A imaginação como saída : panorama da pesquisa no Pequeno Encontro da Fotografia [9ª edição]

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COMO SAÍDA

José Afonso Jr. 04 10 22 42 58 74

IMAGINAR MELHOR, IMAGINAR NOVAMENTE

Anelise De Carli

REFERÊNCIA CRUZADA: UM MODO DE SER POSSÍVEL PARA A IMAGEM TÉCNICA

Alan Campos Araújo

FOTOGRAFIA COMO RECORTE DA PAISAGEM: O USO DE DISPOSITIVOS MÓVEIS PARA

ESTUDOS DE DESENHO DE OBSERVAÇÃO

Daniela Nery Bracchi, Eduardo Gomes de Lucena

A FOTOGRAFIA E OS DIÁLOGOS ADIADOS E FICCIONAIS NO ÁLBUM DE FAMÍLIA

Elisa Elsie Beserra, Mariana Gomes, Maria Angela Pavan

O TERREIRO DO PAJÉ BARBOSA: MEMÓRIAS POLÍTICO-AFETIVAS DO TERRITÓRIO PITAGUARY

Alex Hermes Assunção

CURADORIAS VERNACULARES NO SERTÃO DO PAJEÚ PESQUISA: SERTÃO DE LEMBRANÇAS

Pedro Rena Todeschi 96 110 132 148 168

VISUALIDADE IMPERIAL E ARQUIVO

Dayse Euzébio de Oliveira

O ROUBO DO ROUBO: APROPRIAÇÃO

E MONTAGEM COMO REVIDE HISTÓRICO

NA OBRA DE DENILSON BANIWA

Rochele Boscaini Zandavalli

(FOTO)ESCREVIVÊNCIAS, FAMÍLIAS NEGRAS

E TRAUMAS COLONIAIS: NOTAS SOBRE PONTES

SOBRE O ABISMO (2017) DE ALINE MOTTA

E TRAVESSIA (2019) DE SAFIRA MOREIRA

Marina Feldhues

AS IMAGENS VITAIS DA FLORESTA: UMA ANÁLISE

DO FOTOFILME POVO DA LUA, POVO DO SANGUE

Lwidge de Oliveira, Maria Beatriz Colucci

UMA CENTELHA QUE NÃO SE APAGA NUNCA: FOTOGRAFIA E MEMÓRIA NOS ARQUIVOS

DE HELENA ANTIPOFF

A fotografia, como é da natureza das imagens, é duvidosa. Se acreditarmos que com ela estamos dizendo ou demonstrando de maneira melhor determinado argumento, podemos ser surpreendidos, num susto, pela sua desobediência e acabarmos vendo-a mostrar exatamente o contrário do que um dia fora nossa proposta inicial. A questão é que essa não é uma característica deletéria da imagem no tocante ao seu potencial de produção de saber e de sentido. Pelo contrário, é justamente esse seu poder secreto.

A fotografia do corpo de Che Guevara, como analisou John Berger, e sua posterior massiva divulgação na imprensa, tinham uma nítida intenção: por um fim ao mito. Contudo, é justamente o esforço em querer fazê-la dizer somente uma coisa que parece operar de maneira inversamente proporcional e resulta na sobrevivência – cochichada, rebelde, insistente – de seu exato oposto: a sobrevivência de Che. A foto do rebelde morto e o discurso que a pretendeu colonizar demonstram a força intrínseca da imagem daquele corpo, que exigiria tanto esforço para conter a espontaneidade da imaginação libertária que dele emana.

Casos como esses não faltam à história da fotografia e também à história das imagens num geral. Esse constante jogo ao qual elas nos convidam evidencia que, assim como precisamos dominar uma gramática e uma estilística

para compreender a poesia, precisamos também educar o olhar e aprender a ver outramente as imagens para que elas se tornem mais uma vez eloquentes e interessantes. Ver outramente, ver apesar de, ver à revelia de: maneiras de sublinhar que olhar é um gesto, e que, como gesto, essa é uma prática também criativa, tão criativa quanto deve ser a leitura daquele que procura figuras de linguagem em todo texto. A saída para um mundo saturado de imagens similares entre si pode estar aí, nessa sofisticação do olhar que nos desafia a procurar interesse, a devotar atenção àquilo que achamos que já sabemos ou que já vimos, dentre toda a poluição visual e discursiva que a imaginação traz aos olhos. Nosso desaprendizado aqui é reencontrar o valor desse saber dúbio, que nos permite adicionar ao que vemos a possibilidade de presenças imprevistas – um pequeno encontro que pretende acrescentar mais capítulos à pequena história da fotografia.

Abrindo os trabalhos do 9º Pequeno Encontro da Fotografia, evento já tradicional do calendário de artistas e pesquisadores brasileiros, o Espaço da Pesquisa aconteceu em setembro de 2023, de forma remota. Para organizar as discussões, a pedido da organização do evento, propus a formação de dois conjuntos de trabalhos que, além de seu valor particular, me pareceram ressoar entre si em termos de preocupações e posturas teóricas. Montando este quebra-cabeça, deixei ao

primeiro texto de cada sessão apresentar alguns dos problemas em questão.

Iniciando a primeira mesa, Alan Campos Araújo nos convida pensar a “ressonância afetiva” entre fotografias e cenas anteriormente imaginadas pelas mídias.

Essa “referência cruzada” (os termos entre aspas são seus) evidenciaria o potencial estético de certos dilemas epistemológicos, tais como, conforme mencionado pelo autor, não existir hoje pensamento sobre a bomba H sem que sejam feitas considerações sobre as fotografias da sua explosão.

A ligação entre essa “forma de aparição” que as imagens dão aos fenômenos e a própria capacidade de pensar sobre eles indicam, como Araújo propõe – afinado com Vilém Flusser – uma particularidade na nossa maneira contemporânea de imaginar. Haveria, portanto, uma capacidade estimulada pelo hiperrealismo das imagens técnicas que produzimos e que de alguma maneira retornam encapsulando a miríade de variações possíveis de interpretações sobre a experiência na realidade compartilhada. Isto é, cada vez mais, uma imagem diz respeito a outra, num processo arriscado de autorreferência e descolamento do mundo vivido. O problema é que essas imagens são imaginadas, em algum momento, por alguém. A realidade imaginada antes por outras pessoas, com a força da midiatização, teria de certa maneira o potencial de “colonizar” a nossa imaginação sobre os mesmos fenôme -

nos – e assim reduzir nossa capacidade de fazer variar o mundo. Esses problemas são desdobrados pelas proposições seguintes dos dois painéis e posto em xeque por uma série de invenções criativas que dão continuidade à discussão no segundo momento do Encontro da Pesquisa.

O relato da experiência docente de Eduardo Gomes de Lucena e Daniela Nery Bracchi nos faz pensar que tanto quanto a fotografia pode servir como modelo de representação verossímil para um desenho ou uma pintura, a leitura dessa matriz também pode ser criativa. Isto é, na mesma medida em que procuramos em uma fotografia a figuração “adequada” de acordo com a ilusão de profundidade da perspectiva linear que nos alfabetizou visualmente, é também evidente que a câmera dos celulares dos alunos “monta” uma imagem para a cena fotografada a partir de uma composição e de luzes específicas. Isto é, uma pequena variação de ângulo na forma como cada um posiciona a sua câmera pode gerar distorções imprevistas no objeto fotografado, nos recordando que a perspectiva escolhida parece mais correta simplesmente porque é a que mais se assemelha às formas de representação com as quais convivemos repetidamente – algo que já foi nomeado por Benjamin Picado e outros pesquisadores da imagem como “estabilidade da representação”.

Esse jogo entre colamento e descolamento/deslocamento da imagem

montada tecnicamente, de uma cena registrada, a um acontecimento, fica evidente na investigação de Elisa Elsie Costa Batista da Silva Beserra, Mariana do Vale Gomes e Maria Angela Pavan. Neste sensível e eloquente texto, uma matriarca se desdobra em diferentes sujeitos de enunciação em relação à fotografia (a fotografada, a espectadora, a narradora). Aqui, entre mnemotécnica e história oral, a pesquisa se conecta ao procedimento metodológico da fotografia como disparadora do gatilho da memória, elaborado por Paulo César Boni e seus parceiros de pesquisa. Em um procedimento autoetnográfico, no qual a própria narradora da pesquisa, nessa interlocução, também se desdobra em diferentes sujeitos analíticos (a fotógrafa, a colecionadora, a neta), evidencia-se o potencial da etnografia como ferramenta de estudo de imagens, onde se amplia a noção de ciência para que o encontro do pesquisador com as contingências do campo revele também as próprias contingências do pesquisador e das formas de produção do arquivo construído para uma pesquisa.

Estreitando ainda mais o contato entre a técnica fotográfica e as inquietações antropológicas, ao seguir nossa leitura, conhecemos as memórias do pajé Barbosa Pitaguary através do trabalho de Alex Hermes Assunção. O pesquisador produz em conjunto com seu interlocutor um acervo imagético

ao longo de dez anos de convivência na Aldeia Monguba, no Ceará e, para lidar com essa memória, opera um procedimento de montagem . Como bem alerta Georges Didi-Huberman, para montar é preciso desmontar, e o pesquisador se propõe então a revisitar seu acervo com uma tesoura nas mãos, para fazer suas imagens misturarem aquilo sobre o qual já tinham criado documentos e, assim, poderem falar coisas novas. Esse procedimento de antropologia visual torna-se arte antropológica pelo seu viés anárquico, em que a imaginação do pesquisador entra em cena junto da reconstituição dessa memória de campo – “corrigindo e reinventando” a partir do próprio pensamento do seu etnografado, que guia os recortes propostos.

É acenando para o potencial criativo da contação e da recontação através da montagem entre fotografia e história oral que José Afonso Jr. promove uma imersão criativa e compartilhada do sertão do Pajeú ao investigar a forma como cinco guardiãs de memórias da família montam um espaço de fruição das fotografias em casa. A pesquisa extrapola as práticas domésticas e aponta em direção a possíveis práticas memorialísticas de toda uma região brasileira, retirando dessa noção a preguiçosa cola institucional que reduz a essencial prática curatorial de criar relações e inventar categorias a empreendimentos do mercado da arte. Assim, Afonso

expande as práticas curatoriais fotográficas para além do cuidado com o trabalho de fotógrafos renomados, para incluir nessa ecologia de produção de saber visual também os gestos mínimos, familiares, privados e, junto deles, as mulheres colecionadoras, restauradoras e montadoras de memórias.

O conjunto de trabalhos apresentados no segundo painel do Espaço de Pesquisa tocou mais diretamente em outras questões de importância vital para a 9ª edição do Encontro: como escapar da armadilha do dispositivo colonialista que diminui nosso potencial imaginativo? Como subverter as condições de existência previstas pelas condições de visibilidade construídas?

Abrindo o segundo conjunto de trabalhos, a pesquisa de Dayse Euzébio, na esteira das propostas de Ariella Azoulay e Nicholas Mirzoeff, propõe a constituição da noção de visualidade imperial a que trabalhos de artistas negros contemporâneos, como Mateus Morani, poderiam responder e ajudar a desconstituir. A história da prática fotográfica, quando colocada lado a lado com as práticas coloniais, revela o assustador potencial das imagens em se sobrepor à multiplicidade de existências humanas, reduzindo-as a tipos e categorias pré-determinadas e operando como mais um constritor nos jogos sociais de dominação cultural e política. É mais uma vez, tarefa da imaginação encontrar uma saída através

de estratégias de devolução como o olhar opositivo – para usar o termo de bell hooks. Uma estratégia de resposta a esse olhar colonial é encontrada e analisada por Rochele Zandavalli: a série Ficções coloniais de Denilson Baniwa. Investindo em uma apropriação de arquivos europeus e fabricando através de fotomontagens um novo arquivo contemporâneo, indígena e brasileiro, o artista devolve ao discurso original uma mirada que não só o destitui de verossimilhança prevista que o sustentou até há pouco tempo como domina com eloquência a lógica alegórica que o possibilitou ser construído e ganhar credibilidade. É a ironia a saída escolhida pelo artista, segundo a pesquisadora, para desmontar o “automatismo realista do meio fotográfico”.

Outra estratégia é abordada por Mariana Feldhues para analisar trabalhos de fotografia, cinema e performance de Aline Motta e Safira Moreira. A pesquisadora propõe o uso da noção de escrevivência, de Conceição Evaristo, para pensar a produção de sentido também em trabalhos visuais, tais como os das duas artistas. É a afirmação de vida contida no esforço da escrita de si que cria uma saída para que as existências negras brasileiras se imaginem para além do trauma da escravização e da sua herança nas experiências contemporâneas com a branquitude.

Pensando sobre as ressonâncias do filme “Povo da Lua, povo do sangue”,

que mostra o trabalho de Claudia Andujar com os Yanomami, Lwidge de Oliveira e Maria Beatriz Colucci encontram na linguagem adotada pelo filme a reverberação do pensamento com o qual a fotógrafa estava convivendo. Aqui, diferente do esperado nos códigos tradicionais de leitura de imagens, descobriremos movimento dentro das fotografias estáticas como efeito da montagem cinematográfica operada em sua montagem. Assim, é possível entrever no fotofilme um esforço de tradutibilidade menos interessado em preservar as formas de representação e mais na manutenção do ritmo da experiência daquilo que quer representar. Encerrando a coletânea de pesquisas apresentadas no Pequeno Encontro da Fotografia de 2023, acompanhamos a retomada que Pedro Rena faz dos arquivos da pedagoga e psicóloga russa radicada em Minas Gerais Helena Antipoff. A proposta faz conversarem textos de Carlos Drummond de Andrade com fotografias e outros documentos, como os diários coletivos das escolas rurais criadas por ela. Neste gesto, o pesquisador, inspirado por Walter Benjamin, nos lembra, como mencionado em suas palavras, que “os textos e as fotografias – que são lacunares, fragmentários – nos demandam a imaginação para que possamos criar pontes entre os hiatos temporais e espaciais” – e dessa maneira, talvez, oferecerem-se como saída para um mundo visto e imaginado de maneira muito estrita.

Assim como Samuel Beckett nos encoraja a fracassar melhor, fracassar novamente, é também esse o nosso convite ao compartilhar essas pesquisas, para que cada um de nós possa através das imagens treinar mais a sua imaginação, para desaprender as imaginações prévias do mundo e imaginar outro melhor em seu lugar.

Alan Campos Araújo

[01] INTRODUÇÃO

À parte de alguns trechos que foram alterados ou reescritos, o presente trabalho não é inédito. Boa parte do material que o leitor está prestes a ler se encontra no penúltimo tópico do quarto capítulo da minha tese de doutorado pelo PPGCOM da UFPE (no prelo), Hermenêuticas para o Fim do Mundo – defendida em setembro de 2023. Um aspecto essencial para a tese consiste nas reflexões sobre o lugar da imaginação no contemporâneo a partir da invasão das tecnologias da imagem no contemporâneo. O presente material, portanto, visa esboçar a condição perceptiva que a imagem possui sobre nós.

[02] INTERPRETAÇÃO

DA IMAGEM

Para explicarmos como a pesquisa teve início, permita-me expor os primeiros passos da mesma. O objeto que deu o pontapé para a formulação das seguintes questões foram as imagens do atentado ao WTC (World Trade Center) em setembro de 2001. Porém, se olharmos mais de perto, não foi simplesmente tal objeto em si, mas sim a constatação que surgiu dele: A realização de que tais imagens pareciam com o universo do cinema hollywoodiano, como se tal evento já fosse encontrado em nosso arcabouço de referências enquanto imagens estetizadas pela textura do cinema de catástrofe. Parece-nos impossível lidar epistemologicamente com o 11/09 sem considerar que, em partes, seu horizonte de sentido possui uma relação intrinsecamente conectada com um arcabou ço de filmes tão america nos. Nesse caso, existe uma ressonância afetiva entre imagens de acontecimentos históricos e imagens do entretenimento. Essa simples constatação se tornou algo difícil de ser ignorado quando relacionamos algo semelhante com os atentados a Hiroshima e Nagasaki em 1945 com duas bombas atômicas. A questão das bombas atômicas é que não existe pensamento sobre elas sem que haja o

pensamento sobre as fotografias delas. O pensamento sobre esses acontecimentos históricos é dependente das imagens técnicas registradas (e que hoje, acompanha qualquer busca no google sobre o assunto). Mas não só isso, ao indagar diversos objetos semelhantes – isto é, que representam explosões atômicas, como, por exemplo, animes tais como Akira (1982-1990, Katsuhiro Otomo), Neon Genesis Evangelion (1995-1996, Hideaki Anno) – percebemos um quê de Hiroshima e Nagasaki; como se os próprios acontecimentos históricos confluíssem para dentro da nossa experiência junto aos objetos artísticos. Já não existe uma investigação sobre tal cultura atômica sem considerar que as imagens técnicas – “reais” ou não – embaralham objetos, contextos e narrativas na própria percepção interpretativa.

Paul Ricoeur (2016) defende que todo projeto hermenêutico que deseje trabalhar tanto a base da experiência como o viés epistemológico deve pensar nas partes do objeto analisado que compõem um todo. Ou seja, o objeto analisado (seja ele filme, fotografia, livro, pintura, etc) deve ser compreendido na busca de uma arquitetura de sentido, onde cada parte dele deve adicionar ao processo de interpretação como uma experiência holística, acumulativa. Um capítulo de um livro, por exemplo, é melhor compreendido ao ser colocado em relação ao todo do livro, mesma coisa de uma cena de uma obra audiovisual, que

deve ser entendida ao olharmos para todo o corpo fílmico.

Não há mistérios em aplicarmos tal diretriz ao estudarmos obras particulares. Contudo, e a imagem técnica de base fotográfica na forma de frame ou a fotografia avulsa, que, ao ser isolada de seu contexto, parece manifestar em si, dezenas de outras imagens? Como lidar, portanto, com a fotografia de um evento como o 11/09 estadunidense quando ela parece chamar outras imagens? Diante disso, me parece justo defender metodologicamente que o todo da imagem técnica pode ser pensado na forma de outras imagens. Se diante da imagem, nós conseguimos antever outras imagens como um tipo de força centrífuga, nos parece inútil, portanto, falarmos do 11/09 estadunidense sem o “auxílio” das pinturas de John Martin (1789-1854)1 ou do cinema hollywoodiano, porque tais objetos já se encontram conectados com a visualidade das imagens do WTC pegando fogo e caindo.

O que nos cabe agora é dialogar com alguns teóricos de modo que possamos enxergar uma qualidade própria do ato imaginativo no contemporâneo.

1 - Como, por exemplo, essa obra, disponível em< https://en.wikipedia.org/John_Martin_(painter)#/media/John_Martin_-_The_Great_Day_of_His_Wrath_-_Google_Art_Project.jpg>Acesso em 14/08/23.

[03] TECNO-IMAGINAR

Por que a imagem atrai novas imagens? Por que a imagem rouba o lugar da história, confundindo-se com ela? Por que somos tão dependentes desse regime visual? Num dos textos mais conhecidos das Ciências Sociais, A Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer (2021) descrevem na década de 1940 uma situação na qual nós nos percebemos como herdeiros em nosso desvelar das imagens técnicas:

O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção cotidiana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme [...]. A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-se distinguir do filme sonoro [...]. O filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue

a ele para se identificar imediatamente com a realidade (2021, p. 104, grifos nossos).

Discordamos que o filme não abre espaço para o imaginativo dentro de seus quadros –acreditamos que o próprio pensamento que organiza imagens com outras é indicativo de algo diferente do apontado pelos autores da teoria crítica –, no entanto, ao identificar que as fantasias próprias do mundo técnico da indústria cultural influenciam diretamente a realidade, Adorno e Horkheimer (2021) compreenderam que a própria incisão das imagens técnicas na vida cotidiana possui como consequência a reconfiguração do próprio “real” da realidade. Não vamos tão longe como os autores o fazem ao atestar que a imaginação foi roubada dos seres-humanos, se há algo do tipo podemos dizer que ela é mantida refém pelas imagens técnicas – que hoje, diferentemente da época dos autores, não se restringem ao cinema, mas a todo tipo de tela que as fazem circular. Os autores estão cobertos de razão ao identificarem que o prolongamento da vida na tela do cinema produz a ilusão de que a realidade tende a ser percebida à luz dos projetores imaginários que compõem nosso olhar. Baudrillard (1991) complementa tal pensamento ao afirmar que na era da perda de um real puro e autêntico, o passado é relegado à indústria cultural para ser reescrito, regurgitado e tecnicizado.

Para o autor, “A história é o nosso referencial perdido, isto é, o nosso mito” (1991, p. 59). Ou seja, não basta afirmarmos que a própria imaginação se encontra refém das imagens técnicas, mas devemos perceber como o passado – seja ele longínquo ou próximo – foi surrupiado pelas telas dos cinemas. Isto é, no nosso contexto histórico, onde tudo existe para virar imagem, onde todos os acontecimentos históricos acompanham um testemunho técnico por meio de filmagens, atrita-se uma nostalgia por um passado onde o registro técnico –cuja a marca consiste no realismo compulsivo do “isto aconteceu conforme se revela para mim enquanto imagem” – não existia.

A indústria cultural não cansa, portanto, de fazer o passado reviver nas narrativas cinematográficas. Esse é o fetichismo por algo tão distante que pode ser alienígena ao nosso presente marcado pela perda de um pertencimento histórico forte.

É neste vazio que refluem os fantasmas de uma história passada, a panóplia dos acontecimentos, d as ideologias, das modas retrô – não tanto porque as pessoas acreditem ou depositem aí qualquer esperança, mas simplesmente para ressuscitar o tempo em que pelo menos havia história, pelo menos havia violência (mesmo que fosse fascista), em que pelo menos havia uma questão de vida ou de morte [...]. A história faz assim a sua entrada triunfal no cinema a um título póstumo (o termo ‘histórico’ teve a mesma sorte: um momento,

um monumento, um congresso, uma figura ‘históricos’ são com isso mesmo designados como fósseis). A sua reinjeção não tem o valor de uma tomada de consciência, mas de nostalgia de um referencial perdido (BAUDRILLARD, 1991, p. 60 e 61)

“Um tempo onde havia uma questão de vida ou de morte”, diz Baudrillard. Podemos ler esse tempo como o das grandes narrativas da humanidade, ou quando as coisas simplesmente eram diferentes antes da ascensão do universo técnico. Naturalmente, os eventos da Segunda Guerra Mundial vão ser constantemente revisitados pela indústria cinematográfica, pois este foi o último evento com batalhas grandiosas e que passam pelo filtro do bem versus mal, mas as imagens técnicas também vão recriar comunidades perdidas de dezenas de séculos atrás em forma de filmes ou de jogos digitais. Eis a condição mais difundida na sociedade tecnocientífica acerca da história longínqua: Os acontecimentos do passado passam a ser “conhecidos” e lembrados pelo filtro do entretenimento, isto é, a partir de suas adequações em gêneros fílmicos com regras e marcas estilísticas próprias. Tais objetos são o que Baudrillard (1991) chama de hiper-reais por absorverem em si uma referencialidade com o “real” (no caso de filmes históricos, é o pacto com o espectador de que o representado aconteceu em algum lugar do passado da humanidade)

para, em seguida, dissolverem-se numa gramática do entretenimento. Nesse contexto, um filme se torna um objeto privilegiado para simular o universo máquinico sob o pretexto de capturar qualquer narrativa humana.

Tem-se a impressão de se estar perante remakes perfeitos, montagens extraordinárias que revelam mais de uma cultura combinatória (ou mosaico no sentido macluhanesco), a grande máquina de foto, quino, histório-síntese, etc. que de verdadeiros filmes [...]. Ergue-se toda uma geração de filmes que são, para os que conhecemos, o que o andróide é para o homem: artefactos maravilhosos, sem falhas, simulacros geniais aos quais não falta senão o imaginário, e esta alucinação própria que faz o cinema (BAUDRILLARD, 1991, p. 62 e 63).

O prazer do passado histórico como entretenimento é o prazer da máquina, é o gosto pelo passado em tons de perfeição – fílmica, dramatúrgica, técnica. Ao mesmo tempo, o cinema hollywoodiano esconde que sua produção do gênero histórico ou épico se baseia mais em outros filmes do que na própria história “real”. O passado é um mero pretexto. Isto é exatamente o que Rodrigo Almeida (2017, p. 37) identifica como “guinada estética” em curso na sensibilidade histórica do contemporâneo, o que faz com que se haja uma memória coletiva criada pelo cinema:

Consumimos fábulas e fabulamos, de forma que não é mais possível chegar a Cleópatra sem passar pela performance de Liz Taylor; não conhecemos outro rosto de William Wallace senão o de Mel Gibson; O Dia D há muito deixou de ser apenas o desembarque das tropas aliadas na Normandia durante a Segunda Guerra Mundial, registrado pelo fotógrafo Robert Capa para ressurgir como a fase mais difícil de um jogo de videogame ou a abertura sanguinária e imersiva de um filme de guerra como O Resgate do Soldado Ryan (EUA, 1998), de Steven Spielberg. (ALMEIDA, 2017, p. 63).

Ao longo de seus quase 130 anos de história, o cinema usou todas as suas ferramentas e seu desenvolvimento técnico – especialmente o CGI – para trazer o passado à tona na lógica do consumo fetichista. Qualquer mito ou narrativa do passado exposto pelo cinema existe, antes de ser um suposto caráter testemunhal sobre algo que ocorreu num passado, em função dos “programas que programam” (FLUSSER, 2019, p. 78). Ou seja, antes do cinema ser história ele é ideologia, entretenimento, técnicas de filmagem, de edição e divulgação.

Para qualquer espectador desprovido de noções críticas do universo midiático e curioso em revisitar o passado nas telas do cinema, o filme tende a funcionar enquanto documento histórico verossímil. Isso se dá porque a imagem técnica ilude por seu viés chamado por Flusser

(1985) de “Janela”, a tela que se apresenta como real ou sem mediação com a realidade. O sentido se torna muito mais “real” ao vermos o movimento de pessoas numa disposição cinematográfica. Portanto, a própria natureza “realista” de boa parte das imagens técnicas permite com que sua percepção seja sentida como mais próxima do real do que, por exemplo, uma pintura, que figura a realidade por meio de tintas e gestos expressivos.

Mas, para além disso, é muito difícil não apenas para um historiador, como também para um cientista social, se livrar da presença marcante das imagens cinematográficas acerca do passado. O teórico das mídias digitais Steven. F. Anderson (2011), coloca que o problema do passado na época das imagens técnicas é também uma questão de espectatorialidade, ou seja, o passado à luz de tais imagens deve ser desconstruído por teorias da mídia além de referências ideológicas, pois elas também sedimentam estereótipos, além de dominarem nossa imaginação social:

As distribuidoras de vídeo têm nos colégios um mercado importante. E filmes antigos continuamente reprisados na televisão funcionam como uma escola noturna, um grande repositório da consciência histórica em nossos Estados Unidos da Amnésia. Para muita gente, a História hollywoodiana é a única história que existe (CARNES apud HAGEMEYER, 2012, p. 110).

Nessa linha, estamos bastante próximos da hipótese de Rodrigo Almeida de que “se o passado não se torna imagem e não continua insistentemente a se tornar imagem nos meios de comunicação de massa, se ele não ganha os contornos de uma narrativa, as vítimas são eliminadas da história” (2017, p. 91). Ou seja, se algo não encontra terreno para ser difundido no universo midiático, a própria noção de história se torna distorcida por tender a olhar apenas para o que consegue espaço social para se difundir como imagem técnica.

Por mais que a memória do passado esteja armazenada e disseminada na internet por meio da digitalização das fotografias (ANDERSON, 2011) e aprender sobre o que aconteceu significa, em ampla parcela, procurar informações históricas por meio de imagens acessíveis em buscas online, ainda somos reféns do que o audiovisual prioriza como importante para ser lembrado:

A proliferação e repetição de certas imagens midiáticas em detrimento de outros, sem dúvida, influencia o que os telespectadores consideram ser a ‘história’ e o que eles lembram dela. Em certas circunstâncias, então, a televisão é reconhecida como um instrumento primordial na produção de memória. Dizem que os americanos “lembram” eventos como a explosão do Challenger porque a TV repetiu tantas vezes. Da mesma forma, as

memórias de eventos históricos geograficamente e temporalmente distantes, como a guerra do Golfo ou o pouso na Lua provavelmente serão baseados em imagens de televisão (ANDERSON, 2011, p. 52).

Ou seja, a memória social não apenas é influenciada pelas tecno-imagens, como o que é lembrado se encontra diretamente conectado com a importância dada a certos acontecimentos. É fácil lembrar do atentado ao WTC, por exemplo, pois tantas imagens foram transmitidas ao vivo e reproduzidas pela televisão nos dias e anos que se seguiram, assim como vídeos e fotografias amadoras foram divulgadas no youtube. Mas também é preciso ter em mente, junto às palavras de Rafael Rosa Hagemeyer (2012), que o audiovisual altera a própria condição de memória, pois essa se torna existente pelos filtros do aparelho captador da imagem.

Falamos, até agora, majoritariamente sobre a influência do cinema no lidar com o passado, mas o buraco contemporâneo é muito mais profundo do que na época de escrita da Dialética do Esclarecimento, onde seus autores enxergavam que o próprio real estava sendo usurpado para as telas do cinema. Mas o que diriam eles do nosso tempo do mundo, onde a experiência cinematográfica é diluída e redistribuída em diversas novas plataformas midiáticas – youtube, instagram, face-

book, câmeras digitais, jogos digitais, etc –, fazendo com que o real tenha sido amplamente absorvido pela realidade da imagem técnica? O que diriam eles acerca de como qualquer regime de produção e difusão de imagens pelo ciberespaço parece marcado pelo signo do entretenimento?

Em outras palavras, percebemos o “filtro” da indústria cultural, conforme apontado por Adorno e Horkheimer, como um processo contínuo do século XX e XXI que marca a passagem de captura do real por alguns aparelhos (fotografia, cinema) para uma infinidade de novos dispositivos, economicamente mais acessíveis, e que produzem novas plataformas de compartilhamento e distribuição. A consequência é que não conseguimos mais apontar para um “real” puro, acessado numa polarização ao universo das imagens técnicas. Eis a realidade dos simulacros de Jean Baudrillard (1991), onde o real não cessa de existir, mas se torna impossível de ser dissociado da referencialidade midiática e técnica.

Se antes falamos sobre a influência crucial da cultura cinematográfica para a imaginação acerca do passado, precisamos olhar agora para como essa perda de um real puro, em partes relacionada com a produção de filmes, porém mais dependente da proliferação de dispositivos da imagem técnica, tem como consequência o excesso de imagens. A invenção da fotografia no século XIX iniciou um processo gradual que empurrou a realidade para o

terreno da imagem e, junto ao desenvolvimento tecnológico de diversos aparelhos de produção e transmissão (cinema, televisão, vídeo), criou uma cultura visual massiva de arcabouços e arquivos de base fotográfica. Somos herdeiros desse paradigma ao nos encontrarmos imersos no universo das imagens como mediadoras para a existência, pois, a partir da reprodutibilidade técnica, “as imagens é que nos procuram” (BAITELLO JUNIOR, 2014, p. 68).

Quando as imagens nos cercam, nossos sonhos e desejos são alterados ontologicamente ao ponto de não podemos sequer falar em imaginação num escopo fora do universo das imagens técnicas. Diante disso, dizer que nossa produção de sentido é diretamente impactada pelo nosso contexto histórico é enxergar o mundo por meio da referencialidade imagética – não apenas porque todos os acontecimentos que estão destinados a acontecer já caminham para virar imagem, mas também porque é preciso relacionar

que estamos vivendo em mundo imaginário, no mundo das fotografias, dos filmes, do vídeo, de hologramas, mundo radicalmente inimaginável para as gerações precedentes; que esta nossa imaginação ao quadrado, essa nossa capacidade de olhar o universal pontual de distância superficial a fim de torná-lo concreto, é emergência de nível de consciência novo (FLUSSER, 2008, p. 41 e 42).

A partir do comentário de Flusser, devemos nos perguntar: como isso impacta nosso olhar? Impacta que nós não podemos ser ingênuos de acreditar que uma imagem reproduz um real, tal como os primeiros fotógrafos acreditavam que seus aparelhos o faziam. Saída do real, entrada do universo estético-tecno-midiático, ou como aponta Norval Baitello Junior (2014), perda do caráter de janela para a realidade e entrada ao repositório das próprias imagens, seu universo, suas dinâmicas, suas texturas. Nenhuma crítica interpretativa da imagem técnica deve se manter livre da realização de que a imagem atua sobre nós, imaginando sobre-e-a-partir-de-nós.

Flusser (2008, 1985, 2019 2015) sabia disso ao afirmar em sua fenomenologia que o próprio ato imaginativo deveria abdicar de suas funções produtivas de uma criatividade estritamente humana. Agora imaginar não é um mero criar, trazer à tona dos confins mais exuberantes da existência, mas um criar-a-partir-da-programação. Surge então a noção de tecno-imaginação (FLUSSER, 2019, p. 110), e não à toa que o autor (2008, 1985, 2015) fala em termos de usuário e programação no lugar de criador e criatividade, sua definição de “imaginar”

visa captar a situação na qual estamos; captar o clima espectral do nosso mundo; mostrar como tendemos atualmente a desprezar toda “explicação profunda” e a preferir “superficialidade empolgante”; mostrar o quanto critérios

históricos do tipo ‘verdadeiro e falso’, ‘dado e feito’, ‘autêntico e artificial’, ‘real e aparente’, não se aplicam mais ao nosso mundo (FLUSSER, 2008. p. 41)

A história, em seu caráter de acontecimento, que se desenrola casualmente em direção ao futuro, se torna refém da imagem técnica pois o produtor da imagem altera e “intervém nela, fotografa e modifica o que fotografou” (FLUSSER, 2015, p. 216). Flusser (2015) afirma que a câmera visa ser uma testemunha apenas como ilusão, pois seus produtos imagéticos se velam ao se tornarem objetos do real. O véu da imagem esconde antes de registrar o real, ela testemunha sua própria intencionalidade (e não a do fotógrafo). Antes do fotojornalista, por exemplo, ser uma testemunha da realidade que vai fotografar, algum acidente veicular num grande centro urbano, ele age como funcionário de um programa que possui a necessidade de servir mais um exemplo desse tipo de imagem. O fotografo, nesse caso, trabalha para o deja vu da visualidade difundida do já-percebido.

O histórico é temporal, ele acontece no desenrolar do cotidiano, ele ocorre(u) em datas fixadas em calendários e, de certa maneira, a imagem também ocorre no tempo do mundo – pois sua produção acontece numa data com localização geográfica –, mas ela almeja a duração da eternidade – fora do tempo, a fim de superar o tempo

de vida do seu produtor. Falsa testemunha histórica, mas testemunha de seu próprio caráter de superação da vida e morte. A história é, então, “sugada para o interior do aparelho” (FLUSSER, 2019, p. 109).

Isto se torna ainda mais agravado, de acordo com Byung-Chul Han (2018), a partir da fotografia digital, pois esta coloca em jogo toda pretensão à realidade que a base fotográfica analógica mascarava. Agora toda a realidade é fabricada dentro do aparelho por uma realidade não química, mas hiper-real (tons baudrillardianos), ou seja, mais real do que o próprio real e, por consequência, mais fácil de ser pensada para ser incisiva no meio social. Imagens falsas respondem a essa lógica, ao regime do já-antecipado como necessidade para determinado público alvo. Com a fotografia digital e acessibilidade de meios fotográficos, o ser humano pode enfim (BYUNG -CHUL, 2018) se refugiar da presença direta do acontecimento e produzir quantidades massivas de imagens sobre tudo.

[04] CONSIDERAÇÕES (PROVISÓRIAS) FINAIS

O que podemos dizer sobre nossa situação contemporânea que transforma toda a banalidade em imagem técnica, e que pode ser vista e, muitas vezes, distribuída por redes sociais? O que percebemos é o aspecto mais alucinatório das imagens até então, pois, suas difusões em aparelhos e tecnologias, resultaram no fato de que não há mais espaço para qualquer fundo histórico que não seja, ele mesmo, refletido em imagens. Nesse sentido, qualquer pensamento por imagens, seja ele uma reflexão, produção artística ou crítica já contém no seu manifestar uma referência cruzada de âmbitos reais e midiáticos.

Por este conceito, estamos dizendo que atos figurativos ou de imaginação já se encontram intimamente atrelados com o extenso universo de imagens técnicas. Em alguns casos, como a produção de fotografias para redes sociais, já não soa exagero pensar que a tecno-imaginação se encontra perfeitamente retida pelo universo midiático, tendo em vista que elas [as imagens digitais], ao serem marcadas por regras rígidas acerca do que pode ser fotografável e compartilhado medem os indivíduos por suas adequações ao aparelho imagético. Até mesmo uma imagem técnica que não narra algum “acontecimento

histórico” aos moldes de conflitos geopolíticos possui em seu ser uma referencialidade do universo midiático que resguarda o real. Uma fotografia de animal doméstico, por exemplo, compartilhada no instagram ou até mesmo a enxurrada de imagens produzidas ao redor de qualquer peculiaridade cotidiana por curiosos não são simplesmente obras de indivíduos. Antes de falarem sobre a liberdade humana, tais casos são reflexos de uma economia de compartilhamento e visualização que em si já delimita o agir imaginativo do sujeito do nosso tempo. A técnica é o real e o verbo é precedido pelo interior da mídia

A referência cruzada é um diálogo com os teóricos do último tópico elevado ao plano do ser que retém nossas possibilidades imaginativas. Num contexto urbano e de capitalismo tardio não há um “sair” desse terreno, pois ele é a condição para o funcionamento de um tempo presente. O que parece crucial nesse momento de pesquisa não é propor saídas para essa situação, mas, em se aprofundar nos seus efeitos – particularmente sobre assuntos como entretenimento, economia de atenção e engajamento online – no intuito de poder gerar uma possibilidade que vá além do ser-referência-cruzada.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

ALMEIDA, Rodrigo. Lembranças de um passado

imaginário: epifanias de uma sensibilidade estética da história. 2017, Tese (Doutorado) - PPGCOM, UFPE, Recife, 2017. Disponível em https://www. repositorio.ufpe.br/jspui/bitstream/123456.pdf Acesso em 22/04/2023.

BAITELLO JUNIOR, Norval. A Era da Iconofagiareflexões sobre imagem, comunicação, mídia e cultura. São Paulo: Paulus, 2014.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D´Água, 1991.

BYUNG-CHUL, Han. No Enxame Perspectivas do digital. São Paulo: Editora Vozes, 2018.

F. ANDERSON, Steven. Technologies of History. New Hampshire, Dartmouth College Press, 2011.

FLUSSER, Vilém. Comunicologia: reflexões sobre o futuro. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta - ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Editora Hucitec, 1985.

FLUSSER, Vilém. O Universo das Imagens Técnicas - elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.

FLUSSER, Vilém. Pós-História - vinte instantâneos e um modo de usar. Rio de Janeiro: É Realizações Editora, 2019.

HAGEMEYER, Rafael. História & Audiovisual. Rio de Janeiro: Autêntica, 2012.

RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação - o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70, 2016.

FOTOGRAFIA COMO RECORTE

DA PAISAGEM: O USO DE

DISPOSITIVOS MÓVEIS PARA

ESTUDOS DE DESENHO DE OBSERVAÇÃO

Daniela Nery Bracchi
Eduardo Gomes de Lucena

[01] INTRODUÇÃO

Quando os artistas renascentistas buscavam aprimorar suas representações pictóricas e se valiam das tecnologias ópticas disponíveis para estudos de composição e perspectiva, incorreram em processos transdisciplinares. Inspirados nesses processos e nos apoiando nas tecnologias atuais, esta pesquisa busca lançar um olhar sobre o uso dos dispositivos móveis na prática artística contemporânea. Utilizamos como recorte os estudos de desenho de observação que recorrem às fotografias tomadas com aparelhos celulares para a confecção da obra. Tal qual a câmara escura utilizada por Leonardo da Vinci para representar o ponto de fuga e a perspectiva uniocular, o uso da câmera fotográfica do aparelho celular pode funcionar como um auxílio técnico para o recorte da paisagem que se deseja retratar, além de configurar um registro daquele espaço-tempo e possibilitar ao retratista aprofundar-se nos detalhes da cena.

Para este estudo de caso, acompanhei duas turmas de estudantes do Curso Técnico em Artes Visuais, do Instituto Federal de Pernambuco – Campus Olinda, em três saídas de campo para pintura com aquarela. A partir dessas pinturas in loco, pude observar o recorrente uso dos dispositivos móveis como instrumentos que agregam valor à criação, trazendo

para o fazer artístico atributos que complementam as capacidades humanas da visão: o zoom, o recorte, a capacidade de congelar um momento.

Como veremos mais adiante, esses estudos de enquadramento e ampliação do plano já vêm sendo executados desde antes da origem das câmeras fotográficas, com o uso de câmaras escuras para estudos de perspectiva. Estas câmaras podem ser de tamanhos variados, tendo por princípio o estudo da propagação retilínea da luz: uma vez que os raios luminosos ultrapassam um orifício desta câmara, são projetados no interior do aparato. Para melhorar a nitidez das imagens, diversos artistas e cientistas se enveredaram pelos estudos ópticos e, por meio de jogos de lentes, tornaram possível a ampliação dessas imagens produzidas dentro da câmara. Séculos de inovações científicas e químicas trouxeram a possibilidade de fixação desta imagem e, posteriormente, a sua reprodução. Como seu principal desdobramento, o uso sequencial das fotografias gerou a possibilidade do estudo do movimento e, posteriormente, da reprodução cadenciada dessa imagem, gerando a impressão de movimento – cinema. E, com o avanço tecnológico, a fixação física e química desta imagem passou a ser realizada por meio de sensores digitais.

Esse percurso histórico, além de contextualizar nosso trabalho, pretende demonstrar que a arte e a tecnologia sem-

pre caminharam juntas, sendo elementos constituintes das inovações vividas nos últimos séculos. A partir deste percurso, apresentaremos alguns dos trabalhos realizados pelos estudantes, registrando o espaço urbano ao qual se encontravam na hora da realização de suas pinturas e o uso das fotografias digitais como elemento agregador em suas práticas artísticas.

[02] ENQUADRAMENTOS HISTÓRICOS

Durante o Renascimento, artistas se apoiavam na perspectiva unilocular projetada no interior da câmara escura para estudos de composição. Essa prática não diminuía o trabalho artístico nem tampouco o valor de sua criação. Se apropriar da tecnologia disponível em sua época para a elaboração de suas representações é algo que pode ser observado nos mais diversos períodos históricos. Assim como o uso dado aos aparatos.

Entender a formação da imagem no interior da câmara escura mudou a percepção artística da representação gráfica, possibilitando estudos ópticos e composição da perspectiva. Um dos pioneiros na aplicação prática dos conceitos de câmara escura foi o artista italiano Leonardo da Vinci. Em O Tratado da Pintura, obra escrita1 por Leonardo Da Vinci no início do século XVI, o artista descreve preceitos da arte e maneiras de desenhar e pintar.

1 - O livro não chegou a ser publicado por Leonardo da Vinci, entretanto, após sua morte, seus discípulos reuniram outros manuscritos a esse tratado e publicaram.

O jovem deve antes de tudo aprender a Perspectiva para a medida certa das coisas: depois de estudá-la copiando bons desenhos, para se acostumar com um contorno correto, ele vai desenhar o natural para ver o porquê das coisas que aprendeu antes e, posteriormente, ele deve revisar e examinar as obras de vários Mestres, para ter facilidade em praticar o que você já aprendeu (DA VINCI, 1784, p. 19, tradução nossa2).

A câmara escura era usada como um objeto de estudo, de investigação científica, de prática artística e também como instrumento de diversão popular (CRARY, 2012). Neste ensaio, nos interessa tratar sobre o caráter de estudo artístico aplicado à câmara escura, sobre o uso dos pintores e desenhistas para a construção de suas representações em perspectiva. “São incontáveis os estudos eruditos sobre esse tema, e cada autor que se põe a estudá-lo — mesmo que se trate de uma análise das ‘novas imagens’, as imagens da tecnologia contemporânea — vê-se levado a voltar à fonte, à questão da pintura: à invenção da perspectiva”

2 - No original: “El jóven debe ante todas cosas aprender la Perspectiva para la justa medida de las cosas: despues estudiarla copiando buenos dibuxos, para acostumbrarse a un contorno correcto, leugo dibuxará el natural para ver la razon de las cosas que aprendió antes y, ultimamente, debe cer y examinar las obras de varios Maestros, para adquirir facilidad en practicar lo que ya ha aprendido” (DA VINCI, 1784, p. 19).

(CAUQUELIN, 2007, p. 82). Os estudos de perspectiva de Leonardo Da Vinci buscam representar objetos tridimensionais em um plano bidimensional, de forma a obter uma ilusão de profundidade nas representações pictóricas.

A Perspectiva utilizada na Pintura tem três partes principais: a primeira trata da redução que faz o tamanho dos objetos em diversas distâncias; a segunda trata da diminuição de suas cores; e a terceira do obscurecimento e confusão dos contornos que sobrevêm às figuras vistas de várias distâncias (DA VINCI, 1784, p. 174, tradução nossa3).

Dentre as três divisões dos estudos da perspectiva adotados por Da Vinci (redução do tamanho, diminuição das cores e confusão dos contornos), neste projeto nos ateremos à primeira – que diz respeito à Perspectiva Linear – para os estudos de composição dos desenhos e pinturas. “O trabalho da Perspectiva Linear é provar com medida e por meio de linhas visuais o quanto um segundo objeto aparece menor em relação ao outro primeiro, e

3 - No original: “La Perspectiva que se usa en la Pintura tiene tres partes principales: la primera trata de la diminucion que hace el tamaño de los objectos a diversas distancias; la segunda trata de la diminucion de sus colores; y la tercera del obscurecimiento y confusion de contornos que sobreviene a las figuras vistas desde varias distancias” (DA VINCI, 1784, p. 174).

assim sucessivamente até o final de todas as coisas que são observadas” (DA VINCI, 1784, p. 161, tradução nossa4).

Além do auxílio no recorte da paisagem e na composição da obra a ser retratada, o uso de câmeras é um aliado do artista em treinamento que sai para a rua para fazer o seu desenho / pintura. No contexto urbano, as cenas mudam muito rápido, os transeuntes e os veículos estão em constante movimento e, quando um artista escolhe retratar esses personagens efêmeros, tem que fazer em alguns segundo pois a cena já vai se transformando. Neste ponto, observa-se a potência do uso da fotografia, congelando o momento e trazendo informações que passariam despercebidas ao olho humano. “Aqui entra em ação a câmera, com seus meios auxiliares — seu descer e subir, seu interromper e isolar, sua dilatação e compressão do ocorrido, seu ampliar e reduzir. Somente por meio dela chegamos a conhecer o inconsciente óptico [...]” (BENJAMIN, 2019, p. 88). A apreensão instantânea do mundo pelo aparato fotográfico nos permite enxergar nuances do movimento e detalhes compositivos que não são percebidos pelo nosso olhar.

4 - No original: “El ofício de la Perspectiva linel es probar con medida y por medio de lineas visuales quanto menor aparece un segundo objecto respecto de otro primero, y asi succesivamente hasta el fin de todas las cosas que se miran” (DA VINCI, 1784, p. 161).

Com a consolidação da fotografia, o inconsciente ótico foi estudado por artistas, cientistas, fotógrafos, inventores e diversos investigadores que buscavam compreender o movimento, com destaque para o francês Étienne-Jules Marey (1830 – 1904) e o britânico Eadweard Muybridge (1830 – 1904). Em 1873, Marey concluiu que os cavalos em galope têm os quatro cascos fora do chão por uma fração de segundo e, em outro momento, concentram todo o peso em uma das pernas dianteiras (CINÉMATHÈQUE

FRANÇAISE).

Essa observação serviu de inspiração para o fotógrafo inglês Muybridge que, em 1878, compartilhou suas investigações no trabalho intitulado The Horse in Motion (O Cavalo em Movimento, em tradução livre), apresentando uma sequência de fotografias documentando diferentes fases do movimento de um cavalo, desde o trote até o galope, revelando detalhes que normalmente escapam à percepção humana.

“Cada frame disseca o movimento ao tornar fixo o fluido ato do galope [...] As imagens de Muybridge tratam uma cena simples, com foco único sobre a figura que se move” (BRACCHI, 2021, p. 36).

Essas investigações e experimentos, utilizando múltiplas câmeras fotográficas para capturar movimentos, constituíram uma verdadeira revolução na representação visual científica e na evolução das formas estéticas. As inúmeras investigações, desenhos, gráficos, fotogra-

fias e filmes deixados por Marey tiveram um impacto notável no desenvolvimento de uma variedade de novos dispositivos, pavimentando o caminho para a criação do “Kinetoscope” de Edison (1894) e do “Cinematograph” dos irmãos Lumière (1895), impulsionando o surgimento da indústria cinematográfica e dos cinemas.

Além disso, essas realizações pioneiras atuaram como precursores da arte moderna, exercendo influência sobre o desenvolvimento da abstração, do movimento futurista e da arte cinética ao longo do século XX. A criação de Duchamp, intitulada Nu descendo a Escada (fig.3), – uma pintura de 1912 que retrata uma figura humanóide cruzando a tela da parte superior esquerda à inferior direita com múltiplas imagens sobrepostas, combinando elementos dos movimentos cubistas e futuristas – está diretamente conectada às investigações iniciais do movimento físico do corpo, conduzidas nas fotografias de Marey e Muybridge no final do século 19 [Fig. 01-02].

[03] PAISAGENS

CULTURAIS

O nosso objeto de estudo perpassa tanto a imagem fotográfica quanto a pintura e para alcançarmos uma compreensão mais ampla, se faz necessário analisar a sociedade imagética a qual estamos inseridos. Assim como para a alfabetização não basta ensinar a juntar as letras, existe uma alfabetização cultural, sem a qual a letra não tem significado. Por isso, o processo de alfabetização na Cultura Visual deve se concentrar no aspecto visual como um ambiente onde os significados são concebidos e debatidos. É fundamental reconhecer que a imagem não é meramente uma parte da vida cotidiana, mas sim a própria vida cotidiana (MIRZOEFF, 2003). A transdisciplinaridade inerente aos estudos da Cultura Visual nos leva a observar, refletir e questionar não apenas a imagem em si, mas também o contexto que a envolve. Isso nos permite analisar as interpretações que surgem da interação com essas imagens. “A Cultura Visual é uma forma de discurso, um espaço pós-disciplinar de investigação e não uma determinada coleção de textos visuais” (HERNÁNDEZ, 2007, p. 18).

As imagens fazem parte da nossa sociedade, estamos inseridos dentro de um modelo econômico, político e social baseado em relações imagéticas. Os mitos,

Man Walking 1882 - Cinémathèque Française

Étienne Jules Marey
Eadweard Muybridge Woman Walking Downstairs 1887 - MUYBRIDGE
[Fig. 01]
[Fig. 02]
Marcel Duchamp Nu descendo a escada n° 2
1912 - Philadelphia Museum of Art
[Fig. 03]

ritos, celebrações, o espaço público e privado, tudo está permeado pela presença da imagem. Estas imagens são discursos, devem ser consideradas como textos visuais, representando formas de expressão que fornecem uma base para as nossas conexões e interações sociais.

Certas imagens estão profundamente arraigadas no imaginário coletivo, desempenhando um papel fundamental na construção das nossas relações e entendimento como partes de uma sociedade. Isso é notável nas obras produzidas durante o Renascimento, que deixaram um impacto duradouro e influente na maneira como percebemos a arte, a cultura, a história e a própria vida.

Como pode ocorrer que, em um domínio tão restrito – tela, madeira, paredes, cores –, aquilo que os pintores da Renascença fabricaram tenha se tornado a própria escrita de nossa percepção visual? Teriam eles projetado uma espécie de máquina de olhar a paisagem, ou melhor, de fazê-la aparecer em um lugar onde ela não tinha a mínima razão de ser, impondo-a assim como o único olhar possível para a natureza e em vista da mesma? (CAUQUELIN, 2007, p. 77)

As obras renascentistas desempenharam um papel crucial no estabelecimento de padrões para a representação visual, os quais ainda são amplamente reconhecidos e empregados nos meios de comunicação contemporâneos, impac -

tando a maneira como percebemos e interpretamos imagens visuais na atualidade. Nas pinturas renascentistas, muitas vezes eram apresentadas narrativas complexas e bem elaboradas por meio de composições visualmente equilibradas e harmoniosas. A busca pela precisão e realismo na representação era habilmente mesclada com uma idealização aprimorada, uma abordagem frequentemente procurada em setores como publicidade, moda e na cultura moderna em geral.

A linguagem visual é composta por uma série de elementos fundamentais, como ponto, linha, forma, cor, textura, tom, direção, escala, dimensão e movimento (DONDIS, 2015). Esses elementos se entrelaçam harmoniosamente, constituindo a base para uma rica diversidade de expressões artísticas e criativas. Combinados de maneiras únicas e inovadoras, esses elementos permitem que os artistas e criadores comuniquem ideias, sentimentos e narrativas de forma visual, transcendendo as barreiras da linguagem verbal e estimulando a imaginação do observador. “Para além dos elementos reconhecíveis na imagem, pode-se explorar a própria linguagem visual e suas possibilidades enunciativas, variando os modos de colocação em imagem dos fenômenos e explorando outras formas de apreensão do mundo” (BRACCHI, 2021, p. 26). O resultado é um vasto espectro de trabalhos que capturam a criatividade humana e enriquecem o mundo visual que nos cerca.

[04]

CAPTURANDO

MÉTODOS

Para a realização deste estudo, optamos por uma abordagem qualitativa baseada na Observação Participante, analisando e descrevendo o fenômeno observado. Na Observação Participante, o investigador participa das atividades diárias do grupo pesquisado, agenciando com conhecimentos prévios e com autores que se debruçaram sobre a temática, de forma a proporcionar novas visões sobre uma realidade já conhecida.

Esta pesquisa parte da vivência observada dentro da minha atuação como Técnico de Laboratório no curso Técnico em Artes Visuais do Instituto Federal de Pernambuco – Campus Olinda. Surgiu da necessidade de problematizar a minha prática profissional, levando-me a adotar uma abordagem investigativa para examinar o processo de aprendizado no qual estou inserido, acompanhando os discentes em formação técnica dentro das linguagens das artes visuais.

Segundo Suely Deslantes (2009, p. 31) “um projeto é fruto do trabalho vivo do pesquisador”. Ao me propor a uma prática investigativa, lanço este projeto como um artefato educacional que transpassa os três pilares fundamentais constituintes dos princípios indissociáveis nas insti -

tuições educacionais: ensino, pesquisa e extensão. A partir dessa observação participante e do acompanhamento dos estudantes dentro do contexto de ensino, optei por um recorte investigativo com foco nas saídas de campo com as turmas de Pintura, observando e registrando com anotações e fotos as atividades desenvolvidas. “O trabalho de campo permite a aproximação do pesquisador da realidade sobre a qual formulou uma pergunta, mas também estabelecer uma interação com os ‘atores’ que conformam a realidade e, assim, constrói um conhecimento empírico importantíssimo para quem faz pesquisa social” (MINAYO, 2009, p. 61).

Por meio deste estudo, busco estimular os processos de questionamento, reflexão e imaginação do leitor, combinando elementos textuais e visuais de forma que a significação ressalte a arte como local de construção de saberes. “(...) É necessário entender que a arte não só é conhecimento por si só, mas também pode constituir-se num importante veículo para outros tipos de conhecimento humano, já que extraímos dela uma compreensão da experiência humana e dos seus valores” (ZAMBONI, 2012, p. 20). Partindo destas premissas e aberto aos questionamentos que surgem durante esta pesquisa qualitativa, experimento e apresento neste ensaio diferentes formas de coletar e analisar os dados, com ênfase nas visualidades, expondo ocorrências

transdisciplinares observadas durante a pesquisa e problematizando estas observações, de modo a ofertar material de reflexão para novos estudos.

[05] O CURSO TÉCNICO

EM ARTES VISUAIS DO IFPE

OLINDA

Os Institutos Federais são instituições caracterizadas por sua abrangência curricular e presença em múltiplos campi (reitoria, campus, campus avançados, polos de inovação e polos de educação a distância). Essas instituições são especializadas na oferta de educação profissional e tecnológica (EPT) em todos os seus níveis e modalidades, mantendo uma interligação com as diversas esferas e formas de ensino dentro do sistema educacional nacional (BRASIL, 2010). Além de oferecer diversos tipos de cursos de EPT, os Institutos Federais também disponibilizam programas de licenciatura, bacharelado e pós-graduação stricto sensu.

A característica descentralizada e interiorizada dos Institutos Federais resultou em uma expansão significativa da oferta pública de educação profissional e tecnológica. Essa expansão contribuiu para consolidar o papel social da instituição, que está intrinsecamente ligado à provisão de oportunidades educacionais com o princípio central da promoção do bem social.

Os Institutos Federais desempenham um papel colaborativo na formulação de políticas públicas regionais, interagindo

com o poder público e as comunidades locais. Eles têm um papel central no desenvolvimento estratégico das áreas que abrangem. Através de uma estrutura multicampi com autonomia igualitária, enfatiza-se o território como uma dimensão crucial de sua função. A delimitação desse contexto local e regional é principalmente enriquecida pela perspectiva mais ampla de fomentar a autonomia dessas regiões, baseando-se em suas identidades e promovendo um diálogo contínuo para superar barreiras de exclusão.

Em Pernambuco, os Institutos Federais operam com um total de 24 campi , sendo 8 vinculados ao Instituto Federal do Sertão Pernambucano e 16 ao Instituto Federal de Pernambuco. Cada um desses campi oferece uma variedade de cursos técnicos, tecnológicos e superiores, direcionados para suprir as necessidades da região. Isso possibilita um ensino qualificado que atende de forma específica às demandas locais.

O Campus Olinda do Instituto Federal de Pernambuco foi fundado em 2014 e possui vocação criativa, ofertando atualmente dois cursos técnicos subsequentes em Artes Visuais e em Computação Gráfica, além do Curso Superior em Produção Multimídia. Também estão disponíveis o Curso Técnico em Computação Gráfica integrado ao Ensino Médio, o Curso de Qualificação Profissional para Jovens e Adultos em Editor de Maquetes Eletrônicas

e o Mestrado Profissional em Educa ção Profissional e Tecnológica.

Esta contextualização sobre o papel dos Institutos Federais tem como objetivo apresentar não apenas a instituição, mas também o seu público-alvo. O caráter social desses institutos visa proporcionar educação técnica e profissional para as camadas menos privilegiadas da sociedade, promovendo uma verdadeira revolução educacional na comunidade. A formação proporcionada nesse ambiente vai além de simplesmente preparar mão de obra e visa despertar a consciência sobre os acontecimentos e o ambiente ao seu redor, formando cidadãos críticos com a capacidade de analisar e interpretar o mundo que os cerca.

A oportunidade de estar inserido neste projeto de educação profissional e de poder observar de perto a mudança que o ensino técnico das Artes Visuais traz não somente para as práticas artísticas dos estudantes, mas para sua formação profissional, pessoal e cidadã foi o que me motivou na escrita deste relato, de forma a evidenciar a importância do ensino público, gratuito e de qualidade ofertado pelos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. (GOMES DE LUCENA, 2022, np.)

Segundo o Projeto Pedagógico do Curso Técnico em Artes Visuais, o curso “[...] vem atender a demanda de formação, difusão cultural, pesquisa e fomento na área de Artes Visuais” (2014, p. 19), contri-

buindo para a atuação, desenvolvimento e transformação da sociedade e das políticas culturais. Ainda de acordo com o Projeto Pedagógico, o estudo técnico das Artes Visuais objetiva proporcionar o conhecimento técnico e operacional da área, habilitando o estudante quanto a utilização das ferramentas construtivas e do processo criativo, ou, conforme Ana Mae Barbosa, torna possível “[...] o desdobramento dialético das tensões entre o Desenho como Arte e o Desenho como Técnica, entre a expressão do eu e a expressão dos materiais” (2012, p. 115).

No Curso Técnico em Artes Visuais, os alunos se envolvem com matérias teóricas e práticas para ampliar seu entendimento sobre elementos técnicos, operacionais e educativos no campo das Artes Visuais. O Laboratório de Pintura é utilizado em três dos quatro semestres, nas disciplinas de Composição e Teorias da Cor, Pintura I e Pintura II. Neste estudo, focamos na disciplina de Pintura I, onde os alunos desenvolvem habilidades em pintura com tintas acrílicas e aquarela. Os alunos melhoram suas habilidades em pintura e combinação de cores, e selecionam recortes temáticos para incorporar como referências. Nesse cenário educacional, observamos como os estudantes se relacionam com os dispositivos móveis, usando seus smartphones para pesquisar artistas e referências, além de aproveitar as câmeras para capturar as paisagens que desejam retratar.

[06] CENAS EM ANÁLISE: RESULTADO

E DISCUSSÃO

Os estudantes do Curso Técnico em Artes Visuais, provocados pela professora de Pintura, retratam cenas urbanas com o uso de lápis, caneta nanquim e tinta aquarela. O exercício da reprodução inicia no treino do olhar; o momento de parar e observar o detalhe, a incidência da luz, o volume, as texturas. A partir daí, vem a decisão do recorte, do enquadramento, da seleção do que se vai reproduzir.

Observa-se frequentemente o esboço sendo feito à lápis para criar contornos do assunto principal a ser retratado em primeiro plano que surgem aos poucos nos cadernos dos estudantes [fig. 04]. O recorte dado por cada um dos participantes na atividade traz muito do repertório técnico prévio e também de suas referências. Percebe-se a entrega à atividade e o grau de detalhamento que buscam aplicar em sua representação. Após a delimitação do assunto principal, vem a escolha dos elementos que vão compor a cena. Essa decisão passa pela apresentação de vários objetos, não isolados, mas em uma composição harmônica criando um conjunto, uma paisagem [Fig. 05].

Então, o que se vê não são as coisas, isoladas, mas o elo entre elas, ou seja, uma paisagem. Os objetos, que a razão reconhece separadamente, valem apenas pelo conjunto proposto à visão. Porque a invenção da perspectiva estabelece as regras de uma redução e de um ajuntamento. Toda a natureza (o exterior) está lá, em uma apresentação que reduz sua dimensão ao que pode ser captado no feixe visual; mas essa redução só pode se dar à medida que a totalidade for mantida, a unidade constituída — uma unidade mental, isto é, uma construção (CAUQUELIN, 2007, p. 85-86).

Para auxiliar no enquadramento, alguns estudantes se apoiam no recorte dado pelas câmeras fotográficas presentes em seus smartphones, utilizando este objeto tecnológico como instrumento auxiliar à prática artística. A participação do dispositivo pode ser entendido aqui como um recurso que potencializa o trabalho criativo, auxiliando no enquadre da cena a ser retratada. “O enquadre exige o recuo, a distância certa. Tudo ver, claro, mas apenas aquilo que está no campo” (CAUQUELIN, 2007, p. 137). Esta prática, como dito anteriormente, auxilia inclusive na hora de trazer o detalhamento dos objetos, transeuntes e veículos que cortam o cenário urbano, por meio do congelamento do cenário e possibilidade de ampliação das fotos para observar detalhes que passariam despercebidos aos olhos nus.

A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui um espaço preenchido pela ação consciente do homem por um espaço que ele preenche agindo inconscientemente. Percebemos em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que de modo grosseiro, mas nada percebemos de sua postura na fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia torna-a acessível, através dos seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação (BENJAMIN, 2012, p. 100).

Percebo nesta prática o caminho inverso do retratado por Roland Barthes em seus escritos A Câmara Clara quando afirma que “a Fotografia foi, é ainda atormentada pelo fantasma da Pintura [...]; a Fotografia fez dela, através de suas cópias e de suas contestações, a Referência absoluta, paterna, como se tivesse nascido do Quadro” (BARTHES, 2012, p. 36), uma vez que vejo, a partir da fotografia, o surgimento da pintura. Neste movimento inverso, a fotografia apoia a pintura, imobilizando a cena e auxiliando os estudos de composição e de representação.

O uso da fotografia como recurso técnico para criar uma pintura não é uma prática nova e já foi explorado e discutido nos ensaios de Walter Benjamin (1892-1940): “Nas mãos de vários pintores, porém, tornaram-se recursos técnicos. Assim como [Maurice] Utrillo, setenta anos depois, produziu suas vistas fascinantes

de casas nos arredores de Paris não a partir da natureza, mas por meio de cartões-postais [...]” (BENJAMIN, 2012, p. 99).

Outra analogia que faço ao analisar essa atividade de campo é a de revelação. Não no sentido químico mas no sentido figurado, da retirada do véu que cobre o papel branco. A imagem surgindo nos cadernos e pranchetas fascina os estudantes e as pessoas que passam pela praça, observam e são observadas. Este processo de “revelação” é um poderoso instrumento educacional, fazendo com que os discentes se sintam empoderados pela experiência e pela prática artística em público. São percebidos pela comunidade e, ao mesmo tempo, se percebem como artistas, capazes de retratar o mundo a sua volta, um caminho formativo para que encontrem/ desenvolvam a capacidade de se expressar dentro das linguagens e técnicas artísticas.

[07] CONSIDERAÇÕES

Esta pesquisa está sendo desenvolvida para ser apresentada como Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Artes e Tecnologia na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Os processos observados ainda estão sendo analisados e pretendo aprofundar a discussão sobre o uso dos aparatos tecnológicos como complemento para os estudos de desenho de observação. O contexto histórico apresentado, ao traçar paralelos entre as técnicas inovadoras de artistas renascentistas e a utilização de ferramentas modernas como smartphones, fornece uma base para compreender como as práticas artísticas evoluem continuamente em resposta às tecnologias disponíveis. Ao destacar as semelhanças entre o uso da câmara obscura por Leonardo da Vinci e o uso atual das câmeras fotográficas de dispositivos móveis para enquadrar e explorar cenas, o estudo enfatiza a continuidade e a progressão dos métodos artísticos ao longo do tempo.

Além disso, o foco nos estudantes de um Curso Técnico em Artes Visuais introduz uma dimensão pedagógica relevante para o campo das artes. Conforme a educação artística se adapta às mudanças e avanços tecnológicos, torna-se fundamental compreender como os alunos interagem e aproveitam ferramentas modernas como smartphones em seus processos

criativos. A metodologia de Observação

Participante empregada no estudo oferece percepções em primeira pessoa, relatando as interações dos estudantes com a tecnologia e fornecendo aos educadores e pesquisadores entendimentos práticos sobre como integrar efetivamente dispositivos móveis nos currículos de educação artística. Na construção desta produção textual eu percebi que se faz necessário novos registros das atividades de campo, para ilustrar alguns pontos que relatei e, para isso, além das turmas que foram acompanhadas no segundo semestre de 2022, pretendo incluir novas observações e anotações com a turma que está cursando a disciplina de Pintura 1 atualmente, de modo a incrementar este estudo.

Trazer este debate para dentro do Espaço de Pesquisa desta 9ª edição do Pequeno Encontro da Fotografia visa suscitar questionamentos e inquietações sobre a temática e evidenciar a natureza interdisciplinar dessa pesquisa, conectando arte, tecnologia e educação. Este estudo sobre os benefícios e desafios da incorporação de dispositivos móveis na prática artística busca contribuir para a conversa mais ampla sobre o papel da tecnologia na formação artística contemporânea.

A motivação para essa análise partiu da minha atuação como técnico nos laboratórios de Pintura e de Fotografia no Instituto Federal de Pernambuco, Campus

Olinda. Ao atuar em dois laboratórios tão distintos — em relação à tecnologia — e, ao mesmo tempo, tão próximos — em relação à reprodução imagética — e estar cursando a Especialização em Artes e Tecnologia, encontrei na minha atividade profissional a oportunidade de aplicar na prática os ensinamentos apreendidos nesta etapa formativa, problematizando minha atuação como Técnico de Laboratório em Artes Visuais e me inserindo na dimensão educacional como investigador.

Aula de Campo 2022 - Foto do autor
[Fig. 04]
Aula de Campo 2022 - Foto do autor
[Fig. 05]

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[01] INTRODUÇÃO

As fotografias feitas em um contexto familiar tendiam a construir o álbum de família físico e material ao longo do século XX. Isso porque a feitura de uma foto estava inevitavelmente associada ao processo de impressão. Entre aproximadamente 1980 até início dos anos 2000, colocar um filme para revelar era sinônimo de receber alguns itens em troca: fotografias impressas em tamanho 10x15cm e guardadas em um envelope de papel; negativos armazenados em tiras plásticas e, em alguns casos, um pequeno álbum com capa de papel e miolo de folhas plásticas — usado normalmente para encadear as fotografias daquele filme específico, talvez em ordem cronológica. Esses pequenos álbuns fornecidos pelas lojas de revelação, em parte, substituíram os álbuns de capa dura, comuns no início e meados do século XX, compostos por folhas de papel com gramatura mais pesada e intercaladas por outras mais finas — um tipo de papel vegetal. Os registros eram colados diretamente na própria página ou fixados com cantoneiras.

As fotografias eram organizadas por familiares e normalmente uma pessoa — ou algumas poucas — era responsável por conduzir essa história visual da família ao longo das páginas. Era função dessa figura selecionar assuntos e parentes para

compor o arquivo, uma curadoria que levava em consideração questões subjetivas, afetivas e históricas. Atualmente, mais especificamente nos últimos vinte anos, o álbum transmutou do físico para o virtual com a chegada da fotografia digital e dos espaços específicos de armazenamento e compartilhamento no ambiente cibernético. Contudo, isso não implicou desaparecimento do álbum tradicional. A rede mundial possibilitou e ainda possibilita o intercâmbio de imagens por meio de novos formatos digitais em um novo contexto de família-mundo (SILVA, 2008).

Neste trabalho mergulhamos em um álbum do início e meados dos anos 1900, montado por José e guardado por sua filha, Eunice, avó de uma das autoras. A narração visual feita por ela sobre o álbum tem a potência de adiar ou mesmo ampliar diálogos, além da possibilidade de produção de relatos ficcionais sobre as fotografias presentes no álbum mais antigo da família. O objetivo principal deste trabalho é compreender como o relato visual de Eunice interfere na percepção imagética da pesquisadora sobre as fotografias do álbum produzido entre os anos 1920 e 1960.

O álbum físico — assim como as fotografias avulsas — é guardado pela matriarca. “Eu sou a que estou vivendo mais, eu tô com 85. Então eu sou a mais antiga e mais velha de sete gerações, porque ninguém dessas sete gerações viveu

mais de 85 anos”1, afirma Eunice, enquanto conversa sobre as fotos. Durante anos, parte deste acervo permaneceu desconhecido pelo receio de que parentes pudessem pegar as fotos para si e não devolverem — como de fato aconteceu com algumas páginas. O acesso ao álbum veio somente este ano (2023), em maio, logo após o aniversário de 85 anos de Eunice, associado a um relato oral, visual e afetivo.

Para compreender como o processo de ver fotografias presentes em um álbum pode estar relacionado a um relato pessoal, utilizamos a etnografia e autoetnografia como procedimentos metodológicos a fim de elaborar analiticamente a vivência através do ponto de vista de uma das pesquisadoras. O método autoetnográfico reconhece a inclusão da experiência da sujeita 2 tanto ao definir o que será pesquisado quanto no próprio desenvolvimento da pesquisa, entendendo que a experiência pessoal pode influenciar o processo de investigação e escrita.

As imagens estão relacionadas com as experiências da sujeita que narra (principalmente) e da sujeita que escuta, grava, anota e fotografa, ambas envolvidas na pesquisa e ligadas por vínculos familiares (avó/neta).

1 - As falas entre aspas de Eunice foram retiradas do áudio gravado em maio de 2023 enquanto ela narrava as fotografias.

2 - O substantivo feminino de sujeito não se confunde com o conceito de sujeito, usado tradicionalmente no masculino pelas teorias filosóficas e sociais. Optamos conscientemente pelo substantivo no feminino como estratégia de visibilização e enunciação da mulher.

[02] ÁLBUM DE MULHER

Os álbuns de família tendem a ser uma história de mulheres, uma vez que cabe a elas (avós, tias, mães, irmãs…), na maioria das vezes, a função de narrar as memórias partilhadas por aquele grupo específico de pessoas (SILVA, 2008). Sendo assim, para além de ser visto, um álbum é também ouvido, por meio de vozes femininas, e “isso dimensiona seu conteúdo em outro sentido corporal — o da audição — e outorga outra natureza perceptiva — ritmo e a melodia de ouvir uma história”, (SILVA, p. 19). Tendo em mente essa compreensão, o arquivo familiar abraça três dimensões: a visual, a cultural e a comunicativa. A fotografia de um álbum, em sua dimensão visual, representa ou apresenta uma pessoa ou situação desaparecidos há muito tempo, entretanto, por meio dela, intentamos construir uma espécie de presente eterno, como se fosse possível instalar um passado e um presente contínuos (SILVA, 2008).

Vovó narra as histórias de um ponto de vista muito peculiar. Ela é a única filha dos sete filhos de José e Águeda Pacheco e os dois únicos álbuns feitos por seu pai estão sob seus cuidados. Muitas fotografias estão ausentes nas cantoneiras das páginas, outros parentes levaram consigo as imagens em que apareciam ou com as quais estabeleciam vínculos afe-

tivos. A avó Eunice sempre foi conhecida por sua memória detalhista e que segue bem preservada para a idade, entretanto, em diversos momentos da conversa pede tempo para pensar nas perguntas feitas sobre as fotos, põe a mão na cabeça, fecha os olhos e tenta recordar alguma lembrança adormecida. Alguns nomes ou datas se embaralham. “Não sei menina, eu já confundo”, diz. A voz que narra é a dela. Detalhes minuciosos de momentos, lugares e cores são recordados à medida em que passa as páginas com as fotos em branco e preto. A fala é feita ancorada na memória, e como Henri Bergson (1999, p. 69) tão bem elabora, a memória é uma sobrevivência das imagens passadas e “estas imagens irão misturar-se constantemente à nossa percepção do presente e poderão inclusive substituí-la”.

A tecitura das palavras é feita instintivamente. Elas surgem sem muita organização prévia. As lembranças vão fiando caminhos entre as fotografias e o tempo. Vovó foi costureira por mais de 50 anos e um de seus orgulhos foi ter ensinado sua mãe a costurar profissionalmente. O corte, as linhas e sua costura permanecem presentes fisicamente nas casas das filhas, filho, netas(os) e bisnetas(os) através de roupas, lençóis e mantas. Pensar a narrativa de vovó agora tecendo palavras sobre as fotografias é interessante diante de um percurso de vida tão preenchido por alinhavos físicos.

“O álbum é arquivo, um dos mais inquietantes da vida privada, e funciona com técnicas que lhe são próprias, idealizadas de modo espontâneo por seus usuários com o passar do tempo”, (SILVA, 2008, p.18). Vovó é a guardiã desse arquivo, iniciado por seu pai ainda solteiro e continuado por mais de três décadas. Após a morte dele, nada foi acrescentado, embora muitas fotografias avulsas estejam guardadas numa pequena caixa de madeira e as páginas finais do álbum permaneçam vazias. Esse pequeno acervo é guardado por ela e o clima seco de Brasília (DF) talvez tenha ajudado a preservá-lo. Os álbuns são mantidos em uma prateleira assim como a caixa de madeira. Mas, como já disse, os cuidados de vovó não foram suficientes para evitar a fuga das fotografias de seu arquivo.

Um aspecto marcante das imagens impressas no álbum é o caráter encenado dos registros. As pessoas retratadas sabem que estão sendo fotografadas e para isso vestem roupas específicas e posicionam o corpo para a câmera, uma encenação exclusiva para o momento de feitura da imagem. Quem faz o registro, preocupa-se com o enquadramento, iluminação, ângulo, cenário e outras questões técnicas. A(s) pessoa(s) fotografada performa para que aquele instante seja registrado pelo fotógrafo e seu aparato tecnológico, no caso aqui, uma câmera fotográfica analógica, que segundo vovó, era emprestada.

Décadas depois, essas mesmas fotografias foram vistas por duas pessoas: a narradora (a avó) e a observadora (a neta). A primeira viveu em parte do tempo retratado pelos registros e está presente em alguns deles. Já a neta pesquisadora observa as fotografias por meio de uma distância física, espacial e temporal. A aproximação é desenvolvida por meio do relato visual/afetivo e, em certo modo, ficcional, uma vez que a avó fala de um tempo e narra histórias de pessoas e situações vividas há quase cem anos. Neste caso, tem-se a dimensão comunicativa do álbum e é sobre ela que vamos dialogar neste texto. A memória joga com a realidade presente e passada. O relato atual é uma construção de décadas de histórias visuais e orais passadas pelos mais velhos até chegar na avó, percorrendo um caminho de criação, inventividade e imaginação. Sigo aqui Lélia Gonzalez (2020, p.78) ao afirmar que “a memória, a gente considera como o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção”. Talvez uma verdade ficcional e de certa forma irrefutável, uma vez que a única pessoa a deter o conhecimento sobre as fotografias vistas é a mesma que narra os detalhes e contextos.

Uma história não escrita por meio de palavras, mas sim de fotografias e agora narrada oralmente. A escritora

Svetlana Aleksiévitch se autointitula uma “mulher-ouvido” diante dos anos dedicados a ouvir narrativas de moradoras(es) da antiga União Soviética. Acompanho a autora quando fala sobre as vozes das pessoas: “Tudo extravasa das margens: a música, a pintura e, no documento, a palavra escapa aos limites do documento. Não há fronteiras entre o fato e a ficção, um transborda sobre o outro. Mesmo a testemunha não é imparcial” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 373). A imaginação ficcional da narrativa permeia a realidade e nessa elaboração da memória em fala oral há uma contribuição por parte da consciência individual — que seria o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas — e aqui mais uma vez recorro à Bergson (1999, p.30):

Na verdade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não retemos então mais que algumas indicações, simples “signos” destinados a nos trazerem à memória antigas imagens.

No caso específico deste artigo, memória e percepção são estimuladas visualmente pelas fotografias de família. Afinal, “a percepção pertence desde a origem à recordação” (DERRIDA, 2010, p.

56). Aqui, a fotografia pode ser compreendida como um signo, que se interpõe entre as pessoas e o mundo não somente para representá-lo, mas para auxiliar a interpretação e provocar a sua transfiguração (NAVAS, 2017). Uma história familiar na qual o “futuro pode reencontrar, cruzar ou reunir-se ao passado”, (DUBOIS, 2019, p. 22).

Uma das funções da fotografia é a de registrar um momento ou mesmo documentá-lo, sendo um vestígio físico do que ela mesma representa (BARTHES, 1984) ao mesmo tempo em que poderia ser considerada um traço do que um dia foi real, proposto por Dubois (2010) — noção revisitada ao longo dos anos seguintes pelo próprio autor, especialmente ao trabalhar com o conceito de pós-fotografia (Dubois, 2019). A fotografia de família também pode ser pensada como uma possibilidade de elaboração conjunta, entre quem faz a foto e quem aparece nela. A presença de uma câmera cria a oportunidade de pessoas coincidirem umas com as outras em um mesmo espaço e tempo, gerando assim algo em comum e que de outra maneira não poderia ser produzido (AZOULAY, 2021). A foto tenta trazer para a superfície imagética uma pessoa inserida em um contexto da vida cotidiana com a intenção de perpetuar aquele momento na história familiar.

A articulação da fotografia do álbum ou do acervo — que para Silva (2008) também é considerado álbum — ao relato oral feito por uma matriarca pode influen-

ciar a compreensão sobre os retratos vistos nas páginas ou de maneira avulsa3. A voz da anciã e guardiã conduz a percepção sobre pessoas, casas, lugares, bichos e objetos presentes nas páginas. Nesse contexto, é como se a foto existisse não somente para ser vista, mas para ser falada. Vale ressaltar que a construção dos diálogos proporciona a criação de novas histórias, algumas parcialmente inventivas dado o tempo que separa a feitura das fotos e o dia em que elas são vistas. E também devido à memória de Eunice e aos relatos passados entre gerações, com suas perdas e descaminhos. O arquivo familiar fotográfico é observado sob uma perspectiva visual embora também esteja envolto nos sentidos trazidos pela oralidade de uma mulher.

A narração oral influencia a construção de significados das imagens agrupadas no dispositivo físico e na caixa de madeira. A investigação foi guiada por duas fotografias específicas, ambas com as mesmas pessoas — a avó e o irmão mais velho — e no mesmo ambiente, a praia. Construímos então uma compreensão de como o imaginário sobre a ascendência de um grupo pode ser perpetuado para 3 - Armando Silva (2008) considera o Álbum de família em seus distintos formatos, seja um arquivo físico e organizado em um aparato com características de álbum, como capa e folhas internas, seja ele composto por fotografias avulsas ou ainda seu caráter virtual.

a descendência através da combinação de fotografias e do relato oral, sendo este real — por ter de fato acontecido — e ficcional — pelas características de detalhes perdidos ou acrescentados com o passar das décadas. A fotografia quando narrada assume um formato de diálogo adiado, uma vez que quem fala, quem ouve e quem fez a fotografia não estão presentes no mesmo espaço-tempo e para isso contamos mais uma vez com a colaboração de Armando Silva (2008, p. 27, grifo do autor):

[...] podemos convir que na foto não estão presentes, ao mesmo tempo (simultaneidade) como em um diálogo real, quem fala ou enuncia e quem ouve ou interpreta — ou seja, não estão ao mesmo tempo aquele que faz a tomada, o outro que se coloca para ser visto e aquele que observará a foto mais tarde. Pode-se dizer que, na foto, mostra-se para depois ver, uma espécie de diálogo adiado.

[03] O BRAÇO NO

OMBRO DA GAROTA

Uma garotinha posa de maiô na praia, Paquetá, a avó arrisca: “era a praia que a gente ia todo ano”. Na mesma foto um garotinho um pouco maior repousa o braço no pescoço e ombros da menina e ela parece levar a sua mão ao encontro da dele. Vovó me explica que em todas as fotos juntos, o seu único irmão mais velho fazia esse gesto de abraçá-la pelos ombros. A roupa de banho deixa de fora os mamilos da menina e imediatamente recordo de uma foto feita por meu pai, minha, também criança, com os mamilos igualmente descobertos pelo maiô verde e branco. Sempre achei a foto engraçada e me intrigava o fato de existir um maiô para crianças, que supostamente deveriam cobrir os seios não desenvolvidos, mas que não cumpria a função. Esse resgate que me ocorre a partir de uma imagem outra, comprova e ilustra essa capacidade da fotografia de estabelecer diálogos adiados. Neste caso, embora similares, algumas décadas separam esses registros.

Curiosamente essa foto de vovó não está no álbum físico montado pelo seu pai. A impressão está guardada empilhada na caixa de madeira juntamente com algumas dezenas de impressões. Por algum motivo, essas avulsas não foram considera-

das relevantes para o organizador do álbum e permaneceram ao longo de anos armazenadas na caixa. Sobre essa fotografia, a avó não guarda muitas lembranças e faz suposições sobre a imagem, como a feitura pelo pai. Ela fala ainda sobre o laço afetuoso que uniu os irmãos até o dia da morte do mais velho e de como anualmente a família carioca passeava na praia de Paquetá.

Já no álbum físico é possível ver ainda uma foto da mesma dupla feita anos depois, no início da adolescência dos irmãos, em uma página em que restou essa única impressão. Todas as outras foram levadas. A presença das cantoneiras nas páginas cinzas denunciam a ausência. Vovó vê rapidamente a foto e reforça “o Silas assim, sempre com a mão no meu ombro, até a última despedida foi ele com a mão no meu ombro”. Então indago: “Mas nessa foto ele não está com a mão no seu ombro, né?”. O gesto não está ali. Ela me responde: “eu acho que tá”. Então ela pára, olha mais um vez, aproxima o álbum do rosto e se espanta ao perceber que nessa imagem específica, o braço do irmão não está lá ao redor de parte de seu corpo. Essa prevalência do discurso ficcional à imagem também nos interessa. A frustração de Eunice parece explicitar que a fotografia enquanto espelho do real castra as possibilidades inventivas da memória. Mais do que saber a história de uma imagem, nos interessa tomar de empréstimo os olhos e a memória de quem narra

essa história. Como nos diz Berger (2022, p. 20) “O passado nunca está lá, à espera de ser descoberto, de ser reconhecido tal como exatamente é. A relação entre o presente e o passado é sempre constituída pela história”.

O registro mais recente pareceu ter sido refeito propositalmente com alguns anos de distância. O que fez José escolher essa fotografia para figurar no álbum físico e a outra não? Vovó não soube explicar, tampouco o gesto inexistente. Não demoro nos questionamentos. A perda recente do irmão para a covid emociona gravemente a avó: “até hoje eu vivo chorando, não posso pensar nele”.

Nessas duas fotografias há uma encenação: primeiramente das crianças e depois dos adolescentes. Eles miram a câmera e o fotógrafo: o pai. A presença dele interfere na forma como se portam, olham e se organizam para a perpetuação daquele momento. Para Vilém Flusser (2011), um dos propósitos do fotógrafo ao fotografar é o de codificar, em forma de imagens, os conceitos que já existem em sua memória e consequentemente no repertório visual da pessoa. De maneira resumida, o autor destaca que a intenção de quem fotografa seria “a de eternizar seus conceitos em forma de imagens acessíveis a outros, a fim de se eternizar nos outros” (FLUSSER, 2011, p. 63).

Embora o autor das fotos não esteja presente nas duas imagens escolhi-

das neste artigo, talvez fosse parte de seu plano — será que inconsciente? — de se perpetuar em uma imagem por meio da feitura dela. Provavelmente ele jamais tenha pensado que essas fotos estariam sendo vistas, mais de sete décadas depois, por uma de suas bisnetas e relembrada oralmente por sua única filha. O objetivo de se eternizar nos outros sendo alcançado, apesar do passar do tempo. Ele é falado e lembrado. Sem a presença de José e a sua vontade de registrar os filhos em dois momentos distintos, não haveria as fotos, nem o diálogo sobre elas, tampouco este texto. Vovó não tem muitos registros de criança. Contei cerca de dez momentos. No álbum, a presença dela durante a infância é vista em quatro fotografias. E outras estão na pilha de fotos. Uma imagem com um laço branco na cabeça, com aproximadamente dois anos, foi retirada do álbum pela minha mãe e colocada em um mural que esteve presente na nossa casa durante décadas. Vovó se ressente por não ter mais a foto — feita por um profissional e financiada por uma de suas tias. Apesar da falta, ela lembra com detalhes da fotografia. Eunice teve parte de sua vida fotografada por um pai sem recursos — era sapateiro — mas que via na fotografia importância suficiente para dedicar parte do orçamento familiar para a compra de filmes, revelações e montagem dos álbuns.

Voltamos para as duas fotos. As roupas de banho mudam, pelo tempo e

pela idade. Sobre a foto já adolescentes, ela explica: “Aqui eu e o Silas, uma gracinha [...] Olha minha pose, eu era muito metidinha. Eu sempre fui metidinha a chique, sabe? A bestinha [...] Mas chique às minhas custas, porque eu fazia as minhas roupas [...] Grife Eunice”. E continua: “Agora você veja a pose. É porque eu já vi umas revistas Cruzeiro que tinham as artistas. E esse maiô aí fui eu que fiz. Eu já estava costurando [...] Eu sempre fui a mais elegante, não tinha nada, mas tinha elegância”. Vovó não recorda bem a idade da foto, mas arrisca dizer que tinha 14 anos. Em seguida ela começa a cantarolar: “Paquetá é um céu profundo / que começa neste mundo e não tem onde acabar / jardim de afetos… e vai por aí. Eu cantava muito, e o Silas tocava violão, já rapazinho, e eu cantava. Eu cantava nas árvores trepada, cantava assim, música de rádio”4. Essa talvez tenha sido uma das fotos em que ela levou mais tempo na narração.

A água preenche parte das fotografias. Na primeira, as crianças molhadas estão com os pés e canelas submersos.

Na segunda, os adolescentes aparentam estar sobre a areia, embora próximos ao mar. Os corpos ocupam o campo central do enquadramento. Em ambas, o relato da avó conduz o entendimento sobre as

fotografias. A fotografia é erigida como um tempo em suspensão, que pretende “se inscrever no fôlego contínuo das coisas, mas de forma fragmentária”, (NAVAS, 2017, p. 17), criando um ciclo próprio. O tempo é uma questão cara à fotografia, ele está tanto dentro da imagem como fora dela, “são duas experiências mútuas” (ibidem, p. 18). Perguntar sobre o tempo da fotografia é quase inevitável. São muitos. Existe o tempo que leva para fazer uma foto (o abrir e fechar do obturador), o tempo que leva para organizar as pessoas na foto, o tempo que levava para o filme se transmutar em papel, o tempo entre a impressão e os dias atuais, além do tempo das narrativas associadas à imagem. Os segundos, minutos, horas e anos comunicam com a realidade passada, presente e futura através de suas distâncias. Diálogos tecidos entre familiares toda vez que a fotografia é vista ou lembrada. A fotografia então como uma espécie de ilha do tempo, devido a sua exigência de suspensão que a isola da temporalidade. Acompanho esse entendimento de Navas (2017) ao percorrer visual e afetivamente as fotos da praia, instantes elaborados, registrados e agora perpetuados. Fotografias responsáveis por inaugurar o novo lugar do olhar. O referente desapareceu, embora a sua presença fugaz esteja preservada na imagem.

4 - Luar de Paquetá é uma música de F. J. Freire Júnior com versos de Hermes Fontes, música de 1922.

Eunice e Silas, Paquetá 194? - Acervo pessoal
[Fig. 01]
Eunice e Silas, Paquetá 1952 - Acervo pessoal
[Fig. 02]
Eunice e Silas, Paquetá (1952)
Eunice segura o álbum feito por seu pai, José, com a única fotografia restante nessa dupla de páginas. Acervo pessoal
[Fig. 03]

[04] CONSIDERAÇÕES

FINAIS

“Aí o álbum parou aqui, era ele que fazia o álbum”, diz vovó ao folhear as últimas páginas vazias. José fez o álbum. Eunice narrou. E hoje as(os) familiares podem ter acesso ao acervo guardado ao longo de quase um século. A fala elaborada enquanto as fotografias eram vistas estiveram envoltas em nostalgia e amor (BARTHES, 1984).

O álbum pode até ter sido finalizado fisicamente por José, mas ele permanece. Ao recorrer à pesquisa de Navas (2017) temos que “a fotografia pode ser ponto de partida, mas não necessariamente destino obrigatório”. Elas iniciam aqui um percurso imagético e oral que poderá encontrar caminhos outros ao longo dos próximos anos e décadas.

O próprio álbum passou e ainda passará por outras mãos e talvez novas vozes e histórias surjam desses encontros. Afinal, todo álbum demanda “contato físico, manipulação, toque. Quando viramos as páginas de um álbum, colocamos as fotografias em movimento, criamos uma sequência narrativa. O álbum faz histórias serem lembradas e trocadas, desperta as risadas e a nostalgia” (KOUTSOUKOS, 2021, p. 82).

As fotos de família talvez sejam a categoria — se assim podemos fazer com a fotografia — com maior produção em

escala mundial. Fazer fotografias e organizá-las em álbuns, pastas, cadernos ou mesmo caixas talvez seja uma das muitas maneiras que um ser humano tem para tentar definir e ordenar simbolicamente o mundo (CHALFEN apud COSTA, 2022). E tentar fugir à morte e ao esquecimento. A fotografia negocia com o tempo. Uma cena desfeita há décadas é rememorada a partir de fragmentos orais e visuais compilados por quem narra. Uma costura de saberes cosida no presente, mas sobre um passado vivido por um grupo familiar que paulatinamente deixa de existir em sua matriz inicial e segue ramificando com o passar dos anos. Talvez as histórias sejam contadas e recontadas toda vez que o álbum e as fotografias da caixa de madeira forem manuseados. Cada nova contação traz consigo características próprias do momento que é vocalizada. Sem a oralidade seria praticamente impossível resgatar e reconstruir os detalhes de cada uma das duas imagens trazidas aqui, como o maiô costurado pela garota da foto, a pose como imitação do que era visto nas revistas da época, a forte ligação afetiva entre os dois irmãos mais velhos, o cuidado de José na organização e montagem dos álbuns, a repetição de um gesto infantil por toda uma vida — com suas exceções e ficções

O relato foi gravado em áudio enquanto alguns pontos importantes eram anotados em um bloco. Interessante per-

ceber que iniciar a escrita “de memória”, sem recorrer ao áudio, fez com que várias informações ficassem distorcidas. O lapso temporal de três meses desde a gravação até a escrita permitiu que a imprecisão permeasse as lembranças da fala da avó. As horas de áudio foram retomadas e os dados imprecisos de uma das pesquisadoras foram alterados a fim de serem fiéis à narração oral da matriarca. Essa situação reforçou a compreensão de que a nossa memória é atravessada a todo tempo por nossa subjetividade e a maneira como lembramos de algo, no caso aqui, das fotos, pode sofrer alterações com o passar do tempo.

O álbum e a caixa de madeira estão guardados no mesmo ambiente em que estão também a máquina de costura, as linhas, os tecidos e alguns objetos acumulados pela avó ao longo de décadas. A mesa utilizada para ver o acervo é a mesma usada para cortar tecidos. As memórias se roçam ali, enquanto as fotografias são costuradas pela oralidade. Uma poética do imaginário construída naquele breve momento. Tão efêmero quanto o tempo de presença de um referente durante a feitura de uma fotografia. O jogo visual envolve a fotografia ao mesmo tempo em que o jogo de palavras é permeado por memória e ficção. Os diálogos entre as imagens e as pessoas que narram e as que vêm as fotos permanecem. Resta saber quem seguirá contando essas histórias.

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O TERREIRO DO PAJÉ BARBOSA: MEMÓRIAS

POLÍTICO-AFETIVAS DO

TERRITÓRIO PITAGUARY

[01] INTRODUÇÃO

Neste ensaio, antecâmara da memória experimental parte de minha dissertação 1, em que nos propomos a encarar as memórias do Pajé Barbosa pela perspectiva de nossa imaginação e fabulação, resulta de incursões acadêmicas e artísticas que esse autor vem fazendo durante a formação e em suas práticas de pesquisa com arte, mas, principalmente, tentando entender o que podemos fazer com esse legado, podemos dizer assim: das memórias e saberes que o pajé plantou em nossas mentes e corações.

[02] OSCAR, O DRAGÃO: A CIÊNCIA SEM FORMA

DO PAJÉ BARBOSA2

Sem forma-nome não quer dizer menor, muito ao contrário, o pajé nos coloca a tarefa de buscar em suas memórias, de especular abertamente sobre essa ciência, às vezes, chamada de saberes tradicionais, conhecimentos ancestrais, encantaria, conhecimento da mata e até cultura.

Sem forma, era a forma como ele se expressava para dizer que não era formado, pois não tinha sido formatado em uma forma. Não havia uma única forma de se chegar a esse conhecimento, muito menos como rotulá-lo. Ele também dizia que não queria que tivesse uma placa nos seus terreiros da Encantaria, definindo o que ele fazia, porque ali havia muitas formas de trabalhar a espiritualidade.

Essa situação nos ajuda a enfrentar certos problemas persistentes em nossas vidas e nas das pessoas com as quais vivemos, já que, elas também

1 - Link da Dissertação, PPGAS/UFRN: O Terreiro do Pajé Barbosa: memórias político-afetivas do território Pitaguary. Pesquisa no repositório institucional da URFN: https://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/54667

2 - A palavra “ciência” tem significados muito profundos no universo da Jurema, do Catimbó e outras expressões afro-indígenas nordestinas. Grosso modo, a palavra é utilizada, em diferentes contextos, como sinônimo de conhecimento religioso, fundamento, poder, magia e força criadora.

podem sugerir mundos possíveis por via de suas cosmologias, saberes e imaginação e, quando falo de imaginação, estou pensando em termos de:

Uma compreensão mais generosa da imaginação permitiria que ela transbordasse continuamente os limites da conceituação e da representação, em domínios não mapeados da consciência e do sentimento. Por imaginar de verdade, então, não quero dizer a suspensão da descrença, uma excursão à terra do ‘e se’, ou o artifício de tomar um modelo mental interior ou uma imagem do mundo para um suposto mundo exterior que pode ou pode não existir de fato. Refiro-me, antes, a uma maneira de entrar de dentro para as correntes generativas do próprio mundo, equilibrando o próprio ser na iminência de sua emergência (INGOLD, 2022, p. 04).

Essa ideia de imaginação para o autor também não pode ser confundida com a noção de criatividade ou inovação. Sua sugestão é que as pessoas se engajem em suas tarefas por um processo no qual o organismo inteiro, não há separação entre mente e corpo, produz a vida em contato com todos os seres e materiais, sejam eles humanos e não humanos. Uma visão que pretende restaurar o conhecimento da biologia para antropologia, assim como um pensamento ecológico da vida.

“Eu trabalho a espiritualidade 24 horas por dia e quando eu me for quero

trabalhar 48 horas”. Esta frase que ouvi na Praia de Iracema, no dia 15 de agosto de 2015, ficou gravada na minha memória. Ouvi-a muitas vezes através do vídeo. Para Barbosa, para desenvolver a espiritualidade, essa ciência, a pessoa tinha que “se jogar sem medo”. Entendi que toda tarefa deve ser assim, inclusive, o trabalho com as imagens, no qual não poderia encontrar limites.

Passei muito tempo intrigado com essa pintura do Oscar o dragão, do pajé [Fig. 01]. Essa foi “a primeira pintura do Barbosa”, como relatou Mãe Liduína, companheira a mais de trinta anos do Barbosa. Olhava, mas nunca o perguntei sobre o quadro. Na verdade, não sabia que era dele, somente muito tempo depois, creio que entre 2020 e 2021, durante a pandemia, entendi que ele pintava e que muitos quadros espalhados pela Casa do Meio, residência da família Gordinho, eram de sua autoria. Daí passei a prestar mais atenção e a conversar com Oscar mesmo sem saber. As imagens podem voltar seus olhares sobre nós como espelhos, só que nos retorna, em nosso caso, como algo a ser trabalhado. O que não é nossa imagem reflexiva, mas que imagem queremos produzir para o mundo e que mundo queremos construir socialmente com esses trabalhos. Ao me deter sobre as fotografias que compõem esse trabalho retorno à cena, ao quadro, às nossas memórias, momentos de afetividade, dor, alegrias

e aprendizados. Esse me parece um elemento importante a ser considerado ao fazer as escolhas e seleção imagens-memórias, porque esse fenômeno é atravessado por esses afetos e também se compõe deles. Silêncios inesperados, incertezas e muitas risadas para não levar tudo tão a sério. As gargalhadas sobravam no terreiro do pajé. Nunca sorri tanto na vida como na aldeia Monguba 3. Essas memórias estão impregnadas dessas gargalhadas que aprendi a sentir falta quando estive longe da aldeia.

Ao compor montagens, as narrativas relativas às pesquisas antropológicas podem ser críticas sem perder de vista sua poética. Foi me movendo entre um terreiro e outro, onde vão sendo traçados os rumos de vidas diferentes, aproximando-me da fogueira, ampliando o repertório através da escuta informada, enquanto artista e antropólogo, que comecei de fato a estar com essas imagens de nossas memórias para desmontá-las juntos.

[03] DESMONTAGEM

3 - Localizada no Ceará Aldeia Monguba, uma entre as quatro aldeias, do povo indígena Pitaguary.

Uma fotomontagem, com várias técnicas de inscrição e procedimentos, uma peça que reúne traços e espacialidades distintas, adquiridas no processo de “se jogar”, como dizia o pajé, na aquisição de técnicas e conhecimentos. Essas são fronteiras do ser que busca aproximação no plano da arte, reciprocidade e afeto, em um mundo onde as fabulações, sonhos e imaginação têm ficado cada dia mais cinza e nebuloso. Busco por meio dessas alianças promover encontros que nos permitam experimentar pensando nos saberes da biblioteca decolonial da mata, esses chamados saberes tradicionais e pergunto: qual fronteira desses mundos nós deveríamos romper? Que mundos por vir estamos interessados em viver? Quais conhecimentos estiveram relegados e invalidados por tanto tempo? Por meio de alguns procedimentos de desmontagem e remontagem, munido de tesoura e imagens impressas, retomo nossas memórias, muitas já descritas nesse texto. Outras receberam um tratamento do qual estou familiarizado. Os processos de produção, muitas vezes, são nomeados por trabalho de colagens e já não insisto em discutir e diferenciar quais técnicas são empregadas. O gesto de manipular essas memórias poderia ser feito sobre diferentes mídias. Os traços deixados nas composições é que me parecem

Saudades de Oscar - 2023
Pajé Barbosa
Foto: Alex Hermes
[Fig. 01]
Abismo - 2023
Pajé Barbosa
[Fig. 02]

mais interessantes de serem observados. As marcas que a tesoura deixa nos materiais, as diferentes escalas, aproximações e distanciamento propostas nas cenas compostas. São tempos diferentes que se aproximam com certa leveza. Tem uma característica da produção de vídeo dos anos noventa, algo como videoclipe. A linguagem do vídeo é um pouco solta e não tem pretensão de ter uma narrativa concisa.

Quando comecei a fazer a [Fig. 03] - A palestra com os pássaros - , tinha na minha cabeça todas as vezes em que ouvia o pajé e também guardadas na minha memória as conversas de mãe Liduína com os pássaros, que volta e meia andam no terreiro da retomada e na Casa do Meio. O elemento da máscara eu trago de uma longa pesquisa que venho fazendo e se estende sempre a outros trabalhos. Elementos da cultura popular: dos Caretas mascarados, brincantes do Cariri, dos ciclos festivos do Nordeste.

Nessa antecâmara da memória experimental, exponho algumas inquietações acerca do que pode vir a ser uma reflexão sobre habitar as memórias na tentativa de desmontar alguns cenários sociais em uma prática metodológica de decomposição e criação no âmbito da pesquisa com procedimentos artísticos por meios de técnicas da fotografia, cinema, desenho e pintura, mobilizando o pensamento sobre a montagem e desmontagem do vídeo e da videoarte experimental.

Expondo o quanto a prática e o estudo dessas técnicas, através de artífices da imagem e da composição, podem nos ajudar compreender e imaginar mundos possíveis durante investigações que nos propomos. Questões de fabulação, construção discursiva, narrativa e a potência da imagem na desconstrução que afetam o lugar em que vivemos, nossas práticas e lugares por onde nós pesquisadores habitamos e trabalhamos em um aprendizado mútuo.

Se assumirmos que, por meio dos imaginários (DURAND, 2000) da cultura, os atores sociais ultrapassam os limites da realidade fática - estabelecendo novos domínios da realidade que interagem com os contextos históricos e culturais, de modo que os indivíduos dão sentido à sua práxis cotidiana tornando-a mais compreensível - parece inevitável uma articulação com mundos ficcionais imaginativos. O tema da referência à imaginação e à composição de narrativas fictícias e o seu princípio de distância supõe a construção de uma distância simbólica através da transferência para o espaço narrativo construído, de modo a - através de encenação - curar e exorcizar o que perturba a experiência da vida cotidiana.

Porém, para que esse trabalho de cura seja eficaz, é preciso mostrar que ela também pode ser feita no que existe, ou seja, no mundo da não-ficção. Consequentemente, observar-se-ia um trânsito - nos

Palestra com pássaros - 2023
Pajé Barbosa
Foto: Alex Hermes
[Fig. 03]

dois sentidos - entre o mundo da imaginação e o da memória, onde os fatos da vida real, depois historicizados através de mundos possíveis, buscando posteriormente retornar e influenciar a realidade concreta para corrigir e reinventar o que é incontrolável e insuportável em nossa práxis cotidiana.

Quantas vezes estive na cozinha da casa de Nadya, olhando por esse ponto de vista com os pés no terreiro de casa. Cozinhando uma saudade [Fig 04], tenta dar conta dessa memória. Essas memórias não estão coladas, estão levemente aproximadas. Imagens que estiveram todos esses anos da pesquisa impressas, penduradas, guardadas em meus álbuns, e fiz também algumas cópias para a família no decorrer do tempo. Elas ficam, às vezes, sobre a mesa de trabalho e se aproximam de outras, trocando olhares e sentindo o peso do tempo umas nas outras.

As fotografias também podem ser um fardo, por não permitirem esquecermos totalmente certas coisas. Por não deixar certas coisas se irem completamente e até mesmo criarem um tipo de recordação ideal para alguns corpos. Quando um corpo de carne e osso se desmonta, uma imagem entra em seu lugar. Existe um trabalho de reposição desse corpo através das imagens (BELTING, 2010), acho que ainda temos essa visão herdada de uma psicanálise do imaginário ocidental muito forte. E ainda caminho por essa trilha.

[04] A ARTE DA CURA4

Sobre o tema o que podemos apreender diante das memórias do pajé Barbosa e seus saberes. O que elas nos ensinam? Sua premissa em relação às pessoas que cuidava era de levar a sério todas inquietações e aflições de seus “pacientes”. Pessoas que chegavam com problemas e dores na alma, como já citamos um pouco de suas práticas da medicina tradicional e da espiritualidade. Em seus terreiros, ao longo de uma vida, o pajé Barbosa praticava uma “ciência sem nome”. Um trabalho muito elaborado que ele começou a chamar em algumas situações de psicologia indígena da qual temos muitos registros e que tem interessado alguns pesquisadores. O que me interessa reter aqui sobre as memórias dessas práticas é sua potência criadora de caminhos para outras pessoas continuarem. Quanto à sua ciência sem nome, essa é ainda uma tarefa para o futuro que pode ser pensada por muitos pesquisadores e pesquisadoras.

4 - Vídeo produzido para o canal do Pajé no Youtube < https://youtu.be/CCDx6olKskI >

Cozinhando uma saudade, dedicada a Nadya Pitaguary - 2022
Pajé Barbosa Montagem: Alex Hermes
[Fig. 04]

[4.1] O ATLAS E A MESA,

A CIÊNCIA SEM NOME

DE ABY WARBURG

O Atlas do pesquisador das imagens Aby Warburg, a inspiração metodológica deste trabalho decorre principalmente de experiências anteriores que remetem ao ano de 2016 durante a residência de videodança na Escola Vila das Artes Fortaleza-CE, Residência ACHO: imagens e suas metamorfoses 2021-2022, Laboratório de pesquisa entre ontem e amanhã EAV Parque Lage 2022, através dessas experiências fui aos poucos conhecendo e adaptando a minha prática artística à obra do teórico alemão Aby Warburg.

O Atlas Mnemosyne de Warburg é a parte de seu trabalho que mais tem convocado e animado pesquisas nos diversos campos do conhecimento, majoritariamente, no campo da pesquisa em arte no qual atuou. O Atlas mnemosyne, esse método? Aparelho de visão? Suporte mnemotécnico que tinha como objetivo entrever os tempos, forças, gestos, emoções, movimentos seria talvez como Georges Didi-Huberman “especulação”. Um aparato do seu tempo, conforme ele explica.

Mnemosyne é, portanto, essa obra-prima - essa aposta epistêmica revolucio-

nária, essa nova forma de saber visualem que tudo que está ali reunido, coletado, libera multiplicidades de relações impossíveis de serem reduzidas a uma síntese. É obra de uma crise da unidade salutar e de uma crise da totalidade necessária, um conjunto de mesas para recolher o despedaçamento do mundo das imagens, para além de toda esperança - idealista ou positivista - de síntese (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 271).

O Atlas de Warburg desafiava os modelos de apresentação científica do seu tempo e eu diria que ainda desafia. Podemos saber muito mais através das interpretações dadas à ciência sem nome inventado por Warburg do que por ele mesmo em seus textos. Ele nunca tentou se explicar quanto a seus empreendimentos epistêmicos e metodológicos. Minha leitura é através, principalmente, de Georges Didi-Huberman, em seus livros “A imagem sobrevivente” (2013) e “O Olho da História” (2018). Historiador da arte, filósofo e cientista social da arte e do mundo contemporâneo, Huberman montou exposições, escreveu e especulou muito sobre a obra de Warburg e o Atlas mnemosyne de forma sempre poética, filosófica e inspiradora.

Em um dos capítulos do livro da série O Olho da História (2018), Georges Didi -Huberman se dedica a analisar as concepções filosóficas e antropológicas dos usos da MESA como suporte de observação de

conhecimento operatório. Ele demonstra os diversos procedimentos científicos, experimentais, recorrendo aos escritos de Émile Durkheim e de Marcel Mauss sobre as “formas primitivas de classificação”. Os ritos e os mitos, como hoje sabemos bem melhor o que se chama de “pensamento primitivo”, não dependem em nada do funcionamento “simples e elementar”, como Freud acabava de mostrar pelos sonhos e pelos sintomas psíquicos, eram operações complexas que atuam no “pensamento mágico”, na adivinhação e contágio empático. Conhecimentos que eram opostos às elaborações conceituais. As duas trabalham em acordo, modo de dizer que, a esse respeito, torna-se inoperante opor, a todo custo, a imaginação à razão. Já que

atual sensível, mas seguindo um rito, ele adquire por isso mesmo um valor simbólico que o torna apto a servir de campo nas práticas adivinhatórias. Isso começa por uma sequência de gestos precisos, concretos, técnicos: a arte, se assim se pode dizer, de “instalar” ou de preparar a mesa (...). E acaba com a colocação de um conhecimento novo, do qual Vernant esboça, em conclusão, o perfil epistemológico: “A adivinhação, em consequência, não se funda aqui sobre uma confusão afetiva, mas sobre classificações concretas e precisas simultaneamente, embora não superpostas a nossas classificações científicas. (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 55).

Uma metodologia inspirada no Atlas deu materialidade e visualidade ao ato da desmontagem e remontagem entre imagens, gestos e corpos que buscavam entendimento mútuo.

Warburg poderia ter sido um Xamã se nascido em uma aldeia, por levar tão a sério a imaginação e as imagens. Assim o Xamã Davi Kopenawa Yanomami. Faço essa aproximação com esses pensadores porque me ajudam muito a pensar nas possibilidades de trabalho com a memória e as imagens.

No entanto, o que tento demonstrar é que esse saber, que vai sendo refinado ao longo das diferentes situações em que existe um equilíbrio entre a atuação dentro e fora; com e entre esferas de negociação, faz do pajé Barbosa um curador, um mestre, como ele mesmo dizia, “sem forma”, ou como escreveu Davi Kopenawa: um trabalho de tradução de mundos.

Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória é longa e forte. Mas voltam a ser novas sempre que eles vêm de novo dançar para um jovem xamã, e assim tem sido há muito tempo, sem fim (KOPENAWA, 2016, p. 75).

Barbosa voltou-se às práticas de renovação e a manutenção da saúde e do bem-estar ao longo do ciclo de sua vida, dedicando a isso boa parte do seu tempo, desde que assumiu o cargo de pajé, dialogando com as redes sociais de pesquisas e a socialização dos saberes tradicionais para promoção da saúde e participando de eventos e pesquisas, principalmente. Mas não só. Os saberes tradicionais são produzidos e transmitidos de maneira muito diferente dos conhecimentos científicos gerados nas universidades. Eles não são “transmitidos” e tratados de modo igual, mas sim de maneira adequada ao contexto em que são gerados. Os saberes tradicionais do pajé Barbosa são, na maior parte das vezes, produzidos coletivamente e transmitidos e disseminados oralmente. Desse modo, a proteção dos direitos das comunidades sobre seus conhecimentos requer criatividade. As próprias pessoas detentoras desses conhecimentos reconhecem que eles não têm dono, têm herdeiros.

[05] CONSIDERAÇÕES

FINAIS

As várias formas de apreensão, captura, guarda das memórias e fenômenos não concorrem entre si. Imagens técnicas têm seu suporte e lugares, assim como as imagens/memórias que levamos no corpo, assim como o fato de não haver um pré-requisito para trabalhar com as imagens consagradas. Essas questões podem ser intercambiáveis, como exposto, ficando, justamente, com esse tipo de problema, não tentando achar uma resposta para ele ou o porquê de não mostrar as imagens. Inflacionando o mistério e a carga mística que isso poderia acarretar, as interdições existem e a prática do segredo também. Mas achei produtivo aprender mais sobre eles praticando os limites e indo pelas beiradas dos problemas.

Questões delicadas e éticas se impõem à utilização dessas imagens. Preservar a intimidade e privacidade das pessoas tem sido um dos meus guias e acredito que essa resiliência frente ao desejo de compartilhar com uma comunidade mais ampla esses registros da pesquisa também é um aprendizado na medida em que tenho que buscar entendimento de como fazer esse trabalho.

O que foi possível até aqui está declarado em procedimentos de colocar

as fotografias impressas sobre a mesa de casa e pensar se elas poderiam sair dos seus silêncios, alterando suas posições em pequenas retomadas. Sacudindo a poeira dos álbuns em gestos curtos e possíveis, que foram se elaborando em diversos ensaios e filmes em que, ao longo dos últimos anos, trabalhamos nos nossos arquivos e histórias, produzindo narrativas compartilhadas. Guiado pelas noções e sentidos também elaborados em casa, nos mesmos espaços que comemos, dormimos e fazemos nossos rituais. Não havia ateliês, estúdios ou espaços especiais elaborados para o trabalho. Aprender a aprender é um método que se produz fazendo, dentro do que é possível e das capacidades de cada um de, só ou coletivamente, reunir e animar os parentes. Mantendo a fogueira acesa, fazendo festas para nos lembrarmos delas nos momentos de resignação.

A identidade social dos povos de terreiro é uma identidade já por demais sofrida. O racismo atingiu e continua a violentar os terreiros e os povos indígenas. Sabemos disso cotidianamente. Não quis fugir dessa questão da ordem do dia. Preferi abordá-la de forma para não ser a pesquisa mais um inconveniente ou provocar tensões e preocupações às pessoas com suas decisões e atitudes ou questioná-las sobre suas tomadas de posição frente à sociedade. Adensando e propondo formas de abordar a visibilidade das memórias, identidades e a transmissão do conhe-

cimento ampliamos os repertórios para ambos os lados. Passamos a reconhecer melhor nossos métodos e limites em jogo na pesquisa na qual todos estão, de algum modo, participando e colaborando.

Na maioria das vezes, acabamos constatando que as boas etnografias produzem boas informações e geram mais perguntas, abrindo o campo a muitas outras possibilidades de investigação.

A minha hipótese é que, ao nos aprofundarmos nas questões impertinentes que o campo nos coloca como desafios, incompatibilidades a priori, acabamos por puxar fios que jamais se conectam. Sem experimentar algo mais ousado, mesmo que esse gesto seja um caminho que aparentemente não leve a nada ou a uma produtividade aparente à primeira vista, avançamos a partir do trabalho de pesquisa. Avançamos criando caminhos compartilhados.

A prática artística, junto aos métodos antropológicos, foi uma boa forma de interpretar, traduzir os gestos e modos de fazer a pesquisa. A arte é uma boa mediadora dos mundos. O gesto artístico mais que tudo. E não se trata apenas de usar as orientações e os conceitos derivados do campo da arte, mas de usar a linguagem da arte para nos comunicarmos em campo. Ficando atento à poética da vida que as pessoas nos propõem, podemos entrar em sintonia com elas e propor juntos mundos habitáveis entre todos os que se dispõem a embarcar nessa história

dos “saberes tradicionais”. Cosmologias que nos informam e formam para uma vida mais sustentável, inclusive para que possamos trabalhar melhor com essas imagens.

As memórias do pajé Barbosa são entendidas como uma ecologia de saberes de um processo coletivo de produção de conhecimentos, que visa reforçar as lutas pela emancipação social do seu povo e dos outros povos tradicionais com quem mantém alianças em torno do bem viver na terra.

Os povos tradicionais, povos originários, quilombolas, afro-brasileiros, assim como outros, como vimos, lutam para que seus territórios possam ser preservados no Brasil, assim apontam para um futuro no qual as mudanças climáticas estão atingindo a todos. Suas práticas, tecnologias e costumes ligados à espiritualidade e à produção da terra, como outras formas de fazer e de compreender o conhecimento, estão situados no território. Com ênfase na espiritualidade e no papel de destaque dos rezadores e benzedores no processo de mediação quanto ao uso das plantas medicinais, como importantes recursos naturais para a promoção da saúde, esse conhecimento ancestral ressignifica o presente e informa o futuro, tanto para as comunidades humanas quanto para as não humanas. Essas memórias são importantíssimas para todos.

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CURADORIAS VERNACULARES

NO SERTÃO DO PAJEÚ

PESQUISA: SERTÃO DE

LEMBRANÇAS

[01]

OUTRAS HISTÓRIAS

DA FOTOGRAFIA

Entre as diversas historiografias da fotografia mais ou menos consagradas como referencial teórico ou empírico há uma tendência de encaminhar a abordagem histórica no sentido de uma continuidade ou de nucleação. Enquanto continuidade, o desenvolvimento da fotografia em meio ao século XIX, é impregnado de cientificismo e de uma crença no progresso apoiado na modernidade, o dizer histórico da fotografia adota a linha de tempo ininterrupta e linear (NEWHALL, 2002; GOLDBERG, 1991; HIRSCH, 2000).

Nessa perspectiva, a fotografia e seus deslocamentos são agrupamentos de eventos, fatos e acontecimentos que marcam a construção do processo social, cultural e histórico da fotografia buscando uma teleologia totalizante.

Não à toa, percebe-se, no guarda-chuva das histórias sobre a fotografia que ela é abordada como história da técnica (GUSTAVSON, 2009), dos autores, das imagens, dos estilos, das escolas e movimentos, dos documentos, dos geográficos e geopolíticos. Essa opção é assimilada e influenciada pelo precedente de histórias assentes na história das artes.

Esses recortes metodológicos ao produzirem agrupamentos que

abordam os acontecimentos ligados à fotografia segundo uma ordenação teórica-epistemológica que produzem, em paralelo, lacunas e obliterações, esquecimentos que, se não anulam os projetos de contar a história da fotografia, acusam fissuras e incompletudes.

No caso de pensar as “histórias das fotografias” no plural, é Walter Benjamin no seu “Pequena História da Fotografia” o que adota uma perspectiva de olhar para as bordas, os fragmentos e as migalhas que não estão colocadas à mesa do banquete da história; seja essa como disciplina geral; seja no específico da própria fotografia.

Para Benjamin (1994, p. 91), a condição reprodutiva da fotografia, que acusava as estratégias de formação de sentido e sensibilidade segundo uma ordem capitalista e massificada, era também uma produção descentrada, múltipla, fragmentada. A fotografia é sintoma de uma ordem moderna, tornada possível na sua convergência entre ciência e arte; e é também alavanca dos modos de produção do sensível fora dos eixos canônicos da obra como algo único. Quando fala da fotografia, Benjamin defende que a aura na obra de arte é descorporificada da tradição, quebrando a ideia de unicidade e sacralidade. Ora, isso se comunica com a relação popular que a fotografia assume na sociedade e na cultura, tanto na prática vernacularizada de produzir, como nos modos massificados de sua circulação.

Este pensamento, reverberam outros textos do autor. De modo mais evidente em “O Narrador, considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” e “Sobre o conceito de história” (BENJAMIN, 1994, p. 182). No narrador, o autor defende que a arte de narrar está em modo de extinção, como se um dos sentidos, ou uma faculdade inerente à construção do humano, a de relatar experiências, de contar histórias, fosse extraída. As melhores narrativas escritas são “as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”. (1994, p. 198). Tendo Leskov como exemplo, ele não o chama de escritor, mas de artesão. Narrar é um trabalho manual. A narrativa é uma forma de comunicação onde o narrador “deixa sua marca” sobre o que é contado.

Em “Sobre o conceito de história”, ao seu turno, a possibilidade das fissuras reaparece como uma crítica mais aguda ao projeto do historicismo. Sobre este, ele representaria um “tempo homogêneo e vazio” (1984, p. 229). A crítica é: ao se remeter ao passado de modo a dar coerência ao presente, se gera uma acomodação política, social e cultural. Isso está, porque foi assim. Nesse olhar, o historiador de gabinete, é um profeta com o olhar voltado para trás. É o sujeito que primeiro acha e depois procura.

No geral, é sobre o historicismo na fotografia decidir sobre o já decidido. A fissura possível, percebida no autor, é que a

própria noção de punctum, como algo particularizado, de lógica singular e pessoal, emerge na direta relação entre fotografias e experiências recuperadas. Pode-se perceber que a Câmera Clara, como livro, é uma operação de curadoria (BARTHES, 1997). Através do modo como Barthes organiza as imagens e escreve sobre elas como sendo simultaneamente, uma história não linear, assistemática e pessoal sobre certas experiências com a fotografia; onde o conjunto de imagens menos assume unidades consolidadas em torno de correntes, movimentos ou perspectivas estéticas do que um olhar estético sobre o objeto.

Depois de Barthes, esse questionamento crítico de uma monumentalização da fotografia está presente em Michel Frizot, editor e organizador da Nouvelle Histoire de la Photographie (Bordas, 1998). Este, é o resultado do trabalho de autores que nos oferecem uma visão crítica da história da fotografia em que os temas apresentam diferentes nucleações. Mais recentemente, Joan Fontcuberta (2003) opera exercício semelhante em Fotografia: crisis de la história, onde nos diferentes textos e autores, se coloca em xeque o centralismo historicista da fotografia.

[02] DO HISTORICISMO

À CURADORIA

Nos últimos anos a figura do curador e o processo de curadoria tem ocupado protagonismo na sistematização e organização de arquivos, acervos, fortunas críticas, conjunto de obras, fundos visuais, enfim; dos conjuntos representativos e das estratégias de visibilidade e valoração como estratégias de ocupação dos circuitos de autorização.

Como circuito de autorização, entende-se a definição de Clarissa Diniz, que aponta os objetivos de legitimação e autenticação da obra/ artista consoante um percurso acumulativo. A legitimação se daria pelos pares, capital, social, instituições, mercado, mídia, público, ensino e especialistas. Estes últimos, nucleiam sujeitos dedicados à critica e à curadoria, por vezes com os papéis sobrepostos na mesma pessoa.

A crítica de arte - talvez a mais difundida e reconhecida dessas disciplinas (ainda que, nas últimas décadas, a curadoria venha desempenhando um papel essencial) - tem, de acordo com a origem etimológica do termo, a função de ‘discernir’, ‘escolher’ e ‘julgar a obra de arte, atribuindo-lhe - como vem fazendo toda a tradição da crítica - um juízo de valor que, além de dar

conta de sua interpretação, a avalia, indicando (ou não) a sua validade. Assim, fazendo uso da legitimidade adquirida com a experiência e o conhecimento, o especialista em arte apresenta uma “autoridade” relativa a partir da qual pode legitimar ou não um artista (DINIZ, 2008, p. 121.).

Destarte, entende-se que a autenticação e legitimação de um corpora visual e fotográfico também obedece a lógica de dispositivo social, histórico e político do mundo da arte. Assim, valida de modo sobreposto e interdependente as dinâmicas alimentadas por pressupostos históricos, sejam eles historicistas, ou de crítica à história. É um jogo tautológico.

A curadoria se edifica acessando repertórios. Nesse sentido, o curador assume um conjunto de interoperações transversais onde envolvimento de fatores não possui limites claros, podendo variar em intensidade, abrangência e penetração. De um contexto a outro, de um curador a outro. É pois, uma delicada combinação de elementos nem sempre perceptível ao público, mas que de certa forma orienta, delimita, determina e estabelece horizontes possíveis de recepção, assimilação e valoração, criando condições para a monumentalização de autores, obras, escolas, linhas estéticas, movimentos, técnicas, políticas e contextos mais ou menos específicos que permitem o descolamento de um certo conjunto de fundo mais geral.

A emergência do curador como elemento central no dispositivo da arte e também da fotografia (sem aqui cair na velha e falsa cilada se fotografia é arte), se dá de modo acumulativo.

Durante a década de 1960, o discurso primário em torno da arte em exposição começou a se afastar das formas de crítica da obra de arte como objeto autônomo de estudo/crítica em direção a uma forma de crítica curatorial, na qual o espaço da exibição recebia precedência crítica sobre os objetos de arte. A crítica curatorial difere da crítica de arte tradicional ocidental (ou seja, ligada à modernidade) na medida em que seu discurso e assunto iam além da discussão sobre artistas e o objeto de arte, para incluir o tema da curadoria e o papel desempenhado pelo curador de exposições (O’NEIL, 2007. p.13)1 .

De certo modo, essa perspectiva permanece, dando ao curador a potencialidade de dispor a prática curatorial

1 - No original: “During the 1960s the primary discourse around art-in-exhibition began to turn away from forms of critique of the artwork as autonomous object of study/critique towards a form of curatorial criticism, in which the space of exhibition was given critical precedence over that of the objects of art. Curatorial criticism differed from that of traditional western art criticism (i.e. linked to modernity) in that its discourse and subject matter went beyond discussion about artists and the object of art to include the subject of curating and the role played by the curator of exhibitions. (tradução do autor)”.

como um espaço de crítica. Prosseguindo, a implicação mais direta nessa relação entre obras, artistas (fotógrafos também) e curadores, é que predominantemente, ocorre uma cisão entre a prática artística de um lado, a prática do curador, do outro e a obra no meio, tensionada por disputas nem sempre aparentes.

Assim, o curador como artista (JEFFREY, 2015, p. 7) passa a produzir valor cultural. O resultado, visibilidade e projeção cria uma camada adicional de autorização, parte intrínseca e vital do que Theodore Adorno e Max Horkheimer já nos anos 1930, denominaram “indústrias culturais” associadas a: entretenimento; cultura de massa; o empreendimento de comunicações de recepção de massa; e como parte da indústria da consciência (ADORNO e HORKHEIMER, 1995, p. 120167). Curadoria é, portanto, um enunciado, uma forma contemporânea de retórica cujas estratégias visam produzir um conjunto prévio de valores e relações sociais na dimensão pública.

No campo específico da fotografia, o circuito de autorização se manifesta de modo semelhante, agrupando, direcionando e validando conjuntos e acervos, como também situando fotógrafos autores, correntes estéticas, movimentos, técnicas e tecnologias. Retomando o pensamento de Benjamin sobre a história, a curadoria pode ser compreendida entre duas extremidades de uma ponte temporal:

revalida repertórios fotográficos e acontecimentos do passado no interesse de dar coerência ao que se manifesta atualmente na fotografia; e, ao seu turno, criar marcos de validação sobre práticas e obras da atualidade projetando-as para o futuro. Não à toa, no cenário da fotografia autoral, uma anedota que circula é: me diga quem é o seu curador e te direi que fotógrafo és!

A Curadoria tem, portanto, a pretensão de ordenar sobre essas duas faces do tempo. Em que se agrave ser uma atividade extremamente impregnada de unilateralidade, o posicionamento crítico aqui não se direciona somente nesse sentido. A ênfase é sobre o que se constitui, no ato de curadoria, a obliteração do que se coloca nas bordas do circuito de autorização, da validação.

[03] DO CIRCUITO

DE VALIDAÇÃO

ÀS FOTOGRAFIAS

VERNACULARES

A cisão mais evidente e negligenciada, é entre a fotografia que se ordena como historicismo, pois tem visibilidade e circulação pública, da outra, que se organiza de modo vernacular. Processos curatoriais em larga maioria, não importam as fotografias domésticas, caseiras, familiares, como conjuntos válidos ao seu projeto.

Essa opção narrativa cria uma história da fotografia que, se não distorcida, é incompleta. Descarta o enorme repertório de imagens anônimas, por optar por uma fotografia de autor; silencia sobre uma fotografia ingênua, naïve, por escolher correntes estéticas bem definidas; ignora a construção das mitologias particulares do álbum de família, por concentrar-se nas fotografias de grande impacto social. A fotografia vernacular paga um alto preço no hall das práticas fotográficas pelo fato de não ser lida para além da sua suposta superficialidade (AFONSO JR, 2021, p. 140).

Em que pese que inúmeras pesquisas sobre as fotografias que habitam álbuns domésticos, caixas de sapato e

paredes das casas tenham sistematizado a importância destes modos de existência da fotografia no seio do privado, a clivagem que surge nesse cruzamento é: pode-se conceber a fotografia vernacular como corpo e objeto de uma ação curatorial? O desafio é duplo: envolve tanto olhar as fotografias fora dos circuitos de autorização canonizados; como questionar ou criar processos diferenciados de validação para conjuntos de fotografias que são ordenados para usufruto doméstico.

Em outras palavras, na historiografia silenciada da fotografia vernacular há processos semelhantes, também não uniformes, de guarda, seleção, organização, preservação e atos do mostrar. Há uma curadoria doméstica que é diferente da sua meia-irmã institucional menos nos modos de procedimentos operacionais, do que nas motivações afetivas existentes entre quem organiza e que vê essas imagens. Os pertencimentos mútuos, a alimentação de lembrança familiar e comunitária e a capacidade de narrar sobre imagens como um ato de artesania, que se repete, mas nunca é igual na recuperação das lacunas e fissuras. É algo que rima com o Narrador em Nikolai Leskov. É quando a fotografia está sujeita a uma séria de instabilidades no que tocam à sua releitura e interpretação. Riscos e ameaças semelhantes à impermanência das conversas coloquiais.

[04] CURADORIAS

DO VERNACULAR

É Geoffrey Batchen que rompe essa linha canônica, deslocando a possibilidade do curador caminhar pelos territórios das fotografias vernaculares. É quando a abordagem troca o foco da história para as estórias. No catálogo da exposição, Forget Me Not (2004), o autor ressalta a importância dessas imagens, reforçando o aspecto da experiência da memória e lembrança.

Mas a fotografia é realmente uma boa maneira de lembrar as coisas? A pergunta exige que definamos o que queremos dizer com “memória”, pois existem muitos tipos de memória e muitas maneiras de lembrar. Há até mesmo um tipo de memória que chamamos de “fotográfica”, que significa uma lembrança exata e autoconsciente de eventos, cenas ou textos passados (BATCHEN, 2004, p. 14).

Prosseguindo, o autor recorta o campo de circulação, visibilidade e endereçamento do conteúdo visual das fotografias vernaculares, e aí estabelecendo uma delimitação por onde o ato doméstico de guardar, organizar, selecionar e exibir essas fotografias, podem definir linhas de uma curadoria em âmbito doméstico.

Exibidos em salões ou salas de estar ou como parte do trajeto diário, esses objetos ocuparam um espaço liminar entre público e privado. Eles eram, em outras palavras, destinados a fazer seu trabalho uma e outra vez, e a serem vistos por íntimos e estranhos. [...] A fotografia geralmente é sobre tornar as coisas visíveis, mas essas fotografias elaboradas são igualmente dedicadas à evocação das relações invisíveis, emoções, memórias. Eles afirmam a proximidade da vida e da morte e tentam, contra o senso comum, usar um para negar a finalidade do outro (BATCHEN, 2004, p. 96).

Esse deslocamento das noções mais gerais permite a curadoria ser dimensionada para além das fotografias que circulam publicamente. Mas, a percepção do autor é no sentido, ainda, de curadores que possam olhar para as fotografias domésticas. Ainda há o especialista. Aqui, ele ou ela ainda é o filtro que aborda os conjuntos de imagens orientado por valores do próprio acúmulo historiográfico da fotografia. Claro, boa parte das coleções de fotografias familiares se parecem umas com as outras. Há uma homogeneidade de conteúdos trazidos pelos tempos, nos modos de posar, nas ocasiões escolhidas para registro, no gênero do retrato. Contudo, o que não se pode alcançar são os protocolos de intenção sobre cada coleção de fotografias. Cada casa, curador doméstico teria seus

próprios padrões de abordagem? Seja no sentido de organizar, mostrar e falar “dedicados à evocação das relações invisíveis, emoções, memórias?”

No caminhar da pesquisa Sertão de Lembranças2, parte da metodologia foi encontrar informantes mantenedores de fotografias vernaculares que alimentam a abordagem empírica e interacional da investigação. Durante dois anos e meio, homens e mulheres, numa relação decantada de aproximação, se dispuseram a falar sobre “tipos de memória e muitas maneiras de lembrar” a partir das fotografias em suas casas. Notou-se que os informantes são em grande maioria, algo em torno de 80%, de mulheres que se dão à tarefa permanente de manter fotografias.

O trabalho sobre conjuntos obedece de maneira assistemática, variam de uma a outra dessas guardadoras de imagens. Há critérios próprios. Em que pese que esse esforço seja elaborado na vivência com as imagens e de modo e não acadêmico, pode-se detectar alguns padrões, que preliminarmente no escopo desta pesquisa, denomina-se modelos de curadoria vernacular.

2 - Conferir os textos anteriores da mesma pesquisa apresentados no GP de Fotografia da Intercom. Em 2021; Sertão de memórias. Entre fotografias na parede e versos de improviso. Em 2022; Alguma fotografia do Sertão. Entre a memória e a lembrança. Conferir nas referências.

[05 ] CINCO

CURADORAS NO

SERTÃO DO PAJEÚ

O objetivo aqui é tanto no sentido de ampliar a noção de curadoria, como também dessacralizá-la, desconectando-o das influências historicistas, e aproximando de uma dinâmica de pertencimento familiar e doméstico, ligado à vivência, ao território e à lembrança. Em que pese não intencionar ser definitivo, o objetivo é traçar algumas linhas de força dessas abordagens, no sentido de também dilatar uma compreensão da relação curatorial com as histórias da fotografia vernacular de modo mais conciliador.

[5.1] A CURADORIA WARBURGUIANA.

MARIA DE LOURDES

A primeira informante que reúne uma característica específica na relação com as fotografias, é a Sra. Maria de Lourdes Gomes Nunes, conhecida como Dona Lourdinha, professora de matemática aposentada, que reside no sítio Minadouro, área rural da cidade de Ingazeira, sertão do Pajeú. No modo de organização das fotografias nas paredes de sua casa, A sra. Maria de Loures as agrupa por semelhanças. A clivagem entre vivos e mortos, e a alternância e substituição de imagens dos vivos do modo periódico. É um alinhamento no espaço doméstico de um tipo de clivagem, ou de pertencimento comum elaborado em grupos.

Nesse sentido, as fotografias respondem a um olhar humano, específico, que no ponto de vista da informante, tende a paralisar certas dinâmicas da vivência, de um lado; e dinamizar a experiência do presente, do outro. É uma teia de linhas invisíveis, só acessível a partir do sujeito que as organiza, que ao passo que sistematiza relações com o vivido, reivindica um saber sobre o conjunto específico colocado à mostra. É um saber-imagem que remete a dinâmicas simultâneas por seme-

lhança. Desde configurações da vivência sobre o lugar e o tempo, como experiência da anamnese, psicológica e simbólica.

Quando o espa ç o intermedi á rio entre o eu e o mundo exterior se torna o substrato da criação artística s ão satisfeitas as premissas graças às quais a consci ê ncia dessa dist â ncia pode tornar-se uma função social duradoura que, através da alternância rítmica da identificação com o objeto e o retorno à sophrosyne3, indica o ciclo entre a cosmologia das imagens e aquela dos signos. Trata-se de andamento circular cujo funcionamento mais ou menos preciso, enquanto instrumento espiritual de orientação, acaba por determinar o destino da cultura humana (WARBURG, 2010, p. 125).

Destarte, a maneira de interação entre as fotografias, as paredes e a subjetividade da Sr.a Maria de Lourdes, a colocam numa dimensão de organização do material no que pode-se afirmar, como uma curadoria warburguiana, no sentido de sempre realimentar uma particularidade, um ritmo dado pela existência (a alternância das fotos dos vivos, bem como a fixidez no caso dos falecidos).

3 - A etimologia do termo sophrosyne de vem do grego, quer dizer estado mental saudável, paz de espírito, controle, equilíbrio e moderação diante de situações conflituosas. Difere-se da hybris que é o excesso, vício. Sophrosyne é, portanto, o controle; a justa medida; o necessário. - Nota do autor.

Na sua singularidade de arrumação das fotografias nos espaços da casa, em um corredor específico que liga a sala à cozinha, passando pelo acesso aos quartos, Dona Lourdinha organiza nas paredes as fotos segundo a ordem dos vivos e dos mortos. Mas a cada ano, cada mês as fotos são reformuladas, entram as mais recentes. Tem da família, tem dos sobrinhos, de aniversário, de neto, de tudo tem.

[5.2] A CURADORA FOTÓGRAFA. SRA.

DJANIRA CHALECA

Djanira Chaleca, fotógrafa aposentada ao lado do seu falecido esposo, Antônio Chaleca, assumiu por mais de 50 anos o papel de fotógrafa no município de Tuparetama, sertão do Pajeú. Ao longo desse tempo, pode reunir o testemunho de centenas de eventos registrados na cidade. Desse acervo, em parte reunido na sua casa, em parte no depósito da antiga casa comercial que abrigou o negócio, atualmente transformado em uma loja de roupas.

A Sra. Djanira Chaleca guarda seu acervo de imagens pessoais e de parte da história das pessoas de Tuparetama juntamente com as câmeras utilizadas. Ao mesmo tempo, pode-se acessar os registros e parcialmente o modo técnico de obtenção das fotografias. O sentido encampado nesse modo de organização, reúne a noção de testemunho ocular como presencial.

Simultaneamente, permite informar as condições compartilhadas dos fotógrafos da cidade, no caso, com o profundo conhecimento das pessoas que retratava, às vezes, desde o nascimento até a morte. Complementado, reside no seu testemunho tanto a vivência com o

falecido esposo e a recuperação de um certo modo de uma história da fotografia: o que era ser fotógrafo ou fotógrafa no sertão do Nordeste, em meio à precariedade de recursos.

Sra. Djanira, conhecida na cidade como “Dona Dêja”, agrupa fotos da própria família em variado repertório de técnicas, que vão da fotopintura, fotos de impressões múltiplas e acervo de acontecimentos de Tuparetama entre os anos 1960 até os anos 2000. A maioria em preto e branco, envolvia festa de batismo, primeira comunhão, quinze anos, casamentos e registros funerais; já que muitos cortejos fúnebres passavam em frente ao estúdio, fazendo uma parada, chamando o fotógrafo para fazer o último registro visual do morto.

[5.3] A CURADORA

COLETADORA. SRA.

MARIA DA DORES

A sra. Maria das Dores atualmente planta no seu quintal, rosas do deserto, espécie de planta bem adaptada ao semiárido nordestino. Por anos, contudo, foi funcionária da pequena agência dos correios no distrito de Brejinho, município de Tabira, atividade que lhe rendeu o apelido de “Maria dos Correios”. Ela, por sua vez, tinha e temo hábito de, toda vez que um acervo de fotos do povoado vai ser descartado, seja pela morte de alguém, seja por mudança de uma pessoa, ela aborda a situação dizendo: “jogue fora não! Deixe comigo que eu guardo”.

As narrativas que surgem da fala da Sra. Maria do Correio são mais preenchidas por relatos curtos e breves, fragmentados. Saber algo sobre as fotografias, por vezes de modo isolado, a coloca em um modelo de coletadora de imagens mais do que colecionadora. Equivale, em certo sentido, no esforço curatorial ao encontro de acervos sem sistematização, salvo aqui neste caso, pelo fato do pertencimento que estabelece um vínculo, sustentado pela memória e lembrança, dos personagens e circunstâncias que envolvem as aparências possíveis de serem narradas.

É um gatilho as vezes abreviado, disparado no presente e no encontro, no toque das imagens. Nas suas caixas as imagens repousam. Guardam experiências embutidas, latentes, mas sobretudo, as lacunas não sistematizadas. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que a Sra. Maria do Correio, de certo modo assume o papel na comunidade de guardiã da memória visual, por caminhos improváveis, é verdade, mas que se materializam nas caixas e mais caixas do passado vivido em Brejinho de Tabira.

Maria do Correio, coleta fotografias que seriam desprezadas ou perdidas. As guarda em caixas de papelão sem muita ordem. Mas é capaz de ir puxando foto por foto e narrar sobre elas. Consegue estabelecer vínculos entre personagens em fotos e caixas diferentes. Em grande maioria, os retratados são ou forma moradores da mesma localidade. Todos os anos, organiza a festa de reizado do distrito, no dia 6 de janeiro.

[5.4] A CURADORIA DE RESTAURAÇÃO. SRA.

MARIA EURÍDICE

LEITE DE ARAÚJO

“Aí eu colava num caderninho e ia juntando com os desenhos que a gente tinha. Só que a casa pegou fogo e perdi as fotos todinhas. Mais velha começei a juntar tudinho. É uma forma de refazer o caderninho. De reconquistar. É, de reconquistar a memória.” “Começou aí, quando peguei umas fotos com amigas, e mandei restaurar, junto com as que tinha em casa que eram antigas.”

Mocinha busca restaurar não somente fotografias, mas de certo modo, o caminho visual que estabelece o seu pertencimento ao vivido, entre pessoas, testemunhos e o chão que habite. Nesse sentido, a busca por acervos espalhados e o ato de reunir, restaurar, gerar uma cópia tratada, guardar os arquivos digitais, reúne uma série complexa de saberes de como e para que guardar. Para a cidade, ela se tornou uma referência dos acontecimentos em Itapetim durante o século XX, visto que muitas das fotos antecedem a data de nascimento dela. Além de restaurar há uma preocupação de organizar as imagens por semelhanças. Antepassados,

ofícios, cantadores, membros da família, vistas urbanas e construções. A restauração aqui deve ser entendida de modo o mais amplo possível.

A Sra. Maria Eurídice Leite de Araújo, conhecida como Mocinha na cidade de Itapetim, Sertão do Pajeú que divisa com o Estado da Paraíba, recolhe fotografias entre amigos, conhecidos e pessoas da comunidade. Além das próprias fotos de família, ele as pede emprestadas, encaminha a um especialista em photoshop, que as restaura digitalmente. Paga do próprio bolso. Depois devolve as fotografias aos proprietários e as organiza em uma série de álbuns temáticos onde se dá a ver aspectos da vida da cidade, personagens relevantes e anônimos. Tudo relatado pelo testemunho da ex-professora aposentada.

[5.5] A

CURADORA POR

PARTILHA. SRA. MARIA

CRISTIANA DA SILVA

Dona Santa preserva não somente fotos da família durante um certo período. Ela protege o registro e olhar de Lúcia, a irmã ausente, partilhando o ato de enviar e distribuir fotografias para a parte familiar que morava distante, no Sertão. Nas caixas e bolsas, repletas de registros das viagens de Lúcia, quando viva, ao Pajeú, representa-se o cuidado do ato de guardar, mas também a preservação do ato de compartilhar da parte ausente. Fala sobre o que está nas fotografias e também da relação entre as irmãs. Em circulação privada, no seio familiar, o conjunto guardado, protegido e narrado foi possível na partilha de afetos e imagens.

Entre todas lacunas existentes no ato de guardar fotografias de maneira não assistemática, a única forma possível de acessar a parte narrável das vivências contidas, é, como em muitos outros casos, a voz de D. Santa. Esse acionamento é bem presente na própria fotografia vernacular. São os sujeitos e autores presentes na fotografia, atados por pertencimentos aos narradores. Neste caso, o que permite ver o exercício de D. Santa com as fotografias suas e da sua irmã é um ato de

preenchimento que é dado pela cooperação entre elas de modo descontínuo e ao mesmo tempo, partilhado. Antes, evocado pela separação geográfica, e agora, pela ausência.

Sra. Maria Cristiana da Silva, conhecida no Sítio Redonda, área rural de Tuparetama, como Dona Santa. Teve uma irmã que migrou para São Paulo, ainda criança e passou trinta anos sem dar notícia, depois apareceu de volta. Segurando a foto da irmã, Lúcia, lembra que quando vinha de São Paulo para o sertão “ela fotografava tudo, tudo. Depois revelava e mandava uma copia de cada, para mim”. “E essas fotos aqui pra mim valem mais do que dinheiro, É a história da Lúcia, a história da família está toda aí.” Depois, Lúcia adoeceu. Antes de falecer, disse aos filhos em São Paulo: “Tirem todas essas fotos da parede. Quebrem, rasguem e queimem. Essa parede tem que estar livre e limpa para novas lembranças”.

[06] PROVISORIAMENTE, CONCLUSÕES

Este texto inicia e se desenvolve questionando o lugar da noção de curadoria inserido em circuitos de autorização cujos conceitos operativos são tributários da historização da arte e da fotografia. Essa operação, pode ser vista na crítica benjaminiana, direcionada simultaneamente em tripla frente: na história, que de certo modo, sobrepõe um diagnóstico sobre a percepção dos acontecimentos de cada época segundo prismas políticos; uma crítica sobre a própria disciplina da história que anula o narrar, a micro história das pequenas coisas e eventos banais; e como se ordenam acontecimentos para serem históricos.

Mais que somente Benjamin estar nas dinâmicas de poese da lembrança do Sertão do Pajeú, este território ecoa no pensamento benjaminiano, por ser antigo, por se costuras nas bordas do historicismo, por ser semelhante no narrar como ato de artesania sobre o vivido e suas fotografias. Diante de uma cultura moderna e industrial, que massifica, iguala, padroniza e aliena a presença do trabalho, seja para fabricar bens de consumo massificados e bens culturais; o ato de narrar, sendo obras de artesãos da fala, é tanto uma emergência das fissuras do projeto moderno como um ato de resistência.

O narrar sobre fotografias, ao seu turno, desdobra-se além da dimensão institucional que valora segundo acúmulos de autorização e validação orientados institucionalmente e por um dimensionamento disciplinar de como certos conjuntos – artísticos e/ ou fotográficos – devem ser abordados para ocupar os circuitos de autorização. Nesse sentido, o desprezo às possibilidades da fotografia vernacular é duplo.

Primeiro, acusa a percepção, algo dogmática, que essa parte não contada da história da fotografia é algo menor, repetitivo, monótono, que não aporta para os espaços e práticas de validação estética, autoral, histórica, estilística ou técnica da fotografia, por isso não é digno de ações curatoriais. Segundo, mesmo com esforços de entender essa parte posta à margem, o olhar de sistematização curatorial é posto sob uma perspectiva especialista.

Destarte, nomear de curadoria a ação dos sujeitos com pertencimento direto sobre os conjuntos de fotografias vernaculares, é assumidamente uma abordagem de provocação. Primeiro, por aplicar um conceito, a curadoria, em sentido inverso ao de cima para baixo, invertendo o sentido. Segundo, por perceber nesses modelos de cuidar de fotografias a presença de elementos, critérios, linhas de força que, de modo assistemático e assentados na experiência cotidiana, pontos essenciais e semelhantes aos praticados na curadoria institucional.

A singularidade desse modo vernacular de reunir, proteger, exibir as fotografias de modo particular pôde ser percebida no percurso da pesquisa Sertão de Lembranças. Não se arrisca dizer ainda que tais modelos de curadoria sejam universais, pois os modos de lembrar são particularizados. Longe ou perto disso, acusam em todos eles a presença do afeto como dado constitutivo. É o relato da lembrança que emerge dessas fotos, através das narradoras, que se forma na relação entre território, vivências e pessoas.

Esse modo específico de curadoria, que aqui é sequestrado da esfera institucional e historicista, para ser colocado no feixe das relações diretas de pertencimento precisa necessariamente ser mais aprofundado, problematizado e organizado enquanto categorias. A opção metodológica envolve certamente a incorporação e estudo dos processos envolvidos na fabricação a partir das lembranças das fotografias com a participação desses narradores, não a toa, nucleada no feminino, nas mulheres que nutrem com as fotografias o sentido familiar de coesão com tempos e pessoas passadas.

De certo modo, um olhar externo pode contribuir com saberes e repertórios, advindos de outras experiências, territórios e tempos da fotografia. Mas o olhar de dentro, autóctone, que adere a narrativa por pertencimento direto, traz uma contribuição valiosa, milionária, na artesania do

narrar fotografias. O esforço dessa abordagem permite um deslocamento metodológico e epistemológico que só tem a dar ganhos compensadores às histórias das fotografias narradas. Mas as sem pretensões de dizer como o passado foi, nem como o futuro dessas coleções deverá ser.

REFERÊNCIAS

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WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madri: Akal, 2010.

VISUALIDADE

Dayse Euzébio de Oliveira
Matheus Morani
I can Only see with my eyes closed
2021 - Fonte: Acervo pessoal
[Fig. 01]

[01] INTRODUÇÃO

O céu, a lua e as estrelas e o sol naquele mesmo céu – nenhuma dessas coisas estava sob o feitiço da história, nem dele, nem minha, nem de ninguém. Ah fazer parte disso, fazer parte de algo que extrapola a história, fazer parte de algo que possa negar o gesto da mão humana, a batida do coração humano, a contemplação dos olhos humanos, o desejo humano em si.

(Jamaica Kincaid)

Will be allowed to hold fast to my dreams?

Will everyone smile along with me?

Bear deep into my eyes and envision the great manancial that I have the potential to be . . . Or will you only see blackness in whole of me?

Do you see me?

(Danez Smith)

A ilustração em grafite do artista Matheus Morani (figura 1) revela o busto de uma mulher negra, desnuda, olhando para frente com o corpo semi inclinado para a lateral. O seu retrato está coberto por olhos abertos, e seu rosto tem uma expressão distante embora altiva.

A obra faz alusão à tradição do retratismo, que se popularizou no século XIX a partir do desenvolvimento da fotografia. A produção de retratos em padrões menores, chamados Cartões de Visita, viabilizou o uso da fotografia para fins de diferentes práticas sociais com imagens,

dentre elas o colecionismo. No Brasil, onde o uso da fotografia está intimamente ligado à urgência pela criação de uma identidade nacional, o colecionismo de bustos de pessoas racializadas faz parte de um conjunto de práticas referente ao período de expansão colonial, juntamente com o racismo científico e as expedições naturalistas.

Os olhos que cobrem o corpo da mulher retratada juntamente com o título da obra I can only move with my eyes closed, incitam uma discussão sobre a construção, domínio e disciplinamento do olhar. Ao passo que o título indica a condição de vigilância e cerceamento da liberdade de ver das pessoas negras, os olhos abertos dispostos sobre o retrato apontam que as imagens dessas pessoas são compostas por olhares externos, e suscitam a unilateralidade dessa relação entre ver e ser visto.

Considerando o direito de olhar (MIRZOEFF, 2016) como uma relação de mutualidade que reside no reconhecimento do outro como um ser instituído de direito e subjetividade, o que podemos compreender a partir da obra de Morani é que a visualidade também é um dispositivo de controle, operado ostensivamente pela colonialidade para fins de vigilância e subalternização de pessoas racializadas, não reconhecidas como detentoras de uma singularidade própria. A condição de ação referida no título indica a capacidade de agência e imaginação correspondente às pessoas negras.

Os olhos fechados, enquanto condicionantes da visão, sugerem o poder da imaginação e do exercício do não saber (DIDI-HUBERMAN, 2013) que são refreados tão logo nossos olhos encontram-se abertos demais e só enxergamos quando carregados de certezas apriorísticas. O potencial imaginativo do olhar deve ser operado então não intencionando uma concepção unilateral e imperativa do outro, mas sim a partir de um exercício fabulativo, que evoca outros tempos e encontros, aberto ao possível e ao que pode emergir das lacunas e da penumbra dos olhos cerrados.

Efetivada no imaginário das sociedades europeias com o objetivo de subsidiar o projeto colonial escravagista de acúmulo de capital, a invenção do outro racial move-se na contramão dessa experiência fabulativa. Evocando outros tipos de imaginação, seus olhos muito abertos, em demanda por um tipo de transparência estéril, se sobrepõem a qualquer possibilidade singular e relacional de ser, que assim como na obra de Morani anuncia uma espécie de olhar sem ver e sem correspondência de retorno desse olhar.

Em leitura crítica a respeito da iconografia da escravidão no Brasil, Schwarcz e Gomes (2018) observam o quanto o aspecto lacunar dos arquivos da escravidão foi fomentado segundo um jogo de intencionalidades, “Esse jogo de ver e não olhar, de identificar ou deixar no ano-

nimato, de nomear ou construir tipos faz parte de uma arquitetura bem urdida pelo conjunto de imagens da escravidão.” (2018, p. 26). Considerando a própria fantasmagoria ontológica do ser negro, assim como é afirmada por Mbembe (2013) “o negro ser este (ou então aquele) que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender.” (2013, p. 11), não surpreende que a iconografia correspondente à sua experiência desde os primórdios da colônia acompanhe essa prática violenta e indiferente de olhar.

Sabendo que o complexo de imagens da escravidão constitui uma arquitetura arquival, podemos inquirir sobre quais alicerces esta arquitetura está erguida. Para Derrida (2001), o arquivo atua a partir de três práticas fundamentais: topologia, nomologia e consignação. São essas categorias que lhe constituem enquanto lugar de poder, e os arcontes, primeiros guardiões dos arquivos, ilustram primordialmente esse lugar de autoridade e privilégio. Ainda de acordo com Derrida (2001), o cruzamento entre lugar e lei autoridade faz com que esse espaço de poder nem sempre seja divisado:

Em tal estatuto, os documentos, que não são sempre escritos discursivos, não são guardados e classificados no arquivo senão em virtude de uma topologia privilegiada. Habitam este lugar particular, este lugar de escolha onde a

lei e a singularidade se cruzam no privilégio. No cruzamento do topológico e do nomológico, do lugar e da lei, do suporte e da autoridade, uma cena de domiciliação torna-se, ao mesmo tempo, visível e invisível (DERRIDA, 2001, p. 13).

Tendo em vista essa condição de invisibilidade potencial, devemos nos ater à intencionalidade dos arquivos, assumindo uma atitude de inquietação, conforme Schwarcz e Gomes (2018) sugerem “é preciso confiar nesta iconografia e, ao mesmo tempo, dela desconfiar” (2018, p.42). Essa prática de se investir nos arquivos com interesse e suspeição é o que anima a literatura de Hartman desde Cenas de Sujeição (1997). A autora nos provoca a ler contra a corrente a fim de extrapolar os limites que são impostos pelo arquivo, e dessa forma, fazer com que dele possa emergir sentidos e possibilidades narrativas que não sejam a repetição e reificação da autoridade e violência que constituem esses documentos. Se os arquivos são lugares de autoridade como afirma Derrida (2001), Hartman (1997) nos faz um convite a desterritorializá-los: “O esforço de reconstruir a história dos dominados não é descontínuo das fontes dominantes ou da história oficial, mas, sim, é uma luta dentro e contra as restrições e silêncios impostos pela natureza do arquivo” (1997, p. 11).

No que se refere à iconografia brasileira, olhares externos foram respon-

sáveis por moldar o imaginário correspondente às primeiras representações visuais realizadas no período colonial e imperial, como afirmam Schwarcz e Gomes (2018) “Sabemos que tais representações, em particular no caso brasileiro, foram feitas por brancos, mais especificamente por viajantes estrangeiros de passagem pelo país. Por isso, elas guardam uma mirada colonial e muito europeizada” (2018, p.42). Respondendo a uma necessidade de visualização dos novos espaços dominados e também vislumbrando a criação de uma identidade nacional, essa documentação abriga relação, sobretudo, com as visões estrangeiras que lhes serviam enquanto público consumidor e referência normativa.

Em volume e importância, nessa coletânea de arquivos coloniais destacam-se as produções fotográficas enquanto vetores de uma imaginação extrativista. De acordo com Brizuela (2012), o império brasileiro, na segunda metade do século XIX foi o mais exemplar “lar conceitual e epistemológico” (2012, p. 17) para a fotografia. Além da transição colônia-império, esse período registra também a consolidação do sujeito moderno, que ocorre na medida em que a escravidão deixa de ser significativa para o perpetuação do capitalismo. Os retratos, assim como as fotografias de paisagem, foram fundamentais para a definição de uma identidade nacional insurgente e também para a visualidade desse novo sujeito moderno.

Sendo o negro o outro desse sujeito, seus retratos representam senão um espelhamento cujo reflexo aponta para um vazio:

“No Brasil essa mudança se deu durante a transição da escravidão para o trabalho assalariado, com a emergente figuração dos negros como sujeitos fora do espaço ou sem espaço” (Brizuela, 2012, p.21), de tal modo, a visualidade do Brasil foi impulsionada tanto pelo desejo de desbravar e criar novos espaços, quanto por uma demanda por apagamentos.

[02] POR UMA CONTRAVISUALIDADE DO SENSÍVEL NEGRO

O ato de observar modula a nossa experiência sensível, constantemente somos atravessados por cenas que nos incitam reações diversas como empatia, horror, alegria. Em A autobiografia da minha mãe (KINCAID, 2020), a personagem Xuela nos fala sobre a experiência de dar conta de si, de perceber a sua própria existência apenas pela força da sobrevivência à solidão e o auto amor gerado por essa necessidade, após a morte da sua mãe no parto e o abandono paterno. Para Xuela, a maior definição de amor é o ato de acompanhar, observar a vida de outra pessoa se fazendo e desfazendo, de modo que o amor se tece como uma linha invisível que une o observador e o observado. Nesse relato, ela nos apresenta o ato de observar como uma instância não passiva, como um elo que liga os dois entes numa experiência de afetação.

Diante dessa narração de Jamaica Kincaid (2020), podemos pensar: como a possibilidade de produzir e compartilhar imagens organiza nossa vida sensível e mobiliza o nosso sentir? De acordo com Mirzoeff (2016), “o direito a olhar não é meramente uma questão

de visão. Ele começa em um nível pessoal com o olhar adentrando os olhos de alguém para expressar amizade, solidariedade ou amor” (2016, p. 746). Para ser exercido em sua plenitude, esse direito carece indispensavelmente da mutualidade do olhar, de um reconhecimento mútuo que viabiliza a troca e consequentes invenções de um e de outro.

Por seu caráter relacional, o direito a olhar opõe-se ao conceito de visualidade que, conforme afirma Mirzoeff (2016), atua como um imperativo, uma espécie de entidade autoritária que enquadra a experiência do visível. A visualidade é histórica, se faz e refaz na história, sua natureza compositiva ganha expressão em virtude da autoridade referente aos sujeitos históricos, capazes de produzir documentos e narrativas, de impor visualidades, que por sua vez, são constituídas por imagens, conceitos, discursos.

Como já vimos, para Brizuela (2012), a gênese da fotografia, datada na segunda metade do século XIX, está intimamente ligada ao desejo por criação de novas formas de visionamento e apreensão dos espaços, desejo esse fomentado pelo expansionismo colonial e imperial. Apesar de sua mecanicidade, e das propriedades objetivas que lhes são atribuídas, de acordo com a autora, a fotografia, ao se firmar como um novo modelo de observação, estabelece uma relação entre razão e crença. Essa relação se dá em consequên-

cia de sua eficácia mecânica em reproduzir representações que correspondem, em certa medida, com a realidade retratada, contudo, essas representações também são fundamentadas por um sistema de crença que se instaura na medida em que passam a substituir enquanto modelos de visualidade as referências registradas, como uma espécie de reencantamento da natureza a partir da objetividade da câmera. Brizuela destaca ainda o caráter dilemático dessa relação entre razão e magia, que teria correspondência com as antigas representações pré-cartográficas:

As fotografias como meio de visualizar o espaço, estão estranhamente próximas de uma forma de representação pré-cartográfica: aqueles velhos mapas em que o espaço era codificado, não por meio da geometria euclidiana ou da perspectiva albertiana, mas mediante sistema de crenças complexos, distantes da razão moderna (BRIZUELA, 2012, p. 15).

Entretanto, a razão moderna nunca esteve muito distante de seus sistemas de crença, fundamentada por uma lógica de ficção, mais precisamente autoficção, o projeto moderno de conhecimento e governo (MBEMBE, 2013) tem na ideia de raça e de negro, designados a partir de um espelhamento inócuo, a base para seu discurso sobre o homem e humanismo.

O pensamento europeu sempre tendeu a abordar a identidade não em termos de pertencimento mútuo (copertencimento) a um mesmo mundo, mas antes na relação do mesmo com o mesmo, do surgimento do ser e da sua manifestação em seu ser primeiro ou, ainda, em seu próprio espelho (MBEMBE, 2013, p. 10).

Longe da mutualidade sugerida por Mirzoeff, e por isso mesmo, o projeto de modernidade tem a fotografia como um aparato gerador de um projeto de visualidade investido na recriação de mundos, sem nenhuma relação de troca ou disponibilidade de conhecimento mútuo, ou seja, um sistema de crença necessário para dar materialidade a sua ficção do outro.

Ainda de acordo com o autor, o complexo da visualidade atua a partir de três práticas que podem ser definidas como Classificação, Separação e Estetização. A etapa de Classificação remonta ao período das plantations e às práticas imperialistas de expansão e divisão do trabalho. Correspondendo também aos padrões coloniais de enquadramento do outro, a etapa de separação tem por finalidade estabelecer divisões a partir do que foi classificado, antecedendo, por fim, a estetização, responsável por naturalizar essas divisões e postulá-las como verdades.

Para Malcom Ferdinand (2022), a colonização das Américas estabeleceu um modelo de habitar o mundo cujo caráter

predominante é a impossibilidade de coabitação, de uma relação de mutualidade do Um com o Outro (não europeu). Segundo o autor, esse Outro compreende tanto as experiências humanas quanto os espaços geográficos, uma vez que para que o habitar colonial possa se instalar, convém transformar humanos e não humanos em recursos exploráveis (2023, p. 48).

Ferdinand (2022) descreve o habitar colonial a partir de um conjunto de ações necessárias para sua consolidação, essas ações são divididas em três etapas que abrigam afinidades com as categorias operativas da visualidade imperial – nomeação, classificação e estetização (MIRZOEFF, 2016). Tomando como exemplo a chegada de Colombo a Guanahani, a primeira etapa do habitat colonial consiste em um ato de performativo de conquista “o primeiro gesto de Cristóvão Colombo ao chegar a Guanahani, em 1492, foi rebatizar o local de São Salvador e nomear-se vice-rei e governador da ilha.” (2022, p. 54). Com esse ato de renomeação, Colombo se apossa da terra e a transfigura para os seus nativos. Já no segundo e terceiros atos, operam-se a classificação e estetização, nas quais a derrubada das árvores e vegetação natural e o massacre dos ameríndios são justificados pela classificação a qual eles passam a pertencer, e a devastação das terras e dos corpos são continuamente justificadas e, então, naturalizadas, em virtude da acumulação de riquezas e do progresso.

Considerando o conceito de Outro proposto por Ferdinand, e partindo no sentido contrário à dupla fratura colonial e ambiental da modernidade (separação entre a questão ecológica e a questão colonial), que divide em categorias distintas entes que são resultado de uma mesma estrutura de poder, optamos por pensar as categorias fotográficas de retrato e paisagem enquanto práticas correlatas. Assim como o autor se acerca da experiência de colonização do Caribe para desenvolver sua pesquisa sobre a interseção entre a devastação do meio ambiente e o racismo, tomamos a prática fotográfica no Império brasileiro enquanto recurso de instrumentalização desse projeto de modernidade cindida.

Como observado por Brizuela (2012), o Império Brasileiro na segunda metade do século XIX foi palco de uma intensa produção fotográfica que reconfigurou as categorias históricas da representação, a saber, Retrato e Paisagem. Essas duas categorias foram articuladas em um intenso projeto de construção de identidade nacional no qual os conceitos de Raça e Natureza foram suas temáticas prioritárias, e afetaram profundamente a “identidade imaginada” (SADLIER, 2016, p. 16) que figura nas molduras da iconografia do Brasil.

Contudo, nos interessa pensar como essas categorias foram articuladas e imaginadas no império brasileiro. De acordo com Brizuela (2012), as paisagens

são lugares organizados para serem vistos “não existe paisagem antes que um sujeito humano a configure como tal” (2012, p. 26). As fotografias de paisagens brasileiras remetem a tentativas de domesticação de sua natureza considerada selvagem, na qual essa natureza contida e organizada na fotografia assume um lugar de realidade, e é assimilada no lugar de seu correlato. Numa prática de olhar intencionada, tendo como referencial civilizatório seus próprios espelhos, portugueses e outros estrangeiros convidados para produzir uma visualidade verdadeiramente nacional, em suas expedições naturalistas e ilustrações encomendadas, fabricam uma visualidade na qual a diversidade natural brasileira é classificada e legendada nas categorias de Selva e Paisagem exótica. Estetizada e naturalizada pelas fotografias que lhe concede um lugar de verdade, a natureza, agora configurada como paisagem, deixa de existir para outras possibilidades de ser.

Foi no estúdio fotográfico que, no século XIX, indivíduos comuns passaram a construir, também visualmente, suas identidades. Os padrões compositivos desses retratos seguiam os modelos europeus, diversos manuais descritivos estipulavam as poses, arranjos de cena e iluminação. Os clientes procuravam os estúdios fotográficos seduzidos pelos anúncios e promessas de acesso a um status que circulava entre os que já utilizavam a fotografia com um

propósito social. A condição de “se mostrar” e “se dar a ver” passou a figurar entre as camadas menos abastadas da população. Essa condição também proporcionou a construção da autorrepresentação de acordo com aquilo que se queria exibir, como cada indivíduo gostaria de fixar sua imagem para a posteridade, para o outro, mesmo que essa imagem não tivesse fidelidade com a sua realidade.

Nos estúdios que atendiam uma clientela mais variada, de classes distintas, a visão da foto do outro, igual a ele (que, por sua vez, se espelhará na foto de outro, de classe igual ou superior), representado de maneira tão distinta, dava segurança ao mais modesto, pois mostrava que era possível aquele tipo de representação; dava uma certa permissão para que ele também se (auto) representasse daquela forma e possuísse, de fato, como sua, aquela forma de imagem. (KOUTSOUKOS, 2010, p. 36)

Dessa forma, a identidade visual da população que buscava os estúdios fotográficos era constituída a partir de referenciais comparativos, além dos padrões e manuais importados da Europa, relações comparativas de classe também norteavam a construção subjetiva desses indivíduos que almejavam se fazer visíveis para a sociedade. A própria imagem pretendida pelo Brasil enquanto república, correspondia aos desejos de traçar uma identidade que se deslocasse da antiga

condição de colônia portuguesa, e na qual fosse possível representar seu potencial enquanto nação civilizada e paraíso natural. A imagem fotográfica favoreceu, então, a criação de um modelo visual de nação, espelhado pelo olhar exterior, principalmente europeu, que buscava confirmar nas paisagens brasileiras os estereótipos que nutriam seus imaginários acerca das colônias. “A vegetação exuberante e séries etnográficas dos grupos considerados como racialmente inferiores, os “tipos”, por exemplo, eram temas que o europeu esperava ver quando se tratavam de fotografias do Brasil” (KOSSOY, 2015, p. 83).

Esse modo de se relacionar com imagens, conduziu a um ideal de representação nacional que por sua vez voltava aos fotógrafos, fotografados e observadores como um modelo visual constituído e fixado, instruindo e alimentando um imaginário representativo de um país singular e independente, mas, que efetivamente, era construído a partir de uma relação de oposição e espelhamento com o sua história colonial. Esse referencial, esse olhar externo foi responsável por inaugurar um modelo de consumo de imagens fundamentado no turismo e no colecionismo científico de costumes e tipos exotizados das colônias.

Portanto, a identidade visual do Brasil foi construída nesse espelhamento com um olhar externo, que também demandava a produção e consumo das

fotografias de pessoas negras, esse jogo de reflexos foi responsável por criar o contexto de produção de imagens de tipos e costumes pretos confeccionadas em largas escala nos estúdios fotográficos brasileiros na segunda metade do século XVIII. Além de fornecer as condições para o surgimento de uma visualidade colonial, essas relações também evidenciam a natureza intencional da iconografia e dos arquivos que constituem a memória da escravidão no Brasil.

Em História potencial - desaprendendo o imperialismo (2019), Ariella Azoulay articula a possibilidade de uma história potencial que, assim como Mirzoeff (2016), e sua proposta de contravisualidade instituída pelo direito a olhar, recusa o imperativo categórico da colonialidade que a tudo vê (inclusive o que escolhe não ver) e define. Azoulay (2019) se atém, sobretudo, à fotografia e ao arquivo como tecnologias imperiais. A origem da fotografia está relacionada com o tipo de prática e visualidade que a sua presença autoriza. Visto que se alicerça sob direito universal das nações imperiais de conquista, destruição e invenção de antigos e novos mundos, a autora utiliza como exemplo a fala de Dominique François Arago, em 1839, para a Câmara dos deputados da França, como exemplo arquétipo da cisão entre os que detêm o direito de tudo registrar e aqueles a quem a visualidade é um imperativo, “Que o mundo é feito para ser exibido, que é apenas para um público seleto, não é uma questão para

Arago, abordada em seu discurso pelo familiar ‘você’ para um público formado por homens brancos como ele, estadistas e cientistas franceses” (2019, p. 25).

Apresentada como uma oportunidade de registrar mundos que fora do seu domínio histórico e imagético estariam perdidos, a fotografia unilateraliza a invenção do outro que, longe da premissa da mutualidade do direito a olhar (Mirzoeff, 2016), reivindica apenas para si o direito de visualizar, e transforma em objetos e dados etiquetáveis os povos e mundos capturados pelas suas lentes. Para Didi-Huberman (2021), “Não há vida sensível sem um médium que a faz aparecer” (2021, p. 75), a fotografia como médium e tecnologia imperial viabiliza modos específicos de aparecimento, operam a partir da nomeação, classificação e estetização, como já referido por Mirzoeff (2016), estabelecendo divisões e padrões que são replicados e naturalizados. Nesse processo, formas de partilhar o mundo e de fruição de tempo são negligenciadas, destruídas e substituídas, são atropeladas pelo anseio do novo, por uma busca incessante pelo progresso que, de acordo com Azulay (2019), autoriza o apagamento das vidas sensíveis que não partilham dos modos de aparecimento imperiais, que estão fora das dinâmicas de anunciação da história.

Tal movimento de apagamento é mobilizado pela promessa do novo como um tipo de temporalidade específica, a

do progresso histórico e do fluxo contínuo. É sob a égide do novo, e tendo a fotografia como seu médium particular, que as linhas divisórias do tempo, espaço e corpo político elencados por Azoulay (2019) se materializam, e é por meio do arquivo que elas se perpetuam. Essas linhas divisórias definem o tempo entre um antes e depois, o espaço entre quem/ o que está na frente ou por trás da câmera, e o corpo político dos que possuem o dispositivo de produção de imagens, e aqueles cujas imagens só podem ser extraídas, armazenadas e arquivadas. Estabelecendo uma intersecção entre Mirzoeff (2016) e Azoulay (2019), é possível observar como as três operações da visualidade estão conectadas com as três linhas divisórias da fotografia, ambas se alicerçam na fronteirização como parâmetro de funcionamento. Para que as linhas divisórias possam atuar, elas precisam que a classificação e divisão dos lugares e indivíduos sejam naturalizadas.

Para Mbembe (2021), a fronteirização alude a um estágio de não relação “O que é, pois, fronteirização, senão o processo pelo qual os poderes deste mundo continuamente convertem certos espaços em lugares intransitáveis para determinadas categorias de pessoas” (2021, p. 76).

Do mesmo modo que seres específicos são condicionados a espaços específicos, as nações imperiais se atribuem o direito da conquista, do controle dos sujeitos e dos seus espaços, o mundo e as pessoas co-

mo recursos a serem explorados. Na linha auxiliar da conversão de pessoas e natureza em recursos classificáveis, a fotografia e o conjunto de práticas correspondentes à sua produção (sistemas de identificação e legenda, armazenamento, colecionismo) contribuem para a estetização e consequente naturalização dessas paisagens fronteiriças, como afirma Azoulay (2019) “Quando a fotografia surgiu, ela não interrompeu esse processo de pilhagem que tornou os outros e os mundos alheios disponíveis para alguns, mas o acelerou e forneceu mais oportunidades para persegui-lo”(2019, p. 26).

[03] CONSIDERAÇÕES

FINAIS

O padrão institucionalizado que roteiriza o modo como continuamente esses arquivos e fotografias são explorados contribui para permanência e longevidade das práticas classificatórias que servem de parâmetro para os esquemas de fronteirização contemporâneos. As instituições oficiais e as estruturas políticas que as ordenam conferem validade ao status de objetos colecionáveis referido aos mundos capturados pelas lentes.

O processo de arquivamento abriga o ato de conversão de um corpo e natureza vivos e pleno de movimentos, de memórias que cada movimento alude e em relação constante, em objetos estanques, transforma essas matérias pulsantes em matérias fixas à qual aderem sentidos enviesados. Desta maneira, a fotografia cristaliza esses corpos e espaços em modos de aparição controlados pelos que têm a posse dos dispositivos. Também reforçam as molduras da visualidade toda sorte de etiquetas, legendas e sistemas de nomeação do que é representado visualmente. A partir desse processo, o arquivo controla as possibilidades de retorno, ao congelar e impor sentido às imagens fixadas limita a potencialidade relacional da memória.

Diante dos escassos relatos de si na produção narrativa e visual das pessoas negras escravizadas ou libertas, e o caráter restrito e violento dos arquivos a que temos acesso, cabe questionar-nos, assim como Mbembe (2013) sobre as possibilidades de sobrevivência desse projeto de invenção do Outro “Se, além disso, no meio dessa tormenta, o negro conseguir de fato sobreviver àqueles que o inventaram” (2013, p. 20). A obra de Morani nos indica que tomar parte nesse processo de fabulação pode ser um caminho para essa sobrevivência, mesmo, e sobretudo, reconhecendo o olhar branco imperativo que encobre a experiência sensível do ser negro no mundo. Ao sugerir a possibilidade de olhar e deslocar-se para além da visualidade imperial, Morani preserva e faz prosperar uma tradição fugidia e inventiva, a reiteração de uma reserva de vida.

REFERÊNCIAS

AZOULAY, Ariela. Potencial History, Unlearning Photography. Londres/NY: Verso, 2019

AZOULAY, Ariela. ‘What is a photograph? What is photography?’, Philosophy of Photography. p. 9–13, doi: 10.1386/pop.1.1.9/7. 2010.

BRIZUELA, Natalia. Fotografia e Império: Paisagens para um Brasil Moderno. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2012.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: Uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Editora Relume, 2001.

KINCAID, Jamaica. A autobiografia da minha mãe. Editora Alfaguara. 2020.

KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no estúdio do fotógrafo: Brasil, segunda metade do século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2015.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Editora Antígona, 2013.

MBEMBE, Achile. Brutalismo.São Paulo: N-1 Edições. 2021

HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. In: Pensamento negro radical. Crocodilo. Edição do Kindle. 2021.

HARTMAN, Saidiya. Scenes of Subjection: Terror, Slavery and the self making in Nineteeth – Century America. New York. Oxford University Press, 1997.

HARTMAN, Saidiya.Vidas rebeldes, belos experimentos. São Paulo: Fósforo, 2022.

GLISSANT, Édouard. Poética da relação. Bazar do Tempo. Edição do Kindle. 2021.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Povo em lágrimas, povo em armas. São Paulo: N-1 Edições, 2021.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. São Paulo: Editora 34, 2013.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2015.

MALCOM, Ferdinand. Uma ecologia decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo. Ubu Editora, 2022.

MIRZOEFF, Nicholas. O direito a olhar. Campinas, SP v.18 n.4 p. 745-768. http://dx.doi.org/10.20396/ etd.v18i4.8646472

SADLIER, Darlene J.. Brasil imaginado: de 1500 até o presente. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 2016.

[01] INTRODUÇÃO

Como um alegorista, Denilson Baniwa embaralha referências visuais de forma explícita, se apropriando de imagens e as submetendo à prática da montagem. Sem disfarces nem aparente neutralidade, o artista evidencia - e isso é um método de inteligência da obra - que está usando uma mentira para desmascarar outras. “A primeira vez que me lembro de ser fotografado por alguém que não conhecia, foi para performatizar uma mentira”. Com essa frase o artista-jaguar indígena brasileiro, da etnia Baniwa, comenta sobre sua primeira impressão fotográfica, no duplo sentido do termo. Denilson, segue seu relato:

Fingir que aquele senhor vestido como um cosplay de Indiana Jones não estava ali, com uma 50mm mirando nossos corpos como se fossemos capas da próxima Vogue, pedindo várias poses “naturais”. Ajam naturalmente (BANIWA, 2021, s/p).

As escolhas do artista, em seu texto e nas imagens que formam a série de colagens Ficções coloniais produzidas em 2021 e publicadas na revista Zum/IMS, são alegoricamente críticas. São figuras de linguagem que sugerem uma inversão irônica em relação ao que ele quer questionar: a violência do disparo associado à atitude bélica; a farsa da neutralidade

objetivo-científica; a cultura de massas e o espetáculo como regime de visibilidade e existência impostos; o artifício que ao mesmo tempo em que dá a ver, dirige, enquadra, estigmatiza e ficciona. Ele nos diz sobre o processo, aludindo à informação midiática:

Imagino a arte indígena como direito de resposta e direito de ficcionar também uma História do Brasil, e venho trazer pela colagem entre cinema, fotografia e reprodução em massa, metáforas rasuradas de ícones que acostumamos a ter em nossos lares, emolduradas por telas de televisão, salas de cinema e celular. Unir imageticamente realidades tão distantes da compreensão colonizadora é provocar um debate sobre apropriação, direitos de imagem e reprodução, onde o guaraná é original Sateré Mawê e a pipoca é Guarani (BANIWA, 2021, s/p) .

Craig Owens, em “O Impulso Alegórico: sobre uma teoria do pós-modernismo”, comenta que o imaginário alegórico é um imaginário apropriado; o alegorista não inventa imagens, mas as confisca. Ele reivindica o significado culturalmente, coloca-a como sua intérprete. Concebida dessa maneira a alegoria torna-se o modelo de todo comentário, de toda crítica, na medida em que reescreve um texto primário em termos de sua significação figural. Busco observar de que forma esses procedimentos se apresentam

na arte emergente brasileira, permitindo repensar nossa narrativa histórica, processar o contexto atual, e contribuir com a elaboração de imagens de futuro.

[02] O ROUBO DO ROUBO.

APROPRIAÇÃO E MONTAGEM COMO REVIDE HISTÓRICO

Apropriando-se diretamente de fotografias dos povos indígenas feitas por Theodor Koch-Grünberg no século XIX, e inserindo ícones da cultura pop, Denilson inverte perspectivas comentando ironicamente os processos de expropriação das culturas nativas. O artista escolhe ícones associados às categorias do imaginário ficcional que foram úteis à narrativa histórica oficial ao justificar a imposição civilizatória – o selvagem, o alienígena, o monstruosocomo King Kong, E.T. e Alien.

Vendo no procedimento de apropriação dessas imagens, bem como na montagem, uma espécie de retomada simbólica, “o roubo do roubo”, o artista reage via procedimentos que são uma resposta metafórica ao extrativismo, à propriedade privada, aos saques, aos genocídios e a todo o tipo de usurpação e violência envolvidos na dívida colonial.

Já que não posso apagar do cérebro de Koch-Grünberg, George Lucas, Spielberg etc... posso pegar essa bagagem da cultura pop e indigenizar por meio

de metáforas e a partir daí fazer quase remakes do lugar de onde eu olho as coisas. É o roubo do roubo, o pastiche, a sátira onde o “descobridor do Brasil” é o cara que escraviza o King Kong dentro de sua própria ilha e depois o leva pra exibição como aberração do “Novo Mundo”, como fizeram com os Tupinambás em 1562 (BANIWA, 2021, s/p).

A série Ficções Coloniais versa sobre os primórdios da fotografia e as formas de exibição de imagens dos povos indígenas aos olhos do “Novo Mundo”. Annateresa Fabris, em “A fotomontagem no Brasil: uma trajetória possível” (2020), comenta que no período colonial o Indigenismo fez uso da fotomontagem. Segundo Fabris, ao documentar in loco os indígenas amazônicos, Christoph Albert Frisch usou o procedimento da montagem em vários registros. Além de questões técnicas, como o uso do colódio úmido, que gerava problemas de exposição e contraste devido à luminosidade e ao calor tropical, a historiadora lembra que as trucagens também eram feitas para que as imagens correspondessem ao imaginário dos europeus acerca dos povos nativos. Frisch, por exemplo, instalou um simulacro de fundo neutro ao ar livre na Amazônia, combinando os retratos assim obtidos com as paisagens no momento da realização das cópias fotográficas sobre o papel.

Fabris comenta o uso de fotomontagem em fundos nítidos em foto -

grafias com menor profundidade de campo, e a feitura de retratos em estúdio que segundo Joaquim Marçal Ferreira de Andrade “eram recortados e aplicados sobre uma bela paisagem amazônica, passando assim a ideia de que tais índios teriam sido fotografados ali mesmo, em seu habitat natural” (ANDRADE apud FABRIS, 2020, p.22). “Ficções Coloniais” [figura 01] ironiza essas práticas pela escolha das imagens apropriadas para constituir a série, e no processo de sua criação. A estratégia alegórica se encontra em sua estruturação.

Denilson problematiza em suas colagens a fotografia como testemunho de existência e ressalta que, o fato de o cinema ser uma sequência de fotos agrupadas que passadas rapidamente dão a ilusão de movimento, foi fundamental no processo de ficcionalização colonial. Com a cinematografia, o efeito de movimento foi visto como um resgate do vivo. Numa busca animista e realista, foi fugazmente percebida como uma vitória sobre a morte. É importante essa reflexão dentro da reivindicação do indígena, tendo em vista os genocídios que os povos originários sofreram. Benjamin dizia que a alegoria é, de forma melancólica, “a representação da condição lutuosa de ser do homem.

O conceito de alegoria ( Allegorie), em Benjamin, gravita em torno de um núcleo central que poderia ser definido como a produtividade da perda e da morte, seja na história ou na linguagem. Sob o

Ficções

2021 - Fotomontagem/colagem.

Denilson Baniwa
Coloniais, ou finjam que não estou aqui.
[Fig. 01]

ponto de vista da linguagem, o sentimento do luto se configura numa alegoria. O luto é, ao mesmo tempo, a origem e o conteúdo da alegoria (BENJAMIN, 1984, p. 253). Para ele, a partir dessa estratégia alegórica o observador é confrontado com a facies hippocratica da história como uma paisagem primordial, petrificada. Tudo sobre a história que, desde o início, tem sido inoportuno, pesaroso, fracassado, é expresso na face, ou melhor, em uma cabeça da morte.

Baniwa age de forma crítica para com a produção imagética ao enfatizar que no cinema “nossos olhos nos enganam e o cérebro ajuda. [...] É possível roubar a alma em várias fotos e depois juntar tudo e revivê-la, com movimentos e voz” (BANIWA, 2021, p.1). O artista indígena evidencia o papel das tecnologias fotossensíveis nesse processo de expropriação cultural e extermínio. No contexto do genocídio indígena Norte-americano Philippe Alain Michaud observa as primeiras filmagens cinematográficas das danças, como a Dança do búfalo , e a Dança Sioux dos Fantasmas, feitas por W.K.L Dickson, e que foram levadas ao estatuto de documento e espetáculo apresentado nos pavilhões da Exposição Universal de Chicago de 1892. Segundo Michaud, trata-se de:

Uma operação cinematográfica que aparece como um meio de domesticar a energia e alienar os corpos, e o documento fílmico como a versão

moderna de espetáculos circenses nos quais o que se exibe já não são homens, nem animais, porém suas imagens. (MICHAUD 2013, p. 68).

Para Michaud, a reprodutibilidade cinematográfica da dança filmada rememorava, incansavelmente, a realidade do genocídio indígena. A tentativa de reter a visibilidade de um ser na imagem acabava por relembrar, em sua aparição espectral, a realidade de seu desaparecimento. No que se refere aos genocídios, essa consequência é trabalhada na célebre obra de Christian Bolstanski por exemplo, ao reconfigurar em memoriais poéticos os retratos de vítimas do holocausto. Denilson comenta sobre essa dimensão mórbida da imagem ao dizer que “apesar da fotografia ser apenas um fantasma do que já fomos no momento do clique, ela ainda possui nossos corpos, aprisionados por uma ficção” mesmo após a morte (BANIWA,2021, p.1). Ele explica que Anga ou Sangawa, significa para a etnia Baniwa medida de tempo, vestígio, índice, retrato, fotografia, e também o espírito ou alma. O roubo da alma, para eles, não se refere ao espírito metafísico, mas à captura dos direitos à própria imagem e narrativa, pois ninguém assinou a autorização de uso de imagem, assim como ele não assinou quando foi fotografado. Assim, a fotografia é, para ele, “um homicídio doloso, quando há intenção de matar, e o álibi é a ressurreição a par-

tir do ângulo de visão do observador por trás das lentes. Eu matei, mas ressuscitei” (BANIWA, 2021, p.1).

A partir do compartilhamento e acesso acelerado a arquivos e bancos de imagens, de revivais, do acesso aos conteúdos de diversas origens e temporalidades proporcionado pela internet, é crescente o interesse dos artistas nos processos de fragmentação, montagem, mixagem, e todo o tipo de estratégia de ressignificação. Também de forma metafórica, Denilson nos fala de um espaço, uma distância que é inerente ao enquadramento fotográfico no seu sentido técnico, mas também simbólico, narrativo. O artista desloca de forma alegórica o conceito de erro de paralaxe, associando um desvio óptico apresentado por algumas câmeras ao descolamento que também acontece devido à abordagem, ao ponto de vista dos que enquadram.

Ele está nos fotografando, está roubando nossa alma. Esta frase, que conheci na cidade grande, em forma de anedota, também é um erro de paralaxe, desta vez colonial. Um erro de observação causado pelo desvio óptico a partir do ângulo de visão do observador estrangeiro. Do ponto de vista de quem está de fora, olhando por uma janela colonial não é possível compreender o todo, então no meio disso tudo, alguma coisa se perde ou é amputada. (BANIWA, 2021, p.1)

As palavras e imagens escolhidas buscam dizer algo diferente do sentido literal, onde o significado oculto não é a alegoria em si e sim um de seus fundamentos. A estratégia alegórica é uma forma de pensamento, de tecer inter-relações, uma forma de inteligência no qual a significação não está contida nas partes, mas no desajuste, no deslocamento, nas fendas, nos intervalos, nas sobreposições, nos movimentos, nas dobras, nos versos. Não está nas partes, mas acontece entre as partes e para além delas, em suas dinâmicas e naquilo que falta.

O olhar para a série “Ficções Coloniais” torna necessário seu cotejamento com a produção artística recente, afim de demonstrar como os artistas têm se interessado no uso potencial de estratégias alegorizantes como método investigativo, crítico, e combativo das modernas noções de tecnologia, progresso, ciência e história, em seu viés colonial.

Podemos ver nesses trabalhos a História tensionada como uma área de analogias complexas, um método de estudar o presente com a ajuda dos fatos do passado. Ruchel Stockmans diz que uma história que tem se tornado cada vez mais visual pode ser também organizada de acordo com as leis da percepção visual. Ao estudar as combativas fotmontagens de John Heartfield, o monteur dada que denunciou o nazifascismo a partir da apropriação e recombinação de materiais, ela aponta:

Os fatos do passado têm significados para nós que os diferenciam e os colocam invariavelmente e inevitavelmente, em um sistema sob o signo dos problemas contemporâneos. Portanto um conjunto de problemas suplanta outro; um conjunto de fatos ofusca o outro.

(RUCHEL-STOCKMANS, 2008)

Nas mãos de um indígena Baniwa, as imagens do alemão Koch-Grünberg tornam-se narrativa decolonial, assim como nas mãos de Heartfield a agit-prop e a propaganda nazista tornaram-se narrativa antifascista. Nas mãos do alegorista a imagem torna-se uma outra coisa. Para Owens, em um viés alegórico, a imagem não restaura um significado original perdido ou obscurecido, mas anexa outro significado à imagem. “Ao anexar, no entanto, faz somente uma recolocação: o significado alegórico suplanta seu antecedente; ele é um suplemento” (OWENS, 2004, p. 114.). Trata-se de uma recolocação crítica, uma resposta à história, um ato político, um revide. As estratégias alegóricas acontecem tanto através de uma atitude quanto de uma técnica, tanto em uma percepção quanto em um procedimento. Para Owens:

A maior característica da estratégia alegórica é a capacidade de resgatar do esquecimento histórico aquilo que ameaça desaparecer. A alegoria, primeiramente, emergiu em resposta a uma espécie de sentido de estranha-

mento da tradição; ao longo de sua história ela tem funcionado na fenda entre um presente e um passado que, sem uma reinterpretação alegórica, poderia ter permanecido excluído. (OWENS, 2004, p. 113)

Em obras recentes como as de Yinka Shonibare, Kiluanji Kia Henda, Christian Bolstanski, Cristina De Middel, Marcos López, Tracey Moffat, e na produção de brasileiros como Hal Wildson, Rosana Paulino, André Penteado, Jonathas de Andrade, Ventura Profana, dentre diversos outros, evidencio o crescente interesse na função alegorizante que a imagem exerce em relação à própria história das nossas representações. Para compreender melhor o impacto crítico da obra de Denilson Baniwa, faz-se necessário olhar também para essa produção. Uma reescrita da história via deslocamentos e reconfigurações de imagens, tão ficcional quanto, porém com chances de ser mais inclusiva e representativa, pois escrita por mais mãos, levando em conta micronarrativas e microbiografias. A atualização crítica possibilitada pela alegorização do passado é notável no relato de Hal Wildson em seu perfil no Instagram:

A memória é um lugar de luta e um canteiro de Obras, como projetar um Futuro para todos se não existe justiça para todos? [...] O Brasil está diante do abismo do passado, encarar esse abismo deve nos servir para criar

pontes para o amanhã e não para mergulhar de vez no obscurantismo que nos cerca. Que caiam as estátuas e que caiam os mitos! (WILDSON, 2021)

A partir da recolocação alegórica artistas como o brasileiro Hal Wildson e o angolano Kiluanji Kia Henda propõem uma relação participativa e inclusiva da história ao invés de uma imposição monumental e hierárquica calcada nas “grandes” narrativas. Em Redefining The Power, a crítica aos monumentos históricos é direta. Segundo relato do próprio artista à revista Frieze:

Tive como objetivo substituir os heróis coloniais e os símbolos de guerra por algo extremamente vivo, pessoas que eu consideraria como meus heróis culturais, de um poeta a um defensor dos direitos gay. Acho que toda cidade deveria ter pedestais vazios que pudessem ser customizados de acordo com nossas paixões, ao invés de ter representações em pedra fria de pessoas mortas que ninguém realmente se preocupa hoje e a maioria delas estão ligadas a guerras ou poder político (HENDA, 2020).

Para Owens a estratégia alegórica ocorre sempre que um texto é dublado por outro, e esse procedimento pode ser aplicado às imagens também. Assim, para Henda, esses lugares tornam-se antimonumentos, não mais comemorando o pas-

sado, mas delineando um novo rumo para a construção do futuro. Assim como os monstros e extraterrestes de Baniwa, apropriados do mainstream cinematográfico, em Kiluanji Henda, a ressignificação crítica também é trabalhada diretamente a partir de referências da história de nossas representações, de nosso regime de visibilidade, como a estatuária urbana monumental. Em alguns trabalhos como Havemos de Voltar (We shall return, 2011), e em Nos Dias de Um Sáfari Sombrio (In The Days of a Dark Safari, 2017) a relação crítica criada por Henda, a estratégia alegorizante, se estabelece com os dioramas, a taxidermia e outros métodos expositivos científicos. Formatos de exibição de seres vivos semelhantes aos que foram submetidos os Tupinambás e os Sioux, nos exemplos supracitados. No relato de Denilson:

Indígena significa pelo dicionário, aquele que é originário do lugar, o nativo; seu antônimo é alienígena, aquele que é estranho ao lugar, forasteiro. Trazer para o Sci-Fi foi o modo de desumanizar o invasor e ao mesmo tempo disparar no citadino algo que fosse um gatilho emocional. Todos nós crescemos com dois criadores de ficções: a educação ocidental e a televisão. Transformar o descobrimento do Brasil em invasão alienígena, foi o modo que encontrei de contar a construção colonial deste país (BANIWA, 2021, p.1).

Kiluanji Kia Henda
Série Homem Novo, Redefining The Power I 2011 - Courtesy of the artist and Galeria Fonti.

Hal Wildson

É na memória que plantamos a semente do futuro

2020 - Fotomontagem e datilografia.

Tanto em Baniwa quanto em Henda a provocação gerada pela obra depende da ironia. Owens comenta que a ironia também é uma variante do alegórico; pois o fato de as palavras - e aqui no caso, as imagens - poderem ser usadas para significar seus opostos é, em si mesmo, uma percepção alegórica. A ironia funciona no sentido de tornar as convenções ridículas, e as reverter. A alegoria exprime um espaço dialético na significação das imagens, enquanto a ironia trabalha a partir da inversão.

O estudo de Geoffrey Batchen interessa ao evitar o historicismo da narrativa tradicional e tensionar a episteme logocêntrica e dicotômica que norteou o desenvolvimento cultural e científico ocidental. Batchen questiona a metafísica ocidental por ser organizada em dicotomias hierarquizadas, de tal modo que certos estados de existência tenham privilégio sobre outros.

A partir de Derrida, Batchen aponta as consequências políticas dessa estrutura:

Ainda que esse privilegio possa intercambiar entre ambos os termos, um deles sempre vem primeiro. Como assinala Derrida esse logocentrismo é muito mais do que uma fraqueza filosófica abstrata, é uma política inevitável, uma ordem de subordinação, que está presente em cada pensamento e em cada ação próprios da nossa cultura (BATCHEN, 2002, p. 174).

Em qualquer binômio de pressupostos opostos (cultura/natureza, homem/ mulher, branco/negro, presença/ausência, etc), um termo é considerado a versão negativa, derivada ou corrompida do outro. Denilson também usa a lógica dicotômica, mas o faz, de forma consciente, irônica e crítica.

O Godzilla, o Monstro do Lago, o Kraken bem podem ser representações do que acontece quando o progresso decide avançar para dentro das florestas, rios e ecossistemas. O mundo ocidental ficciona ataques alienígenas, que destroem pessoas e cidades porque foi isso que fizeram ao longo dos tempos, e teme um revide histórico. Pois para os diversos povos originários deste planeta, um dia os alienígenas foram o mundo ocidental (BANIWA, 2021, p.1).

Essa fala de Denilson, o outro lado do testemunho da invasão colonial, é consonante ao relato do pensador indígena Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo:

[...] uma mortandade de milhares e milhares de seres. Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical largava um rasto de morte por onde passava. O indivíduo não sabia que era uma peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento, um fim de mundo; tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas. Para os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo foi no século XVI (KRENAK, 2019, p.36).

Essa lógica pode ser usada criticamente quando uma imagem parece questionar alegoricamente a antecessora. É o caso nas releituras. Em Diário de um Dândi Vitoriano, Yinca Shonibare aproveita desse binômio branco/negro para, por substituição, se colocar no lugar do Dândi. A posição do artista nigeriano é deslocada no quadro, assumindo-se como protagonista. Nas imagens que inspiraram a série, na sociedade escravocrata vitoriana, o personagem negro é o serviçal.

Em Atlântico Vermelho , exposição de 2017, a artista brasileira Rosana Paulino, também criticou as áreas da ciência natural e da história natural, como campos importantes na constituição da história das nossas representações e que sustentaram a narrativa da supremacia branca no discurso colonial. Em sua obra, a montagem alegórica acontece nas apropriações, assemblagens, e costuras entre as imagens e os fragmentos de discursos. Costurando o passado do povo negro, Rosana Paulino mantém expostas as suturas. No livro de artista História Natural? ela questiona a abordagem positivista do natural como um discurso forjado, assim como Baniwa, o faz questionando a aplicação das noções de progresso e tecnologia. Percebemos que as narrativas oficiais são produzidas e difundidas a partir de dispositivos tecnológicos, e são essas mesmas narrativas oficiais que delimitam e ratificam a definição do que é tecnologia, validando as que lhes

são úteis e menosprezando outras tecnologias e discursos.

Ao pressupor um sujeito idealista a separação entre natural e cultural dentro do pensamento logocêntrico colonial difere do animismo pensado por comunidades indígenas amazônicas e outros povos originários. Essa base do logocentrismo é uma política de subordinação.

“Ajam naturalmente” grita o Indiana Jones com a câmera na mão. A produção desses artistas “tem a força de embaralhar as cartas conceituais distribuídas pelos modernos e nos faz repensar coletivamente sobre as fronteiras tão bem vigiadas entre ciência e política ou natureza e cultura.”

(MORAES, PARRA, 2021, p. 4)

De forma positivista o progresso moldou nossa relação com conceitos como temporalidade e durabilidade. Ele pressupõe que todas as camadas do que existe devem ser constantemente soterradas e sobrepostas. O presente como substituto do passado é fadado à obsolescência programada diante do futuro.

Esses artistas articulam significados através do trânsito e do deslocamento das imagens, de seus apagamentos, memórias e ressurgimentos, de suas sobrevivências. São arqueólogos culturais que encontram relíquias remexendo camadas soterradas. A recente profusão de imagens via popularização digital e o crescente interesse no campo das artes visuais por pautas referentes às comunidades vulne-

Denilson Baniwa Ficções Coloniais, ou finjam que não estou aqui. 2021 - Fotomontagem/colagem.

Ficções Coloniais, ou finjam que não estou aqui.

2021 - Fotomontagem/colagem.

Denilson Baniwa

rabilizadas e minorizadas, e a presença de autores, curadores e críticos pertencentes a essas comunidades, nos permite ver uma crescente tendência à representatividade, aguçada pela repressiva conjuntura política vigente no Brasil. Há uma mudança essencial e que merece ser destacada, pois ocorre pela primeira vez em toda a arte brasileira e na história da arte. Essa mudança é o locus da enunciação, ou seja, o “ lugar geopolítico e corpo-político do sujeito que fala’’ (GROSFOGUEL, 2009, p. 386).

A consciência crítica desses artistas sobre o poder narrativo exercido pelas imagens na construção histórica traz potência, relevância e inteligência às obras. Owens sugere que “a análise da imagem pode se voltar não apenas para o que a representação revela, mas para aquilo que ela oculta” (OWENS, 2012, p. 169). A preocupação desses artistas está em olhar para o passado e contribuir com as percepções do presente. Dessa forma os indígenas não precisam mais posar para o Indiana Jones, mas podem criar seu próprio roteiro, filmar e editar. Eles sabem que:

Mesmo que a fotografia seja uma cópia da realidade, ainda assim é uma mentira. E é mentindo ou ocultando verdades que criamos tradições. São com erros de paralaxe e colagens de imagens que construímos a História, às vezes com boa vontade em ajudar e acidentalmente cortando vozes, e noutras propositalmente apontando a

objetiva e enquadrando apenas o que nos atrai (BANIWA, 2021. p.1).

É evidente que em Ficções

Coloniais Denilson problematiza o tecnosolucionismo e o positivismo científico ao citar equipamentos bélicos, instrumentos de captura de imagens, máquinas e demais dispositivos tecnológicos. A metalinguagem como ferramenta crítica em relação às tecnologias produtoras de imagens, e a pertinência do questionamento ao contexto político atual pode também ser percebida a partir do pensamento de Moares e Parra:

Atualmente a governamentalidade neoliberal tornou transparente, pela gestão da crise pandêmica, que a Guerra de Mundos em curso atualiza os imperativos do progresso seja pelo tecnosolucionismo que recupera o cientificismo de contornos positivistas, seja revigorando as metáforas de guerra (“na guerra contra o vírus”) que trazem com elas a inevitabilidade de vidas perdidas ou a convocação de sacrifícios desigualmente distribuídos, a mobilização por um bem maior (MORAES, PARRA, 2021. p. 4).

Ventura Profana, artista que assim como Denilson também produziu uma série de colagens em parceria com a Zum/IMS, em 2020, traz em suas colagens digitais uma força subversiva que surge de rearranjos. São metáforas que partem

de sua biografia negra, trans, pentecostal, para atingir com voracidade o delírio de bem estar vivido pela branquitude. O conflito social permanente na história colonial torna-se pesquisa visual pois segundo a artista esse é um trabalho de arqueologia que precisa ser feito. Para a revista Zum ela comenta ser “Um trabalho de farejar, vou catando em sites de empresas que produzem materiais para guerra, da indústria bélica”(PROFANA, 2020).

Com ênfase na iconografia religiosa, a postura iconoclasta leva ao que a artista chama de “uma lavagem da visão, pois as imagens estão gastas”. Ao se apropriar da figura de Jesus, Ventura fala de sua pulsão alegórica quando sinaliza que “já que ele existe acho que a gente pode dar uma nova cara de repente” (PROFANA, 2020). O uso da imagem fragmentada, justaposta e recombinada em seus desajustes, sublinha a impossibilidade de reter a visibilidade de um ser numa imagem. Diferentemente das montagens de Baniwa, que apresentam uma quantidade menor de elementos em um espaço ainda verossímil, Ventura Profana parece apostar no excessivo, em pontes múltiplas, no heterogêneo, criando condensações polimorfas. A alegoria é extravagante, um dispêndio de valor excedente; ela está sempre em excesso, e a artista potencializa isso.

A postura iconoclasta é vista no trabalho desses artistas como um levante, um revide, uma resposta. Baniwa diz que:

Noutro tempo fiz uma série de trabalhos chamados “ídolos profanados” uma espécie de iconoclastia quando percebi que as pessoas que eu admirava na juventude não eram da minha comunidade ou povo indígena, e sim atores e atrizes de Hollywood. Pra mim, pegar este meu lado-branco e rasurar, também é um modo de reafirmar quem eu sou: indígena e amazônida. Foi o momento em que me percebi como metade Baniwa e metade criação colonial. [...] posso fazer esse trabalho iconoclasta com esta parte minha (BANIWA, 2021).

Em um regime que opera na distribuição desigual e racialmente marcada do “direito à respiração”, o negacionismo é também negação da experiência do outro, da vida do outro, um apagamento das ditas minorias. A definição de contrarretrato, de Maria da Luz Correia, responde a esse apagamento, pois:

[...] reafirma o duplo pertencimento da fotografia ao mundo do espetáculo e da ciência, ao realçar, a um só tempo, sua função lúdica e sua função documental. Nessa perspectiva, o contrarretrato contrapõe “à semelhança verídica, à identificação objetiva, à fixidez séria e ao automatismo exato [...] uma zombeteira dessemelhança, uma rapsódia de identidades reais e fictícias e um animado jogo que reafirma a capacidade humana de avariar os seus aparelhos (FABRIS, 2020, p. 17).

Ventura Profana A branquitude é demoníaca e o vírus é colonial 2020 - Colagem digital

A alegoria diz respeito à projeção - tanto espacial quanto temporal, ou ambas - da estrutura como sequência. Seu resultado é ritualístico e repetitivo. “Ela é o epítome da contranarrativa, substituindo um princípio de disjunção sintagmática por uma combinação diegética”. (OWENS, 2012, p. 117). Recrear, como lembra Correia, “corresponde a jogar, divertir-se livremente, mas tem também uma afinidade com a ideia de recriar, criar de novo, reusar, refazer, remontar” (CORREIA apud FABRIS, 2020, p.17).

[03] CONSIDERAÇÕES

FINAIS

Assim como nas colagens de Baniwa, na produção analisada imagens e tecnologias pré-existentes são recursos utilizados numa atitude arqueológica e anacrônica, para questionar a história que nos foi contada, repensar a macronarrativa e as ficções coloniais a partir de novos pontos de vista e até mesmo do extra-quadro. Uma consciência de que imagens, assim como os seres, existem para além de todo enquadramento.

A fotomontagem desempenha um papel preciso no jogo de desconstrução ao subverter o automatismo realista do meio fotográfico, animar sua propriedade fixa e responder ao mal-estar difuso em torno da fotografia com um prazer lúdico e inventivo. Esses contrarretratos são também contrarretratos da história. Eles a reapresentam a partir de seus cacos, fragmentos, restos, estilhaços, mas também de seus cortes, suturas, desencaixes, costuras, fendas, feridas.

Denilson Baniwa

Lord

2017 - Infogravura a partir de fotografias de indígena Nambikwara, Peter Cushing as Sherlock Holmes e botons decolonize.

REFERÊNCIAS

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BANIWA, Denilson. Ficções Coloniais. In: Behance. net. 2021. Disponível em: https://www.behance. net/gallery/114977861/Ficcoes-Coloniais-%28ou-finjam-que-nao estou-aqui%29

BATCHEN, Geoffrey. Arder em Deseos. Barcelona: Editora Gustavo Gilli. 2004.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad, apresentação e notas de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

FABRIS, Annateresa. A fotomontagem no Brasil: Uma trajetória possível. ArtCultura, v. 22, n. 40, Uberlândia, jan.-jun. 2020, p. 6-27

GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In: Revista Periferia v. 1, n. 2, jul./dez. 2009. Acesso em: https://doi. org/10.12957/periferia.2009.3428.

HENDA, Kiluanji. Post-colonial Angola; photography as both pliable fiction and weapon of intervention and denunciation. In: Frieze. Disponível em: https://www.frieze.com/article/focus-kiluanji-kia-henda

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora Cia das letras, 2019.

OWENS, Craig. MURICY, Katia. Alegorias Da Dialética. Imagem e Pensamento em Walter Benjamin. Ed: Nau. 2009.

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PROFANA, Ventura. Sonda Instituto Moreira Salles. Lançamento ZUM #18 com Ventura Profana, 13 agosto 2020. 82 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ofuH2cL8frQ

RUCHEL-STOCKMANS, Katarzyna. Representations of History in Avant-Garde Photomontage. Representing the Past in Photomontage: John Heartfield as a Visual Historian. Modernist Cultures, v. 3. Bélgica. 2008. Dispon[ivel em: https://www.euppublishing.com/doi/abs/10.3366/ E2041102209000392

SANTOS, Alexandre Ricardo dos. Oscilações entre micro e macro-história na fotografia de André Penteado. In: Porto Arte, v. 24, n. 42 (2019). Disponível em: https://seer.ufrgs.br/PortoArte/ article/view/98253 (https://doi.org/10.22456/21798001.98253)

DE PAULA, Marcus Vinicius. A fratura iconológica. Revista Poiésis, n 20, p. 85-104, Dezembro de 2012.

[01] INTRODUÇÃO

Este ensaio acadêmico é fruto do encontro que tive com as obras Pontes sobre o Abismo (2017) de Aline Motta e Travessia (2019) de Safira Moreira. Em comum, são obras em vídeo, mas que fazem uso de fotografias apropriadas de arquivos diversos, públicos e privados, como mediadoras de processos poéticos de rememoração e fabulação que são postos em cena. Ainda em comum, são obras produzidas por mulheres negras que estabelecem relações entre memórias de famílias negras e memórias sociais que dizem respeito à formação histórica do Brasil, ao abordar roteiros 1 traumáticos de violências coloniais que se repetem/atualizam no tempo como padrões fractais, em específico ao focar na questão da mulher negra diante da (im) possibilidade de famílias negras.

Minha experiência com essas obras está profundamente implicada no reconhecimento das histórias contadas

pelas artistas com as experiências vividas em minha própria família, como neta de uma avó negra que também foi empregada doméstica e babá na casa daquele que se tornou, primeiro, o genitor de seus filhos, depois o pai, e, por último, cônjuge na forma da Lei. Reconheço também, em minha vida, a marca da ausência paterna, ainda que por motivos distintos, abordada em Pontes sobre o Abismo (2017). De modo que reencontrei nessas obras ecos de minha história pessoal e familiar. Ora, Conceição Evaristo diz que a escrevivência:

1 - “Por roteiro compreendemos os paradigmas para a construção de sentidos que estruturam ambientes sociais, comportamentos e consequências potenciais” (Taylor, 2013, p.60). Noutras palavras, o roteiro visibiliza a repetição de padrões de expressão de uma cultura, pois permite perceber a montagem dos elementos presentes e ações envolvidas nas práticas sociais (Id. p.61). Ou ainda, o roteiro torna visível os imaginários e as lógicas que informam as relações sociais.

[...] surge da minha experiência pessoal. Surge na investigação do entorno, sem ter resposta alguma. Da investigação de vidas muito próximas à minha. Escrevivência nunca foi mera ação contemplativa, mas um profundo incômodo com o estado das coisas. É uma escrita que tem, sim, a observação e a absorção da vida, da existência. [...] O que escrever, como escrever, para que e para quem escrever? Escrevivência, antes de qualquer domínio, é interrogação. É uma busca por se inserir no mundo com as nossas histórias, com as nossas vidas, que o mundo desconsidera. Escrevivência não está para a abstração do mundo, e sim para a existência, para o mundo-vida. Um mundo que busco apreender, para que eu possa, nele, me autoinscrever, mas, com a justa compreensão de que a letra não é só minha. (DUARTE; NUNES, 2020, p. 34-35)

Esse encontro entre vivências pessoais-coletivas, em que a experiência de um reverbera na do outro, de modo fractal, me possibilitou a percepção de um certo imaginário social prescrito nos roteiros de violência colonial. Evaristo pensa e (re)escreve as histórias obliteradas das populações subalternizadas, as quais não são admitidas como Sujeito da História Oficial, a partir da matéria bruta de sua carne de mulher negra, sempre/já dissidente, do que viveu e do que lhe foi contado por outras pessoas, num emaranhado profundo de relações em que não cabe pensar indivíduo como um ser apartado do outro, isto é, como o Sujeito fechado que se autorrealiza no tempo em sua própria interioridade. Sua escrita não apenas fratura o locus de enunciação do Sujeito, mas também põe em ação uma outra ética, a qual expõe e desarranja os padrões coloniais impostos enquanto aponta para outras possibilidades de existência.

Foi a partir do conceito/prática da escrevivência que a professora Vilma Neres (2021, p. 12) cunhou o termo “fotoescrevivência” para se referir à prática fotográfica que “se debruça na materialização de memórias individual e coletiva, em torno da existência e resistência de pessoas e de comunidades negras”. Em seu livro, Neres se concentra na apresentação de fotógrafas e fotógrafos que documentam com indivíduos e comunidades negras na Bahia suas vidas. O que pretendo aqui é

um pouco diferente, é propor a leitura das obras Pontes sobre o Abismo (2017) e Travessia (2019) como poéticas de escrevivência com o auxílio de fotografias, (foto) escrevivências2. E, nesse sentido, questionar se, e como, essas (foto)escrevivências podem funcionar como remédio simbólico para cura de traumas coloniais. No caso em particular, meu foco está na mulher negra diante da (im)possibilidade de famílias negras.

2 - Coloco o termo foto entre parêntesis porque as obras selecionadas não utilizam exclusivamente a imagem fotográfica. As obras articulam múltiplas mídias e linguagens.

[02] TRAUMAS COLONIAIS

Como mencionei, essas obras relacionam memórias individuais e coletivas. Nesse ponto, me chama a atenção a presença direta ou subtendida de certos roteiros relacionais coloniais que considero traumáticos. Para percebê-los, contudo, é preciso apresentar que entendo o trauma como “uma inundação de um afeto caótico e aterrorizador. A experiência de ser “você mesmo” começa a se fragmentar e despersonalizar, deixando para trás um estado de devastação psicológica” (CASTILHO, 2018).

Castilho aprofunda a questão distinguindo situação traumática de acontecimento traumático. A primeira diz respeito ao “lugar que ocupa a situação traumática em relação a outras experiências” (CASTILHO, 2018). A segunda é “uma experiência que acontece ao ser, é um ‘aconte-ser’, a continuidade do ser” (CASTILHO, 2018). É importante mencionar que a concepção de subjetividade da professora, com a qual estou de acordo, difere daquela moderna do sujeito como ser autodeterminado, fechado em sua interioridade. Aqui trata-se do sujeito com um ser relacional3: 3 - Proposição presente em diversos autores pós-coloniais e no feminismo negro, como Franz Fanon ([1952] 2008), Edouard Glissant ([1990] 2017), Denise Ferreira da Silva (2019) e Patrícia Hill Collins ([2000] 2019).

Se se considera que este ser é constituído na relação com um outro, numa relação intersubjetiva, pode-se dizer que, para poder processar a realidade do que aconteceu, a presença de um outro é necessária, numa sintonia, numa sintonia afetiva entre dois, mas também é imprescindível uma sintonia social através da memória social. (CASTILHO, 2018)

Um acontecimento traumático pode ser considerado extremo quando ultrapassa a relação entre indivíduos isolados e diz respeito à forma com que o poder é exercido em uma sociedade, por meio das relações sociais que são estimuladas entre os indivíduos partícipes e de suas de suas estruturas sociopolíticas. Estas se baseiam “na desestruturação e extermínio de alguns membros desta mesma sociedade por outros de seus membros” (CASTILHO, 2018). Nesse caso, as vivências traumáticas tendem a ser cumulativas ao longo da vida, “formam parte do contexto em que o sujeito está inserido” (CASTILHO, 2018) podendo ser, inclusive, intergeracionais.

O acontecimento traumático não é da ordem da linearidade temporal. Em Becos da Memória (2018), Evaristo narra a cena em que Maria, ao brincar na frente do avô, “era como se uma pedra pontiaguda atingisse o peito do velho homem”. É que a brincadeira de Maria não apenas despertava no avô a lembrança do filho morto, mas reavivava a dor da perda. A dor, o afeto

do trauma é matéria do presente. “O trauma está presente, não assume a qualidade de um evento que aconteceu e faz parte do passado. A situação traumática está acontecendo no presente, portanto faz a história do presente [...]” (CASTILHO, 2018).

A falta de reconhecimento do trauma, e aqui foco nos acontecimentos traumáticos extremos, podem levar a situações desamparo que mutilam o indivíduo e/ou grupo social. Castilho fala de que os principais sintomas são a angustia e a dissociação. Em diálogo com Ferenczi, explica que a dissociação é a “capacidade de mentir e de desmentir a própria experiência do sujeito que vive o trauma”.

As relações sociais coloniais que fundaram o Brasil foram organizadas em torno da conquista de terras indígenas, genocídio e escravidão. A prática jurídico-econômica da violência total (SILVA, 2019) para a expropriação do valor total da capacidade produtiva de terras nativas e corpos escravizados é ainda uma ferida aberta na sociedade brasileira, que por muito tempo negou a permanência de lógicas relacionais coloniais em sua contemporaneidade. O mito da miscigenação (GONZÁLES, 1984; CARNEIRO, 1995), da democracia racial, talvez seja um dos mais conhecidos discursos que negam a experiencia traumática que se presentifica no brasil não apenas nas cenas de racismo cotidiano, como mencionei, mas também nas estruturas sociais e na composição

das subjetividades dos indivíduos e grupos sociais partícipes da sociedade brasileira.

Para este artigo um aspecto traumático particular me interessa. A questão da mulher negra diante da (im)possibilidade da formação da família negra ou miscigenada sob a lógica relacional colonial. É sabido que como escravizadas, as mulheres negras eram lidas como coisas, objetos, bens de produção, ou, no máximo, animais selvagens (GONZÁLES, 1984; SILVA, 2019; FERNANDES, 2016). Tais leituras tinham por fundamento justificar as práticas de violências totais coloniais contra a carne e a vida dessas mulheres.

A violência sexual do estupro dessas mulheres é apontada por Sueli Carneiro (1995, p. 546) como causa da miscigenação na sociedade brasileira: “o estupro na sociedade colonial da mulher negra pelo homem branco no passado e a miscigenação daí decorrente criaram as bases para a fundação do mito da cordialidade e democracia racial brasileira”. É possível distinguir, na época colonial, ao menos três funções sociais para o estupro. A primeira é como função recreativa para o Senhor da casa grande e seus filhos homens legítimos. A segunda é como função corretiva e exemplar tanto da escravizada quanto de seu eventual companheiro escravizado. Nesse caso, o estupro podendo ser praticado pelo colonizador ou a mando deste. Carneiro (1995, p. 548) menciona que, numa cultura misógina, em tempos de

guerra, o estupro é “o momento de consolidação da vitória de um grupo de homens sobre outro. É quando se quebra de vez a espinha dorsal do derrotado”4. A terceira é a função econômica. Escravizadas eram estupradas para que engravidassem e, assim, aumentar o patrimônio de “bens” do colonizador. Desse modo, a violência total do estupro participava diretamente no processo colonial de acumulação de capital.

No século XIX, o fim da escravidão e a inserção do escravizado na ordem social brasileira na categoria de indigente coincidem com o desenvolvimento de formulações científicas sobre raça no mundo moderno ocidental. É o momento em que os efeitos das arquiteturas jurídico-econômicas coloniais sobre as escravizadas serão transubstancializados em defeitos morais e intelectuais, portanto naturais, de sua raça (SILVA, 2019). Desde então, toda uma série de discursos e imagens vem sendo produzidas para assegurar a leitura social, e pessoal, da mulher negra como, no mínimo, um ser humano inferior.

Danúbia de Andrade Fernandes (2016) apresenta como a carne de Saartjie Baatman, conhecida como Vênus Hotentote, forneceu a imagem de corpo usada pelos discursos científicos antropológicos

4 - Ariella Azoulay, em Potencial History (2019), aborda a mesma temática ao explicitar o estupro de mulheres alemãs por tropas aliadas ao fim da segunda guerra mundial.

e posteriormente criminológicos para primeiro animalizar e depois criminalizar as mulheres negras no século XIX. Patrícia Hill Collins ([2000] 2019) apresenta várias outras imagens usadas ao longo do séc. XX nos Estados Unidos para controlar o comportamento de mulheres negras, induzindo a percepção dessas mulheres sobre si próprias, e a leitura social estadunidense sobre as mulheres e famílias negras. No Brasil, Lélia González (1984) foi uma das primeiras teóricas a apontar tais usos quando se refere as relações entre a mulata do carnaval, a empregada doméstica e a mucama5 escravizada. Mais recentemente, Winnie Bueno (2020) atualiza as imagens de controle de Collins para a realidade contemporânea brasileira. Com o auxílio de Bueno, apresento então as relações entre duas imagens de controle, a da mammy e a da matriarca, articuladas desde o século XIX, e as famílias negras.

Atrelada à imagem de controle da mammy opera a figura da matriarca. A diferença é que a mammy é a mulher negra exercendo os estereótipos ma ternos no interior das famílias brancas,

5 - Segundo o Dicionário Online de Português: “Criada; mulher negra e jovem que auxiliava sua senhora com os afazeres domésticos ou servindo de companhia em passeios. [Por Extensão] Ama de leite; aquela que amamentava os filhos de seus senhores”. Disponível em: https://www.dicio.com.br/mucama/. Acesso em 28 de jul de 2021.

dedicando-se ao cuidado dos filhos das mulheres brancas em detrimento dos próprios. Já a matriarca é a mãe agressiva, que não presta os devidos cuidados aos seus filhos, o que justifica a manutenção da negritude na pobreza. [...] A partir da manipulaçãoda caracterização de mulheres negras como matriarcas, foi possível sustentar que a destruição da família negra no período escravocrata se deu a partir da reversão de papéis de gênero dentro das comunidades negras. Dessa forma, as famílias negras são lidas como desajustadas porque não reproduzem os pressupostos patriarcais hegemônicos, sendo consideradas inferiores devido a essa questão (BUENO, 2020, p. 92-97).

Bueno ainda menciona como a imagem da matriarca ainda é usada para justificar a punibilidade de jovens negros, uma vez que mal educados por suas mães, resta ao Estado a missão de educa-los por meio de ações punitivas. A autora afirma que a imagem da matriarca é uma das formas de controle mais perversas, pois as mulheres negras ao assumirem essa imagem para si se sentem “constantemente insuficientes, inferiorizadas e compulsoriamente responsáveis por garantir todos os aspectos do bem-estar de suas famílias, filhos e até mesmo da comunidade. É uma imagem que suprime a assertividade das mulheres negras” (2020, p. 95-96). Sendo esta imagem mobilizada pelas classes dominantes como uma forma de negar as vivências e experiências dessas mulheres

em sobreviver às adversidades econômico-sociais a que estão expostas desde a escravidão.

Sem alongar, quando falo em trauma colonial, estou falando de uma experiência traumática extrema acumulativa no tempo, que, no caso focado, começa com a impossibilidade de a mulher negra cuidar dos próprios filhos durante a escravidão, junto ao risco iminente e contínuo de estupro, associado a toda a dificuldade que tal contexto implica na constituição de uma família. E se atualiza no tempo, a cada “nova” configuração política-econômica-social, por meio das reencenações dos roteiros relacionais coloniais, auxiliados por imagens de controle, as quais conformam o imaginário social e individual, induzindo comportamentos individuais e sociais e, com isso, garantindo a manutenção de lógicas relacionais coloniais. Portanto, falar em trauma colonial é falar de uma matriz de opressões cruzadas e indissociáveis de gênero e raça, ou melhor, colonial e patriarcal, que ainda são geradoras de modos sociais “de ver o mundo e viver nele” (GORDON, apud FANON [1952] 2008, p. 15).

[03] PONTES SOBRE O

ABISMO6 (2017)

Faz parte de um projeto de investigação da própria história familiar da artista Aline Motta. A obra se materializa como um vídeo instalação e uma série de fotografias de família plotadas em tecido, papeis e outros suportes. Aline narra no vídeo que Doralice, a avó, lhe conta um segredo: seu pai, o bisavô de Aline, chamava-se Enzo, era filho do patrão na casa onde sua bisavó Mariana trabalhava e nunca lhe assumiu como filha. A artista, em busca de vestígios de seus antepassados, realiza uma ampla pesquisa viajando entre Rio de Janeiro, Minas Gerais, Serra Leoa e Portugal, pesquisando documentos que pudessem trazer vestígios de seus antepassados em arquivos públicos e privados.

O vídeo inicia com as fotografias dos rostos da avó e da bisavó impressas em tecido balançando ao vento. Aline narra que descende delas e que elas não estão mais vivas, mas que pode “evocar suas imagens, vento e bruma”. Como personagens, os tecidos fotográficos – que também trazem imagens de outros familiares, inclusive uma imagem do bisavô Enzo, e documentos, como o registro de nascimento – interagem com os

ambientes pelos quais a artista passou em suas viagens de pesquisa. Os tecidos ora aparecem expostos ao vento, ora flutuando nas águas, ora pendurados dentro de casas abandonadas e outras ruínas. As fotografias em papel também aparecem em cercas de arame, em árvores ou no solo. Enquanto a artista narra o registro do nascimento de sua avó, o vídeo mostra fotografias de detalhes textuais de jornais e documentos relacionados ao bisavô. Ao mesmo tempo em que mostra os textos, a artista os risca, apagando muitas vezes o nome do bisavô Enzo.

Ao final do vídeo, em formato de animação, Aline narra um conto africano que “localiza a origem de uma característica marcante do leopardo (as manchas) em uma experiência afetiva traumática fundante” (FREITAS, 2020, p.223). O conto contradiz a concepção da inscrição corporal do trauma como destruidora da “possibilidade de uma formação de identidade” (ASSMAN, 2011, p.267) e propõem que “apesar do trauma”, ou mesmo “com o trauma”, se recompõem o leopardo, agora com pintas. Questão também tratada por Fanon quando aborda a sua experiência pessoal traumática com o racismo:

“Preto sujo!” Ou simplesmente: “Olhe, um preto!”

6 - Disponível em: https://vimeo.com/284789268

Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas coisas, minha alma cheia do desejo de estar na origem do mundo, e eis que me descubro objeto em meio a outros objetos.

Enclausurado nesta objetividade esmagadora, implorei ao outro. Seu olhar libertador, percorrendo meu corpo subitamente livre das asperezas, me devolveu uma leveza que eu pensava perdida e, extraindo-me do mundo, me entregou ao mundo. Mas, no novo mundo, logo me choquei com a outra vertente, e o outro, através de gestos, atitudes, olhares, fixou-me como se fixa uma solução com um estabilizador. Fiquei furioso, exigi explicações...Não adiantou nada. Explodi. Aqui estão os farelos reunidos por um outro eu. (FANON, [1952] 2008, p.103).

O conto, portanto, pode ser lido como uma metáfora para os traumas coloniais (e suas atualizações). Por um lado, a experiência traumática deixa marcas que são indeléveis, as pintas do leopardo. Por outro lado, tanto ao leopardo, quanto a Fanon, o trauma impõe a condição (im) possível de ter de se refazer, se recompor. Apesar da dissociação, da angustia, da negação, da fragmentação de si mesmo.

De volta ao começo, o projeto artístico se inicia pela revelação de um segredo, um segredo transmitido oralmente por Doralice a sua neta. A reconstrução da história familiar e, ao mesmo tempo, a escrevivência do presente7 posta em movimento por Aline partem de um 7 - O vídeo mostra os caminhos percorridos pela artista na realização do projeto.

testemunho oral de sua avó que lhe fala de uma ausência que lhe constitui como pessoa, a ausência paterna. A história do filho do patrão que “dorme” com a empregada, a engravida e abandona é, muitas vezes, eufemismo para o trauma colonial da violência sexual do estupro e suas atualizações no tempo. Tal roteiro violência sexual se atualizou nas relações entre patrões e empregadas domésticas no Brasil, em que se perde a função econômica da lucratividade, mas se mantém a função recreativa e exemplar.

O vídeo não avança sobre a questão da ausência paterna, não informa se se trata de um caso de violência sexual, mas evidencia que a matriz colonial/patriarcal de opressões cruzadas e indissociáveis de gênero e raça está operação. Doralice é registrada pelo tio, o pai não a reconhece como filha. Tudo isso nos é contado diretamente pela narradora. A artista, tal como Evaristo, assume a autoria de contar sua própria história familiar num processo de anamnese que resgata e reapaga a figura do bisavô presente na memória da avó como ausência. O gesto de riscar o nome do avô e os textos de jornal que fazem menção a sua figura pode ser lido como um gesto de fabulação crítica8 (HARTAMAN, 2020).

8 - De acordo com Saidiya Hartman (2020, p. 28 –29), a fabulação crítica é um esforço contra os limites do arquivo. Um gesto que põe em crise o que aconteceu, tal como consta no arquivo, explorando

Como as manchas do leopardo, ausência (de relação concreta) e presença (pela herança genética) são marcas constitutivas inapagáveis. Assim, no curta, a busca da bisneta em arquivos históricos por traços de sua presença não se move para um reencontro ou uma resolução (compensação ou reparação). Os seus vestígios são mostrados para serem logo em seguida apagados, riscados. (FREITAS, p.224)

A artista, portanto, atravessa a linha do tempo e num gesto fabulatório de cura traumática redimensiona a presença dessa ausência em sua própria história, a qual passa a ser incorporada junto às demais ascendentes como imagens fotográficas em tecido. Nesse sentido é como se o bisavô passasse a ser uma memória como presença, senão para a avó, ao menos para a neta e seus descendentes. Ele deixa de ser um abismo, uma ausência, um desconhecido. Afirmo isso ao ler as fotografias em tecido como metáforas para a memória, na chave interpretativa narrada pela própria artista ao invocar as imagens das que morreram (avó e bisavó) que são como vento e brisa.

As fotografias dos antepassados acompanham Aline pelos locais pelos quais passou, sempre em interação com os ambientes. Novamente não se trata de uma relação sequencial com o tempo, mas de uma relação por justaposição em que o dito passado sempre está presente e compõem o contexto da artista e sua própria identidade, no vídeo como escrevivência. O envolvimento das fotografias no ambiente, seja pelo vento que balança as fotos, pela água que as envolve, pelo solo em que os tecidos fotográficos são deitados ou pelas paredes em que estão pendurados possibilita pensar na fotografia como metáfora para memória não como suporte de armazenamento de um recorte do tempo que passou, mas como matéria do passado que está presente em uma posição, ocupando um lugar no hoje. Nesse sentido, não se trata de ler as fotografias como um “isso foi” (BARTHES, [1980] 1984), mas como um “está sendo”.

a transparência das fontes como mais uma ficção das ficções da História. Enquanto faz isso, ao mesmo tempo, tornar visível o que foi omitido, tornado descartável, objeto. A autora ainda afirma a recusa em preencher as lacunas do arquivo ou a dar um fechamento interpretativo. A fabulação crítica é para Hartman a “resistência do objeto”.

Como afirma Trouillout (2016, p. 42), não somos sucedâneos do passado, nossa constituição como sujeitos caminha lado-a-lado com a contínua criação do passado. Sendo assim somos seu contemporâneo. Nesse sentido, no vídeo, as fotografias dos antepassados servem menos para lembrar que eles passaram, morreram, e mais para afirmar o quanto ainda estão presentes hoje, na composição de quem a artista está sendo com os antepassados, com os lugares por onde caminhou, com as pessoas com quem se encontrou.

[04] TRAVESSIA9 (2019)

O curta começa com a câmera passeando por detalhes de uma fotografia garimpada por Safira nas feiras de antiguidade do rio de janeiro. A fotografia mostra uma mulher negra segurando nos braços uma criança branca. De início sou remetida para a imagem de controle da mammy, o estereótipo da mulher negra submissa e obediente que se doa às famílias brancas, assumindo a responsabilidade pela criação das crianças brancas.

A imagem da mammy sustenta a lógica de fixação das mulheres negras no trabalho doméstico, naturalizando essa função à cor das mulheres que a desempenham. Também constitui um critério normativo para avaliar o comportamento das mulheres negras. [...] Essa imagem cristaliza um tipo de relacionamento ideal entre mulheres negras, grupo dominado, e as elites brancas, grupo dominante. (BUENO, 2020, p. 89)

O verso da fotografia mostrada no vídeo traz escrito: “Tarcisinho e sua babá. Dias D’Ávila, 15-11-63”. A mulher negra da fotografia sequer é nomeada, não é ninguém, é a babá. Contudo, a câmera de vídeo expondo detalhadamente seu corpo

parece insistir na sua existência carnal, concreta, para além de sua função social. O poema de Evaristo, Vozes-Mulheres, narrado enquanto a câmera passeia pela foto, me orienta a ver aquela imagem para além/ aquém da representação da mammy

O poema, na função de legenda interpretativa da foto, me leva a fabular para aquela mulher negra a possibilidade de um futuro diferente do ordenado para a mammy . Nem que seja um futuro que, tal qual no poema de Evaristo, só se realize pelas gerações vindouras, como um princípio de esperança ou sonho das gerações antepassadas. A narrativa do poema termina com um close-up nos olhos da mulher negra retratada, que parece me olhar diretamente do passado. Então me questiono: sou eu o futuro dela? a realização de seu sonho? Noutras palavras, a imagem me leva a refletir de que modo “nossa era está presa a dela” (HARTMAN, 2020, p. 31). A fotografia desempenha então um papel que oscila entre a informação sobre o que aconteceu e a especulação do que pode vir a ser.

9 - Disponível em: https://vimeo.com/236284204

Na sequência do vídeo, uma mulher negra jovem mostra fotografias analógicas de álbuns de famílias negras de meados do séc. XX, enquanto uma voz narra que as fotografias eram caras e por isso as famílias negras não possuíam tantas. Em seguida o vídeo mostra a mesma jovem performando poses comuns de retratos, enquanto a música Juana de

Mayra Andrade começa a tocar. Por último, o vídeo mostra famílias negras, bem arrumadas, bem vestidas, aparentando harmonia entre os membros, posando para a câmera como se fossem ser fotografados. Essas cenas finais em relação a fotografia primeira do vídeo podem ser lidas como o lugar do futuro que deixa de ser especulativo para se tornar concreto. O sonho que se realiza como presente vivido por aquelas famílias. A repetição performática das poses de retratos, individual e de família, também operam uma fratura na tradição imagética do gênero, afinal não vemos pessoas e famílias brancas, e sim negras. Um outro aspecto ainda me chama a atenção. A primeira imagem do vídeo é uma fotografia, portanto é uma imagem estática, fixa. As imagens finais do vídeo, ainda que repitam poses da prática fotográfica são imagens em movimento. Metaforicamente, posso ler comparativamente essas imagens como passado e presente/ futuro respectivamente. Ou, ainda, como a representação do outro e a apresentação de si mesmo.

A primeira imagem do vídeo deixa exposto em sua legenda “Tarcisinho e sua babá” o pouco espaço de negociação sobre aparecer ou não imageticamente e como. A mulher negra é imageticamente reduzida a sua função social. A etiqueta babá é superior à sua identidade como individuo, seu nome não aparece, e a envolve, generalizando sua imagem em uma cate-

goria abstrata. Procedimento descrito por Hall ([1997] 2016) como estereotipização e aprofundado por Collins ([2000] 2019) como produção de imagens de controle.

Na companhia de Hartman (2020), posso dizer que no limite do que é possível afirmar sobre essa fotografia, sobre o contexto de sua realização, só me resta, a partir dos componentes disponíveis – pessoas em cena na imagem, posições corporais, roupas, bem como a iluminação, o foco e a legenda da foto – fabular sobre os possíveis roteiros de sua tomada. Daí emergem diversas questões. Pode a mulher retratada se arrumar para sair na foto? Escolher o ângulo da foto? Se queria posar com ou sem a criança? Aliás, ela queria posar para foto ou foi obrigada? Posar para foto faz parte do trabalho de babá? Ela estava sendo remunerada por isso? A mulher negra viu essa foto depois que foi feita? Ela teve direito a uma cópia? Ela sabia que seu nome não iria aparecer como legenda da foto?

Responder negativamente a qualquer dessas questões implica acessar o que é a representação fotográfica para pessoas negras nos roteiros relacionais coloniais e suas reencenações. Isto é, é obrigar a outra pessoa a performar um predicado prévio, externo, uma determinação que se impõem à retratada, numa relação desigual de poder. Mulheres negras vem sendo representadas fotograficamente como mammy desde a escravidão.

Por outro lado, ao fim do vídeo, vemos famílias negras performando para a câmera, mães e pais junto a suas crianças negras. Observo novamente a cena. Vou até o final do vídeo e leio o nome e sobrenome de todas as pessoas que aceitaram participar da obra. Não posso vislumbrar todo o contexto para a realização das imagens, mas pelo que o vídeo expõe, parece menos uma relação de representação do que de mediação, de apresentação. Explico. A diretora media junto com as famílias suas inserções no vídeo. As pessoas parecem ter se arrumado para aparecer, estão sorridentes. Entre quem faz o vídeo e quem aparece nele parece uma relação menos de imposição, do que negociação conjunta sobre como aparecer no vídeo.

O que deve se tornar visível?

O que não? Como quero aparecer para o espectador? Como quero ser visto? Diferentemente de uma relação de representação, numa relação de mediação e apresentação os direitos à opacidade (GLISSANT, [1990] 2008) tendem a ser respeitados. É que não se trata de uma relação de imposição, que pressupõe a diferença atrelada a uma hierarquia, em que uns são mais humanos do que outros. Em termos fotográficos, em que um é o Sujeito que fotografa e o outro é o objeto fotografado. Trata-se apenas de uma relação entre pessoas diversas que se reconhecem como diversas em suas diversidades. E o excesso

de plural aqui é proposital, não se trata da redução identitária ao mesmo das políticas de representação. E é assim que o vídeo termina, apresentando quatro famílias negras completamente distintas umas das outras. De modo que só se pode falar sobre tais famílias, assim, no plural, respeitando suas diferenças e suas opacidades.

Nego Bispo (2017, p. 112) diz que as imagens podem ser usadas como armas de ataque e remédios de defesa: “elas atuam levantando a nossa autoestima, mas também tentando nos anular, nos negar. Então a gente vive sempre uma relação”. Bispo ainda afirma que as imagens que seguem os roteiros relacionais coloniais são usadas para “negar, subjugar ou para punir”. Enquanto que sua comunidade quilombola, em nome da qual fala como tradutor, usa as imagens “para elevar, engrandecer, ou, no mínimo, que também é o máximo, para resolver. Usamos as imagens de maneira resolutiva” (Id., p. 113).

Revejo o vídeo e percebo como a obra resolve de maneira resolutiva a fotografia “Tarcisinho e sua babá”, uma das tantas imagens de mammy que habitam o imaginário social brasileiro. O gesto de cura se dá não só pela justaposição com a narração do poema de Evaristo, mas também com a apresentação sequencial de imagens que enaltecem e valorizam a diversidade de famílias negras. A imagem inicial do vídeo, tantas vezes usada para impor o lugar da mulher negra na sociedade, passa

então a ser elemento em uma imagem maior, Travessia. Esta sim, resolutiva.

Posso afirmar, então, que a obra me mostrou que a ficção histórica do lugar da mulher negra como mammy da criança branca e matriarca da criança negra é só mais uma das tantas perversões simbólicas articuladas nos roteiros de violência coloniais. E mais, na companhia de Bispo (2017), a obra mostra como é possível transformar imagens de ataque em remédios para cura. E, mais uma vez, contra a historiografia do Sujeito brasileiro e sua narrativa de embranquecimento, famílias negras não só são possíveis, como existem.

[05] CONSIDERAÇÕES

FINAIS

As memórias familiares de Aline e as mediadas por Safira ultrapassam o espaço do individual ou familiar e reverberam numa dimensão maior, social. Suas (foto)escrevivências me tocam não apenas pelo reconhecimento proporcionado, mas porque de um modo aberto, (po)ético, me ensinam que é possível nos curarmos de tantos ataques violentos sofridos ao longo da história desse país. O passado não está dado.

A gramática que inscreve as fotografias como um dado de um tempo que passou é a mesma usada pelo colonizador, o qual procura transformar as práticas coloniais de violência total e os efeitos traumáticos extremos acumulativos no tempo como dados, como coisas do passado, e que não dizem respeito ao presente ou ao futuro. Mas a violência torna a ocorrer. A narrativa cronológica/desenvolvimentista do Sujeito funciona como uma estratégia de oclusão do padrão fractal da violência colonial que se repete/atualiza no tempo. A primazia estética do tempo cronológico é assim alinhavada numa ética que encobre e/ou nega os roteiros de violências coloniais. Esta é a configuração político-social neurótica ou psicótica em que atua o Sujeito da História Oficial do Brasil para a manutenção da continuidade do ordena-

mento social vigente e de seus privilégios nesse ordenamento. Mas também ocorrem como estratégias das vítimas em suas dificuldades de lidar com os afetos desencadeados pelos traumas. Enquanto as políticas de encobrimento e o recalque desencadeiam a neurose social de que fala Lélia Gonzáles (1984); o negacionismo da vítima e as políticas de esquecimento dos perpetradores podem levar a quadros de psicose social.

Nesse sentido, a cura simbólica posta em movimento em Travessia e Pontes sobre o abismo não é um remédio apenas para mulheres e famílias negras. Diz respeito à coletividade da sociedade brasileira. Com isso, as obras me ajudaram a pensar que para que a relação, aberta e imprevisível, seja possível e para que o futuro não seja apenas repetição traumática, é preciso, no mínimo, recuperar nossas memórias e transformar as imagens colonizadoras que ainda informam nosso imaginário. Expor a violência destas últimas não como um dado passado, mas como um modo de ver e habitar o mundo, um padrão fractal, que está sempre disponível. Não o realizar é um gesto estético-ético-político que opta pela relação, em respeito às opacidades. Nem que para isso seja preciso fazer o que as obras fizeram: atravessar o tempo cronológico e, recompondo os espaços e tempos, fabular o (im)possível, criando imagens resolutivas e pontes que nos (re)conectem e nos curem. Esse parece ser o potencial radical da escrevivência.

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VITAIS

Lwidge de Oliveira Maria Beatriz Colucci

[01] INTRODUÇÃO

A fotografia e o cinema conservam lugares-comuns, com influências estéticas e técnicas convergindo entre si, estabelecendo uma inquietante divisão. Se por um lado a fotografia surgiu na primeira metade do século XIX, podemos afirmar que a gradativa exploração das sequências fotográficas possibilitou a criação do cinema no final do mesmo século. Por sua vez, o formato cinematográfico acabou por se tornar o grande fenômeno cultural do século XX, adquirindo status de fábrica de mitos e instrumento de pressão ideológica sobre as massas. No entanto, ainda que compartilhem princípios, fotografia e cinema possuem características próprias e existências independentes. A partir deste tensionamento, buscamos refletir sobre a configuração de obras que transitam entre a fotografia e o cinema, comumente chamadas de fotofilmes, remetendo ao caráter ontológico da imagem cinematográfica e perpassando pelos processos de produção da fotografia contemporânea.

Através de pesquisa exploratória foi possível realizar um levantamento de fotofilmes disponíveis digitalmente que catalogou, até o momento, 57 filmes, sendo 70% deles produzidos entre 20032023, demonstrando uma grande diversidade nas produções. Dentre as obras catalogadas, selecionamos o filme Povo

da lua, povo do sangue (1985), de Marcello G. Tassara, como objeto de análise, tanto pela importância histórica quanto pelo primor técnico empregado. O filme apresenta imagens realizadas por Claudia Andujar junto ao povo Yanomami durante a década de 1970 na região do Catrimani, no estado de Roraima. Nesse sentido, a análise debruça-se tanto sobre os aspectos cinematográficos da obra fílmica quanto os aspectos fotográficos desse projeto foto-etnográfico.

Partindo da dissertação de mestrado de Érico Elias Fotofilmes: da Fotografia ao Cinema (2009) e da proposta de análise fílmica de Wilson Gomes (2004), evidenciaremos a organização, as implicações e os efeitos presentes no formato fotofilme. Além disso, buscaremos contemplar aspectos culturais do povo Yanomami, tais como a cosmovisão e o impacto dos sonhos para os indígenas, além de questões ambientais relacionadas às suas vivências. O fio condutor da análise acabou por se debruçar sobre obras literárias que abordam questões relativas à cultura e ao meio-ambiente, como o livro As três ecologias (1990) de Félix Guattari, os textos de Bruce Albert e Davi Kopenawa presentes nos livros A queda do céu (2010) e O espírito da floresta (2023), assim como o recente trabalho etnográfico O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami (2022), de Hanna Limulja. Deste modo, pretendemos discutir como essas produ-

ções utilizam a fotografia e o cinema de forma análoga, nos atentando ao processo de construção da obra fílmica analisada e observando como os meios de produção da imagem encontram-se em perpétua convergência.

[02] FOTOFILMES, EXPERIÊNCIAS ENTRE

A FOTOGRAFIA E O CINEMA

Muitos teóricos se debruçaram sobre a questão cinematográfica durante o século XX, momento marcado pela influência do cinema sobre as massas, quando adquire status de fábrica de mitos e ferramenta de pressão ideológica. No ensaio Ontologia da imagem fotográfica , o crítico de cinema André BAZIN (2018) expressa a potencialidade do cinema como fluxo incessante da objetividade fotográfica (Bazin, 2018, p. 24). A partir disso, o autor reflete sobre a qualidade da fotografia enquanto meio que retira do tempo uma fração de segundo, uma virtualidade estética de revelação do real, uma prova inconteste de algo que aconteceu. E o cinema, fruto do experimento de sucessão sem atritos dos 24 fotogramas por segundo, confere à humanidade não apenas o testemunho imagético das coisas, mas o transcorrer de uma duração (BAZIN, 2018, p. 24-25). Portanto, é coerente afirmar que a fotografia e o cinema são, de certa maneira, indissociáveis, uma vez que aproximam o espectador das transposições da realidade dotadas de características temporais.

No entanto, cabe também explicitar que ambos possuem existências autônomas. Para exemplificar estas particularidades, Roland Barthes (2018) destaca:

A imagem fotográfica é plena, lotada: não tem vaga, a ela não se pode acrescentar nada. No cinema, cujo material é fotográfico, a foto, no entanto, não tem essa completude […]. Por quê? Porque a foto, tirada em um fluxo, é empurrada, puxada incessantemente para outras vistas; no cinema, sem dúvida, sempre há referente fotográfico, mas esse referente desliza, não reivindica em favor de sua realidade, não declara sua antiga existência; […] ela [a Fotografia] é desprovida de futuro […]. Imóvel, a Fotografia reflui da apresentação para retenção. (BARTHES, 2018, p. 77)

Tal diferenciação faria com que os caminhos da fotografia e do cinema não se cruzassem por mais de meio século, possuindo aproximação limitada apenas pela técnica e outras vezes para preencher lacunas cinematográficas, como a utilização de fotografias para expressar determinados períodos históricos que não poderiam ser refeitos durante as filmagens (ELIAS, 2015, p. 25).

Contudo, filmes que inserem a fotografia enquanto elemento narrativo datam a partir do final dos anos 1950 e início da década de 1960, particularmente no período da nouvelle vague francesa. De acordo com Alfredo Manevy (2009),

o impacto deste movimento é significativo para as estruturas narrativas porque os cineastas eram mais suscetíveis à experimentação e percebiam o cinema como projeto de vocação cultural e social (MANEVY, 2009, p. 244). Cineastas como Alain Resnais, Agnès Varda, Chris Marker e Jean-Luc Godard compreenderam a retratar o mundo moderno, realizando filmes que fazem leituras interdisciplinares dos problemas presentes na sociedade, ao mesmo tempo que refletem sobre as estruturas narrativas cinematográficas.

Uma das leituras interdisciplinares mais significativas no período foi desempenhada pelo referencial La jetée (1962), de Chris Marker. Definido como foto-romance pelo próprio autor, o filme expande o caráter da montagem ao utilizar apenas fotografias estáticas em sua composição, acentuando significados, ressaltando temporalidades e demonstrando que a evocação do tempo não depende necessariamente do movimento da imagem, mas da relação entre fotografias, banda sonora e narração ( ENTLER , 2008, p. 10). De acordo com Érico Elias (2009), produções como a de Marker, que buscam tensionar o móvel e o estático através da técnica, partem de “um material fotográfico para criar um filme (por isso, o nome fotofilme), dando vida às imagens não mais através da ilusão do movimento contínuo, mas com o uso de um tempo forçosamente artificial, cindido” (ELIAS, 2009, p. 153).

Refletir sobre esse processo torna-se interessante porque a fotografia e o cinema constroem significados através da inter-relação. Para Georges Didi-Huberman (2020), a fotografia possui um duplo regime, podendo conter ao mesmo tempo a verdade e a obscuridade do acontecimento capturado pela objetiva (DIDI-HUBERMAN, 2020, p. 54). Para o autor francês, é necessário estabelecer conexões para investigação da imagem, buscando inter-relacionar os acontecimentos, as palavras e o texto.

Ora, é preciso fazer com a imagem, com todo o rigor teórico, o que já fazemos, sem dúvida com mais facilidade (Foucault nos ajudou nisso), com a linguagem. Pois em cada produção testemunhal, em cada ato de memória, ambas — linguagem e imagem — são absolutamente solidárias, não cessando de compensar as suas respectivas lacunas: uma imagem surge amiúde no momento em que a palavra parece falhar, uma palavra surge frequente quando é a imaginação que parece falhar. (DIDI-HUBERMAN, 2020, p. 45)

Em contrapartida, esse processo ocorre no âmago do cinema, visto que este funciona a partir do agente unificador presente na montagem, seja pela edição ou mise-en-scéne desempenhada no plano. Enquanto a fotografia, objeto propriamente lacunar, relaciona-se com outros meios para conotar significado, o cinema justapõe as imagens para desvelar o tempo

e remanejar os objetos no espaço, criando uma “relação sequencial que proporciona um sentido novo ou particular para as imagens de acordo com sua função” (DEREN, 2012, p. 145). E esta operação ganha novas proporções no âmbito dos fotofilmes, uma vez que lidam com imagens de segunda natureza, que já possuem uma codificação temporal (ELIAS, 2009, p. 161). O cinema neste formato, portanto, constrói conceitualmente a busca pelo tempo, integrando a disposição da fotografia enquanto instante retirado do tempo e do cinema enquanto fruição, estruturando a obra audiovisual a partir da atribuição de significado ao material fotográfico que encontra-se em perpétua transmutação. * * *

A fim de exemplificar o processo estrutural dos fotofilmes discutido até o momento, assim como expor os efeitos propostos pelo formato, será analisado o fotofilme Povo da lua, povo do sangue (1985), realizado a partir de fotografias feitas por Claudia Andujar junto ao povo Yanomami durante a década de 1970, na região do Catrimani, no estado de Roraima. Pensado como obra audiovisual a cumprir propósitos políticos, o filme também auxiliou na divulgação da luta dos povos indígenas pela terra e no debate acerca da demarcação das terras Yanomami, bem como a difundir a cultura e os costumes do referido povo. A próxima seção do artigo é dedicada à análise deste filme.

[03] AS IMAGENS VITAIS

DA FLORESTA: UMA

ANÁLISE DO FOTOFILME

POVO DA LUA,

POVO DO SANGUE

[3.1] PENSANDO

A FLORESTA ATRAVÉS

DA IMAGEM

No livro Ideias para adiar o fim do mundo (2020), o ativista socioambiental e defensor dos direitos indígenas Ailton Krenak considera que a cultura moderna desloca os seres humanos do movimento natural da terra, gerando vivências de abstração civilizatória, suprimindo a diversidade e negando o caráter plural das formas de vida, de existência e dos hábitos (KRENAK, 2020, p. 12).

Nesse sentido, o autor reflete sobre a forma como a organização social capitalista interpõe certas necessidades frente a outras de caráter mais humano, prejudicando as relações aproximadas ao meio ambiente. De maneira análoga, Félix Guattari (1999) já ponderava sobre como a crescente verticalização entre as atividades sociais, mentais e ambientais, afeta os processos de construção subjetivos, alertando que o único modo de contornar este impasse é por meio de uma compreensão transversal interativa entre os ecossistemas, a mecanosfera e grupos de referência sociais e individuais (GUATTARI, 1999, p. 23-25).

Inseridos nessa questão, os saberes indígenas ganham proporções e relevância significativas a partir do momento que teóricos e pessoas inte -

grantes desses grupos originários dedicaram-se a difundir trabalhos acadêmicos, artísticos e literários para um público maior. Em específico, as vivências e formas de existência dos Yanomami, povo habitante da região norte do Brasil entre os estados do Amazonas e Roraima, assim como uma pequena faixa do território venezuelano, encontraram espaço não apenas para fomentar a pesquisa, mas também para possibilitar compreensões acerca das relações danosas que o país tem com a própria terra. A respeito deste tensionamento, o xamã e porta voz dos Yanomami pela luta e preservação das terras indígenas Davi Kopenawa (2023) reflete:

Nós, Yanomami, estamos muito preocupados porque os brancos só pensam em remexer na terra e em queimar as árvores da floresta. Eles não têm nenhuma amizade por ela, não a querem. Arrancam sem parar das profundezas do chão as coisas que usam para fabricar mercadorias. É o que eles chamam de minérios com que fabricam seus televisores, telefones, todas as suas armas e máquinas. Eles os queimam e enchem assim o peito do céu de fumaças de epidemia que, transformadas em doenças perigosas, afetam todo mundo. (KOPENAWA, 2023, p. 170-171)

Essa relação de amizade com a floresta que o xamã alude constitui a transcendência do pensamento Yanomami. Tal perspectiva, no entanto, encontra-se

ameaçada devido ao avanço histórico de políticas públicas predatórias, por parte de governos que não se importam com a preservação da cultura, e pela ameaça em constante ascensão do garimpo ilegal, pondo em risco o cenário ambiental e o quadro de saúde dos indígenas1. A difusão de relatos e produções artísticas e acadêmicas, portanto, torna-se necessária para remediar essas questões que dizem respeito também a não-indígenas.

Uma das principais intervenções ocorre ainda na década de 1970, quando projetos como o Plano de Integração Nacional, lançado pelo governo do general Médici (1969-74), propunha uma política de controle e povoamento da região amazônica, e que, para isso, foram desmatadas grandes porções de terra para construção de rodovias como a Perimetral Norte (BR-210) e a Transamazônica (BR-230). Dada a conjuntura política e econômica, toda atenção convergia para região norte, a imprensa de cunho antropológico realizou coberturas históricas que constituíram um sólido trabalho jornalístico nunca antes visto, gerando discussões acerca das

1 - Um dos trabalhos que se debruça enfaticamente sobre essa questão é o relatório “Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo” (2022) do Instituto Socioambiental, disponível em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/yanomami-sob-ataque-garimpo-ilegal-na-terra-indigena-yanomami-e-propostas-para

vivências do povo nortista, historicamente desconectado das outras regiões do país. Particularmente, a edição no 67 da extinta revista Realidade dedicada à Amazônia reuniu uma grande porção de fotógrafos (Maureen Bisilliat, Claudia Andujar, George Love, Amâncio Chiodi, entre outros) e textos que denunciavam a prática predatória desempenhada pelo estado brasileiro. No entanto, o maior fruto desta empreitada consistirá no trabalho fotográfico de Claudia Andujar em prol da causa yanomami, contribuindo na divulgação da cultura originária país afora por meio da fotografia, assim como auxiliando na luta pela demarcação das terras do referido povo indígena.

Por estar inserida no contexto da fotografia contemporânea, as imagens de Andujar trabalham com a subversão da função lógica do aparelho fotográfico, empregando-o na construção de retratos simbólicos a serviço do outro. Essa compreensão corresponde às ideias propostas por Vilém Flusser (2009) no livro

A filosofia da caixa preta , uma vez que as composições da fotógrafa suíço-brasileira relacionam conhecimento científico, experiência artística e vivência política ( FLUSSER , 2009, p. 18). Desta forma, a produção fotográfica de Andujar dialoga com os preceitos de fotografia expandida, visto que não se trata mais de visualizar a fotografia no campo das aparências, da mera representação de um referente, mas de uma ordem que põe em perspectiva

as matérias sensíveis e racionais em conjunto às dimensões estéticas ( FERNANDES JUNIOR, 2006, p. 17).

Dentre as fotografias inseridas nessa abordagem, destacamos Yanomami (1974) e Guerreiro Toototobi (1976). Na mitologia yanomami, a natureza (urihi a) é criada por Omama, o demiurgo, também criador dos espíritos (xapiri) e de todos os seres que habitam a terra. Além disso, Kopenawa (2015, p. 116) adverte que os processos de criação de todos os seres da floresta envolve a questão da imagem (utupë), no entanto, tal conceito não pode ser reduzido à mera noção de representação figurada, mas encarado como uma realidade exterior tangível capaz de fornecer conhecimento, uma vez que trata-se de uma imagem-essência de todos os seres existentes ( ALBERT; KOPENAWA , 2023, p. 70-71). Nesse sentido, trata-se de um duplo interior, que reclama “a origem de todas as manifestações do pensamento ou do comportamento consciente” (LIMULJA, 2022, p. 61). Com isso em mente, as referidas fotografias acabam por produzir retratos que dialogam com o pensamento transcendental yanomami aludido por Kopenawa, principalmente a partir do momento que incorpora a floresta e os elementos simbólicos na composição fotográfica. A fotografia intitulada Yanomami [Fig. 01), por exemplo, é fruto do processo de baixa velocidade do obturador, produzindo uma imagem borrada, em que o indígena retratado está fixado,

[Fig. 01]
Claudia Andujar
Sem título (Catrimani)
série A floresta (1974)
Cortesia Galeria Vermelho
[Fig. 02]
Claudia Andujar Guerreiro de Toototobi
série Sonhos Yanomami (2002)
Cortesia Galeria Vermelho

mas incorporado ao movimento vivo do ambiente, sendo este caracterizado principalmente pelas faixas de luz ocasionadas pela alta exposição. Por sua vez, a fotografia intitulada Guerreiro Toototobi [Fig. 0 2] parte de um processo de sobreposições e hibridações feitas a partir de fotografias coloridas e em preto e branco oriundas de seu arquivo, resultando em novas imagens ( GONÇALVES, 2016, p. 158), retratando, assim, um indígena dançando envolto à uma espécie de campo luminoso, representando a energia que emana do seu duplo interior, a sua imagem (utupë) indissociável do corpo. A questão do utupë, portanto, desempenha um fator fundamental para compreender o caráter cosmológico presente na relação entre o humano e a floresta, bem como a natureza dos corpos biológicos e metafísicos yanomami.

De acordo com Bruce Albert (2023), o xamanismo yanomami consiste no ato de aproximar as imagens ( utupë a ) dos seres “tais como existiam no ‘primeiro tempo’ da criação mítica” (ALBERT; KOPENAWA, 2023, p. 67), sendo uma atividade restrita a poucos membros, visto que envolvem processos distintos de formação e clarividência2, assim como a ingestão de 2 - Para maior compreensão acerca da iniciação xamânica, ler relato de Davi Kopenawa no capítulo “A iniciação” In: KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 132-155

substâncias psicoativas como a yãkoana3 Contudo, isso não significa que os processos de transcendência não afetem outros integrantes da comunidade indígena. Em seu recente trabalho etnográfico O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami (2022), Hanna Limulja desenvolve abordagens dedicadas a analisar a cosmovisão yanomami. A autora parte dos testemunhos de Kopenawa em A queda do céu (2015) para refletir sobre a importância da dimensão onírica na comunidade, observando que os sonhos são dotados de uma dimensão política (LIMULJA, 2022, p. 53). O sonho, no que tange os escritos de Limulja, possui essa configuração destinada a entrelaçar e pôr em perspectiva os indivíduos em relação ao todo, principalmente por realizar o deslocamento do duplo interior para fora do corpo.

O deslocamento do utupë de uma pessoa por lugares que ela nunca frequentou em estado de vigília lhe permite afirmar que conhece essas paragens por ter estado lá em sonho. Esse é um aspecto fundamental do sonho yanomami: possibilita o acesso a experiências que de outra forma não aconteceriam durante a vigília. Assim, em seus sonhos, os Yanomami podem

3 - Para maior compreensão dos objetivos e implicações da substância yãkoana, verificar ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. O espírito da floresta. São Paulo: Companhia das Letras, 2023. p. 56-59

entrar em contato com parentes que estão distantes ou até mesmo com os mortos. Esse tipo de encontro não ocorre durante o dia, pois o dia é da matéria. Só à noite, quando o utupë se desprende do corpo, é possível entrar em contato com a imagem desses outros seres que povoam o cosmos yanomami. (LIMULJA, 2022, p. 65)

Dessa forma, os atos de transcendência através do onírico permitem aos yanomami uma compreensão singular sobre a condição de estar no mundo, independente de processos referentes ao xamanismo. E as fotografias de Claudia Andujar, inseridas em um contexto de aproximação aos Yanomami, visto que compartilhou vivências com os indígenas por quase meio século, acaba por ser afetada por esta forma de visualizar o mundo e transpô-la na forma de imagens. Em entrevista a Rubens Fernandes Jr., Andujar (2010) explica:

[…], todas as fotografias ou tem essa característica de uma pessoa com elementos da natureza em cima ou tem algumas onde tem os bichos, a natureza mesmo, com sobreposição. Porque o Yanomami não vê o mundo como o homem, o ser humano sendo superior ao resto da natureza. Ele faz parte da natureza, eu pessoalmente também acredito nisso, eu não acho que nós somos superiores, nós somos parte de uma globalidade da natureza. (ANDUJAR, 2010, p. 13)

Portanto, pensar os processos de inter-relações propostos por Didi-Huberman (2020) nas imagens da fotógrafa diz respeito ao diálogo que deve ser feito paralelamente aos ensinamentos culturais do povo Yanomami. O caráter experimental de suas fotografias, portanto, parte de uma abordagem política e transcendental ao mesmo tempo, retratando os indígenas de forma a fomentar o debate para pessoas que ainda não possuem conhecimento a respeito das inclinações espirituais, culturais e políticas deste povo originário.

[3.2] POVO DA LUA,

POVO DO SANGUE

Para o cineasta cubano Santiago Álvarez (2015), o papel do cinema no contexto latino americano é fundamental para garantir construções visuais das problemáticas sociais e políticas do continente, advertindo que o alcance da reprodução cinematográfica “permitiu e permite cada vez mais a ampliação da comunicação e contribui para criar uma memória visual no espectador.” ( ÁLVAREZ , 2015, p. 148) Inserido nesse contexto cinematográfico, o nome do cineasta e professor Marcello G. Tassara, genovês radicado no Brasil desde a infância, surge para evidenciar produções brasileiras estruturadas a partir do uso de fotografias estáticas. Figura por trás de filmes como A João Guimarães Rosa (1969), Abeladormecida — entrada em uma só-sombra (1978) e Bahia amada Amado (1999), Tassara é considerado pioneiro na cronologia dos fotofilmes brasileiros pelo forte caráter experimental e político empregado, visto que seus filmes “estão construídos a partir de um intenso movimento no interior das fotografias selecionadas, operando por fragmentação e reenquadramentos ” ( ELIAS, 2015, p. 29), assim como destacam fotografias que refletem vivências marginalizadas no estado brasileiro.

Pensado como um filme que precisava cumprir objetivos políticos, Povo da lua, povo do sangue (1985) é o terceiro filme de Marcello G. Tassara. Convidado pessoalmente por Claudia Andujar, até então diretora da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), Tassara teria de realizar o filme utilizando as fotografias feitas pela fotógrafa entre os anos 19721982 (ELIAS, 2015, p. 45). O projeto intentou que o público tomasse conhecimento acerca dos aspectos sociais e culturais do povo Yanomami, assim como denunciar a ocupação da Amazônia por projetos governamentais e pelos garimpeiros, servindo como produto audiovisual capaz de difundir com maior ímpeto a urgência da homologação das terras indígenas Yanomami (ELIAS, 2009, p. 167). O filme é dividido em duas partes, sendo a primeira constituída por informações acerca dos costumes (caça, rituais, relação com a floresta, etc.) e a segunda voltada para explorar questões relativas ao desmatamento e conflitos a que os indígenas estão expostos.

De acordo com Wilson Gomes (2004), a experiência fílmica acontece quando desabrocha em sentidos e efeitos, qualificando-se a partir dos aspectos sensoriais que prevê e solicita, assim como a partir da composição que comporta e engendra (GOMES, 2004, p. 96). Como já foi evidenciado, as fotografias de Andujar possuem um ritmo próprio, uma codificação temporal que não consiste apenas

no tempo fixado, mas no movimento dos corpos e experimentos com luzes. Nesse sentido, a abordagem referente à montagem acaba por engendrar e realçar sentidos antevistos pelas fotografias, visto que Tassara é responsável pela criação de um segundo ritmo.

O que se faz no cinema de animação com fotografias é partir daqueles momentos de congelamento e recriar a linha do tempo, uma linha do tempo que não é mais a mesma daquele acontecimento captado. Trata-se de um tempo paralelo, que tem outro ritmo de desenvolvimento, fora do tempo normal. É um tempo ilusório, que um animador manipula com toda a liberdade, pois não está vinculado ao tempo real. O animador está criando, inventando um novo tempo. (TASSARA apud ELIAS, 2009, p. 262)

A montagem do filme, portanto, opera na estruturação sequencial da lógica das ideias e das emoções presentes na imagem, estabelecendo diálogos potentes com os retratos, sem diminuir sua autoridade ou enfraquecer suas funções potenciais. Para o filósofo Gilles Deleuze (1990) esse processo refere-se à imagem-pensamento, quando o movimento se torna automático e a essência artística da imagem se efetua, produzindo um choque no pensamento e atingindo diretamente o sistema nervoso e cerebral ( DELEUZE , 1990, p. 189). No entanto, essa compreensão ganha

novas proporções em filmes que lidam com fotografias estáticas, visto que a lógica de continuidade do cinema convencional é rompida e o cineasta deve “operar no interior da própria lógica de representação do movimento” (ELIAS, 2015, p. 31) Dessa forma, o sentido das imagens é ampliado pelas medidas cinematográficas adotadas, inserindo as fotografias de Andujar no processo de inter-relação necessário para imagem fotográfica de acordo Didi-Huberman (2020), transportando-as através de uma confluência que põe em perspectiva a luta, o transcendental e a multiplicidade dos olhares. Os movimentos de sobreposição, por exemplo, são realçados pela montagem cinematográfica, fazendo com que o espectador adentre o universo plural e diverso dos Yanomami [Fig. 03].

Essas fotografias são exibidas no início do filme com o uso de uma série de recursos de animação que permitem o mergulho nas alteridades. Os índios são apresentados na altivez de sua cultura, por meio de belos movimentos circulares que acompanham o balanço da rede, de viagens pelo interior de imagens que mostram seus corpos nus, de sobreposição de rostos, de efeitos de multiplicação. (ELIAS, 2009, p. 169)

Tais imagens são como retiradas dos sonhos, justapostas durante o momento do sono e intensa imersão, pois é neste “universo repleto de tantos outros, quando a noite cai para o corpo, que a

[Fig. 03]
Claudia Andujar
Antônio Korihana thëri sob o efeito
do alucinógeno yãkoana, Catrimani
série O reahu (1972 - 1976)
Cortesia Galeria Vermelho
[Fig. 04]
Claudia Andujar Yanomami na frente de trabalho da construção da rodovia Perimetral Norte, RR série Consequências do contato (1975) Cortesia Galeria Vermelho

imagem entra nesse mundo de alteridade, ficando mais vulnerável.” (LIMULJA, 2022, p. 67). E esses instantes que representam de forma imagética a floresta transitam em uma teia temporal imbricada, de perpétua modulação do plano cinematográfico, ligadas por vistas habitadas por corpos em intensa transmutação iluminada.

O referido processo, no entanto, diz respeito à primeira parte do filme, dedicada aos costumes da comunidade. A ruptura entre as duas partes pode ser percebida pela forma que Tassara aborda as imagens, visto que o senso de ameaça é consumado no segmento final por oferecer a contraposição cultural imposta pelo embate com empreiteiras e garimpeiros, que ocuparam e ainda ocupam a Amazônia de forma desmedida e inconsequente. A perda cultural, tal qual é exposta pelas imagens de indígenas frente a imensas áreas desmatadas, oferece ao espectador um momento de reflexão potente, colocando em perspectiva os laços afetivos que este povo possui com a floresta. A imagem de encerramento, por exemplo, disposta por quase 30 segundos na tela, expõe a crueldade imposta pelo contato ameaçador à cultura Yanomami: um indígena com o capacete de uma empreiteira, sendo colocado para trabalhar pela sua própria destruição (Figura 4).

O processo de automatização do movimento cinematográfico proposto por Deleuze encerra o ciclo quando

o fotofilme nos devolve imagens dotadas de extrema carga poética e ao mesmo tempo de melancolia. Do mesmo modo que conscientizam, as imagens de Andujar justapostas por Tassara nos envolvem e nos remetem aos nossos atos enquanto pessoas inseridas em um processo verticalizado e predatório com a terra. Desta forma, o filme dialoga com o fundamento de Guattari (1999) acerca da verdadeira resposta à crise ecológica, que deve perpassar não apenas pelas relações de forças visíveis, mas também no nível da sensibilidade, inteligência e do desejo (GUATTARI, 1999, p. 9). Se o mundo moderno, como aponta Krenak (2020), é especialista em produzir ausências, tanto do sentido de viver em sociedade ou da própria experiência da vida, devemos fazer com que os sonhos perdurem e que histórias continuem a ser contadas (KRENAK, 2020, p. 13). E a união desempenhada entre a fotografia e o cinema no fotofilme de Tassara é capaz de nos devolver imagens com a eloquência necessária para ampliar os olhares que, por fim, mudam o mundo.

[04] CONSIDERAÇÕES

FINAIS

Se levarmos a cabo o papel do cinema enquanto meio que pode construir uma memória visual no espectador, esse caráter é, portanto, elevado na arte dos fotofilmes ao trabalhar com imagens retiradas do tempo, fragmentos da vida. A manipulação das fotografias configuram uma atividade artística de outra ordem, que impulsionam os principais meios de produção da imagem contra si, em perpétua convergência. Deste modo, a potencialidade destas narrativas encontra-se em sua disposição limítrofe, gerando inquietação pela justaposição de imagens estáticas, mas curiosidade pelos componentes estruturais adotados.

Além disso, acreditamos que, por se tratar de um momento propício à proliferação de instrumentos que proporcionam o registro digital da imagem, os estudos acerca dos fotofilmes é um espaço de grande proveito tanto para fins artísticos quanto para pesquisa, visto que os meios necessários para que estes filmes sejam feitos tornaram-se acessíveis. Com isso, buscamos contribuir para a difusão desta forma cinematográfica que adota a fotografia como componente principal, ressaltando o caráter artístico presente nestes filmes que acentuam sig-

nificados, ressaltam temporalidades e demonstram que a evocação do tempo não depende necessariamente da imagem em movimento.

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KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

LIMULJA, Hanna. O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos Yanomami. São Paulo: Ubu editora, 2022.

MANEVY, Alfredo. Nouvelle vague. In: MASCARELLO, Fernando. (org.) História do cinema mundial São Paulo: Papirus, 2009. p. 221-252

FOTOGRAFIAS

GUERREIRO de Toototobi [Série Sonhos Yanomami]. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org. br/obra66648/guerreiro-de-toototobi-serie-sonhos-yanomami Acesso em: 10 de agosto de 2023

YANOMAMI [Série A floresta]. In: CLAUDIA Andujar, la lutte Yanomami. Lisboa: Artecapital, 2020. Disponível em: https://www.artecapital.net/exposicao-631-claudia-andujar-la-lutte-yanomami Acesso em: 10 de agosto de 2023

FILMES

POVO DA LUA, POVO DO SANGUE. Direção: Marcello G. Tassara. Produção da Comissão pela Criação do Parque Yanomami. Brasil: Fitas Brasileiras e TV Cultura, 1985. Disponível em: https://vimeo. com/201569402

UMA CENTELHA QUE NÃO SE APAGA NUNCA: FOTOGRAFIA E MEMÓRIA

NOS ARQUIVOS DE HELENA ANTIPOFF

Pedro Rena Todeschi

[01] INTRODUÇÃO

Na passagem para o século XXI, Rosângela Rennó se apropriou da carta de Pero Vaz de Caminha para montar sua videoinstalação Vera Cruz (2000). Na legenda, lemos trechos da carta, tal como: “Vamos dormir. Amanhã veremos...”. Na imagem, por sua vez, vemos uma tela em branco, uma película desgastada pelo tempo. A obra nos faz pensar sobre a ausência de imagens do início da colonização no Brasil, história que só podemos acessar pelos relatos escritos dos portugueses. Ao longo de séculos, a história de nosso país foi narrada apenas do ponto de vista do colonizador, e não da perspectiva das populações negras e indígenas. A questão do arquivo, mais especificamente do mal de arquivo (DERRIDA, 2001), é central na obra de Rosângela Rennó, como notamos na leitura que Maria Angélica Melendi (2017, p. 182) faz desta artista, evocando a filosofia de Jacques Derrida ao dizer que existem “pulsões de morte [que] precipitam o arquivo no esquecimento, na amnésia, na aniquilação da memória, na erradicação da verdade”.

Se, por um lado, Rennó rasura os arquivos coloniais – fazendo-nos refletir sobre a ausência de imagens –, por outro, a artista nos convida a imaginar uma história para este documentário impossível. Diante da saturação visual de nosso tempo, a

artista faz a imagem colonial aparecer em seu próprio apagamento, criando um espaço vazio para que novas imagens não-hegemônicas possam preencher esta tela. Gilles Deleuze (2005, p. 31) escreve que, diante da “civilização do clichê” do final do século XX, era “preciso fazer buracos, introduzir vazios e espaços em branco, rarefazer a imagem, suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer que víamos tudo.” É preciso esvaziar o clichê para que imagens que nos “interessam” (o termo é de Deleuze) possam aparecer.

Em 2019, uma mostra do FestCurtasBH, intitulada “Pulsões do arquivo: o cinema contemporâneo e o desejo por memória”, buscava observar como a retomada de arquivos familiares por cineastas do presente se dava através da preservação de memórias: “poderíamos dizer que estes filmes estão com mal de arquivo, não em um sentido negativo, mas no de uma perturbação fundante, uma força que elabora a morte, a destruição e a ruína, e que impele à vida” (RODRIGUES; FAGIOLI, 2019, p. 69). Apesar de serem filmes marcados pela elaboração do luto (de vidas específicas, de uma época que passou), são filmes em que vemos a pulsão de vida dos arquivos. Assistimos a obras atravessadas pela capacidade que os arquivos têm de restituir, no tempo presente, rastros de vidas que importam. São vidas mínimas, em filmes que, “na busca

de resistir à morte como ponto final ou ao esquecimento como morte em vida”, encontram “no coração do arquivo uma vida que pulsa pelo desejo e pela promessa grafados no que se grava” (RODRIGUES; FAGIOLI, 2019, p. 69).

No poema “Vida menor”, Carlos Drummond de Andrade (2015, p. 128) escreve: “Não a morte, contudo./ Mas a vida: captada em sua forma irredutível [...]/ vida mínima, essencial: um início, um sono.” Em uma outra mostra de documentários, no CachoeiraDoc (Bahia), o curador Fábio Rodrigues fez uma seleção de filmes brasileiros feitos a partir de fotografias de famílias negras, apresentando a retomada dos “arquivos mínimos” no cinema contemporâneo:

ao passo que nos interessa os filmes que falam diretamente ‘Brasil’, também acolheremos um movimento de filmes em que a retomada de imagens de arquivos, muitas vezes registros familiares, é acompanhada da construção de legibilidades que nos colocam frontalmente a questão de desaprender/ reaprender o país pela memória que se reúne ali ou se constrói a partir dali. [...] Nesse caso, uma espécie de arquivo mínimo parece precipitar, ao seu modo, a grande narrativa identitária do país. Em ambos os casos, uma espécie de política de memória parece emergir (RODRIGUES, 2020, grifo nosso).

As imagens desses filmes poderiam preencher a tela em branco de Vera Cruz, dando a ver as vidas mínimas que habitam nosso país. Em tom provocativo, no poema “Hino nacional”, Drummond (2015, p. 49-50) escreve que “nenhum Brasil existe” e se pergunta, duvidando da identidade generalizante de uma nação: “e acaso existirão os brasileiros?” Por outro lado, Drummond é o poeta que se dedicou a escrever sobre as vidas menores de nossa nação, como aquelas que vemos nos filmes da mostra de Fábio Rodrigues. São vidas excluídas das grandes narrativas do país, vidas que, entretanto, começaram a produzir suas próprias imagens e narrativas nas últimas décadas, povoando a tela em branco que apagava suas existências.

[02] VIDAS MÍNIMAS

Em um de seus poemas dedicados às vidas mínimas, chamado “A casa de Helena” (1974), Drummond escreveu, enlutado, sobre a pedagoga russa Helena Antipoff (que havia morrido no mesmo ano) e seus alunos (que ele chama de “mínimas sementes”) da Fazenda do Rosário, no interior de Minas Gerais:

Helena sonha o mundo de amanhã, mundo recuado sempre, mas factível e em mínimas sementes concentrado: estes garotos pensativos, esse outro ali, inquieto, a modelar engenharias espaciais com mão canhota, aquele mais além, que se revolta procurando a si mesmo, e não se encontra no quadro bitolado dos contentes (ANDRADE, 1974)

Drummond escreve sobre a dimensão de futuro desta casa, que era também uma escola: “A casa de Helena é a casa daqui a 20 anos,/ de aqui a 50, ao incontável.” A casa, que ao longo de décadas foi o abrigo de diversas crianças órfãs, é hoje um museu, abrigando os arquivos e a memória dessa época inscrita em diários (individuais e coletivos) e em fotografias. Jacques Derrida (2001, p. 13) escreve que o conceito de arquivo “se conserva ao abrigo desta memória que ele abriga”. Para o filó-

sofo, acontece uma passagem quando uma casa se transforma em um museu: “a morada, este lugar onde se de-moravam, marca esta passagem institucional do privado ao público” (DERRIDA, 1994, p. 12).

No meu álbum familiar, guardo uma fotografia de minha avó, Maria Blandina, que foi, ao longo de 15 anos, aprendiz de Helena Antipoff e professora na Fazenda do Rosário. Depois de sua morte, ela se presentifica quando olho para esta imagem (fig. 1): “a representação, agora, se vê substituída pela ilusão de presença” (KOSSOY, 1998, p. 45). Quando olhamos uma imagem, o referente da fotografia ganha uma nova existência no tempo. Trata-se de uma “imagem-relicário”, nas palavras de Boris Kossoy (1998, p. 45), fotografia que é o início “da lembrança, da recordação, ponto de partida, enfim, da narrativa dos fatos e das emoções”. Trata-se de uma imagem que é ao mesmo tempo familiar e social: o rastro desta vida que se conservou no álbum familiar não foi capturado em uma cena doméstica, mas em um lugar social e histórico – a Fazenda do Rosário.

Quando encontrei pela primeira vez aquela imagem, que se relacionava com meu luto, a experiência me lembrou diretamente do texto de A câmara clara (2017), de Roland Barthes. Nesse livro, o filósofo francês narrava o luto de sua mãe, assim como escrevia sobre a força de sua presentificação através das fotografias. O semiólogo, que passou décadas se dedi-

Uma centelha que não se apaga nunca GOÉS (1968, s/p)

[Fig. 01]

cando à codificação e ao studium das fotografias – o saber histórico e cultural relacionado a uma imagem –, agora escrevia um livro em primeira pessoa, trazendo em seu centro uma reflexão subjetiva sobre uma imagem de seu próprio álbum familiar, imagem que para ele tinha uma existência, um punctum – aquela fotografia o feria. Em A câmara clara (2017), Barthes nos mostra como o seu pensamento sobre as imagens está atravessado por uma experiência pessoal, pois tudo gira em torno da única fotografia com a qual ele mantinha um verdadeiro vínculo amoroso. A pessoa amada, referente da fotografia, imprimiu seus traços na película e emanou seus raios no momento presente em que Barthes a viu no álbum familiar.

A fotografia da Fazenda do Rosário é carregada (para mim) do tempo qualitativo da memória e da duração. Nela, o sentido da vida se materializa no encontro singular com os alunos, nos gestos pedagógicos únicos, na experiência sensível de descobrir o mundo junto às crianças. No cenário envolto pela natureza, pelas árvores, pelo céu e pelas montanhas, Blandina, como professora, no centro da cena, faz um mínimo gesto, apontando o dedo que direcionava o olhar das crianças para algo que estava para além da cerca. A tela em branco está povoada, agora, por dezenas de crianças. Giorgio Agamben (2007, p. 28) escreve que “graças à objetiva fotográfica, o gesto agora aparece

carregado com o peso de uma vida inteira; aquela atitude irrelevante [...] compendia e resume em si o sentido de toda uma existência”. Para Roland Barthes (1984, p. 135), uma fotografia apreende o “real concreto”, materializado em “gestos mínimos, atitudes transitórias”.

A cidade de Ibirité era o cenário onde a atividade mineradora iria se instalar no futuro. Na época em que a fotografia foi capturada, o mundo vivia o tempo das revoluções sociais e culturais ao redor de Maio de 1968. Nesse mesmo ano, o Brasil vivia o endurecimento da Ditadura Militar. A imagem apreende, por outro lado, uma pequena cena pedagógica que acontecia no interior de Minas Gerais. A sabedoria de Helena Antipoff, constituída no início do século XX na Europa (ao lado de Henri Bergson e Édouard Claparède), depois na Rússia, após a Revolução de 1917, era transmitida em uma cidadezinha qualquer no interior do Brasil. A sua experiência com aqueles alunos brasileiros, no entanto, era marcada pela contingência social e histórica, como se o saber anteriormente constituído precisasse se transformar para se adaptar àquela paisagem.

A obra de Drummond é marcada em muitos momentos por um ceticismo diante do progresso histórico e um desencanto frente ao futuro. Quando ele escreveu sobre Antipoff e seus alunos, porém, ele diz, esperançoso: “E essa pastora magra, quase um sopro,/ uma folha

talvez (ou uma centelha/ que não se apaga nunca?) vai pensando/ outras formas de abrir, no chão pedrento,/ o caminho de paz para o futuro.” (ANDRADE, 1974). A palavra centelha – como lampejo que não se apaga – também aparece na clássica passagem de “Pequena história da fotografia”, de Walter Benjamin, em que o filósofo escreve sobre o futuro a que aponta uma fotografia: “A necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos” (BENJAMIN, 1987, p. 94, grifo nosso).

Em uma crônica publicada no jornal Arte e Educação de 1972, dois anos antes da morte de Helena Antipoff, Drummond dedicava uma crônica a ela, contando que a conheceu em 1929, no ano em que Antipoff chegou ao Brasil e que Drummond trabalhava na secretaria de Educação de Minas Gerais. O poeta afirma que as ideias estrangeiras trazidas pela pedagoga ao Brasil encontraram seu lugar em nosso país:

Russa mais mineira não há, na assimilação plena de valores e características da gente mineira, em harmonia com o fundo eslavo que se abre para o sentimento de mundo sem distinguir limitações convencionais, e quer abarcar no mesmo amor todos os seres carentes de proteção e compreensão (ANDRADE, 1972, s/p).

Transformando a escola em casa, fazendo uma passagem, desta vez, do âmbito social ao familiar, Drummond escreveu que os alunos de Helena eram seus “filhos” inumeráveis. Nos perguntamos, então, se poderíamos olhar para as fotografias do Museu Helena Antipoff, ou para “A casa de Helena”, como se olhássemos fotografias de um álbum de família, em que a relação pedagógica era feita através de vínculos amorosos, familiares. De fato, Dona Helena se figurava como uma mãe para aquelas crianças órfãs, abandonadas pela vida social do país. O que os conectava, porém, não era os laços sanguíneos, mas as vizinhanças afetivas construídas ao longo do tempo.

No final de sua crônica dedicada a Dona Helena, Drummond escutou o seguinte, cito,

Estou ouvindo a sabedoria mansa de Dona Helena, no empenho de fazer os adultos entenderem um pouco mais da vida:

- Brincar com as crianças não é perder tempo, é ganhá-lo.

- Não é bom alimentar a criança com palavras, quando ela clama pelas coisas e atos.

- A criança tem vontade própria, mas até a mais revoltada atenderá ao nosso pedido se o fizermos com delicadeza.

- Se é triste ver meninos sem escola, mais triste ainda é vê-los imóveis, em carteiras enfileiradas, e salas sem ar, perdendo tempo em exercícios este

réis, sem valor para a formação do [humano]

- Argila, terra, madeira, água e ferramenta farão a criança criar o que seu coração deseja e seu cérebro inventa, em contato com a natureza e a realidade. Obrigado, amiga.

Uma prática constitutiva da pedagogia antipoffiana era a escrita de diários coletivos. Em um texto publicado em 1948, intitulado “O diário na escola rural”, Helena Antipoff reflete sobre a experiência de escrita como prática de aprendizagem e como produção de documentação histórica. Ela nos conta que eram os próprios alunos que narravam os acontecimentos do dia para as professoras, em um registro em que a voz da criança também foi grafada na história social. Ao longo de 30 anos (entre 1940 e 1970), as professoras se revezavam para escrever as experiências pedagógicas de cada dia, criando, assim, inscrições textuais que preservaram a memória cultural daquela época. Ao final de cada dia, os diários eram lidos coletivamente, fazendo com que a experiência se consolidasse e se transmitisse, entre as próprias educadoras e crianças, assim como entre diferentes épocas:

Como tudo que tem valor social, a escola rural merece um estudo através de documentação objetiva e apanhada ao vivo. [...] Como conhecer, porém, esta escola, perdida nas fazendas,

escondida atrás dos morros, sem estradas, sem condução direta, sem pessoas que as visitem? [...] Parece-nos haver um meio nada difícil e que certamente toda escola rural pode pôr em prática: fazer apontamentos diários sobre os fatos que interessam tanto aos alunos como à mestra. O diário da escola rural pode constituir precisamente o documentário para estudiosos desse aspecto, já tão importante na vida social do País (ANTIPOFF, 1992, p. 45-46).

Helena Antipoff (1992, p. 46) nota que, com os diários, “mais íntima se tornará a vida escolar”, pois, “anotando assim, dia a dia, as observações dos meninos e as suas, registrando acontecimentos de maior importância, irá a mestra tecendo a trama da vida de sua escola, historiando-a para a posteridade”. Em seu estudo sobre os diários íntimos, Maurice Blanchot (2005, p. 274-275) nos diz que a escrita é uma forma de salvar os dias, pois, para ele, o diário é “um empreendimento de salvação: escrevemos para salvar a escrita, para salvar a vida pela escrita”. A escrita salva a vida do esquecimento, pois, segundo Jeferson Tenório (2022), quando se escreve um diário, vive-se duas vezes: “uma pela experiência e outra pela escrita.” Para o autor, “um diário sobrevive à própria morte”, pois “toda vida é importante e por isso registrá-la com as próprias palavras confere dignidade à nossa jornada”. Tenório reformula, assim, as teses de Blanchot, sustentando que “cada dia nos diz alguma coisa.

Cada dia anotado é um dia preservado.”

Com a escrita (e a leitura) dos diários, portanto, “protegemo-nos do esquecimento” (TENÓRIO, 2022).

Os diários íntimos da Fazenda do Rosário eram diários coletivos e sociais, que entrelaçavam as vozes das crianças com a escrita das professoras, salvando essa história do esquecimento. Em um texto escrito em 1968, intitulado “Uma escola científica chamada Helena Antipoff”, dedicado à rememoração das experiências na Fazenda do Rosário, Maria Blandina se pergunta sobre o que acontecia em um dia naquele lugar:

Eram imprevisíveis as descobertas de uma nova jornada amanhã. Um dia na Fazenda do Rosário? Difícil para definir. Eram todos diferentes... Eu, como professora, tentava fazer um plano de aula. Mas, datas, nomes, acontecimentos passados, experimentos experimentados pouco tinham valor. O que contava mesmo era o aqui e o agora da natureza. A gente estudava o que estava acontecendo. [...] Levantávamos cedo. O dia começava mesmo muito cedo. Quando? Não sei... com o alvorecer; e terminava cedo também. Talvez o suficiente para ver como a lua apareceria esta noite e conferir nossos pontos de orientação no céu... (BLANDINA, 1968, s/p).

Neste trecho, observamos como a pedagogia promovida por Helena Antipoff e suas companheiras era marcada pela contingência e pela singularidade

de cada dia, pela experiência constituída sempre por novas descobertas, como se elas vissem, junto às crianças, a cada dia, o mundo pela primeira vez. O diário é um gênero literário “menor”, 1 próximo à vida cotidiana, dedicado à preservação da memória da passagem dos dias. Na nossa pesquisa, faremos uma leitura literária dos diários do Museu Helena Antipoff, pois compreendemos, a partir do pensamento de Antonio Candido (2011, p. 176), “a literatura da maneira mais ampla possível”. Para o autor, a literatura é um direito dos homens e das mulheres, porque não podemos viver “sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação”, portanto “a literatura é o sonho acordado das civilizações” (CANDIDO, 2011, p. 176-177).

A escrita dos diários na Fazenda do Rosário lidava com uma dupla fabulação: a dos alunos, que narravam e desenhavam suas experiências, e a das professoras, que escreviam as histórias transmitidas pelas crianças. Nesses diários podemos ler os rastros de uma experiência mínima que é ao mesmo tempo singular e plural, individual e coletiva. A história social e a memória cultural estão inscritas nessas vidas mínimas

1 - Leyla Perrone-Moisés (2016, p. 28) sustenta que “um gênero considerado não literário numa época passa a ser considerado literário em outra. Exemplo: a correspondência”. Ampliando o conceito de literatura, compreendemos nesta pesquisa que o “diário” pode ser também um gênero literário.

que exigem não serem esquecidas. Essa é também a exigência que Giorgio Agamben compreende em uma fotografia:

[...] aquela pessoa, aquele rosto exigem o seu nome, exigem que não sejam esquecidos. [...] a fotografia exige que nos recordemos; as fotos são testemunhos de todos esses nomes perdidos. Acredito que haja uma relação secreta entre gesto e fotografia (AGAMBEN, 2007, p. 29).

Para Boris Kossoy (1998, p. 42), “Fotografia é Memória e com ela se confunde”. A rememoração de uma época do passado a partir de fotografias lida com um processo fabulador e inventivo. Abrir esse arquivo significa mergulhar em uma complexa dimensão do tempo, em que passado, presente e futuro se entrecruzam na fabulação atual daquelas histórias guardadas. A memória do Museu se organiza então em torno de lembranças e objetos, relatos escritos e visuais, através dos quais supomos o acontecido, juntando fragmentos de um passado na constituição de uma narrativa no presente.

Encontramos na leitura que Georges Didi-Huberman faz da obra de Walter Benjamin uma chave teórica importante que nos permite estabelecer as montagens entre o texto e a imagem, entre os diários e as fotografias, que é o conceito da “legibilidade histórica” articulado com a “visibilidade”:

Benjamin pleiteou para que a ‘legibilidade’ da história pudesse se articular com a sua ‘visibilidade’ concreta, imanente, singular. É preciso para isso, visto que não se trata somente de ver, mas de saber, ‘retomar na história o princípio da montagem’ [...] trata-se, efetivamente, na montagem, de ‘edificar as grandes construções a partir de pequeníssimos elementos confeccionados com precisão e nitidez, descobrir na análise do momento singular o cristal do acontecimento’ (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 20).

O pensamento de Walter Benjamin nos possibilita compreender as relações entre fotografia e história, entre imagem e narração, pois, segundo Maurício Lissovsky (2014, p. 7), para Benjamin, a fotografia se tornou “paradigma do acontecimento histórico”. As imagens são compreendidas nesta filosofia “não apenas como testemunhos de uma época”, mas também “como oportunidades de suspensão do fluxo temporal que nos permitem acessar o âmago da experiência histórica” (LISSOVSKY, 2014, p. 7). Em uma de suas “Teses sobre o conceito de história”, Benjamin (1987, p. 223) escreve que “o cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”. Patrícia Machado e Maurício Lissovsky, na esteira de Benjamin, compreendem a fotografia como

índice, como traço do real, a partir do qual se pode construir narrativas. Para esses autores, a fotografia não representa ou espelha a história, a fotografia constitui a própria experiência histórica.

Diante dos arquivos do Museu Helena Antipoff buscamos construir as narrativas de vida das “existências mínimas” (LAPOUJADE, 2017) que eram abrigadas na “casa de Helena”. Os textos e as fotografias – que são lacunares, fragmentários – nos demandam a imaginação para que possamos criar pontes entre os hiatos temporais e espaciais:

A reconstituição histórica de um tema dado, assim como a observação do indivíduo rememorado, através dos álbuns, suas próprias histórias de vida, constitui-se num fascinante exercício intelectual pelo qual podemos detectar em que medida a realidade anda próxima da ficção. Veremos que a reconstituição – quer seja ela dirigida à investigação histórica ou à mera recordação pessoal – sempre implicará um processo de criação de realidades (KOSSOY, 1998, p. 42).

Nesse trecho, observamos como Kossoy aproxima a reconstituição de um momento histórico de um “processo de criação de realidades”, próximo da ficção. Com esta passagem associamos a fotografia (como documento da história e da memória) com a literatura e a ficção (como imaginação e fabulação da trama dos fatos

a partir de suas lacunas). Compreendemos, portanto, junto a Jacques Rancière (2017, p. 12), que a “ficção não é uma invenção de mundos imaginários”, mas “uma estrutura de racionalidade: um modo de apresentação que torna as coisas, as situações ou os acontecimentos perceptíveis e inteligíveis”.

[03] CONSIDERAÇÕES

FINAIS

Comparando, assim, os textos de Drummond com os arquivos da Fazenda do Rosário, podemos remontar a memória de Helena Antipoff quando a contemplamos da “retrovisão da lembrança”. Como se olhássemos por um retrovisor, enquanto o tempo corre em direção ao futuro, uma imagem emoldurada do passado se sobrepõe à janela frontal, indicando um passado que continua incidindo em nosso tempo presente. A imagem construída por Drummond para se referir à dimensão temporal complexa entre passado, presente e futuro, nos parece similar à imagem de Boitempo em que o poeta está caminhando de costas, como se só fosse possível avançar adiante se olhos estiverem fixados no passado. Esta rememoração, no entanto, não é apenas uma forma de preservação do passado, como também uma forma de transformação do presente.

REFERÊNCIAS

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DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.

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TENÓRIO, Jeferson. “O diário secreto dos escritores”. GZH, Porto Alegre, 17 mai. de 2022.

A IMAGINAÇÃO

COMO SAÍDA

ORGANIZAÇÃO

Anelise De Carli

Eduardo Queiroga

PROJETO GRÁFICO

Estúdio Ligatura

[Heitor Moreira, Rod Souza Leão]

REVISÃO

Eduardo Queiroga

Rod Souza Leão

TEXTOS

Anelise De Carli

Alan Campos Araújo

Daniela Nery Bracchi

Eduardo Gomes de Lucena

Elisa Elsie Beserra

Mariana Gomes,

Maria Angela Pavan

Alex Hermes Assunção

José Afonso Jr.

Dayse Euzébio de Oliveira

Rochele Boscaini Zandavalli

Marina Feldhues

Lwidge de Oliveira

Maria Beatriz Colucci

Pedro Rena Todeschi

PROPÁGULO

PEQUENO ENCONTRO

DA FOTOGRAFIA 9º EDIÇÃO

COORDENAÇÃO GERAL E CURADORIA

Eduardo Queiroga

Maria Chaves

Mateus Sá

COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO

Maria Chaves

Héllyda Cavalcanti

EQUIPE DE PRODUÇÃO

Júlia Assis

Juliana Leão

Mariana Broxado

SITE E MÍDIAS SOCIAIS

Eugênia Bezerra

DESIGN Zoludesign

VÍDEO

Jacaré Vídeo

O conteúdo e as opiniões expressas nesta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores.

A fotografia, como é da natureza das imagens, é duvidosa. Se acreditarmos que com ela estamos dizendo ou demonstrando de maneira melhor determinado argumento, podemos ser surpreendidos, num susto, pela sua desobediência e acabarmos vendo-a mostrar exatamente o contrário do que um dia fora nossa proposta inicial. A questão é que essa não é uma característica deletéria da imagem no tocante ao seu potencial de produção de saber e de sentido. Pelo contrário, é justamente esse seu poder secreto. A fotografia do corpo de Che Guevara, como analisou John Berger, e sua posterior massiva divulgação na imprensa, tinham uma nítida intenção: por um fim ao mito. Contudo, é justamente o esforço em querer fazê-la dizer somente uma coisa que parece operar de maneira inversamente proporcional e resulta na sobrevivência –cochichada, rebelde, insistente – de seu exato oposto: a sobrevivência de Che. A foto do rebelde morto e o discurso que a pretendeu colonizar demonstram a força intrínseca da imagem daquele corpo, que exigiria tanto esforço para conter a espontaneidade da imaginação libertária que dele emana.

Anelise De Carli

Encontros: é disso que se faz a fotografia. Embora nem sempre sejam aproveitados, é condição fundamental desta linguagem que fotógrafos, fotógrafas e fotografados se encontrem, que fotografias e espectadores se encontrem. O Espaço de Pesquisa era um sonho antigo de ampliar – no festival – a participação desta maneira de fazer fotografia que é a reflexão e a escrita. A parceria com a Propágulo expande as discussões para outros territórios e articulações, potencializando novos encontros, o que nos deixa imensamente felizes.

Eduardo Queiroga, Maria Chaves e Mateus Sá

PROPÁGULO

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