME
ADRIANO MENEZES
LUCIANA VILELA DOURADO MATOS
ALAN SAMPAIO
EXPOSIÇÕES Memória Fotográfica de Jacobina
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Narrativas Urbanas
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Cores da Cidade
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MEMÓRIA FOTOGRÁFICA DE JACOBINA: investigações sobre os fotógrafos e suas obras na cidade Valter G. S. de Oliveira O Brasil é um país que esteve sintonizado com a história da fotografia desde o seu princípio, no início do século XIX. O desenvolvimento desta arte nas cidades brasileiras ocorreu simultaneamente ao continente europeu. Em questão de décadas, a fotografia atingiu diversas áreas do território nacional através dos fotógrafos estrangeiros e brasileiros, que percorreram as cidades oferecendo seus serviços àquelas populações desejosas de conhecer a grande novidade. Através do projeto “A memória fotográfica de Jacobina: investigações sobre os fotógrafos e suas obras na cidade”, conseguimos montar um grande acervo digitalizado de fotografias na cidade, ao tempo que desenvolvemos estudos e análises sobre parte desse material, com apoio de bolsa de iniciação científica e pesquisa de mestrado. Através deste trabalho foi possível conhecer mais sobre as atividades dos fotógrafos e reunir suas obras em um acervo que vem servindo de fontes para outras pesquisas. Soubemos da existência de fotografias desde o fim do século XIX na cidade, quando alguns dos seus habitantes, em viagens para grandes centros urbanos, traziam nas bagagens retratos seus tirados em estúdios. Encontramos em alguns álbuns de famílias pequenos retratos tipo carte-de-visite1, de seus familiares em estúdios famosos de Salvador, como o do eminente fotógrafo Alberto Henschel, que possuía estabelecimentos em cidades como Salvador, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.
Do alvorecer do século XX é que se tem notícia das primeiras fotografias feitas em Jacobina, quando moradores locais contratavam fotógrafos itinerantes para registrarem acontecimentos importantes na cidade. A este respeito, existem algumas fotografias no momento sem fontes de informações que dêem conta de suas autorias, como a da feira-livre no largo Rio Branco e a da enchente de 1914. Outras veiculadas no memorial do escritor Afonso Costa, publicadas nos anais do V Congresso Brasileiro de Geografia, em que há algumas imagens da cidade com legendas de Fonseca & Filho Cruz. Não possuímos nenhuma informação sobre estes fotógrafos ou mesmo da localidade do seu estúdio. Entre 1922 e 1923, passou pela cidade um fotógrafo chamado Rosendo Borges. Ele fotografou a sociedade local na comemoração do 7 de Setembro no ano do seu centenário. A visita de um fotógrafo como ele à cidade tornava-se excelente oportunidade para os habitantes, mais abastados, serem fotografados nos locais preferidos da sua terra, como o retrato de um Alfredo Martins no Rio do Ouro. Rosendo Borges deixou também algumas imagens de outras localidades da região, como Canabrava e Campo Formoso. As fotografias encontradas deste profissional, todas em formato cabinet2, primam pela qualidade estética, em que técnica e composição ocupam espaço de grande valor. Foi somente na década de 30 que Juventino Rodrigues, natural da vizinha cidade de Piritiba, instalou em Jacobina o primeiro estabelecimento de fotografia, o “Photo Ideal”, localizado na antiga Avenida 24 de Outubro, atual Cel. Teixeira. Juventino fez carreira fotográfica na cidade e nela ganhou fama quando nos anos 30 e 40 fotografou os grandes eventos públicos, bem como passou a produzir os retratos dos álbuns familiares da população local, além de veicular muitas de suas imagens no jornal “O lidador”. Juventino Rodrigues foi 12
pioneiro em alguns aspectos na trajetória da fotografia em Jacobina. Foi ele, provavelmente, o primeiro fotógrafo a produzir um cartão-postal da cidade em 1935, com uma cena da construção da ponte Manoel Novais. Ao que tudo indica pode-se creditar a ele também a criação da primeira vista panorâmica da cidade, formada de cinco fotos abordando a enchente de 1948, feitas a partir do bairro da Serrinha. O trabalho foi apresentado em um pequeno álbum. Ele possuía um tamanho de 12x18cm e característica artesanal, com a capa produzida em gráfica e as fotografias coladas sequencialmente dando uma idéia da cidade em panorama. Juventino Rodrigues foi também um exímio retocador de negativos e também pioneiro em outros aspectos na fotografia em Jacobina, realizando uma exposição de retratos; criando um clube de fotografia como forma de difundir o gosto pela arte na cidade; construindo modelos de ampliadores e flashs para uso pessoal, de maneira que conseguiu contribuir fortemente para que a fotografia, através dos seus registros, passasse a fazer parte do universo cultural da cidade. Apesar de ser considerado por muitos moradores da cidade como o fotógrafo mais importante entre as décadas de 30 e 40, Juventino não foi o único a exercer a profissão em Jacobina no período. Havia também os fotógrafos Carolino Figueiredo e Aurelino Guedes. Apesar da obra encontrada destes dois fotógrafos não ser tão grande quanto à de Juventino, ambos deixaram importantes registros da cidade na época. Carolino Figueiredo Filho pode ser considerado um amante da fotografia. São muitos os seus negativos e fotografias feitas tanto no âmbito familiar quanto externo. Nascido em 1903 em Jacobina, é dele algumas vistas antiqüíssimas da cidade na década de 30. Muito embora não tenha instalado nenhum ateliê, ou “foto” como é chamado, ele chegou a comercializar 13
suas fotografias produzidas nas andanças pela região naquele período. Atualmente, seu acervo encontra-se nas mãos do seu filho, o fotógrafo Osmar Micucci. O outro fotógrafo existente na cidade desde os anos trinta é Aurelino Guedes. Chegado da cidade de Barra do Mendes, tudo indica que este fotógrafo não tenha se fixado em definitivo na cidade e parece que só mais tarde ele instalou o Foto Guedes, localizado onde hoje é a Avenida Orlando Oliveira Pires, fazendo importantes coberturas de eventos cívicos na cidade, além de cenas de rua. Encontramos alguns anúncios publicitários do seu foto no jornal “Vanguarda” da década de cinqüenta. Aurelino Guedes também produziu, à maneira de Juventino Rodrigues, um pequeno álbum intitulado “Panorama de Jacobina” de 1957, enquadrando os mesmos ângulos do primeiro álbum, como forma de sugerir a ação do tempo e dos homens sobre aquela cidade uma década depois. Aurelino Guedes era muito amigo de Juventino Rodrigues e com ele chegou a formar parceria, quando juntos empreenderam uma viagem a trabalho para o Estado de Minas Gerais, conforme noticiado pelo jornal “O lidador” de 14 de janeiro de 1938. Provavelmente, o espaço mais importante de veiculação das fotografias de Aurelino Guedes foi a “Enciclopédia dos municípios brasileiros” criada pelo IBGE em 1958. No volume XX, em que aborda o município de Jacobina, existem nove fotografias, ao que tudo indica de Aurelino Guedes, visto que três das mesmas são do pequeno álbum Panorama de Jacobina e as demais apresentam aspectos da cidade e dos distritos, como uma panorâmica do açude de Serrote, hoje o município de Serrolândia. Aurelino Guedes, sem dúvida, é um nome bastante significativo na história da fotografia da cidade.
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Em Jacobina, muita gente considera que a fotografia moderna iniciou com Osmar Miccuci. A compreensão do caráter moderno está relacionada ao tipo de equipamento, no caso mais compacto; ao flash eletrônico; ao formato das cópias, nos mais variados tamanhos; à introdução da fotografia colorida e ao desenvolvimento da fotografia de reportagem, tudo isso associado ao nome de Osmar Micucci. Nascido na cidade de Miguel Calmon em 1938, filho de Carolino Figueiredo Filho e Berardina Micucci Figueiredo, foi com o seu pai que Osmar iniciou na fotografia. Ele conta que, quando tinha por volta de treze anos, utilizava o equipamento do pai, uma câmera Zeiss Icon 6x6 e fazia suas primeiras experiências no universo da fotografia. A partir daí não largou mais das suas mãos uma câmera fotográfica, passando a produzir uma extensa obra na cidade. Produzindo imagens das cenas políticas ao cotidiano das ruas, dos eventos públicos aos privados, dos personagens da elite aos populares, Osmar Micucci descortinou diante das suas lentes a cidade entre as décadas de 50 a 80. As décadas de 50 e 60 foram importantes na afirmação do nome de Osmar na história da fotografia em Jacobina. Em meados dos anos 50, ele já produzia uma série de fotografias sociais e de temáticas urbanas na cidade. Em 1957, cobriu a visita do presidente Juscelino Kubitschek e, em 1958, com a posse do prefeito Florivaldo Barberino, produziu uma vasta cobertura daquela administração. O prefeito investiu naquilo que chamamos hoje de marketing político, utilizando as fotografias para a divulgação das suas obras na cidade. Na década de 60, Osmar Micucci já se consolidava como um fotógrafo respeitado e bastante solicitado pela população local. No jornal “Vanguarda”, de 1960, aparece os primeiros anúncios do seu ponto comercial, Foto Micucci, indicando sua “expecialidade (sic.) em 15
reportagem de: casamento, batizado, aniversários, instantâneos de crianças e familiares etc.” Osmar Micucci passou a desenvolver também a venda de equipamentos e de serviços para amadores na cidade, como revelações, cópias, ampliações, máquinas, filmes, papéis, álbuns. Nos seus serviços para os clientes inaugurou uma série de novidades na confecção dos álbuns produzidos, como mudanças no formato e nos enquadramentos ousados o que lhe garantia uma ampla procura pelos seus serviços. Depois de uma longa e bem sucedida carreira, o fotógrafo desde fins dos anos 80 passou a residir em Salvador. Na década de 60, o universo de fotógrafos se ampliou na cidade. Além dos já conhecidos Juventino Rodrigues, Carolino Figueiredo, Aurelino Guedes e Osmar Micucci, outros fotógrafos surgiram prestando também seus serviços para a população local, como Cirilo Rosa, Amado Nunes, José Félix, Normando Lima, Napoleão Menezes, Lindenício Ribeiro, Elieser, dentre outros. Cirilo Rosa iniciou na carreira fotográfica com cerca de quarenta anos de idade e se notabilizou como um importante retratista local. Natural de Itiúbas, antes de seguir carreira na fotografia foi por muito tempo carpinteiro. No seu Foto Jacobina, surgido em 1960 na Praça Rio Branco, nº 22, ele produzia bastantes fotografias para documento. Ao lado de Juventino Rodrigues, Cirilo Rosa era também um especialista em retoque de fotografias. Atualmente ele reside em Jacobina e não exerce mais a profissão. Amado Nunes foi um nome importante na fotografia em Jacobina. Muito embora tenha exercido por um longo tempo a profissão de escrivão cível, ele aos poucos foi ocupando seu espaço na área da fotografia na cidade. Nascido em Mairi, chegou a Jacobina em meados 16
dos anos 50, em cujo período passou a exercer as atividades de escrivão no Fórum da cidade. Ao que tudo indica, quando chegou já possuía experiência com fotografia, pois foi justamente ele quem transmitiu as primeiras noções práticas de revelação para o jovem fotógrafo Osmar Micucci. Foi em meados da década de 60 que Amado montou o seu ponto, chamado Nunes Foto, localizado na sua residência na Rua Manoel Novais. Especializado em fotografias de evento, Amado Nunes não deixou escapar pelas lentes de sua máquina as transformações ocorridas na cidade, a exemplo das construções dos novos prédios no centro e das residências na periferia da cidade; a criação da estrada de asfalto que liga Jacobina a Salvador; assim como os panoramas do crescimento urbano, acompanhado passo a passo por ele do alto das serras. Seguindo o modelo artesanal dos álbuns fotográficos de Juventino Rodrigues e Aurelino Guedes, Amado Nunes publicou um pequeno álbum intitulado Lembrança de Jacobina-Bahia, com seis fotografias em formato de 13x8cm, em que apresenta cenas panorâmicas, praça, igreja, vista do trem e duas pessoas em estabelecimento comercial. Quando Amado Nunes sai para morar em Salvador na década de 70, ele vende seu ponto para o fotógrafo José Félix, recém-chegado da cidade de Mirangaba. Félix monta o seu Foto Félix, situado à Rua Afonso Costa, passa a atuar como fotógrafo de evento e de estúdio, inovando depois quando passa a revelar e vender equipamentos fotográficos na cidade. Se mencionarmos o nome de Normando Lima associado ao universo da fotografia em Jacobina pode soar desconhecido por parte de muitos na cidade. Mais conhecido pelo apelido de “Cueca”, Normando Lima era um amante da fotografia. Nascido em Mundo Novo, foi morar em Jacobina desde muito cedo. Trabalhou na Comissão do Vale do São 17
Francisco (CVSF), em Jacobina, e segundo informações de familiares, ao lado das suas atribuições na instituição, sempre quando necessitava, ele prestava alguns serviços fotográficos para lá. Quando da sua aposentadoria, ocorrida na década de 70, ele resolveu investir na carreira de fotógrafo. No entanto, não teve uma longa passagem na profissão da fotografia visto ter falecido em 1982. Pouca coisa restou do acervo do fotógrafo, mas há algumas fotografias de cenas interessantes na cidade, como o da velha estação de trem, do Pontilhão, do Estádio Municipal e da construção do prédio do Banco do Brasil. Mundo Novo viu partir mais um de seus fotógrafos para seguir carreira em Jacobina. Napoleão Menezes chegou nesta cidade em meados dos anos 70, onde trabalhou como eletricista, sapateiro, marceneiro e conseguiu firmar o seu nome como fotógrafo. Montando o seu ponto de apoio na própria residência, o Foto Menezes, situada à Rua Miguel Calmon, Napoleão Menezes se notabilizou como fotógrafo de eventos e retratista. Demonstrava ser um fotógrafo ágil e criativo pelas cenas interessantes captadas em desfiles escolares nas ruas da cidade. Em meado dos anos 60, Juventino Rodrigues ensina a arte do seu ofício para os seus sobrinhos, Lindenício e Elieser Ribeiro, passando mais tarde para eles o seu ponto, Foto Bahia, criado quando ainda atuava na cidade de São Paulo. Lindenício Ribeiro, nascido em 1946, na Fazenda Caldeirão, município de Piritiba, chegou a Jacobina ainda garoto para estudar e foi criado por seu tio. Com este aprendeu desde cedo a manipular os equipamentos fotográficos e, graças à sua curiosidade, chegou a fazer suas primeiras fotos com cerca de treze anos de idade, iniciando na atividade ainda nos anos 60. Morou em São Paulo na
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mesma década e lá continuou exercendo a profissão. Ao retornar em princípio dos anos 70, assume o Foto Bahia, juntamente com seu irmão Elieser. Enquanto Elieser se aperfeiçoava na arte da retocagem, atividade mais presa ao estúdio, Lindenício atuava como fotógrafo de reportagem, o que lhe possibilitou produzir imagens da cidade e da sociedade em diversos momentos da história local. Apontando sua câmera para o conjunto arquitetônico, o tecido urbano e as diversas manifestações culturais de Jacobina, Lindenício se mostrou um verdadeiro amante tanto da fotografia como da cidade. Foi em princípio dos anos 90 que Elieser deixou Jacobina para ir morar em Feira de Santana, enquanto Lindenício, mantendo a mesma paixão pela arte fotográfica, instalou o Foto Ribeiro, primeiramente no antigo Mercado Municipal, mudando-se depois para a Avenida Orlando Oliveira Pires e, atualmente, no novo Mercado Municipal. Lindenício Ribeiro, hoje, é o mais antigo fotógrafo em exercício na cidade. Dos anos 80 para cá, a atividade fotográfica em Jacobina cresceu consideravelmente. Muitos fotógrafos surgiram preenchendo os espaços deixados pelos antigos, e assumindo novas ocupações na cidade. Neste período, surgem alguns “fotos”, ainda existentes na cidade como o Unifoto de Cloves Souza. Dos novos fotógrafos, poucos de fato conheceram de perto a experiência com a revelação manual. Com as inovações no campo da tecnologia dos laboratórios que foram surgindo na cidade, a procura pela fotografia colorida foi ganhando mais espaço. Atualmente, pelas facilidades das câmeras portáteis, o registro em preto e branco e a revelação manual deixaram de ser uma realidade dos fotógrafos. O preto e branco passou a ser sinônimo de fotografia artística, desenvolvida pelos fotógrafos
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profissionais ou os amantes dessa linguagem e a revelação manual, praticamente não existe mais entre os profissionais da área. Na trajetória da fotografia em Jacobina, desde os primórdios, com os itinerantes, passando pela fase de consolidação com a introdução dos “fotos” na cidade até à época contemporânea, com os novos fotógrafos e o advento das câmeras digitais, a cidade foi e continua sendo uma grande referência dos registros fotográficos. Isso nos possibilita dizer que, a história da cidade no século XX pode ser contemplada a partir das imagens produzidas pelas lentes desses cronistas visuais. Os fotógrafos, por isto tudo, se constituem enquanto espectadores privilegiados da cidade de Jacobina. Jacobina, outono de 2006.
NOTAS 1
O formato carte-de-visite ou cartão de visita surgiu na França em 1854 pelas mãos do fotógrafo industrial Disdéri. O modelo possuía o tamanho de 6x9, portanto mais barato, possibilitando um maior acesso da fotografia a diversas camadas sociais.
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“Formato de apresentação de fotografias sobre papel que surgiu na Inglaterra em 1866 como uma evolução do formato cartão de visita, tendo, portanto o mesmo tipo de apresentação, mas num tamanho maior, razão pela qual era dito de cabinet, de gabinete.” Enciclopédia Cultural Itaú: www.itaucultural.org.br.
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NARRATIVAS URBANAS I: a dramaticidade da luz Washington Drummond “Que uma realidade se esconda atrás das aparências, isso é, em suma, possível; que a linguagem possa restituí-la, seria ridículo de esperar”1. Por que a fotografia deveria ser confundida com o olhar numa crítica de uma exposição fotográfica2? Seria preciso que pacientemente nos afastássemos das analíticas da imagem que primam por identificar, sob uma matriz teórica redutora, instâncias que parecem cada vez mais independentes e autônomas (embora aproximações sejam possíveis!). De certa maneira, devemos registrar que essa teorização sobre a imagem (literária, fotográfica, pictórica, cinematográfica), salvo exceções muito particulares, está concentrada nas imagens maquinais e, estreitando a abordagem para dar uma força teórica maior, nas imagens fotográficas. É preciso evitar as análises que se apegam a uma semelhança entre imagem e “real”, tanto quanto o olhar se distancia da fotografia e essa do “real/referente”. Esse procedimento está sob “liberdade vigiada”, para que não caiamos num idealismo metafísico ou pior, no velho estruturalismo oriundo dos anos 70! A “autonomização” da imagem fotográfica que fundamenta essa crítica explicita sua condição objetual, tomando-a não como representação de algo, mas como algo que nos pensa paradoxalmente e produz uma espécie de rumor. Como escreveu Jean Baudrillard3, “Os objetos foram sempre considerados como um universo inerte e mudo. Mas para mim,
este universo tinha alguma coisa a dizer que ultrapassava seu uso” ou ainda em sua célebre frase “é o objeto que nos pensa” no sentido de nos impor questões que não formulamos. Para o sociólogo Henry-Pierre Jeudy4, “trata-se claramente de uma relação mágica que contém o reverso de nossas projeções” e para nos protegermos dos “eventuais sortilégios do objeto, nós o botamos no mundo”. Aplicaremos esse pensamento ao estudo fotográfico, pois a produção incessante de imagens-objetos do espaço urbano pode tanto suscitar suas estranhezas quanto concorrer para uma estetização e “espetacularização das cidades” cujo processo “é indissociável das novas estratégias de marketing”5. Essa busca da fotografia como objeto e aparição, como um evento mesmo, nos aproximaria das especulações artaudianas sobre o teatro anti-representacional6. O que queria o enlouquecido Antonin Artaud do seu teatro? Que depurasse sua dependência excessiva do texto, logo se tornasse um teatro da aparição, da apresentação e não-representacional, desviando-se de uma situação segunda. Não mais a posição humilhante de ser aquilo que fora projetado em outro lugar, submetido a um texto previamente escrito. Segundo essa utopia artística do drama, o teatro nos colocaria frente às novas possibilidades estéticas, preconizando uma região de sensibilidades convulsas. A própria palavra desenvolveria uma relação de imanência, como uma canção que remetesse a nada mais que sua própria sonoridade. Estamos num campo estético que fricciona com velhas concepções românticas (quiçá sob impactantes experiências ritualísticas selvagens – oníricas, toxicômanas, poéticas...), utilizadas por Artaud para devolver ao teatro a sinergia perdida: cheiro, som, movimento, cor. Seria incrivelmente irônico pensar a teoria teatral de Artaud como uma revanche do próprio teatro ao seu destino verbalista, ainda em vigor no início século XX. 22
Do mesmo modo, podemos nos fazer de “cavalo-de-santo”7 da fotografia em sua própria revanche ao anátema que lhe impuseram como espelhamento da verdade, do real, um momento secundário de outro mais sublime. Deixemos que a imagem fotográfica se imponha enquanto singularidade, alteridade objetual, distante de sua sujeição ao “real”, enquanto exposição de uma beleza única e espantosa. Embora fatalmente associada à sua iconicidade, como nos diz Roland Barthes, aqui buscamos o inverso, distanciando-nos do crítico francês e reclamando para a fotografia sua situação de primeiridade. É esse deslocamento teórico que pode incitar uma discussão ainda interessante do ato fotográfico, de sua produção objetual e sua produção teórica. Seria terrível uma vingança das imagens fotográficas, já que elas nunca nos pertencem, mas nos assombram em sua ilusão perversa. Como os espelhos borgeanos se assemelham às cópulas, duplicando as formas. Um dos caminhos dessa efetiva fruição das imagens por elas mesmas, seria uma abordagem da fotografia como “aparição”, ao mesmo tempo intempestiva e histórica. Lembremos da confissão nietzschiana, “Creio que todos nós padecemos de uma febre histórica devoradora”8, que nos faz apelar para uma distinção entre as definições históricas postas nas “Considerações intempestivas”. Para Nietzsche, “A possibilidade de esquecer, ou para dizer em termos mais sábios, a faculdade de se sentir por um tempo fora da história”9 deve ser almejada, pois só o homem que escapa dessa grade impositiva da história potencializaria a vida, desejando-a de outras formas. Nietzsche e Artaud encontram-se. Outrossim, a triste máquina nominalista foucaultiana não procuraria se articular contra uma história que se ancora em universais históricos? Enquanto o procedimento historiográfico
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hegemônico entende os objetos históricos (seja o sujeito, uma cidade, ou uma fotografia!) como uma permanência através dos tempos, dada sua obsessão fatal pela origem, um nominalismo histórico entenderia que “atrás das coisas há algo essencialmente diferente: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo de que elas são sem essência ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas”10, devendo ser compreendidos enquanto aparição precária e circunstancial. A análise fotográfica deveria então vacilar entre o evento e sua historicidade, a imagem mesma e um possível “real” representado, e o signo e sua referência. Uma zona de apreensão liminar, que aborda a imagem em sua incompletude e provisoriedade conseqüência direta de uma compreensão do real como devir infinitamente mais rico que qualquer representação. Partimos da idéia de que não existe linguagem fotográfica (é quase um truísmo dizermos isso!), senão como metáfora. Do contrário, estaríamos impingindo as circunstâncias do campo discursivo ao visual. A imagem é avessa ao ato da leitura! A sua forma irônica nos incita para essa zona desconhecida, amorfa, instando uma teoria de aprovação inconcussa das aparências, muito próxima das filosofias trágicas de Baltasar Gracián e Nietzsche. Perspectiva de profundo apego às superfícies de abandono induzido às aparências, oriundo das formas encantatórias e trágicas. Frente ao gênio maligno do aparente, entregar-se mais ao aparecer, como o efeito de iludir, do que ser. É do mestre jesuíta um primoroso aforismo do seu “Oráculo manual”11, “As coisas não passam pelo que são, mas pelo que parecem. Raros são os que olham por dentro e muitos os que se contentam com as aparências”. E é a aparência fotográfica que deve nos guiar para a exposição Arte e
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Cidade – Narrativas Urbanas. Não perseguiremos a cidade que nos foi representada por essas imagens e que nos fugiu, mas a aparição ilusionista, fruto do jogo trágico. Jogo criminal, de morte. A foto como um crime. Na “Pequena história da fotografia” (1931) do escritor alemão Walter Benjamin12 há uma análise do fotógrafo Eugene Atget. Suas fotos ambicionavam retratar e postergar a vieux Paris em preto-e-branco, desentranhando no início do século XX uma Paris que, para ele, não deveria morrer ou pelo menos deveria ter seu êxtase respeitosamente registrado num rito fúnebre. Ora, os novos temas buscados pelo velho fotógrafo eram “as coisas perdidas e transviadas” que transformariam suas imagens parisienses em “precursoras da fotografia surrealista”. Todos esses lugares estão como que abandonados, as imagens das escadas, dos pátios, dos terraços, das praças e pontes estão magnificamente vazias, pois “nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como uma casa que ainda não encontrou moradores”. Ao findar o ensaio, Benjamin nos lega um curioso comentário: “as fotos de Atget foram comparadas ao local de um crime. Mas existe em nossas cidades um só recanto que não seja o local de um crime?”. Na trilha das reflexões benjaminianas, a escritora americana Susan Sontag13, no livro “Ensaios sobre a fotografia”, desenvolve de maneira sofisticada as reflexões de Benjamin sobre a fotografia. Sontag afirma que “a fotografia primeiramente consolida-se como extensão do olho do flaneur”. O fotógrafo, como herói urbano, devassa a cidade a pé, recusando-se a vê-la como todos. No traçado urbano, ele como andarilho diminui o passo, ou acelera, procura as margens das vias urbanas, corta avenidas, arrisca a errância. Espécie
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de “versão armada do caminhante solitário”, é atraído pelo que escapa à inexorabilidade do moderno, e “apreende tal como o detetive captura o criminoso”, utilizando sua câmera. Essa relação com a morte, com a tragicidade do ato fotográfico, (que além de Benjamin e Sontag, não estaria também em Barthes e Baudrillard?) deve ser relacionada com as exéquias do “real” e de sua representação como verossimilhança. Só nos resta delinqüir! Que os fotógrafos inventariem essa modalidade criminosa e os críticos e ensaístas arrisquem sua taxionomia. Sejamos criminosos!
“Uma imagem, é justamente uma abstração do mundo em duas dimensões, é o que tira uma dimensão do mundo real, e por isso mesmo, inaugura a potência da ilusão.”14 Narrativas Urbanas é a mais nova exposição de um trio de fotógrafos do interior do Estado da Bahia. Amigos, de muito tempo, desenvolvem uma intensa pesquisa imagética, alimentada por uma troca intensa de experiências que cobrem questões teóricas e técnicas do fazer fotográfico. Valter de Oliveira, Fábio Carvalho e Normando Neto, moradores na cidade de Jacobina, em companhia dos pintores Cícero Matos e Almaques, nos surpreendem com impactantes imagens dessa pequena e acolhedora cidade sertaneja. Tanto os fotógrafos quanto os pintores já realizaram outras exposições em que o foco temático também recaía sobre a cidade. Podemos dizer que, para eles, Jacobina é quase uma obsessão e que suas imagens produzem uma tensão entre familiaridade e estranheza.
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Uma obsessão parecida move o escritor surrealista, André Breton, em seu livro “Nadja”15, a percorrer as ruas de Paris. Numa errática perseguição a uma mulher, tão misteriosa quanto a cidade que não se deixa revelar, atravessa uma forêts de symboles16: dos cartazes publicitários aos objetos do mercado de pulgas, dos transeuntes aos boulevares e parques assombrados. O cotidiano urbano propiciava, como a todos os surrealistas, iluminações profanas na busca dessa mulher evanescente. A 1° de dezembro de 1926, ele recebe de Nadja um bilhete que dizia “Amo a vida – amo a rua”. Fascinado, Breton escreve “Ela gostava apenas de estar na rua, para ela, o único campo de experiência válido”17. Encontros inexplicáveis e passeios lúgubres, traçam uma cartografia apaixonada das ruas parisiense. As imagens produzidas por máquinas digitais, durante todo um ano, para a exposição Narrativas Urbanas apontam também para uma perseguição cuidadosa, num movimento de forte dramaticidade. Deambulando por ruas, explorando ângulos inusitados, inquirindo esquinas, o que querem esses estetas da aparência? Qual é a Nadja misteriosa que esses jovens fotógrafos perseguem tão obstinadamente quanto os surrealistas? Parece-nos que é a luz brilhante de Jacobina. Plasmada em imagens que arcoirizam uma cidade de lugar nenhum, urbe “narrada” por desenhos e grafismos aleatórios, riscos de luz. Pura aparição. Dança luminosa e hipnótica que, se em alguns momentos, apresenta uma urbanidade colorida, por outros a desconstrói violentamente. São transeuntes decompostos, ruas sobrepostas, riscos de movimentos, ambiências etéreas. Espelhamentos, sinais descoloridos, liras e anjos humanizados, homens petrificados. Explosões luminares, borrões fantasmáticos, muros informes. Algumas dessas imagens
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digitais se deixaram manipular: roubaram suas cores, lhes impuseram tons, adiantando na máquina o que antes estava relegado ao processo de impressão. Surge a figura do criminoso, do fotógrafo que volta sempre ao local do crime, que subtrai algo do real, e em troca nos devolve ao mundo da ilusão. O fotógrafo elide o real em favor das aparências, amante das superfícies, caprichoso e obcecado ao ponto de não vacilar em cometer sempre mais um crime. Entretanto, não somos carpideiras do “real”, entregues ao jogo das aparências, celebramos as superfícies e tentamos ouvir o burburinho desses objetosimagens. (Nós fomos colonizados pela rica imaginária barroca, pela acintosa dramaticidade plástica de nossas igrejas, pelos anjos e homens disformes do mestre Aleijadinho, pelos aforismos de Gracián e as poderosas e políticas imagens-movimento glauberianas!) Ao falar da força imagética dos seus filmes, Glauber Rocha diz que “expressa os mitos mais profundos do povo latino-americano, herdados da cultura negra, da cultura índia, das imagens, da imaginação visual, da arquitetura, dos trajes, da escultura popular”18. Aceitamos de bom grado as vertigens do aparente, como num jogo perverso. Pois, é esse jogo de morte, oscilante entre uma estética da aparição e uma estética do desaparecimento, que nos arrasta, sem defesas, para dentro de uma cidade sem nome. Cidade-luz. Outra característica marcante das trinta imagens dessa exposição é uma espécie de didatismo fotográfico que revela o nível informacional do grupo. Como se tivessem preparado uma pequena história da fotografia de cidade, todos os grandes foram citados: Atget, Brassai, Doisneau, Verger, Ferrez, Primo, Cravo Neto. Assim como as principais modalidades estilísticas dessa tópica fotográfica: dos clichês aos momentos mais inventivos,
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dos detalhamentos aos planos gerais, da arquitetura aos passantes, do figurativismo ao abstrato, das novíssimas experiências com máquinas digitais às manipulações computadorizadas – demonstração irrecusável de virtuosismo. Esse labirinto de citações não nomeadas, de formas rebuscadas e variadas, de misturas de técnicas, entre outras características, os situaria nos limites formais de uma arte de inspiração barroca – onde o regime de citações subentende que o público é apto para identificá-las. Eugene D'Ors, em seu livro “Du Barroque”, escreve que é o “Classicismo, linguagem da unidade, linguagem da eterna Roma ideal” enquanto o “Barroquismo, espírito e estilo da dispersão, arquétipo das manifestações polimorfas” representado pela cidade de Babel19. Esse percurso estético, das Narrativas Urbanas, se coloca como abertura ou impasse, a depender de como esses artistas sobreviverão às vicissitudes da arte contemporânea, caracterizada por um processo excessivo de historicização. As advertências de Nietzsche podem ser fecundas para quem se dispuser a ouvi-las. As várias tendências da fotografia urbana foram distribuídas com eqüidade entre os fotógrafos. Numa visada rápida, salta aos olhos o exercício de cada um deles em imagens de detalhes arquitetônicos, imagens de transeuntes em preto-e-branco, imagens abstratas, e dois deles, em imagens de espelhamento. Isso possibilita ao público revisitar esses temas constituídos pela singularidade dos artistas e deliciar-se com os arranjos estéticos obtidos. Comparam-lhes as opções formais, os enquadramentos, as paletas utilizadas. A montagem dessas imagens-objetos na forma-livro ou na forma-exposição, proporciona uma imersão nessa cidade-“aparição”, como numa imaginária apresentação artaurdiana, que menos do
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que “narrar”, irá sugerir uma ambiência visual, sensória, sinérgica. Brilhos, cores, raios e riscos, reverberações. Espaços, lugares, superfícies. Finalmente, abordaremos as fotos por autor, analisando as variações que singularizam e enriquecem cada bloco de fotos, editando urbanidades pontuais. Normando Neto é o mais atento para as questões sociais e foi quem produziu as imagens mais comoventes. Embora, estas não sejam as de denúncia das mazelas ecológicas ou habitacionais, seja no sem-teto com os pés descobertos ou a imponente ponte projetada no rio pútrido se assemelhando a ele. As mais poéticas foram as que exercem uma espécie de torção seguida de uma angulação da paisagem urbana (“Vale do luar” e “Alguns degraus para trás”), com uma nesga de céu de tons de azul sublime. Numa delas, uma grande borboleta branca irrompe reverberando em outras mais brilhantes, noutra o azul esgarçado parece querer escapar das fotos pelas pontas. Finalmente, a paisagem do firmamento gris, vencendo o parco azul, enquanto ameaça um solitário e viril poste flamejante (“Cai(s) à tarde”). Neto parece se especializar nessa comoção expressionista da paisagem. Desde a última exposição, flagramos uma leve curvatura das formas numa foto que adquirimos de sua autoria. O horizonte curvo ainda surge numa imagem dupla de doce desolação (“Pan”): deslizando fugidio sobre fios da iluminação – um carro célere o persegue; ou, perdendo a cor, num branco vivo que suprime a torre da igreja. Fábio Carvalho forja suas fotos engendrando cores em que a luminosidade é quase sempre detonada. Ele desenvolveu uma técnica pessoal para daí tirar os melhores e mais
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surpreendentes efeitos. Uma das imagens (“Psicfotosurbanos 10”) atrai imediatamente nosso olhar. É um abstrato perfeito em seus tons pastosos do vermelho escuro ao marrom, com alguns pontos carmíneos, atravessados por uma ondulação em amarelo. Nessa via urbana desmaterializada, manchas mimetizam figuras, traçam orixás em plena dança, projetam sombras fantasmáticas numa pequena sinfonia colorida. Entretanto, é uma das fotos duplas (“Psicfotosurbanos 8”) que se distingue do conjunto exposto. São imagens únicas da exposição, fruto da ousadia do artista, que tiveram o mesmo tratamento explosivo das coloridas, medrando uma miríade de tons entre o branco e o negro. No díptico indicado há uma balaustrada que é puro lume, se desfazendo, sobrevoada por ganchos pendurados em arames-luz. Ao fundo grades blade-runner. A outra foto-irmã, perfurada por um cordão consistente, lembra uma corrosão molecular num equipamento urbano monstruoso. As duas fotos juntas prenunciam hecatombes nucleares em que zonas antes habitadas sobreviveriam em detrimentos dos seus cidadãos. Visão futurista que preconiza uma ambiência pós-cidade. Valter de Oliveira foi quem mais radicalizou na decomposição colorida da cidade, empreendendo uma estética da “desaparição”. Talvez tenha demonstrado mais acuradamente a dualidade construção/destruição. Fez surgir, num processo progressivo de decantação colorida da realidade, imagens de força trágica. Três de suas fotos contam essa estória de desaparecimento da cidade: na primeira delas (“Fantasia”), uma praça cujo piso é formado de paralelepípedos dispostos concentricamente, apresenta uma fogueira de cordões coloridos duplos em vermelho, azul, amarelo e branco. Alguns têm as pontas fosforescentes que desabam sobre o chão ao fundo de um céu negro. A segunda da série
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(“Passeio na Matriz”) é a mesma fogueira em cor, espargida no retângulo, agora transformada em flor vermelha (no alto e ao centro uma outra flor, mais compacta se insinua). Os cordões se arrumaram numa forma orgânica, botânica, multiplicaram-se, forçaram dobraduras. A última da série (“Dança”) é puro desvario. Os fios amarelos se precipitam, asfixiaram a flor rubra, e vibram. Fitas brancas, ondulares, avançam rápidas, belas bordas, ameaçadoramente contra os espectadores incautos. Nenhuma lembrança de urbanidade. Os três fotógrafos das Narrativas Urbanas imprimem em suas imagens uma dramaticidade insuspeita, não apenas pelo uso teatral da luz, mas em algum lugar as imagens urbanas reclamam, numa algaravia agônica, uma nova ordem ou mesmo seu termo. Advinham o que o tempo reserva para as cidades...
Paris, 15 de setembro de 2006
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CIORAN. E. M. Syllogismes de l'amertume. Paris: Gallimard , 1987. (Col. Folio/ Essais). p. 19. Todas as traduções foram feitas pelo autor e por Lívia Laene O. dos S. Drummond. As fotos foram enviadas pela Internet e analisadas na tela de um notebook, resolução 1024x768 pixels. BAUDRILLARD, Jean. Mots de passe. Paris: Pauvert, 2000. p.15. JEUDY, Henry-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. p.47. JACQUES, Paola Berenstein. Prefácio. In: JEUDY, Henry-Pierre. Ibidem, p.9. ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Tradução Teixeira Coelho; revisão da tradução Mônica Stahel. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Col. Tópicos). Expressão utilizada na religião afro-brasileira que designa o indivíduo que “recebe” o orixá. NIETZSCHE, Friedrich. Considérations inatctuelles 1 et 2. France: Aubier, 1979. p.199. Ibidem, p.205. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: _____. Microfísica do Poder. Organizador Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p.17. GRACIÁN, Baltasar. A arte da prudência. São Paulo: Martin Claret, 2004. p.61. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.100-102. SONTAG, Susan. Objetos de melancolia. In: Ensaios sobre a fotografia. Trad. Joaquim Paiva. Rio de Janeiro: Arbor, 1981. p.70. BAUDRILARD, Jean. Le complot de l'art. Paris: Sens & Tonka, 2005. p.41. BRETON, André. Nadja. Paris: Gallimard, 1991. “O homem aí passa através de florestas de símbolos / que o observam com olhares familiares”. BAUDELAIRE, Charles. Correspondances. In: _____. Les Fleurs de Mal. Paris: Le livre de Poche, 1999. p.55. HUBERT, Étienne-Alain et BERNIER, Philippe. Un livre “battant comme une porte”. Étude du texte. In: BRETON, André. Nadja. Connaissance d'une oeuvre. Paris: Bréal, 2002. p.50. ROCHA, Eryk. Rocha que voa. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. p.83. D'ORS, Eugenio. Du Baroque. Paris: Galimard, 1935. p.95-96. O esteta espanhol utiliza o conceito de barroco de forma extensa, uma tipologia arbitrária, fazendo do classicismo/barroco constantes estéticas. Criticado por nominalistas que almejam um conceito mais rigoroso do Barroco e esquecem que o importante é explicitar os pressupostos conceituais quando do seu uso.
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NARRATIVAS URBANAS II / DELÍRIO TRÁGICO: foto-desenho, cidade e utopia Washington Drummond “Qualquer que seja a grande cidade onde o acaso me leve, eu admiro que ele não desencadeie todos os dias levantes, massacres, carnificinas, uma desordem do fim do mundo. Como, sobre um espaço tão reduzido, tantos homens podem coexistir sem se destruir, sem se odiar mortalmente?”1 O simbolismo, enquanto movimento literário, definiu-se no final do século XIX a partir de um poema de Charles Baudelaire, “Correspondências”, considerado emblemático do movimento. O texto clássico que servira para a fundamentação do poema de Baudelaire é de autoria de Swendenborg, escritor e místico sueco, publicado em 1752, com o título de Arcana Coelestia. O swendenborgismo, que já era seguido pelos movimentos românticos, pode ser definido como uma dualidade correspondente entre as coisas abstratas, que habitariam o mundo interno individual, e objetos concretos e externos, preconizando uma interação entre exterior/interior, numa projeção do mundo subjetivo no objetivo. Essa relação sacra, entre a centralidade do eu e a realidade natural exterior, como sua própria extensão, definiria a lírica romântica. Entretanto, com o simbolismo (estetização de um mundo moderno, capitalista e urbano), é a cidade que se coloca agora como instância denotadora da imediaticidade das novas modelações estético-existenciais. Acreditamos que às correspondências swendeborguianas, ainda marcadas pela idéia de natureza como estância divina, os simbolistas proporiam uma natureza urbana, fazendo com que essa
teofania se antropologizasse, apreendendo o cotidiano das cidades modernas, como que sintonizada com o mundo mágico interior dos novos citadinos. Aqui aproximamos a noção de simbolismo aos estudos urbanos contemporâneos. As utopias espaciais contemporâneas fundiram-se, por vezes com simbolismos de vários matizes. Entendo-as como projeções imaginárias, por vezes sensivelmente oníricas, que encantam de algum modo misterioso as cidades que habitamos. Segundo Franco Borsi2, em seu comentário sobre “A cidade do sol”, o imaginário arquitetural instaura entre o “real”, o “ideal” e o “utópico” uma outra dimensão, o “virtual”: “uma imagem que não existe, mas poderia existir, homóloga do real”. As utopias do século XIX, ainda segundo o autor, seriam “uma forma de utopia dramática e de justiça social” preocupadas com o “desequilíbrio social, a injustiça e a diferença abissal entre as classes”. As explicações históricas por vezes (ainda o velho Nietzsche!) nos arma algumas arapucas, procuraremos chegar às imagens simbólicas das cidades por vias vicinais. Inicialmente Cioran3, que além da epígrafe, escreve em “História e utopia”, que é “mais fácil fabricar uma utopia que um apocalipse”, pois a primeira, ao se combinar “melhor aos nossos instintos profundos, deu nascimento a uma literatura mais abundante que a segunda”. Depois, um belo aforismo de Gracián, do mesmo “Oráculo manual”, em que o jesuíta espanhol escreve que “toda beleza requer ajuda. A perfeição se transforma em barbárie quando não é enobrecida pelo artifício. [...] A natureza costuma nos deixar quando mais precisamos dela; recorramos à arte”4 . É através do simbolismo que o artifício se plasma nessas imagens das Narrativas Urbanas: Delírio Trágico, produzidas pelo artista Alan Sampaio. Elas estão muito perto das utopias
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simbólicas literárias de Charles Baudelaire e, principalmente, de Arthur Rimbaud, ou das vanguardas estéticas históricas, destacando-se os desenhos arquitetônicos, de forte acentuação poética e onírica, do expressionista Bruno Taut. No cinema, as imagens de Alan Sampaio surgem simultâneas ao filme do diretor Richard Linklater, A Scanner Darkly. Este filme tenta, assim como Delírio Trágico, uma nova visualidade. Atores reais são redesenhados e imersos em cenários virtuais, recompondo imagens que lembram os quadrinhos. Em ambos os trabalhos as imagens se fundem e ao mesmo tempo preservam sua individualidade, mantendo o que nos parece mais importante, a delicadeza do traço, o imaginário do desenho (animado ou não).
“A arte tornou-se iconoclasta. A iconoclastia moderna não consiste mais em quebrar as imagens, mas fabricar imagens, numa profusão de imagens onde não há nada para ver.”5 Se, nas palavras de Baudrillard, a iconoclastia das imagens contemporâneas consiste na produção de imagens nas quais não há nada para ser visto, nos parece que a intenção da exposição Narrativas Urbanas: Delírio Trágico consiste em devolver às imagens seu encantamento, seu efeito de ilusão. Pois, não é isso que buscamos nelas? Para Baudrillard, seria um crime ir contra a ilusão do mundo “quer dizer, contra sua incerteza radical, sua dualidade, seu antagonismo – tudo isto que faz que haja destino, conflito, morte”6. Seria essa a tragicidade dessas imagens delicadas, riscadas, traçadas pela pena fina e tinta nanquim? Recompor um sonho triste de uma cidade, resignificada, em que um plano simbólico se
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sobrepõe a um outro, a uma outra superfície: a fotografia. O engenho desse artista, talvez seja, ao sobrepor, artifício ao artifício, lançar à morte os desígnios ignominiosos da imagem em sua opacidade contemporânea. Assim, irrompe um “bestiário” aquático, de enguias que devassam o céu, o colorem, entre máscaras e lagartos. As sinuosidades carmins ondulam como um mar íntimo e preenchem o descampado céu. Ou mesmo, desabam dele mascaradas de chuva. Traçam rotas, numa ameaça sempre esperada e velada. O delírio é ferencziano. A operação simbólica (troca?!) evoca um meio aquático em que o ambiente, não mais sendo o ventre feminino, transmuta-se em meio urbano. Restitui-se a ilusão fundamental do mundo, das aparências, emprenhando-as de conflito. A imagem da rua cheia de mistério é um caso à parte. Nela as cores combinam tons avermelhados para compor uma cena noir. Da noite perigosa escapam as luzes da janela semi-aberta, dos postes em síncope, da parede que as rebate. Tudo se arma para a cena de um crime: a crueldade trágica da dualidade. A figura barroca do trompe l'oeil cria uma zona urbana imprecisa, dual entre a aparição fotográfica e a aparição do desenho. Entre o fotograma cinematográfico e o desenho da revista em quadrinho. Entre o delírio de uma elite estética e o desvario da cultura popular nordestina7. Adentramos, outra vez, na pregnância trágica da imagem.
Paris, 26 de setembro de 2006.
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CIORAN, E. M. Histoire et utopie. Paris: Gallimard, 1990. p.103. BROSI, Franco. Architecture et utopie. Paris: Hazan, 1997. p.31, 43. CIORAN, E.M. Ibidem, p.105. GRACIÁN, Baltasar. A arte da prudência. São Paulo: Martin Claret, 2004. p.29. BAUDRILLARD, Jean. Le complot de l'art. Paris: Sens & Tonka, 2005. p. 51. Ibidem, p. 41. Numa entrevista, em Cuba, Glauber Rocha disse: “Meu estilo de filmar está totalmente ligado à cultura popular brasileira, aos símbolos. O que consideramos símbolo e alegorias não são abstrações, são expressões diretas de elementos da cultura popular”. ROCHA, Eryk (org). Rocha que voa. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. p.83.
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UMA HISTÓRIA INVISÍVEL: outras leituras da cidade de Jacobina Luiz Henrique dos Santos Blume Mais do que oportuna, a exposição do “Tríptico”, de autoria de Alan Sampaio e Washington Drummond, pesquisadores e professores da UNEB, Campus IV - Jacobina, revela traços da cultura urbana, trazendo à tona experiências e trajetórias de sujeitos “invisíveis”, mas presentes no cotidiano desta cidade, localizada no Piemonte da Chapada Diamantina. Estes dois pesquisadores, com a sensibilidade dos poetas surrealistas, situacionistas, trazem ao público imagens importantes para construirmos outras leituras desta que em tempos não muito antigos foi uma das cidades mais ricas e afortunadas da Bahia. Conforme Vanicléia Silva Santos1, na década de 1920-30, novos elementos foram incorporados à cidade. Diante dos novos ideais de “civilidade”, surgiram o cinema, o trem, a luz elétrica, a Micarême, as Jazz-bands, as modificações no espaço urbano. Para que a cidade se apresente em sua diversidade, a percepção urbana é condição indispensável. Outros hábitos, outras formas de viver, outras dimensões do cotidiano devem ser perscrutadas, fazendo emergir vozes adormecidas, soterradas, lavradas no esteio dos veios auríferos que fizeram de Jacobina a “cidade do ouro”. Os hábitos urbanos das camadas populares quase nunca são tratados em sua potencialidade e dimensão históricas. Dessa forma, é preciso tecer uma crítica, ainda que inicial, às representações sobre os “sujeitos” e “personagens” invisíveis no cenário urbano. Buscando apresentar uma problematização para o estudo da cidade de Jacobina e, dessa forma, construir múltiplas
leituras dessa memória da modernidade no sertão baiano, as fotos do “Tríptico” revelam outros traços urbanos. Em minhas lembranças de Jacobina, (re)vejo os lugares ou territórios onde minha vivência se fez presente. As imagens do “Tríptico” chamam a atenção não pelo que revelam em primeiro plano, mas pelo gesto que desvela traços de uma cultura urbana, apressada, violenta, excludente, num plano em negativo da auto-representação da cidade. Sobretudo, revelam o “sonho daqueles que não se sentem cidadãos” ou apenas cidadãos de papel. Esses personagens expressam-se através dos grafites e inscrições paretais quase despercebidas do cenário urbano. Dessa forma, o painel “Tríptico” traz para os leitores dessa exposição a invisibilidade de experiências urbanas contemporâneas. Retomando Walter Benjamin2, estas imagens denunciam nossa incapacidade de trocarmos pela palavra experiências vividas. As imagens do “Tríptico” apresentam-nos opacidades reconstruídas na experiência dos autores, instantâneos vivenciados enquanto moradores e pesquisadores atentos das experimentações culturais urbanas. É preciso causar um estranhamento ao olho acostumado à figuração realista cotidiana, para dessa forma construir imagens antitéticas de uma cidade que não se apresenta imediatamente revelada em suas marginalizações ou rotas de fuga. Nesse sentido, as imagens do “Tríptico” demandam criar outras perspectivas para os observadores acostumados à ordem rotineira da cidade. Na impossibilidade de percebê-la numa identidade única, as imagens de “Tríptico” colocam em xeque a uniformidade dos olhares sobre a cidade de Jacobina. A montagem das imagens, reelaboradas digitalmente, apresenta aos olhos daqueles acostumados à fotografia como uma “realidade de segunda 40
mão”, uma inverossimilhança, um estranhamento e, por isso, um desvio das imagens cotidianas. Conforme Win Wenders, “As cidades podem trazer em si sua história, e mostrá-la, podem torná-la visível ou ocultá-la.”3 Imagem e Cidade não são conceitos fixos e só se pode observá-los quando os relacionamos ao movimento – the movies. Logo, imagem e cidade só podem ser compreendidas enquanto colocadas em movimento. Este pode ser entendido, também, enquanto a contraposição das imagens em claro/escuro, obliterando nossa percepção natural do tempo. Nas imagens do “Tríptico”, nosso olhar estranha a dimensão temporal: não sabemos se é dia ou noite, pois apresentam texturas frias/escuras que não nos permitem um olhar natural, mas claramente indicam a intencionalidade na sua construção. As imagens dispostas deste modo chamam-nos a atenção para as rupturas em zonas onde o cotidiano e a regularidade poderiam, na fotografia realista, apresentar-se num continuum da História. Assim como o cinema, captam o olhar do movimento, as transformações nas paisagens urbanas e a convivência de múltiplas temporalidades e culturas, inserindo essas mudanças na perspectiva de imagens desnaturalizadas. Ainda assim, é preciso pensar a cidade de Jacobina na perspectiva de buscar outras narrativas. Prosseguindo à leitura das imagens que compõem o “Tríptico”, encontramos referências na experimentação do fotógrafo surrealista Eugène Atget. Fotógrafo que viveu em Paris e tentou desmascarar a realidade de seu tempo. Drummond e Sampaio, influenciados por esse fotógrafo, buscam nas coisas perdidas, como imagens de grafites e inscrições em muros da cidade, outros textos para a leitura da cidade. Arantes arremata nossa percepção dessas narrativas dos sujeitos e das histórias invisíveis: “caminhar pela cidade é decifrar aos poucos, e pelo movimento, um palimpsesto”4. Tecer um discurso sobre a cidade de Jacobina 41
por vários textos, eis a contribuição do painel “Tríptico”. Ver a cidade de Jacobina pelas imagens de pichações e inscrições em muros é buscar pontos de fuga na realidade cotidiana que aparentemente apresenta uma uniformidade no olhar e na própria história e identidade da cidade. A perspectiva de descobrir a cidade por via da construção de territórios de sobrevivência e de resistência das camadas pobres da população e vai de encontro ao que Certeau5 chama de “um retorno às práticas”. Arantes propõe uma retomada de perspectiva do estudo da cidade, entendendo-a como carregada de zonas de turbulência, ou liminaridades. É nessa perspectiva que procurarei dialogar com a terceira imagem/montagem do “Tríptico”. Ao trazer para a coletânea de imagens restos e retalhos de manifestações escritas na forma de pichações, inscrições em muros, sobrepostas, os pesquisadores também se colocam em diálogo com os sujeitos marginalizados, invisíveis, mas presentes no cotidiano de Jacobina. Tratando de estabelecer uma comunicação no campo verbal, tais sujeitos as experimentam no único lugar possível, já que os meios de comunicação modernos, tanto os jornais locais, quanto as rádios FM e AM não lhe proporcionam uma possibilidade de se expressarem. Podemos observar diferenças culturalmente situadas, numa condição em que os pesquisadores retiram da experiência desses grupos possibilidades de contestação. Num diálogo entre os autores-fotógrafos-pesquisadores e os sujeitos das pichações e inscrições, personagens anônimos da cultura urbana, seria possível estabelecer outras leituras desses conflitos cotidianos pela sobrevivência e, porque não, desejos de expressão contrários à
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ordem dominante. As pichações e inscrições parietais são formas de expressão e cultura urbanas desde a Antiguidade Clássica6. A maior parte dos grafites é anônima, mas seu caráter público quebra a hegemonia dos meios de comunicação social por parte das elites e impossibilita qualquer tipo de censura. O grafite, enquanto manifestação artística, exprime-se em três níveis: verbal, fônico e visual. Quanto ao sentido das palavras, cabe distinguir alterações na morfologia e na sintaxe. O grafite popular diferenciou-se, desde o início, por um caráter coletivo, variando de temas políticos, sentimentais, até ironias e insultos. Na relação posta entre o autor-sujeito, o “lugar” onde o discurso é produzido é relevante, mais evidente quando o discurso histórico questiona o “sujeito” que o produziu. Dessa maneira, as imagens do “Tríptico” trazem questões fundamentais para nossa reflexão. A cidade surge na fotografia contemporânea como lugar de experimentação a ser confrontada, desmontada para, somente depois, representar as diversas experiências que se cruzam e constituem as lutas cotidianas pelo ordinário, pela sobrevivência, pela continuidade da própria existência, pois mostram a (in)capacidade da cidade poder comunicar as experiências dos sujeitos. O quadro “Tríptico” apresenta escrituras urbanas contemporâneas, dando lugar a novas expressões estéticas e políticas até então marginalizadas. Robson Rios de Souza, um dos personagens em questão, procura apresentar suas queixas em forma de avisos à cidade. Sofrendo transtornos mentais, o jovem perambula pela cidade, escrevendo nos muros. Suas mensagens quase sempre abordam a temática de sofrimento. 43
Ao que parece, após a morte de sua mãe, vive abandonado pelas ruas de Jacobina, quando então começou a inscrever em muros os “avisos”. Estas frases manifestam o sofrimento de uma pessoa com transtornos mentais, mas que não se resignou e luta pela vida. Interessante ainda notar que, entre as demandas pertinentes ao seu transtorno mental, Robson questiona o fato da cidade de Jacobina não ter inaugurado um hospital até aquele momento: “aviso eu só quero ver o 'dotor' Rui prefeito vai construir o hospital Santa Casa de Misericórdia”. Estas formas de expressão de Robson Rios de Souza colocam em xeque o cotidiano e a normalidade da cidade, pois se tratam de demandas de um sujeito conhecido por todos por ser um alienado social. Ora, além das escrituras de Robson, as imagens do “Tríptico” trazem para o centro da questão experimentações urbanas alijadas das instituições culturais formalmente constituídas na cidade, tais como a Biblioteca Pública Municipal, o Centro Cultural, o Arquivo Público Municipal de Jacobina, a Universidade do Estado da Bahia, entre outras. Na imagem com expressões do hip hop, os autores colocam Jacobina num circuito cultural mundial, religando e novamente desconstruindo imagens realistas de uma cidade. Assim, o hip hop, movimento artístico e cultural de jovens da periferia de Jacobina, é alçado à condição de portador de uma insatisfação dos jovens pobres, que fazem uso dessa forma de expressão para expor suas demandas. Tais questões remetem ainda ao fato de que esses jovens constantemente são forçados a migrar em direção a outros centros urbanos, menos estratificados e marcados por abissais diferenças de classe. Parafraseando Benjamin, “só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a 44
psicanálise revela o inconsciente pulsional”7. Assim, Alan Sampaio e Washington Drummond podem revelar sonhos adormecidos de uma experiência que se tornou marginal, invisível. Nesse sentido, constroem um “palimpsesto”, um texto situado entre citações, dialogando com experiências sensíveis, numa tensão interna de elementos da cultura popular e outras culturas. Tecendo outras tramas, nas suas imagens inscrevem uma escritura urbana desconhecida ou ignorada, das classes populares, da juventude, engajada ou não, manifestando-se através do movimento hip-hop, e mesmo do vazio de experiências que trazem das imagens da cidade de Jacobina. Ainda assim, cabe-nos um “aviso”: a cidade permanece sob o ângulo do poder e dos dominantes, pois, conforme sentenciou Walter Benjamin, “todo documento da cultura é um monumento de barbárie”8. O painel “Tríptico” pode ser uma inspiração para outras transgressões e digressões ao cotidiano da cidade de Jacobina. NOTAS 1
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SANTOS, Vanicléia Silva. Sons, danças e ritmos: a Micareta de Jacobina/Bahia (1920-1950). (Dissertação) Mestrado em História Social. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em História da PUC/SP, 2001. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolau Leskov. In: Os pensadores. Vol. XLVIII. p. 63-82. São Paulo: Abril Cultural, 1975. WENDERS, Win. A Paisagem Urbana. Trad. de Mauricio Santana Dias. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1994. p.187 ARANTES, Antonio Augusto. A guerra dos lugares: mapeando zonas de turbulência. In: Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. São Paulo/Campinas: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Editora da Unicamp, 2000. p.121. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: as artes de fazer. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996. FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Cultura popular na Antiguidade Clássica. São Paulo: Contexto, 1989. BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: ____. Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. 10. reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1996. p.94.
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O PAPAGAISMO NA PINTURA Adriano Menezes Fazendo analogia com “O livro das Ignorãças”, de Manoel de Barros, Cícero Matos, certa feita, definiu sua arte como o “papagaísmo” na pintura. Esta definição, de certo modo, extrapola uma definição etimológica do termo e parte para uma poética contemporânea. A princípio, o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda traduz o papagaísmo como “falação sem nexo, à toa, como que a de papagaio”. O pintor CMatos, por sua vez, não fica restrito a esta definição logo que percebemos a relação que ele estabelece entre o texto de Manoel de Barros e sua arte, principalmente porque o escritor, com “Uma didática da invenção”, na primeira parte do livro, afirma que “para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: [...] Desinventar objetos [...]. Repetir repetir – até ficar diferente. / Repetir é um dom do estilo”1; em seguida, porque o pintor se apropria desse manifesto de Manoel de Barros para falar da pintura, fazendo analogia entre o ato de criar, o repetir e o “papagaísmo”. Dito de outra maneira, a definição de papagaísmo por CMatos não quer dizer falação sem nexo, mas desinventar e repetir como dons do estilo. O retrato de uma cidade por seus diversos ângulos, focos e cores não deixa de ser uma repetição por seu aspecto temático. Porém, o modo de ver e pintar a cidade – Jacobina, no caso – ganha em criatividade e originalidade por ser única cada obra e feito por dois pintores diferentes. Em essência, as pinturas de CMatos e Almaques seriam apenas representações da realidade? Algumas telas poderiam ser imagens, outras, diagramas e idéias – em se
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considerando a existência de uma analogia entre as suas partes e seu objeto? Ou, mais ainda, a pintura em si também poderia ser considerada uma metáfora, dado o caráter representativo e seu paralelismo com algo diverso? Assim como Manoel de Barros afirma em sua poesia que desenha “o cheiro das árvores” trabalhando as sensações humanas, os pintores partem para a representação dos movimentos utilizando as ilusões de ótica como fundamentais para sua visualização. Através de traços rápidos, CMatos nos dá uma idéia dos movimentos da marujada, do folclore local e dos seres peculiares da sociedade jacobinense. Enfatizando os traços do pincel, pode-se pensar em uma influência do cubismo em “Nu descendo as escadas” de Duchamp, por exemplo. Porém, ao analisarmos com mais cuidado, percebemos que ele não trabalha todos os momentos do movimento, mas uma idéia deste. São os traços grossos comportando colorações em seu interior que nos dão o movimento e são estes traços que sobressaem de modo excepcional em pinturas como as da marujada ou a de “Maria Pitu”, entre outras. Almaques, por sua vez, de modo detalhado pinta as paisagens da cidade. Como numa seqüência narrativa, ele trabalha a visão panorâmica das serras e morros que circundam a cidade para, em seguida, adentrar pelas ruas, ruelas e quintais de uma cidade antiga do interior – em paráfrase da “Noite estrelada” de Van Gogh, quando peculiariza a cidade em seu lado pouco visto e dialoga com o expressionismo europeu sem perder suas raízes. À medida que adentramos nas ruas delineadas pelo pintor, percebemos, então, seus personagens em luta pela sobrevivência no cotidiano numa “terra do ouro”. Podemos ver seu surrealismo em seres esqueléticos garimpando nus e próximos à Igreja das Missões, símbolo
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da cidade; ou no grupo de transeuntes agrupados à entrada de um beco escuro durante, provavelmente, a madrugada. Mas é a riqueza de cores e detalhes que detém o observador e o leva a ver por suas telas a pobreza da condição humana em pleno século XXI. Definir os estilos de CMatos e Almaques como surrealismo, expressionismo, cubismo ou qualquer outro “ismo” seria pequeno diante do espetáculo de cores proporcionado por ambos sobre um mesmo tema. Podemos, sim, inseri-los na antropofagia cultural brasileira, um hibridismo cultural que abriu as portas para um tropicalismo e para o que CMatos chama de “papagaísmo”, ou seja, “desinventar” o mundo a sua volta, apropriar-se de todos os elementos de seu repertório mental, e representá-lo à sua maneira, tal qual disse Manoel de Barros na poética do seu “Livro das Ignorãnças”: “Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh”2.
Jacobina, 3 de outubro de 2006.
NOTAS 1 2
BARROS, Manoel. O Livro das Ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1993. p.9-11. Ibidem, p.15.
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AS CIDADES DE CÍCERO MATOS Luciana Vilela Dourado Matos Arte e cidade se entrelaçam nas obras de Cícero Matos, por meio de sensibilidade e técnica, ele nos apresenta “outras cidades”, semelhantes e distintas de uma “cidade real”. Pois, como dizia Paul Klee: “A arte não representa o visível, ela torna visível”1. As suas composições estéticas nos tornam visíveis imagens, simplesmente imagens: cidades com igrejas, casas e pessoas simples, marias-pitu e miseráveis as marujadas, marujos anônimos e brincantes de rua, os cãos soltos nas ruas, religiosos seguindo procissões e profanos nos templos-bar. Boa parte de seu fazer artístico encontra-se imerso na história urbana e cultural de Jacobina, mas não é, necessariamente, uma reprodução desta cidade. São olhares diferenciados sobre ela, capazes de figurar em telas a arquitetura das igrejas e casarios, o cotidiano pacato, as festas populares e os personagens comuns e marginais.
Compreendo que as imagens expostas nos quadros de Cícero Matos são construções que correspondem a certa historicidade, que longe de se contrapor a uma “Jacobina real” realizam cidades esteticamente. O que não quer dizer que seja uma abstração nos termos do formalismo greenberguiano, mas que compõe uma historicidade discursiva, como diz Paul Vayne, “tudo é histórico, tudo depende de tudo, nada existe transistoricamente”2. Muitas das criações imagéticas de Cícero Matos fazem parte do contexto histórico-cultural da cidade de Jacobina. Desde as décadas de oitenta e noventa até os atuais dias, as experiências vividas na “cidade do ouro” têm, de algum modo, marcado suas pinturas. Criando constantemente suas cidades, manifestando-as à luz do dia ou da noite, povoadas ou não, tristes ou alegres, o artista nos propõe questões além da estética e da história, suscitando reflexões e cumprindo a função de educar, pois as imagens, assim como as histórias nos informam. Pinceladas de azuis figuram os céus citadinos. A amarela, cor do ouro, guia os religiosos até o cruzeiro. O vivo vermelho e os tons amarelados definem os casebres no alto das serras. Pernas e instrumentos se enlaçam no ritmo futurista da marujada e o rosto triste do marujo revela seu anonimato. Estas são algumas das minhas impressões diante das telas de Cícero Matos expostas em 2005, no Centro Cultura, momento no qual tivemos a oportunidade de mirar e admirar pinturas como “Os cãos”, “Caminhada da luz”, “Marujada” e “O marujo”. Agora, numa nova ocasião, Cícero Matos coloca-nos na presença de novas imagens, novas cores e novas formas. Pura estesia: a cidade resplandece em tons de amarelo-ouro! Pinceladas de vermelho intenso delineiam as formas d'os cãos e os anjos brancos e azuis 50
estão prontos para o combate. A cidade acompanha o bailado ritmado dos marujos anônimos. A marujada segue o traçado das ruas, em direção às igrejas. E a Maria Pitu segura sua garrafa próxima a um poste. Como é bela a cor que a toma em todo o corpo, um vermelho intenso-imenso. Tão imenso como o céu da enigmática cidade e quase tão bela como a lua, ora branca ora amarela. Para vivenciar as cidades de Cícero Matos é preciso, antes de tudo, não olhar as telas com familiaridade ou buscar uma correspondência real, pois como diria René Magritte, “uma imagem não deve ser confundida com um aspecto do mundo nem com alguma coisa de tangível”3.
São Luis do Maranhão, 22 de setembro de 2006.
NOTAS 1
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Apud CHIPP, H. Teorias da Arte Moderna. Tradução de Waltensir Dutra. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.183. VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Tradução de Alda Baltar e Maria A. Kneipp. 4.ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998. p.245. MAGRITTE, René. “Prefácio à exposição 'René Magritte' em Dallas, 1961”. FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Tradução de Jorge Coli. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. (orelha).
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CONVERSA COM PINTORES DE JACOBINA Alan Sampaio Cícero é um homem maduro, que conquistou um estilo. Almaques é um jovem irrequieto e curioso de muito talento. Autodidatas. Antropófagos. Selvagens. Bárbaros. Há em Cícero e em Almaques uma sensibilidade para os excluídos, para os marginais da história. Cícero pinta as figuras lendárias da cidade, suas festas, detalhes da arquitetura, dando-lhes a forma de histórias que provoca naquele que vê. Almaques pinta ruas, panoramas com casas coloridas, um retrato de sua vista vangoghiana. Ambos figuram o cotidiano de uma cidade, cada um ao seu modo, revestindo-o de cores, de uma luz e de um tom próprios e de uma surrealidade, como que tecendo as realidades, costurando-as para realçar suas belezas, alegrias e dramas. Mostrar a miséria, as serras, as pessoas. Anônimos, marujos. Os garimpeiros deformados e, ao fundo, uma igreja. Ruas, veias, uma serpente de escadas. Casas aqui e acolá e o gosto pela conversa... Aquelas das festas ou a prosa depois da Ave Maria. Uma cidade sinuosa de azuis e verde. Os cãos, o anjo, a alma e Júlio Bravo lavando a escadaria da Igreja. Maria Pitu queimando a cidade em rubra febre. Lady Nalvinha, soberana! Rainha de uma Jacobina...
E uma sensibilidade para a beleza. Uma beleza que não é mais uma, mas aquela em que nós nos reconhecemos, porque dela participamos. Isto é digno de ser retratado, recriado! Nós gostamos de imagens. Elas nos seduzem. E por que não deveriam, se nos fascina a semelhança? Que dom este o de sugerir realidade! De torná-la visível, como nunca antes o tinha sido. A pintura é uma forma poderosa de expressão. CONVERSA COM CÍCERO MATOS Alan Sampaio (AS) – O nome de Cícero Matos, hoje, está associado às artes plásticas em Jacobina. Nós falamos de você nas ruas, nas escolas e na Universidade. Cícero Matos (CM) – Não que estava neste nível, não. Que bom! Deve ser porque eu botava muita pintura na rua, fazia um movimento. Pintei vários bares, às vezes, pintava até por cachaça. E colocava a pintura nas ruas. Não tinham feito isto antes em Jacobina. Pintei em vários muros, painéis grandes e um jacaré enorme na ponte, quatro painéis na saída da cidade e o da Missão. E várias ruas, como a da Rua dos Índios. Eu gostava de colocar o pessoal em contato com a pintura, não pelo nível. Fazendo retrato da turma nos bares ou pinturas coletivas. Muitos trabalhos não eram arte, às vezes até me envergonho, mas eram pinturas, nós fazíamos a pintura acontecer. AS – O artista desempenha vários papéis, retrata a realidade, figura a beleza, intervém na cidade etc. Qual papel lhe cabe agora? CM – Acho que o de denúncia e o de preservação da cultura, da marujada, de Os cãos. Eu retrato a cidade. Estou falando do pessoal pobre mesmo, a população do Cruzeiro, por 53
exemplo. As casas são um amontoado sobre o outro, sem infra-estrutura alguma, sem planejamento urbano. Além disso, tem o lance decorativo. AS – A pintura se presta bem a isso. Na parede, ela é uma janela que convida o olhar. AS – A Bahia não tem um projeto abrangente de educação. No caso de educação artística, é um desastre. Não damos aos jovens uma formação artística, nem sequer lhes ensinamos a desenhar ou oferecemos qualquer exercício técnico. Eles não são estimulados a pintarem. É terrível. Esbanjamos criatividade, mas sem recursos, sempre na precariedade. CM – Mas eu também não aprendi a desenhar na escola. Aprendi na exploração mesmo, experimentando. Eu conheço muitos desenhistas e pintores que nunca foram à escola e desenham muito bem. Eu quase desisto de desenhar na escola. Meu professor de desenho me cobrava a cópia, uma representação fidedigna, correta. Ele até gostava de me ridicularizar na sala de aula, pois eu desenhava e pintava muito, porque gostava e não porque sabia. E ele sempre me cortava. Ao invés de me ajudar e de me colocar numa arte mais apurada, até mais estudada, ele fazia era me castrar. Isso daí rola muito. Rolou muito também nas escolas de belas artes. Eu acredito que você pode até ensinar pessoas, mas não ensinar como se apenas daquela forma fosse a correta. Ensinar como desenvolver a linha, para que ele tenha o domínio da mão e ela obedeça à linha que ele quer fazer. AS – E quanto à Escola de Belas Artes da UFBA? CM – Eu pintava muito mais antes de ingressar na Escola. Quando entrei, pensei que ia pintar logo, que a Escola iria elevar o astral, mas o que a gente fazia nunca prestava. Era uma exigência louca de material importado e nós não tínhamos dinheiro para tanto. Eu dormia em casa de um tio meu e às vezes na rua, com os poetas da praça. Aí, invadi a residência 54
estudantil junto com dois colegas, mas puseram todos para fora, com metralhadora e tudo. Os estudantes foram todos colocados na rua, em 1979. Então, com amigos da Paraíba, eu fui para Ouro Preto, tocando, vendendo cartãozinho, para levantar um trocado. Lá, freqüentei uma escola técnica, tive contato direto com o material: gravura em metal, cerâmica etc. Era um curso técnico sem teoria. A Escola de Belas Artes tem o lance da teoria, até você chegar a fazer o que quer. Eu queria pintar mesmo. AS – O estudante ingressa na faculdade instigado, com vontade de desenhar e pintar, e não é tocado em sua criatividade. CM – Hoje, os professores saíram para a rua, vão pintar no Pelourinho e têm atelier. Antes eles nem entravam no Pelourinho. AS – A lua fica ali mesmo, em cima da Igreja da Matriz? CM – Não, mas eu não faço com essa preocupação, não. Eu criei isso. A lua tem valor enquanto símbolo. E eu também não obedeço à relação da luz com a sombra. Às vezes eu inverto, mudo, invento. AS – Com a arte moderna a nossa atenção está mais no efeito. CM – Não obedecemos mais às regras clássicas. Com a arte moderna, a pintura ficou muito mais livre. Nós rompemos com a pintura acadêmica, que desejava impor as regras de boa pintura. É claro! E a pintura ficou bem mais bonita do que a galera esperou. CM – Uma vez entrou um cara aqui e disse que eu tinha jeito. Que, se eu quisesse, ele me ensinaria a pintar. Fiquei danado da vida. Nervoso! Tentei mostrar a ele que a minha pintura existia também e ele não aceitava. Não a minha, porque esta pintura existe. Eu me relaciono 55
com ela. E ele não queria aceitar. Já tem gente que vem e fica olhando, gosta, se identifica. AS – Seus quadros têm o tanto de indefinição para que o olhar os recrie. Eles exigem que o espectador complete a história. Mais do que contar, suas pinturas provocam histórias. CM – Tem muito de surreal. Elaboro alguma imagem, aí jogo uma outra figura por cima, você vai percebendo que não está definido. Antes eu desenhava todos os quadros. A idéia ia surgindo e rabiscava no papel para depois passar na tela. Hoje não. Ela já surge na pintura, a idéia pintada, sabe? Porque quando bate o pincel, já bate a idéia na minha cabeça. Já não passa pelo papel, mas não quer dizer que eu não faça isso. Meu processo é durante, não tenho mais nenhum desses quadros na cabeça. Agora, quanto aos quadros de Jacobina, como o tema é cidade, a minha cidade, pintei de memória. Mas pinto também a partir de fotos. AS – Fui adquirindo uma desenvoltura maior a partir de um conselho seu, Cícero, e de Almaques: pegar primeiro as proporções gerais e depois partir para os detalhes. CM – Isto porque é no processo que você vê o quadro, você não tem ele todo na cabeça, se você não se arrisca, ele não surge nunca. AS – As histórias que você conta, os personagens que compõem o quadro não são de pessoas que fazem a história oficial. Você não pinta prefeitos, empresários ou coronéis. Ao contrário, você retrata as pessoas comuns e os parias. CM – Minha vida foi assim mesmo. Nunca tive uma boa relação com a elite. Ela sempre me achou um louco. E, em Jacobina, ela é muito limitada em relação às artes plásticas. Os quadros só servem para decorar, então, usa reprodução mesmo. A cultura não é 56
interessante. Fiz muitas exposições no Centro Cultural, mas poucos apareceram. Nunca deixei de convidá-los. Professores, prefeito não apareciam. Só os amigos de sempre. AS – O mesmo aconteceu na primeira exposição de Arte e Cidade, só os amigos prestigiaram. Sem incentivo para os artistas, como poderá haver pintura? AS – Como é estar no Pelourinho, no movimento que é o Pelourinho cercado de pinturas, em relação a Jacobina. Eu, por exemplo, aprendi sobre pinturas nos livros – vi mais fotos de pinturas do que elas mesmas. CM – Costumo não me envolver muito com o pessoal aqui. Tem pintor que adota o mesmo estilo, repete sempre a si mesmo. Não muda o jeito de pintar. Você vê um quadro dele e já conhece todos. Outros não, pintam coisas diferentes. Aí, você vai lá e dá uma “roubada”. A forma de o pintor aprender é assim, olhando outros pintores. São detalhes que você vai encontrando na linguagem de outros pintores. Você vai enriquecendo seu trabalho, não simplesmente fazendo uma cópia. Aprendi também muito em livros, mas é diferente, geralmente não dá para ver os detalhes. Em Jacobina, eu conheci pintores, Marcelo Nunes, Carlos Dourado, Humberto Brito, que pintavam casarios, Mágda, professora acadêmica, Vanilda Matos, Maria das Flores. Estar no Pelourinho é bom, mas eu não saio muito. Fico mais na minha viagem. CM – Estou sedento de Jacobina. Antes eu sentia muita falta de Jacobina, mas já não mais. Passávamos a noite no jardim, na praça, em frente à igreja. Antes era tranqüilo, dormimos na rua.
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As casas do Cruzeiro, alguma coisa assim para lembrar. A serra. Porque, na minha infância e na minha adolescência, eu mexi muito com a terra. Eu morava na Serrinha. Olhava muito para serra. Então pintei a serra. Pode ter outro sentido, um de excluído, de rejeitado, de pirado, mas é a serra mesmo. Júlio Bravo, pintor de parede, tomava uma cachaça e mudava. Era tímido, mas quando tomava uma, mudava até o trânsito de Jacobina. E ia para porta da igreja. Com uma voz grave, usava a Igreja como concha acústica e dizia: “Não é maconha, não é cocaína, nem cachaça, não é nada padre é a PORRA COLORIDA!” AS – Era a tinta, então! CONVERSA COM ALMAQUES Alan Sampaio (AS) – Você pintou para a exposição panoramas, ruas, símbolos e o cotidiano da cidade. O que lhe motivou a escolha dos temas? Almaques (A) – É difícil falar da escolha dos temas. Depende muito do material que você tem para produzir. Se eu tivesse mais fotografias e mais acesso aos lugares. Não é fácil levar uma tela para pintar no Cruzeiro. Eu busquei os elementos característicos da cidade, mas no caso, por exemplo, de “Noite estrelada”, é uma imagem que só eu vejo do meu quarto. Também tem gente que mora lá em cima e não percebe certos aspectos. Tem o prazer de olhar um quadro panorâmico e reconhecer sua rua, sua casa e ficar parado em frente a uma tela e perceber os elementos de seu cotidiano. Gosto da riqueza de detalhes. Gosto de usar muita tinta.
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AS – Qual a sua relação com a pintura? A – Eu sempre gostei de desenhar, copiava desenhos de revistas e da TV, criava também. À medida que você vai desenhando mais aprende, passa a gostar mais. E é bom mostrar uma pintura sua, quando agrada às pessoas. Eu tenho prazer em pintar. E tem o lado financeiro. Pinto para vender, mas quando começo a pintar e a gostar, vou descobrindo aspectos e técnicas que antes eram desconhecidos. Eu penso se um trabalho vai vender ou não, quando faço uma tela. Em Jacobina não dá para viver de pintura. Fico pensando em conseguir um emprego fixo, como tinha antes, um dinheiro certo. Acho que isso acontece com muita gente, e nem todos são tão heróicos quanto Gauguin ou Van Gogh. E eles sofreram! A – Conheci a pintura de Cícero recentemente. Eu gosto dela, porque é singular. Cícero tem um estilo próprio, independente. É diferente. Ele está em Salvador e pinta Jacobina. Não é Jacobina como ela é, mas uma Jacobina também de sonho. AS – Nem você pinta como ela é. A – Mas às vezes eu tento, como nos quadros de ruas. O céu não, o céu real é alisado, o meu tem textura. AS – Como é ter uma tela em branco diante de si? A – No início era mais difícil. Eu só desenhava, aí me deram uma tela. Lembro que fiquei mais de um ano com ela, sem fazer nada. Às vezes, eu pinto algo de protesto, como os miseráveis, os garimpeiros na luta pela vida, às vezes eu simplesmente pinto algo bonito, como as serras e o céu de Jacobina. Tudo depende de sua condição financeira. Com duas ou três telas é muito difícil imaginar o que se vai desenhar, o processo de escolha é mais exigente e, por isso mesmo, mais paralisante. Com excesso, o processo de criação é mais fluido. Quando a 59
pessoa tem que trabalhar o dia inteiro não é possível. Acho que a criação depende muito de informação. A arte de um artista com pouca informação é mais pobre. Sem informação, mesmo sendo um bom artista, ele não pintará tão bem. Aí você nota a diferença entre um gênio de classe alta e um da favela. A genialidade da favela é outra. AS – A tela “Luta pelo ouro”, assim como “O garimpeiro”, traz figuras humanas desnudas e esqueléticas em primeiro plano e, ao fundo, uma igreja. É bastante sugestivo. A – Busquei reunir símbolos de Jacobina. Não elaborei com intuito de significar algo. Foi uma forma de juntar elementos, de sugerir a cidade em uma imagem onírica. AS – As influências são algo de que nos apropriamos ou ao que nos referimos. No seu caso, a relação com Dali e Van Gogh é evidente. A – Eu já tive mais influência de Dali. Desta vez, quando fui pintar os quadros, cheguei a pegar um livro sobre Dali. Ele não usa a pincelada que eu uso. No meu caso, ela vem mais do impressionismo. Comecei olhando os livros de pintura dos grandes artistas, iniciei por Da Vinci e o Renascimento. Chamou-me a atenção a perfeição e a beleza do corpo e do rosto. Trabalhei nisto de início. Foi bom como aprendizado, mas quando resolvi retratar a cidade, a influência maior foi do impressionismo e do expressionismo – a pincelada mais livre, as formas, a luz e a sombra, a disposição das cores. AS – Pintar olhando uma fotografia é diferente de pintar olhando a realidade. Enquanto esta é tridimensional, a foto é plana, as dimensões já estão no formato de imagem. Você pintou olhando tanto para a realidade quanto para fotos. Qual a diferença entre essas duas experiências? 60
A – Ao vivo eu crio mais, porque as cores vão mudando, o entardecer é fugaz. A foto já está pronta, tudo parado. O trabalho a partir da fotografia é um trabalho mais de cópia. Em “O caminho das árvores”, eu não usei fotografia como em “A caminho da Matriz”, mas é o mesmo efeito visual. Nós temos uma idéia prévia quando vamos desenhar, mas a imagem só surge mesmo com o labor. Nunca é igual à idéia. É melhor! AS – Por isso, digo que não pintamos com o cérebro, mas com o corpo, com as mãos. A – Mas tem uma coisa, a mão não obedece a tudo que imagino. Um desenho é a base de minha pintura. Se eu fizer um desenho bom na tela, a pintura sai boa. Nas panorâmicas não, o desenho é mais livre, aí pinto logo. Invento também. Não dá para fazer panorâmica com foto. Você perde muito o ângulo, os detalhes já estão distantes, numa foto eles estão menos nítidos. Eu também fui tentando modificar o estilo, não só pela técnica, mas também pela temática. Eu não tenho ainda um estilo, tudo sai do meu jeito. Eu tenho um jeito, mas não um estilo. AS – Você teve educação artística? A – Que nada! Na escola, só usava os livros velhos sobre cores primárias e secundárias. Jacobina não tem espaço para as artes plásticas. Sinto falta. Se eu pudesse trabalhar aqui com arte, não seria bom?
Salvador-Jacobina, primavera de 2006.
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1. ROSENDO BORGES Rio do Ouro. 1923 / 13x18cm.
Memória Fotográfica de Jacobina
2. ANÔNIMO Feira-livre. Provavelmente a imagem mais antiga do acervo do projeto, obtida a partir de uma reprodução fotocopiada. Largo do Paço Municipal, data não identificada / 20x15cm.
3. JUVENTINO RODRIGUES Feira-livre. Praça Getúlio Vargas, data não identificada / 25x25cm.
4. AURELINO GUEDES Feira Pública. Praça Rio Branco, década de 1950 / 25x16,7cm.
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5. LINDENÍCIO RIBEIRO Feira-livre. Praça Getúlio Vargas, década de 1980 / 25x25cm.
000
6. ROSENDO BORGES Sete de Setembro. Largo do Paço Municipal, 1922 / 13x18cm.
7. NAPOLEÃO MENEZES Desfile de 7 de setembro. Rua Senador Pedro Lago, década de 1960 13x21,5cm.
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8. JUVENTINO RODRIGUES Micareta. 1936 / 13x18cm.
9. LINDENÍCIO RIBEIRO Micareta. Década de 1980 25x25cm.
10. OSMAR MICUCCI Os cãos. Década de 1970 20x30cm.
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11. LINDENÍCIO RIBEIRO Garimpagem do rio. Década de 1980 25x25cm.
12. OSMAR MICUCCI Lavadeiras de roupa. 1958 / 25x25cm.
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13. ANÔNIMO Enchente. Largo da Matriz, 1914 / 13x18cm.
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14.CAROLINO FIGUEIREDO FILHO Procissão Igreja da Matriz. Data não identificada / 20x30cm.
15. CAROLINO FIGUEIREDO FILHO Largo do Hospital Antônio Teixeira Sobrinho. Data não identificada 20x30cm.
16. OSMAR MICUCCI Chafarizes. Fotografias feitas pelo fotógrafo como registros de obras públicas, década de 1960 / 20x20cm. 17. OSMAR MICUCCI O salto. Ponte Manoel Novaes, 1958 / 25x25cm.
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18. JUVENTINO RODRIGUES Panorama de Jacobina. Uma das muitas experiências pioneiras do fotógrafo na cidade, 1948 / 10x75cm.
19. AURELINO GUEDES Panorama de Jacobina. Seguindo a mesma orientação do panorama de Juventino Rodrigues, o fotógrafo aqui, pelo visto, procurou comparar a cidade uma década depois, 1957 / 10x75cm.
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20. JUVENTINO RODRIGUES Construção da ponte Manoel Novaes. O cartão-postal mais antigo de que se tem notícia da cidade. Cartão-postal de 1937 10x15cm.
21. OSMAR MICUCCI Vista para o alto da Missão. 1961 / 25x16,6cm.
22. JUVENTINO RODRIGUES E AMADO NUNES Capela do Bom Jesus da Glória. Alto da Missão, datas não identificadas 12,5x25cm.
79
24. AURELINO GUEDES Avenida Cel. Teixeira. Década de 1950 21x15cm.
23. JUVENTINO RODRIGUES, AURELINO GUEDES, OSMAR MICUCCI E LINDENÍCIO RIBEIRO Praça da Matriz. Com este painel, notam-se as diferentes fases da Praça da Matriz, entre as décadas de trinta ao início de oitenta. Datas diversas / 30x25cm.
81
25. AURELINO GUEDES Rua Senador Pedro Lago. Década de 1950 / 13x18cm.
26. OSMAR MICUCCI Praça Rio Branco. 1958 / 25x25cm.
27. CIRILO ROSA Caminhão. Praça Rio Branco, década de 1960 15x24cm.
28. OSMAR MICUCCI Maria Pitu e amigos. Década de 1970 15x21cm.
29. OSMAR MICUCCI Vista noturna. Praça Rio Branco, 1962 / 25x18,6cm.
84
30. NORMANDO LIMA (CUECA) Estação da Leste Brasileiro. Década de 1970 / 25x25cm.
31. NORMANDO LIMA (CUECA) Estádio Municipal José Rocha. Década de 1970 / 25x25cm.
32. OSMAR MICUCCI Parque infantil. Praça Rio Branco, 1962 / 25x18,6cm.
33. AMADO NUNES Vista parcial da cidade. Data não identificada 25x25cm.
34. OSMAR MICUCCI Fotomontagem com panorâmica da cidade e torre de televisão. Década de 1970 / 25x18,5cm.
35. OSMAR MICUCCI Vista parcial da cidade. 1960 / 25x19cm.
36. AMADO NUNES Da ferrovia ao asfalto. O fotógrafo acompanhou as transformações ocorridas na estrada com a desativação da via férrea e a implantação da rodovia de asfalto. Esse conjunto formou uma interessante narrativa visual. Décadas de 1960 e 1970 / 25x25cm.
88
1.FÁBIO CARVALHO Psicfotonsurbanos 1. 20x30cm
Narrativas Urbanas
2. VALTER DE OLIVEIRA Flores. 20x25cm
3. VALTER DE OLIVEIRA Ponte. 20x25cm
000
Dramaticidade da Luz
4. FÁBIO CARVALHO Psicfotonsurbanos 2. 25x20cm
5. NORMANDO NETO Rio espelho. 25x20cm
6. FÁBIO CARVALHO Psicfotonsurbanos 3. 20x25cm
7. FÁBIO CARVALHO Psicfotonsurbanos 4. 25x20cm
8. VALTER DE OLIVEIRA Subindo a ladeira. 20x25cm
95
10. FÁBIO CARVALHO Psicfotonsurbanos 5. 15x40cm
11. NORMANDO NETO Ângelus Novus. 25x20cm
9. VALTER DE OLIVEIRA Anjos sobre a cidade. 20x25cm
000
98
13. FÁBIO CARVALHO Psicfotonsurbanos 6. 20x25cm
12. VALTER DE OLIVEIRA Aurora. 25x20cm
99
14. NORMANDO NETO Cai(s) a tarde. 20x25cm
100
15. NORMANDO NETO A convergência dos momentos. 15x40cm
16. NORMANDO NETO Tudo que é sólido... 15x30cm
17. NORMANDO NETO Vale do luar. 20x25cm
102
18. NORMANDO NETO Alguns degraus para trás. 20x25cm
19. VALTER DE OLIVEIRA. Missão. 20x25cm
17. NORMANDO NETO Boas Festas. 25x20cm
18. FÁBIO CARVALHO Psicfotonsurbanos 7. 30x20cm
000
19. FÁBIO CARVALHO
20. VALTER DE OLIVEIRA
Psicfotonsurbanos 8.
Fantasia. (Fotomontagem)
15x40cm
15x40cm
105
23. NORMANDO NETO Pan. 20x30cm
106
25. VALTER DE OLIVEIRA Cidade em Trânsito. 30x40cm
107
26. FÁBIO CARVALHO Psicfotonsurbanos 9. 30x40cm
108
27. NORMANDO NETO Chien Loup. (Fotomontagem) 20x25cm
28. VALTER DE OLIVEIRA Passeio na Matriz. 20x25cm
000
29. FÁBIO CARVALHO Psicfotonsurbanos 10. 20x25cm
30. VALTER DE OLIVEIRA Dança das luzes. 20x25cm
Delírio Trágico História e Traços: Alan Sampaio Fotos 1, 4-7, 10: Alan Sampaio Foto 2: Valter de Oliveira Foto 3: Normando Neto Foto 8: Washington Drummond Foto 9: Fábio Carvalho
1. Meninas e menino
2. Garoa
3. Présságio
4. Nódoa
113
5. Aguardente
114
6. Sinal
7. Rua deserta
8. Aviso
9. Urbis
10. Partida
Tríptico Wodrum e Alan Sampaio 3 de 40x60cm
121
1. A caminho da Matriz Óleo sobre tela / 50x70cm
000
Cores da Cidade
Almaques
2. Cores da Serrinha Óleo sobre tela / 50x70cm
3. Céu Azul Óleo sobre tela / 50x70cm
000
4. Luta pelo ouro Óleo sobre tela / 50x70cm
125
5. Entardecer Óleo sobre tela / 50x70cm
6. Matando o tempo Óleo sobre tela / 50x70cm
7. Caminho das árvores Óleo sobre tela / 50x70cm
127
8. Crepúsculo Óleo sobre tela 50x70cm
9. Noite estrelada Óleo sobre tela / 50x70cm
10. Beco Óleo sobre tela / 50x70cm
000
1. Lady Nalvinha Acrílico sobre tela 50x70cm
CMatos
2. Maria Pitu Óleo sobre tela 50x70cm.
3. Marujo Acrílico sobre tela/50x70cm.
5. Namoro na Missão Acrílico sobre tela / 30x50cm.
4. Família Acrílico sobre tela 50x70cm.
6. Fertilidade Acrílico sobre tela / 50x70cm.
7. Mistério Óleo sobre tela / 50x70cm.
8. Os cãos Óleo sobre tela / 30x50cm.
134
9. Sino Óleo e Acrílico sobre tela 50x70cm.
10. Marujada na Missão Acrílico sobre tela 50x70cm.
000
11. Igreja da Conceição Óleo e Acrílico sobre tela / 50x70cm.
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12. A porra colorida Acrílico sobre tela / 50x70cm.
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13. Serra do Cruzeiro Óleo sobre tela / 80x100cm.
138
14. A espera Óleo sobre tela / 50x70cm.
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15. Jardim Acrílico sobre tela / 50x70cm.
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16. Morro Acrílico sobre tela / 50x70cm.
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17. Serra Óleo e Acrílico sobre tela / 80x100cm.
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OS AUTORES
Adriano Menezes Professor de Literatura Brasileira da UNEB. Coordenador do Núcleo de Pesquisa e Extensão do Campus IV. Mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela UESC. Alan Sampaio Professor de Filosofia da UNEB. Coordenador do Núcleo de Estudos de Cultura e Cidade. Mestre em Filosofia pela UFBA. Luciana Vilela Dourado Matos Graduada em História pela UNEB, onde desenvolveu, como bolsista, o trabalho “Arte e Cidade: as pinturas de Cícero Matos e a cidade de Jacobina”, sob a orientação do professor Washington Drummond. Luiz Henrique dos Santos Blume Professor de Teoria da História da UESC. Mestre em História Social pela PUC-SP. Valter G. S. de Oliveira Professor de História Moderna da UNEB. Coordenador do projeto “A memória fotográfica de Jacobina: investigações sobre os fotógrafos e suas obras” na cidade pela UNEB e mestrando em História Social pela UFBA, onde pesquisa a obra do fotógrafo Osmar Micucci, sob orientação da professora Heloísa Helena Costa. Washington Drummond Professor de História Contemporânea da UNEB. Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Atualmente estuda a obra do fotógrafo Pierre Verger no curso de doutorado da FAU-UFBA, sob orientação da professora Paola Berenstein Jacques e do professor Henry-Pierre Jeudy.
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Formato: 140 x 150mm Fontes: Joy, Century Gothic, Arial, Arial Unicode MS, Futura Lt Bt, Futura Hv Bt. Miolo - papel: Couche Fosco 120g/m≤ Capa - papel: Couche Fosco 300g/m≤ Páginas: 144 Tiragem: 300 Impressão: Bigraf