Ciclos alterados

Page 1

RODRIGO BRAGA 7H\SV /LYRLUOVɈ

Ciclos Alterados


CICLOS

ALTERADOS


2

3


MINISTÉRIO DA CULTURA E INSTITUTO TOMIE OHTAKE APRESENTAM

Ciclos Alterados Rodrigo Braga busca nos opostos à sua rotina urbana as matrizes para o trabalho que desenvolve desde o início dos anos 2000. Propostas de convívio e espelhamento com o reino animal; construções de habitats férteis de frutas e plantas; vontade de estar na natureza, isolar-se e conquistar um silêncio apenas possível no mais remoto dos sítios. Este livro reúne alguns dos principais [YHIHSOVZ KV HY[PZ[H LU[YL ZtYPLZ MV[VNYmÄJHZ L L_WLYPvUJPHZ YLgistradas em vídeo. Em todos eles, encontramos os dilemas de um sujeito em busca de si mesmo e de formas para autorrepresentar-se, ou reinventar-se, quando sua identidade já não lhe traz tantas certezas. Esta é a tônica de um “projeto crítico que trata essencialTLU[L KV OVTLT¹ ZLN\UKV 7H\SV /LYRLUOVɈ UV LUZHPV X\L costura a publicação. Entre os vestígios de cultura e a força bruta de trabalho que indistingue seu corpo ante todas as outras espécies, Rodrigo Braga aventura-se por um ambiente que não lhe é familiar e que, por isso, pode parecer-lhe hostil. O Instituto Tomie Ohtake apresenta a seguir o limiar de estranheza e integração, perigo e doçura que constitui esse encontro.

RODRIGO BRAGA 7H\SV /LYRLUOVɈ SÃO PAULO 2012

Instituto Tomie Ohtake

Apoio

Realização


08 14 21 23 28 42 46 58 62 80 88

A ECOSOFIA EREMITA DO ANIMAL RODRIGO BRAGA FANTASMAS DE CARNE E OSSO MALA DE COURO BICHO NU MONDO CANE O SUJEITO DA VÍRGULA O CANTO DA SEREIA ADOPTIO NATURAM IMITATUR ADOPTIO NATURAM IMITATUR: TRADUCTIO MENTIRA REPETIDA DE MENDACIO


A ECOSOFIA EREMITA DO ANIMAL RODRIGO BRAGA PAULO HERKENHOFF

1 CANETTI, Elias. Le coeur secret de l’horloge. Trad. Walter Weideli. Paris: Livre de Poche, 1998. p.5. (Col. Biblio Romans). 2 SURYA, Michel. Humanimalité: l’inéliminable animalité de l’homme. Paris: Néant, 2001. 3 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-­Philosophicus. Trad. M. S. Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1987. p.27: “aquilo de que não se pode falar, guarda-­se em silêncio”.

O filósofo Elias Canetti recorre a um limite da própria linguagem para reivindicar o lugar da dimensão animal no humano: “no corpo secreto do relógio, máquina do engenho humano para medir o tempo, a palavra ‘animal’ convoca toda insuficiência” humana.1 Rodrigo Braga aponta para tal deficit da arte, da filosofia e da ciência, quando dissociadas da dimensão da animalidade do homem. Para ele, o significante é a instância, como o caso de ‘animal’ para Canetti, no qual deve empreender o esforço da arte contra aquele deficit de significação de um modelo do humano incompleto. Por trazer o confronto com animais, árvores e pedras, alguns pensam ingenuamente, em projeções e conjecturas pessoais, que o foco principal dessa arte esteja centralizado sobre bichos. No entanto, o projeto crítico de Rodrigo Braga trata essencialmente do homem. Essa imbricação ontológica é definida por Michel Surya como humanimalidade (humanimalité), o ineliminável no homem.2 Em muitos casos, os seres no modelo de Braga – gente ou bicho? – são da espécie dos acefálicos, como na perturbadora dimensão do sujeito na escrita de Georges Bataille. Aqui está implicado um regime político. O pensamento de Surya passa pela reconsideração das ideias de Bataille. Braga problematiza os discursos sobre a natureza e, para isso, retoma a passagem de Canetti e a ideia do indizível filosófico no limite do pensamento proposto por Ludwig Wittgenstein,3 para enfrentar o recalcado no pensamento do homem sobre si próprio. É assim que penetra a zona do ‘eliminado’ na borda das reflexões de Surya. Braga não restaura a palavra ‘animal’, nos termos da insuficiência, mas a coisa e a necessidade de imagens implícita na linguagem na origem do significante. Rodrigo Braga sabe que o recalcado, resultante da eliminação arbitrária do ineliminável, retorna, assim como a linguagem move-se para superar sua dimensão lacunar. O corpo não será então o móvel mecânico da obra – isto é, não será da família do relógio –, mas o móvel poético da linguagem. Braga parte de uma experiência pessoal comovida, que resulta no pudor em propor-se a discutir o ‘homem’, essa complexa categoria filosófica. É nesse ponto que o artista se situa em hipóteses primais do sujeito atravessado por sua animalidade e por seu inconsciente. O corpus de

8

Rodrigo Braga vem construindo uma agenda transversal que aborda desde bichos aristotélicos a certa cidadania animal na filosofia contemporânea. A produção de Rodrigo Braga não segue uma pauta temática, mas enreda a inteligência numa trama de epistheme e axiologia, saltos poéticos e olhar frictivo. Por isso, desejo, prazer e vontade, compaixão cínica (não é assim o ego da ‘bela alma’ ecológica?), alegoria e fantasia onde existe, de fato, fantasmática e risco de desassossego. A resposta afoita projetava virtude rudimentar no processo da autoconsciência quando faltasse um ponto de partida semântico consistentemente crítico. Há muito que a fenomenologia do espírito hegeliana desmontou o sentido dessa ingenuidade virtuosa. A obra é um campo minado por dispositivos provocadores de reações disfóricas sobre imagens que equalizam açougueiros e vegetarianos, ecochatos e fundamentalistas de toda espécie, homofóbicos e homoafetivos.4 Cabe desestabilizar a relação piedosa e conflitada do homem com a natureza sem pagar tributo ao maniqueísmo mecanicista dos ecologistas, nem à indiferença ética do ‘capitalismo selvagem’. Nessa direção, o trabalho resiste a ser um processo de homologação de valores midiáticos, mas expõe a fragilidade das operações ideológicas diante das necessidades de expandir o campo ético do debate. A produtividade de Rodrigo Braga será agora menos quantitativa para obter mais densidade de significação, agenciar consciência e conhecimento no diferendo entre animalidade e liberdade. Àquilo que Michael Pollan designa como a botânica do desejo, Rodrigo Braga contrapõe a hipótese das pulsões de morte do olhar regente da ‘bela alma’ ecologista. A arte monta a dialética de conceito-imagem. É a flor que manipula a abelha que busca o pólen de botão em botão – alimento para a abelha, transporte dos genes das plantas. Isso é o que Pollan designa como ‘coevolução’, termo com o qual dá conta de uma interdependência entre os dois sistemas vitais.5 Rodrigo Braga propõe a coevolução com os bichos do estado de assimbolia para a difícil convivência numa dimensão desajustada entre o limite dialético da liberdade de expressão do artista e do ethos sobre a condição animal. Para o artista, resgatar a situação assimbólica é conferir-lhe dimensão significante. Não há fantasias musicais como O carnaval dos animais de Saint-Saëns, nem a humanização dos bichos como nos contos edificantes com os ratos morais do Flautista de Hamelin dos irmãos Grimm. Contra a demagogia ecologista, o filho de dois biólogos nascido na Amazônia6 assume posições e riscos. Rodrigo Braga não admite obliterar a diferença definitiva: a razão, a ética, a simbolização e os percalços que definem o valor singular do homem.

9

4 ‘Disfórico’ é termo da medicina, refere-­se a indisposição geral ou a mal-­estar permanente. 5 POLLAN, Michael. The botany of desire. New York: Random House, 2002. p.xiv. 6 Ricardo Braga, o pai, é biólogo com formação em ecologia e em recursos hídricos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e Elisabete Braga, a mãe, é bióloga com ênfase na área de educação ambiental. Ambos atuam em ONGs ambientalistas.


10

11

Do prazer solene 2005


12

13

Do prazer solene 2005


FANTASMAS DE CARNE E OSSO

3 Cf. o verbete ‘Chair’. In: DUPONT, Pascal. Dictionnaire Merleau-­ Ponty. Paris: Ellipses, 2008. p.20-­25. 4 MERLEAU-­PONTY, Maurice. L’entrelacs – le chiasme. In: _______. Le visible et l’invisible [1964]. Paris: Gallimard, 2004. p.309-­310.

1 BAKHTIN, Mikhail. Forms of time and of the chronotope in the novel. (1931). In: HOLQUIST, Michael (Ed.) . Austin: University of Texas Press, 1981. p.84-­258. (p.161-­162).

5 MERLEAU-­PONTY, Maurice. Le visible et l’invisible [1964], 2004, p.179. 6

2

BOT, Marc Le.

Ibidem, p.170-­201.

A ideia de carnalidade polissêmica no corpus de Rodrigo Braga explica bem a relação da carne com o corpo na fenomenologia. O significado atribuído por Merleau-Ponty aos substantivos corpo e carne em O olho e o espírito vem de retomar uma passagem de Paul Valéry para quem o pintor empresta seu corpo ao mundo. Rodrigo Braga realiza o empréstimo para encontrar seu corpo no mundo. O esforço semântico é condensar e ajustar o eixo de combinação. A perecibilidade da alegoria não advém de sua carnalidade, mas de sua condição de transplante poético de órgãos. Não existe carnavalização nessas máscaras e vestes orgânicas. Talvez aqui Rodrigo Braga quisesse antecipar um possível cansaço do processo de significação histórica. Mikhail Bakhtin ressalta a máxima importância da “significação metafórica indireta da imagem humana toda” e de sua natureza intensamente alegórica. Esse aspecto é relacionado à metáfora, como o palhaço e o bobo que representam a metamorfose do tzar e de deus – mas essas figuras transformadas localizam-se no inferno dantesco, na mansão dos mortos. Em Da alegoria perecível (2005), o artista entrega-se a uma experiência semiótica da cultura que permite remeter, no entanto, sempre sem alusões ao carnavalesco, à conclusão de Bakhtin de que, sob tais condições, “o homem está em estado de alegoria”, que tem enorme significação na geração de formas do mundo.1 Algumas relações cronotópicas condensam-se com maior intensidade em Desejo eremita (2009). A ótica da cegueira opera no par de olhos mortos como óculos opacos ou nas nadadeiras-viseiras, retentoras de movimento, do homem-peixe. A peruca de escamas desprotege o sujeito, retém-lhe a velocidade, malgrado a vida ser transitoriedade. Cadáveres animais e vegetais – Marc le Bot afirma que as flores de uma natureza-morta são cadáveres2 – insistem em animar a vida, animar a carne; insistem sobretudo em animar a própria alegoria que substancia a dimensão semiológica da obra. A carne proposta por Rodrigo Braga estaria mais próxima, em francês, de chair, não de viande. Em Da alegoria perecível, a carne animal consumível (a viande) toma o sentido de carnalidade humana e, logo, o de novo pensar na ‘insuficiência’ humana de Canetti. Chair não é o que

Husserl denominou Leib, mas um conceito próprio da fenomenologia de Merleau-Ponty, onde ganha dimensões específicas para definir o sujeito dos sentidos (o corpo sensiente) no processo de percepção da obra. Rodrigo Braga admite o trânsito entre a condição de corpo-sujeito e a de corpo-objeto. Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty entende chair como corpo perceptivo (o sujeito da percepção), corpo fenomenal, corpo vivido (corps vécu).3 É necessário entender essa dimensão ‘carne’ do sujeito na obra de Braga, um ego carnal e por isso também em dimensão animal, distinto objeto no fenômeno do visível, isto é, da carne do visível no mundo tátil e no espaço corporal. Um ego carnal passa pela dimensão humanimal em Da alegoria perecível e em Desejo eremita. Não há coincidência entre estas posições do sujeito e do objeto, mas reversibilidade, o quiasma da percepção.4 Eu não sou peixe: cogito ergo sum. Sou bicho symbolicum. O artista é o veículo vivo do quiasma. Encontram-se o visível e o tangível um no outro. A identificação entre o voyant (o que vê) e o visível tem que ser também a percepção da ambivalência: Eu sou você / Eu não sou você (1972) é o jogo de reversibilidades linguísticas de Waltercio Caldas. Isso estava na estrutura orgânica do Bicho (1960) de Lygia Clark e, logo, na roupa-pele dos Parangolés (1964) de Hélio Oiticica. Se para Merleau-Ponty a carne é “protótipo do Ser”,5 para Rodrigo Braga, a matéria da obra é protótipo da humanimalidade. A “carne do visível” 6 – vísceras, língua, patas, pés de galinha, escamas que o artista, em operação fenomenológica, entende como carne das coisas, estendida também como carne da linguagem, e estendida à carne do mundo em estado alegórico e já sem deus.

14

15


Da alegoria parecĂ­vel 2005


Da alegoria parecĂ­vel 2005


MALA DE COURO

1 DERRIDA, Jacques. L’animal que donc je suis. Paris: Marie-­Louise Mallet, 2006. 218p. 2 ‘Imagem’, aqui, é imagem IRWRJUi¿FD VREUH SDSHO

mo para palavra, em francês), para ressaltar a singularidade na diversidade do termo animal. Falo com língua de vaca e cego-me e me torno visível com olhos de boi. Se falo e fotografo, posso, então, enunciar, com Derrida: “l’animal que donc je suis”. A obra é, portanto, animage próxima e já distinta da animot. E a pedra-boi em Habitat (2008). Na animage,2 a película é a pele do olho, tela do visível (ou a fotografia) na qual vejo-me tal qual logo existo. Lição de arte: a boca entulhada de pés de galinha cala o aparelho fonético. Ver não é falar; dar a ver não é dizer. A escama é em mim. Pelage: veste-se o olhar do outro com a escama do animal que donc je suis.

Pele de bicho é pra fazer sapato, valise e manteau: couro de boi ou de jacaré, pelo de macaco, pele de avestruz, pele de urso branco, tudo serve. Esses bichos são o humano abrigo do corpo e dos bens, ou a instância em Rodrigo Braga em que a pele abriga a linguagem, sendo ela a morada heideggeriana do ser, isto é, o refúgio e a proteção no (in)visível contra a finitude, para além do perecimento. Seu tropo linguístico-chave é a mot-valise do olhar (isto é, a palavra que carrega dois morfemas para abrigar sentidos). Tal portemanteau word é dispositivo inventado por Lewis Carroll em Through the looking glass (1871). Derrida tomou-a do regime ótico de Alice para costurar a palavra animot com a associação de animal e mot (o ter-

Teu 2007

21


BICHO NU

1 BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns es-­ paços cotidianos (2002). Trad. Leyla Perrone-­Moysés. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Essa citação conduz ainda à curadoria de Lisette Lagnado, referida a esse artigo de Barthes, para a 27ª Bienal de São Paulo.

O Como viver junto de Rodrigo Braga, alusão a Barthes,1 implica o desejo eremita de conhecimento. A dimensão do inconsciente é eremita, oposta ao inconsciente coletivo, se ele houver como propôs Jung ou se for o mal-estar da civilização que Freud analisou. Não seria um evangelho segundo São Francisco, porque Braga prefere o lugar solitário de São Jerônimo, para quem vagar no deserto era estar mais perto de Deus. O artista não é como Joseph Beuys, que ensina arte a uma lebre morta, nem como Francisco, que fala aos animais, mas talvez seu modelo esteja próximo do eremita Jerônimo que, sempre acompanhado de um crânio humano e de um manso leão hagiográfico, traduz, medeia e, como tradutor, admite a falha e a traição da linguagem de mediação translinguística. É como Jerônimo: vagueia no deserto extrametropolitano do sertão e da floresta, mas já sem deus, e depois, como o Jerônimo de Dürer, trabalha no studiolo Apple da pós-produção digital. Em Comunhão (2006) tudo se esvai: o afeto e o desejo, o pensamento e o descanso da luta pela sobrevivência. A apateia do bode e o confronto de olhares interiores profundos de Rodrigo Braga entre os dois animais é a cena mental do conhecimento e da concentração da meditação. O artista, sem a culpa, opõe-se a Beuys. Nada ensina a bichos, não é amestrador de pathos do drama do barroco alemão. Muito menos ensina música a canário hígido ou hirto em rigor mortis, ou sobre a arte a qualquer bode morto (àquilo que agora é olho de cabra morta), ou a porco sob ‘anestesia das paixões’, o boi em estado de taedium vitae ou, na ‘mortificação do corpo’, ao lagarto. A ecologia ainda aguarda por sua escultura social que não seja o clique fácil das redes sociais das ‘belas almas’ ecológicas em paz com a nova metafísica. A arte de Rodrigo Braga é pulsão de vida. Um bicho pelado escava o terreno como Michelangelo abria o mármore. A cena parece um vídeo. A escultura constrói-se per forza di levare – extrair o mármore para nele encontrar o David, o escravo, a noite, a mãe e seu filho morto como o Buonarroti – porque a figura carnal, o volume enformado, já estava dentro da pedra. O escultor é uma espécie de tatupeba que fuça até encontrar a forma

Comunhão 2006

23


2 ANGELO, Claudio. Buraco de tatu põe sítio arqueológico de pernas para o ar. (2003). Disponível em: www1.folha. uol.com.br/folha/ciencia/ult306u9185. shtml;; acesso em: 20 dez. 2011.

na arqueologia natural. Só resta ao escultor encontrá-la na opacidade do vídeo em preto e branco e, agora, é necessário qualificar o trabalho desta variação do tatu-de-cemitério (Euphractus sexcinctus).2 O bicho noturno, um homo faber sem techné (τέχνη) e muito menos poïesis (ποιέω), cava a terra com as mãos como o escultor usa o cinzel contra a pedra. O Leito (2008) arranca a forma, a carne, o corpo, a morte. Não exuma cadáveres, mas procura o vazio deixado pelo corpo inerte, a forma em negativo da tridimensionalidade. O porco imóvel, que se arranca e arrasta da terra, é retirado do processo de retorno à condição de pó para um último ato vital: ensinar sobre a escultura ao artista e, sobretudo, sobre a morte ao vivo. O porco gordo pareceria desvelar a morte, episódio existencial na iluminação do Buda. Memória subjetiva e memória historiográfica: o porco é a mãe e o homo sapiens, é, melhor ainda, a criança desesperada diante da mãe morta na obra de Edvard Munch, de Max Klinger e na pintura de Flávio de Carvalho. A mãe é também o bode de Comunhão. Nada ali, na hora real de Comunhão ou de Leito, se alça à condição de signo linguístico, privilégio do outro sapiens.

Leito 2008

25


ComunhĂŁo 2006


MONDO CANE

A agenda da natureza de Rodrigo Braga não é a pauta do óbvio. Ele trabalha com a morte como o fator inexorável da vida. É a partir de estados de abandono e entropia que se deslinda a positividade de sua ação: onde é possível deslocar pulsão de morte para pulsão de vida? O que vejo equivocadamente? Nenhum raciocínio mecânico avança o conhecimento. O que me desassossega em Rodrigo Braga? Este é o lugar do sujeito: estabelecer uma tyché incômoda. Uma passagem de Roland Barthes em A câmara clara define a fotografia como tyché, isto é, como encontro com o real sob a perspectiva de Lacan, e aproxima nosso raciocínio simbólico do imaginário de Braga. A fotografia “é o Particular absoluto, a Contingência soberana, impenetrável e quase animal (tal foto e não a Foto), em suma, a Tyché, a Ocasião, o Encontro, o Real, em sua infatigável expressão”.1 O que floresce na Contingência a que nos expõe essa obra? Natureza e arte são instâncias de dádiva. No corpus de Rodrigo Braga encontra-se uma economia da morte, sua enunciação do traço do capital, que está em Totem (1970) e Missão/Missões (1987) de Cildo Meireles, e atravessa a trajetória de Braga em Fantasia de compensação (2004), Desejo eremita (nos 05, 07 e 10, 2009) e Mais do que o necessário (2010). No plano mental, as reflexões sobre os ‘mistérios’ da vida e da morte remetem ao corpo despedaçado do homem, traço característico da modernidade;2 na pós-modernidade o horror parece ser focalizado no corpo vilificado do animal, mais que no do homem. Nas redes sociais da internet, a indignação contra ‘crimes ecológicos’ é mais intensa que a indignação contra a corrupção ou contra o homo sapiens. No plano da história contemporânea das mentalidades, a essa reação em massa, por vezes em fluência histérica como o estouro da boiada, chamarei de síndrome de Habacuc resultante do caso Natividad. Um imigrante ilegal nicaraguense atravessou a fronteira de seu país para a Costa Rica. Foi trucidado por cães da polícia. Pouca indignação na internet e em cartas a jornais (estima-se que tenham sido menos de trezentas mensagens). Um tempo depois, o artista costarriquenho Habacuc é convidado para uma exposição em Manágua.

28

Pendura ração nas paredes e amarra um cachorro magro, que chamou de Natividad, com uma cordinha. Cena de perversidade? No dia seguinte, um jornalista lá não encontra o cachorro e indaga ao artista pelo paradeiro do bicho: “Natividad morreu”, respondeu Habacuc. A notícia correu mundo. Estima-se que o artista tenha recebido mais de 300 mil e-mails de protesto de ecossantos. Trazem ameaças físicas (julgamento sem recurso), sugestões de que seja morto da mesma forma que o cachorro (restauração da pena de morte com a aplicação da lei de talião), que seja torturado pela fome (terrorismo de Estado), que seja banido do sistema de arte (cassação do direito de expressão). Alguém compõe uma música para o cãozinho e oferece seus serviços (capitalismo cultural e mais-valia simbólica). A obra de Habacuc consiste em testar sistemas de comunicação, tal qual Flávio de Carvalho na Experiência no 2 (1931), no plano psicológico coletivo: somos o que entendemos na comunicação e agimos a partir disso. Nenhuma imagem da exposição exibia um cão desesperado de fome. Habacuc batizou o cão de Natividad porque este era o nome do imigrante estraçalhado pelos cães da polícia. Sua resposta, “Natividad morreu”, referia-se ao imigrante.3 A humanimalité comove numa proporção de 1 por mil: para cada protesto pelo Natividad humano ocorreram mil para o Natividad canino. A conclusão cínica, neste mondo cane, é que “afinal, o primeiro Natividad era apenas lúmpen”. Este um é quase o zero do Zero cruzeiro (1974-78) de Cildo Meireles, uma cédula sem valor ilustrada com imagem de um índio Kraô e de um interno de hospital psiquiátrico, dois grupos sociais aos quais a sociedade brasileira atribuía então valor algum. É na morte, ou em sua iminência, que talvez o homem experimente mais radicalmente sua condição existencial animal. O desdobramento da produção de Rodrigo Braga é perpassado pela intencionalidade de superar todas as fronteiras do animal/homem, em todas as etapas da experiência do sujeito. Na evolução das espécies, o homem reganha rabos (Da compaixão cínica IV, 2007) para que os elos perdidos e as etapas do processo da vida na terra recuperem presença contemporânea.

29

1 BARTHES, Roland. A câmara clara. Trad. Manuela Torres. Lisboa: Edições 70, 1981. p.17. 2 NOCHLIN, Linda. The body in pieces: the fragment as a metaphor for modernity. London: Thames and Hudson, 1994. 3 O cão da exposição já fora solto há muito tempo.


Fantasia de compensação 2004


Fantasia de compensação 2004


Fantasia de compensação 2004


36

Da compaixão cínica 2005


Da compaixão cínica 2007

Da compaixão cínica 2005

39


Mais do que o necessรกrio 2010


O SUJEITO DA VÍRGULA

Hiato (2007) é sobre o fenômeno vocálico.

Hiato é substantivo masculino.

Hiato é desencontro vocálico.

Hiato é discurso do silêncio.

Hiato é exposição da falta.

Hiato é geometria.

Em sua etimologia, hiato vem do latim hiatu, referente ao ato de abrir a boca. Hiato indaga se a arte é um fenômeno vocálico, mas o artista delibera calar a possível dimensão fonética em Sereia (2007) ... Hiato admite uma pluralidade de combinações entre encontros possíveis1 ... Hiato é termo plurívoco. Hiato esquece as vogais e age para suprir as lacunas de ação linguística.

Aurélio: “1. Gram. Encontro de duas vogais no fim de uma palavra e no princípio de outra: Irá a Roma. 2. Gram. Reunião de duas vogais pertencente cada uma a sílaba diferente: dias, países, reúne. 3. Anat. Fenda ou abertura no corpo humano. 4. Fig. Lacuna, intervalo, falha”. Hiato é sentido figurado sem figurar, representar ou simular.

Hiato é desencontro vocálico porque é a lacuna material visível na falta de vértebras onde um dia as houve. É corte estrutural para reconstrução da totalidade.

Hiato é discurso sobre o lugar do silêncio na fala. Hiato seria, então, como a vírgula e a Sereia do próprio Rodrigo Braga. Isto é, seria o espaço entre a fala e a espera, como já se disse. É nessa fresta cronotópica que o artista situa o espectador.

Diante da falta, Hiato convoca o cérebro para a operação mental da teoria da Gestalt da forma. A falta organiza os elementos da forma a partir das forças visuais latentes e projeta a boa continuidade da forma, pois o cérebro rearticula a estrutura mediante seu fechamento virtual. O olho rejeita a falha. Hiato reúne por ausência. Hiato é perverso: retificar a linha, retesar a coluna e aleijar o boi. Hiato é travelling. Pede olhar cinemático. Integra intervalos ao corpo, como a fenda se abriga na anatomia do artista. Hiato é uma solicitação de ação linguística imaginária. Cortar o uno linear para ativar a teoria da montagem. O espectador deve, pois, abandonar o real para ser agente cinemático sobre o significante e o imaginário. A montagem gestáltica repõe os elos perdidos do rabo, reintegra e reenerva a ossatura e ativa o inconsciente ótico.

Hiato é exata lição de anatomogeometria, como o círculo e o cone. Hiato é solicitação do Número. Sua chave é a linha reta da cauda axial. Hiato é da família de caudas de Ovo (1959) de Lygia Clark e 0 é Um (1982) de Waltercio Caldas. Hiato é imagem da história. Contra a linearidade da história da arte, Hiato solicita uma história transversal de continuidade, rupturas, saltos, ausência de historicidade, posicionamentos, invenção de linguagem, convergência e altercação, cortes cirúrgicos, síncopes, 0 é Um (1982). É tarefa do artista alterar, punçar, descalcificar, desartrosar, contraesclerosar, decepar, esmagar as vértebras da história da arte.

1 SOURIAU, Anne. ‘Hiatus’. In: SOURIAU, Etienne (Org.) Vocabulaire d’esthétique. Paris: Presses Universi-­ taires de France, 1990. p.829.

42

43


Hiato 2007


DA SEREIA O CANTO

Sereias são seres híbridos como os centauros. A condição mítica esculpe o significante dual sobre a morfologia animal integrada, um ser que deus não pensou e que agora seduz o espectador para o estranhamento. A dualidade entre duas condições animais, antes ditas como entre o racional e o irracional, entre o moral e o corpóreo, gera imagens mentais e a própria instituição crítica da arte moderna. Esta Sereia é companheira do centauro de Harold Rosenberg. Para o teórico do pós-guerra, a arte moderna é um centauro, metade materiais metade palavras: “as palavras são o elemento vital, dotado de energia”, capaz de, entre outras coisas, transformar materiais em tradição de arte.1 A Sereia decapitada ainda mantém a potência vital de expressar, como se, privada do órgão fonético de seu canto, transformasse a afonia absoluta em substância verbal do conceito. Da família de Hiato, seu hiato, no entanto, não é caudal. Se não pode mais pronunciar ou enunciar o som significante, ela se expõe cruamente como fragmento, corpo principal ou resto. Impedida de exercer o fone – a unidade de som da fala – Sereia parece incapacitada do papel linguístico de construir as formas da língua, uma questão basilar do Curso de Ferdinand de Saussure.2 A fonética, no entanto, escorre em Sereia para o signo visual. Significará, com mais veemência, por sua impossibilidade brutal. O ser híbrido e acefálico não abdica do canto. A sereia acefálica é ser decapitado, como, por convergência e oposição, as Cabeças esquartejadas (1818) de Théodore Géricault. Agora, a Sereia de Rodrigo Braga coloca em questão a violência na/da modernidade. Ela será, na aplicação de um prisma de Linda Nochlin, a própria metáfora da modernidade: “no âmago dessa iconografia de destruição, no entanto, está o arquétipo do esquartejamento humano constituído pela ação da guilhotina sobre as vítimas do Terror”.3 A pintura de Géricault recolheu cabeças decepadas, o bicho recolhido por Rodrigo Braga sobreviveu, morto, à violência e retorna no mito sob a recuperação simbólica pela arte. Insistindo no campo da metáfora, a decapitação em Sereia de Rodrigo Braga não é a intervenção ontológica no ser mítico,

46

mas o corte na lógica binária do estruturalismo substituída pela ambivalência e, logo, pela polissemia. O espectador debate-se nesse processo aberto de produção de significação. O imaginário em estado de conjectura lê o mito na experiência trágica da morte. A Sereia de Rodrigo Braga prossegue com o canto de morte em sua própria decapitação, mas também nos interroga com o seu estado sem-olho, sem-boca e sem-cérebro. É sobre essa condição complexa no regime visual da arte contemporânea que a imagem do significante expõe criticamente o espírito sem olho de Merleau-Ponty. A sereia nos vê. Nem cega, nem vidente, a trágica falta de olhos é a base desse olhar perturbador. Ela propõe o fenômeno sensorial da reversibilidade, comércio sensorial entre o olho humano e o objeto do olhar, isto é, entre visão e a falta de olhar. Aquilo que é visto também vê de modo interrogante, devolve-se como indagação ao sujeito dos sentidos. O canto da sereia é a enunciação primal de Mentira repetida. Em sua oposição ao irracional, Walter Benjamin argumenta que Franz Kafka não cedeu à tentação do mito.4 Em Sereia, a obra de Rodrigo Braga também integra seu viés político contra o fundamentalismo ecologista autocrata e narcisista. Depois, a afonia total da Sereia e a sobrevivência de Ulisses ao canto das sereias (ao tapar os ouvidos com cera) conduzem a Kafka. As sereias possuem uma arma ainda mais terrível que seu canto: seu silêncio.5 O ser acefálico, no entanto, como uma esfinge, encara e indaga. Seu canto é 1 ROSENBERG, Harold. puramente enigma visual. definition of art. New York:

The deCollier

Books, 1972. 2 SAUSSURE. Ferdinand de. Cours de linguistique génerale (1916). Paris: Payot, 2005. 3 NOCHLIN. Linda. The body in pieces…, 1994, p.10. 4 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e a história da cultura. In: _______. Obras escolhidas. Org. e trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, v.I. 5 KAFKA, Franz. Le silence des sirènes. In: _______. Oeuvres completes. Paris: Gallimard, 1988. t.II.

47


48

49

Sereia 2007


Fato 2008

Habitat 2008


Magma 2008

Mina 2008


Paisagem 2008

Segredo 2008

55


Samambaia 2008

56

57


ADOPTIO

NATURAM IMITATUR.

F

ructus sine usu esse non potest. A fructibus eorum cognoscetis eos. Cornu bos capitur, voce ligatur homo. Nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet. Naturae sequitur semina quisquis suae Nemo potest ei dicere. Cur ita facis? Impossibilium nulla est obligatio. Ad impossibilia nemo tenetur. Ad astra per ardua. Saepe potestatem solita est superare voluntas. Volenti nihil difficile. Via trita, via tuta. Voluntas pro facto reputatur. Faecem bibat qui vinum bibit. Quod abundat non nocet. Litterae non entrant sine sanguine. Faber fabro invidit. Boni pastoris est tondere pecus, non deglubere. Furem fur cognoscit, et lupuma lupus. Homo homini lupus. Accessorium sequitur principale. Ab ovo. Cespite natali quilibet optat ali. In claris non Ă„[ PU[LYWYL[H[PVU Lucerna sublata nihil discriminis inter mulieres. Canis festinans caecos catulos parit. Quisquis ovem simulat, hunc lupus ore vorat. Perditus est, mala qui sequitur vestigia pravi. Ad perpetuam rei memoriam. Pietas est fundamentum omnium virtutum. Verba Volant Scripta Manent.

Aliud est facere, aliud est dicere. Oculus domini saginat equum. Absens absentis curator esse nequit. Quis custodiet ipsos custodes? Inspice bis potum et chartam subscribe scienter. Ira quae tegitur nocet. In cauda venenum. Verbum emissum non redit. Fumus comissi delicti. Res ipsa loquitur. Dentes atque pedes asinini exordia amoris. Re opitulandum, non verbis. Tutum silentium praemium. Etiam formicae sua bilis inest. Detrahitur cauda nunquam bene pellis ab ima. Ars est celare artem. Dubitando ad veritatem parvenimus. Scientia potentia est. Lippis et tonsoribus notum. Tunc male vulpi erit, si muscas prendere tentet. Dementis convitia nihil facias. Quid caeco cum speculo? Somnus est frater mortis Ius manendi, ambulandi, eundi, ultro citroque. Sero venientibus ossa. Multa ferunt anni venientes commoda secum. Melior est canis vivis leone mortuo. Leoni mortuo lepores insultant. Omnia cinis aequat. Tarde benefacere nolle est. Quid Est Ergo Tempus? 0UJPKP[ PU Ă…HTTHT J\WPLUZ vitare favillas.

58

Vontade 2007


60

61


ADOPTIO

NATURAM IMITATUR. TRADUCTIO.

1 Em homenagem a DOG – Demétrio Oliveira Gomes –, o poeta falsificador da geração mimeógrafo que mudava os conteúdos na passagem do estrangeiro para o vernáculo.

Para DOG.1

2 DUCHAMP, Marcel. ‘Possible’. In: SANOUILLET, Michel; PETERSON, Elmer (Ed.) The writings of Marcel Duchamp. New York: Da Capo, 1986. p.73. 3 DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença (1967). Trad. Maria Beatriz N. da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995. p.23.

F

ruto sem uso não se pode haver. Pelos frutos se conhece a árvore. Conhece o boi pelo chifre, o homem pela palavra. Essa arte é o Umheimliche frondoso, esforço frutífero do estranhamento anatômico entre o mito, o imaginário e a filogenia no reconhecimento da animalidade humana (e. g., Da alegoria perecível, 2005). Ninguém pode transmitir a outrem mais do que aquilo que tem. Ou que é. Cada qual conforme seu natural – mas não para Rodin, Cindy Sherman e Rodrigo Braga. Os erros e as distorções dos corpos entrelaçados dos amantes de Rodin não são a realização de uma impossível anatomia, mas as torções do desejo, as dobras barrocas da alma, o movimento dos fantasmas, a enervação imaginária das fantasias. O corpo pós-moderno em desarmonia de Sherman e o corpo ecosófico de Braga embaralham naturalidade, sociabilidade e subjetividade. Ninguém pode lhes dizer. Por que, então, faze-o? Nula é a obrigação impossível. A figuração do possível, mas não como oposto a impossível nem como relacionado à provável nem como subordinado ao ‘likely’, reivindica Marcel Duchamp contra o cânone.2 Ninguém é obrigado a fazer o impossível – só Sísifo e o artista por escolha. A pedra insiste em ensinar a gravidade ao eremita pastoral [Desejo eremita no 01] e que a fé não remove montanhas. A força social contraentrópica: a arte é o que torna a vida possível, mas não para Camus e o suicida. Às estrelas com esforço! A quem quer, nada é difícil. Estrada aberta é caminho. Mais faz quem quer do que quem pode. “Escrever não é apenas pensar o livro leibniziano como possibilidade impossível. Possibilidade impossível, limite propriamente designado por Mallarmé”, desafia Derrida. 3 A intencionalidade,

62

Desejo eremita 2009

63


4

Desejo Eremita, 2009.

diz Husserl, é que converte a ação em arte [sobre performance e projetos eremitas] [Vontade, 2007]. Quem comeu a carne que roa os ossos. O que abunda não prejudica / O que é demais não é nocivo, sobretudo sendo Mais do que o necessário. A letra, com sangue, entra. Quem é teu inimigo? É o oficial de teu ofício. O bom pastor deve tosquiar, e não esfolar o seu rebanho. Lobo não come lobo. O homem é lobo do próprio homem. Eu como eu (1999) de Lygia Pape é autofagia. O acessório segue o principal. Desde o ovo. Para o passarinho, não há como seu ninho. [Vontade] As leis claras por si mesmas se interpretam [e a arte?]. De noite, todos os gatos são pardos. Cachorro, por se avezar, nasceu com os olhos tapados. Quem se faz de ovelha, o lobo o come. Do perdido perca-se o sentido. Para que a coisa (ou fato) se perpetue ao infinito [Mentira repetida, 2011]. A piedade é o fundamento de todas as virtudes. Palavras voam, escritos ficam [menos a crítica de arte, obviamente]. [Em arte,] do dizer ao fazer vai muita diferença. A vista do dono engorda o cavalo. Ausente não pode ser curador de ausente. Quem guarda os guardiões? Quem vigia os vigilantes? Quem julga os juízes? Quem critica os críticos? Não se bebe sem ver, nem se assina sem ler. Guarda-te de homem que não fala

64

e de cão que não ladra. Na cauda é que está o veneno. Palavra, pedra e arte que se soltam não têm volta. Fumaça do delito cometido. As coisas falam por si mesmas. Amor de asno entra a coices e dentadas. Obras são amores e não palavras. Em boca fechada não entra mosca. Formiga tem catarro. O pior de esfolar é o rabo. A arte está em esconder a arte. Duvidando é que chegamos à verdade. Conhecimento é poder. Não há gato, nem cachorro que não saiba. Infeliz da raposa que anda aos grilos. Antes calar que com doidos altercar. Para que cego com espelho? O sono é parente da morte? Direito de permanecer, de andar, de ir de um lado a outro – direito das ideias, direito da arte. Aos que chegam tarde só restam ossos. Quanto mais se vive, mais se vê. Mais vale um cão vivo que um leão morto. Depois da onça morta, até cachorro mija nela. A morte tudo nivela. Tarde dar é o mesmo que negar. O que é então o Tempo? É saltar das brasas e cair nas labaredas. É a arte, afinal, naturam imitatur? A transladação de significações entre espécies. O artista da dúvida solitária procura, em vão, o olhar no mergulho uterino em leite.4

Desejo eremita 2009



Desejo eremita 2009


Desejo eremita 2009


Desejo eremita 2009


Desejo eremita 2009


Desejo eremita 2009


78

79


MENTIRA REPETIDA

O ser não coaxa,1 não arrulha,2 não pia,3 não chora,4 não crocita,5 não gruguleja,6 não muge,7 não trina,8 não cacareja,9 não grasna,10 não palra,11 não brame,12 não ulula,13 não relincha,14 não rosna,15 não ronca,16 não sibila,17 não zumbe,18 não zoa,19 não bale,20 não mia,21 não late,22 não ladra,23 não gane,24 não uiva,25 não guincha,26 não zurra,27 não ruge,28 não berra,29 não urra,30 não grunhe.31 O ser grita.32 É só isto, e nada mais. Porque só o grito é ação do inconsciente e mentira repetida.

1 O ser não coaxa o haicai de Bashô. 2 O ser não arrulha verdades. 3 O ser não pia em som afásico. 4 O ser não chora lágrimas de crocodilo em autocompaixão cínica. 5 O ser não crocita a mentira repetida. 6 O ser não gruguleja na véspera, mas na experiência do presente. 7 O ser não muge como uma vaca de presépio. 8 O ser não trina nem murmureja nem gorjeia aqui nem gorjeia como lá, pois conhece a mentira, o curso de linguística, como viver junto, o livro por vir, a gramática generativa, a repetição e a diferença, a repetição e a diferença. 9 O ser não cacareja em métrica como máquina de fazer poemas. 10 O ser não grasna; só o eco diz os meus ais. 11 O ser não palra como o Espírito Santo de Balzac. 12 O ser não brame, mas perde-se no vácuo da floresta de signos.

13 O ser não ulula, mas acumula capital, explora a mais-valia e exprime a ideologia. 14 O ser não relincha, mas divaga sobre o vazio, o Aleph e o indizível. 15 O ser não rosna para si mesmo, sobre si mesmo, em amor a si próprio, nem representa, simula, duplica, distorce, trai ou abomina a cópula ou o espelho porque reproduzem a si mesmo. 16 O ser não ronca, mas sonha, tem pesadelos da razão, escapa em atos falhos, extravasa-se em chistes e expressa-se sintomaticamente. 17 O ser não sibila, mas enuncia. 18 O ser não zumbe, azoina, zumba, zumbe, zune nem zunzuna, mas zanza intransitivamente, foneticamente, sintaticamente, semanticamente, semiologicamente, imaginariamente, simbolicamente, e só lhe interessa o que não é seu. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. 19 O ser não zoa, mas rola-bosta em fase anal, esculpe a merda, falsifica a bosta, a moeda, o ouro, a voz, o

80

imencionável, a escuta, o recalcado, a memória, a história, a notícia, a imparcialidade dos juízes e dos jornais, o comunicado de imprensa, a neutralidade, o significado, as verdadeiras intenções, a consciência, os conceitos, as equações, o acaso, as possibilidades, a hermenêutica, a ontologia, a axiologia, a lógica, as causas, as razões da guerra, os argumentos de autoridade, a metafísica, a verdade, a mentira, os messias, deus, as relações de classe, os interesses de classe, os interesses individuais, o orçamento, os parasitas, a corrupção, a metástase, o conhecimento da corrupção, o sumiço da verba pública e dos bens públicos, a apropriação do público pelo privado, o lobby, os limites da democracia, a igualdade, os balanços, os relatórios, os índices, os signos, a ciência, a letra, os argumentos, as conclusões, as teses, os planos, os projetos, as antíteses e as sínteses, ideias, o diploma, o discurso, a palavra, o livro, o docu-

mento, a política, o programa partidário, os interesses partidários, os interesses pessoais em política, o que se guarda ou esconde em qualquer tipo de bolsa em todas as acepções do vocábulo, os compromissos eleitorais, as promessas, o desinteresse pessoal ou a ausência de interesses pessoais nas medidas, a lama do Planalto, as estatísticas, os prognósticos, o número de armas, o cimento armado, o peso, o crime, a censura, a derrota, o cinismo, o cinismo da publicidade, os bons costumes, a violência, a violência recebida, o mecenato, a violência impetrada, a virtude, a inveja, a tortura, a opressão (ou não), a poesia, a metrologia, a gasolina, remédios, a ajuda humanitária, o altruísmo, o perdão, a omissão, a responsabilidaade, a irresponsabilidade, os sintomas, o espelho, a embalagem, a imagem, as metáforas, a arte, o cenário, o rosto, o afeto, o riso, o desejo, o surto, o delírio, a esquize, a cocaína, a loucura, as

aparências, a maturidade, as intenções, a cor do cabelo, a aparência, a roupa de marca, a cor do bigode, as rugas, algumas dobras da alma, a doença, o corpo, a responsabilidade pelo pum, a paternidade, as origens, o curriculum vitae, a identidade, a idade, a morte e o tempo. Só não falsifica a mentira porque já falsifica tudo. Reiteradamente. 20 O ser não bale Lama sabactani? em submissa expiação da culpa original. 21 O ser não mia em cio histérico, prazer simulado e em coito interrompido. 22 O ser não late como a Baleia. 23 O ser não ladra como um cão com plumas. O ser morde. 24 O ser não gane, mas lê Shakespeare e Heidegger, lê Hamlet e O ser e o tempo. 25 O ser não uiva na estepe, não deplora a natureza humano-animal, não tropeça como um alcoólatra ou um gambá, não tergiversa como um intelectual, não se afasia em angústia,

81

não se cala em niilismo. 26 O ser não guincha nem chia nem cuicha nem charla e muito menos palra. 27 O ser não zurra como um burro de carga emocional. 28 O ser não ruge a tigridade do tigre porque só se equivoca em errância na humanidade do homem. 29 O ser não berra, mas, se a fratura não está exposta nem o câncer avançado, geme do mais fundo de seu interior sem entender ou aceitar a metafísica da dor ou o sentido da vida ou o pecado ou a proibição jurídica da eutanásia ou a imoralidade da morte digna ou o suicídio fracassado. 30 O ser molhado não urra sob o atordoamento elétrico a 240 volts de uma câmara do Dops, da Dina, em Guantánamo, Abu Ghraib ou noutro matadouro moderno qualquer. 31 O ser não grunhe, mas chafurda. 32 O ser grita como Nietzsche e o desesperado de Munch na mesma ponte de lugar algum para lugar nenhum.


Mentira repetida 2011


Mentira repetida 2011


Mentira repetida 2011


DE MENDACIO

1 WEINRICH, Harald. The linguistics of lying and other essays. Transl. Jane K. Brown and Marshall Brown. Seattle: University of Washington Press, 2005. p.35.

88

O vazio significante explode na preservação da indizibilidade do indizível. Wittgenstein é reiterado a cada grito. Mira Schendel berra o que até ali dissera em sussurros gráficos. Simulação, representação, perspectiva, ficção, delírio, surto, versão, miragem, eufemismo, hipérbole, duplo sentido, comunicado oficial, pós-produção, neutralidade, universalidade, publicidade, autoimagem nas redes de relacionamento, press release – tudo é infinitamente a verdade em estado de denegação. O mentiroso anuncia que está mentindo, ainda assim, o nariz deste Epimênides não lhe cresceu nada em 5’22” de duração videográfica. A arbitrariedade explorou os confins do esgotamento do vazio semântico. Não existe mentira em psicanálise, argumenta Lacan. Antes da agenda e da significação, existe a linguagem e a mendacidade no discurso. A poética indistingue verdade da mentira, o Real do simulacro, a unha da carne, o risco de desassossego e a fantasia de compensação. Isso é um ato derrideano de reza posto que se pode orar junto sem compreender a língua. E como se não há o Outro? “Omnis homo mendax” – o Livro dos Salmos enuncia que também é possível mentir sem entender a língua..., mas as mentiras arruínam a língua mais do que o estilo, diz Harald Weinrich.1 Gritos – e o signo não irrompe em sua arbitrariedade do código solipsista. Não encontra um uso e, portanto e tampouco, seu significado. Sem escuta, a histeria ronda. Se houvesse metafísica, isto seria uma insidiosa oração, uma crescente ira contra a inapreensão do sentido da vida, da perversidade de Deus, do limite, do Não do Pai: “Lama sabactani!”. Wittgenstein é reiterado a cada grito, pois aquilo que não se pode dizer já não consegue guardar em silêncio, embora inutilmente. A arte é o que pode contra os mistérios insolúveis da linguística. O grito, então, aggiorna Santo Agostinho (De mendacio), posto que enfrenta a errância do excessivo amor à verdade e da excessiva rejeição à mentira. Nem Pascal nem Goebbels, nem conhecimento (o que se revela?) nem forja da verdade (o que se oculta?) na repetição. A mentira gritada repetidamente instaura a diferença. Essa repetição incessante, no entanto, busca o visível daquilo que é denso, extremamente tramado e obscuro. Na instância da recepção, o grito investiga a aventura linguística da mentira. O momento semântico primal argui: a linguagem oculta o pensamento? A cada grito, o mentiroso reitera que está mentindo. O tractactus é grito-signo. Sem sema, nenhum sentido generativo pode regular o agramático. O grito-mentira termina encurralado. Reflete sua possível verdade: grito, logo existo.

89


ProvisĂŁo 2009


ProvisĂŁo 2009


FICHA TÉCNICA

DAS OBRAS

vídeo 5 min 20 s, cor, estéreo, 16:9, 2011 Obra produzida com suporte do Prêmio Marc Ferrez de Fotografia – Funarte. Ação realizada em uma das ilhas do arquipélago fluvial de Anavilhanas, interior do Amazonas, com permissão do ICMBio/Ibama.

Mina

(da série Paisagens) fotografia, 60 x 90 cm, 2008

Paisagem

(da série Paisagens) fotografia, 60 x 90 cm, 2008

Mais do que o necessário (1 e 2)

fotografia, 80 x 120 cm (cada), 2010 Obras realizadas durante residência artística a convite do In Flanders Field Museum, Ypres, Bélgica.

Leito

Desejo Eremita (1 a 17)

fotografia, 50 x 75 cm (cada), 2009 Série resultante de pesquisa contemplada pela Funarte, no Programa de Bolsas de Estímulo à Criação Artística – categoria fotografia. Trabalhos realizados nos municípios de Solidão e Tabira, sertão de Pernambuco.

fotografias, vídeo 1 min 30 s, p&b, sem áudio, objeto, 2008 (Caixa de aço 24 x 24 x 24 cm, lente de 100 mm e DVD player com sequência de fotografias em looping). Ação realizada na zona rural do município de Glória do Goitá, Pernambuco. Fotografias de Clarissa Diniz.

Vontade

vídeo 2 min 10 s, cor, sem áudio, 4:3, 2007

Ode (ao que se fode)

vídeo, 1 min, cor, sem áudio, 4:3, 2007

vídeo 16 min, cor, estéreo, 16:9, 2009 Obra realizada por meio do II Concurso de Videoarte da Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj, através da Massangana Multimídia Produções. Ação realizada no Sítio dos Pintos, Recife, Pernambuco.

Hiato

fotografia, 38 x 180 cm, 2007

Sereia

fotografia, 180 x 120 cm, 2007

Teu

fotografia, 120 x 80 cm, 2007 (coautoria Clarissa Diniz)

(da série Paisagens) fotografia , 60 x 90 cm, 2008 Série executada durante a Residência Artística da Ecovila Terra UNA, Serra da Mantiqueira, Minas Gerais, realizada pela primeira vez em 2008, financiada pelo edital Conexão Artes Visuais Funarte/MinC/Petrobras.

Comunhão (1 a 3)

fotografia, 50 x 75 cm (cada), 2006

Da alegoria perecível (1 a 8)

fotografia, 60 x 40 cm (cada), 2005

Do prazer solene

fotografia, 120 x 80 cm, 2005

Da compaixão cínica (1 a 3)

fotografia, 75 x 50 cm (cada), 2005

Da compaixão cínica 4

fotografia, 90 x 60 cm, 2007

Fantasia de compensação

fotografia, 30 x 45 cm, 2004 Obra realizada com bolsa do 46o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco.

Para quem me faz bem

fotografia, 80 x 120 cm, 2004

Mentira repetida

Provisão

Habitat

(da série Paisagens) fotografia, 60 x 90 cm, 2008

Samambaia

Fato

(da série Paisagens) fotografia, 90 x 60 cm, 2008

Magma

(da série Paisagens) fotografia, 60 x 90 cm, 2008 (da série Paisagens) fotografia, 90 x 60 cm, 2008

Segredo

94

95


RODRIGO BRAGA

Nasceu em Manaus (AM) em 1976, quando seu pai integrava a primeira turma de mestrado em ecologia do Brasil, no INPA, e sua mãe realizava pesquisas em biologia pelo CNPq. Transferiu-se aos 2 anos para Recife (PE), onde estudou desenho, escultura e pintura entre a infância e a adolescência. A aproximação com a fotografia e o vídeo ocorreu quando começou a cursar Licenciatura em Artes Plásticas na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em 1999, exibiu pela primeira vez seus trabalhos no MAC-PE, durante o Salão Pernambucano de Artes Plásticas – Novos Talentos, recebendo Prêmio Aquisição. Desde então, expõe regularmente em instituições diversas, tendo realizado sua primeira mostra no exterior em 2005, a convite do Photomeetings Luxembourg, em Luxemburgo. Em 2004, enquanto pesquisava por meio de bolsa-prêmio do 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco a dimensão a um só tempo ficcional e documental da fotografia, criou a série Fantasia de compensação, na qual funde seu rosto com a cabeça de um cão rottweiler, numa obra de motivações autobiográficas. Nos anos seguintes, criou imagens que articulam seu corpo a elementos animais e vegetais e à paisagem, instaurando um caráter performativo à fotografia, como ocorre em Do prazer solene, Da alegoria perecível e Comunhão. Esse processo se desdobra entre 2008 e 2010, quando recebe prêmios de estímulo à produção concedidos pela Funarte/MinC e realiza longas viagens e períodos de residência na Serra da Mantiqueira (MG), no Sertão do Pajeú (PE) e na Amazônia Central (AM), a partir dos quais cria, respectivamente, as séries Paisagens e Desejo eremita, bem como o vídeo Mentira repetida. Em 2010, realiza residência em Ypres (Bélgica) a convite do In Flanders Fields Museum, cuja coleção dedicada à Primeira Guerra Mundial repercute na série Mais força do que o necessário. No ano seguinte realiza a individual “Ciclos Alterados” no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam), em Recife, com curadoria de Paulo Herkenhoff. Em 2012 participa da 30ª Bienal Internacional de São Paulo, “A iminência das poéticas”. Suas obras estão em acervos particulares e institucionais no Brasil e no exterior, como MAM-SP, MAM-RJ e Maison Européenne de La Photographie (Paris).

Páginas 98 e 99 Para quem me faz bem 2004

96

97


98

99


B792c Braga, Rodrigo Ciclos alterados / Rodrigo Braga ;; [curadoria] Paulo Herkenhoff. -­ São Paulo : Instituto Tomie Ohtake, 2012. 96p. : il. ISBN 978-­85-­88728-­63-­9 1. Braga, Rodrigo -­ Exposições. 2. Arte brasileira -­ Séc. XX -­ Exposições I. Herkenhoff, Paulo. II. Instituto Tomie Ohtake. III. Título. 12-­3572. CDD: 709.81 CDU: 7.036(81) 29.05.12 04.06.12 035843

PROJETO COORDENAÇÃO INSTITUTO TOMIE OHTAKE

CATÁLOGO CURADORIA E TEXTO PAULO HERKENHOFF

REVISÃO ARMANDO OLIVETTI

PROJETO GRÁFICO VITOR CESAR

TRATAMENTO DE IMAGEM ESTÚDIO 321

IMPRESSÃO STILGRAF

AGRADECIMENTOS DO ARTISTA BETH DA MATTA, BRUNO RODRIGUES, CLARISSA DINIZ, PAULO HERKENHOFF, ROBERTO SOUZA LEÃO E VITOR CESAR



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.