SERTÃO VERDE PAISAGENS
fred jordão
A festa da primeira chuva ou Quando a seca verde tingiu minhas ilusões de ótica
Hoje está bonito para chover. Era a primeira coisa que se ouvia de algum matuto ou beradeiro, naquela quebrada da Chapada do Araripe, quando as nuvens deixavam de ser bichos no céu e davam sinais, por mínimos que fossem, de possível aguaceiro.
Todo sertanejo mirava o horizonte, como se acreditasse nas promessas. Meu pai, igualmente Francisco, preferia a blasfêmia: “Besta é quem espera, não aguento mais cansar as vistas e só ver o sol no buraco dos olhos”.
Meu avô João Patriolino, originário de Exu, Pernambuco, pai do meu velho, recriminava: “Não duvide dos mistérios do in nito, meu lho não sabe o que é espera”.
Vem ou não vem a danada. Os mais novos esperavam afobados; os mais antigos sabiam que tudo tem o seu tempo, independentemente das previsões ouvidas no rádio ou das leituras dos almanaques. Era uma sabedoria de um sertão para lá de zen-budista.
Até que ela vinha, inevitavelmente, um dia. A chuva. Sua majestade, a chuva, prenúncio de inverno sob os olhos ainda descon ados de todos aqueles sertões, ali quando a serra quase mistura Ceará e Pernambuco. Conheci uma chuva para valer mesmo, daquelas que não deixam dúvidas nas goteiras, quando me entendi por gente, ali pelos cinco, seis anos, pelo que recordo. Corremos todos, haja menino, para o terreiro. Pense na festa. Mergulhávamos no barro vermelho nalmente molhado. Um acontecimento que dura até hoje.
Daí que conhecemos também a voz dos sapos, até então calados, sapos-cururus que só aboticavam os olhos na pouca água das cacimbas. Depois disso já vi as luzes de Paris, as pontes iluminadas do Recife que fazem a cidade mais bonita que Florença e São Peterbursgo, já vi de um tudo e nada chega perto da beleza da primeira grande chuva.
Já vi a garoa de São Paulo tingindo a cidade de uma certo toque europeu, já vi as montanhas de Minas, já vi o Rio de Janeiro de todos os ângulos, já vi todas as mulheres bonitas –tanto minhas como dos outros- e nada trisca em tamanho alumbramento.
Nada como um céu que se desmancha depois de anos de aridez e espera. Chão e faces rachadas. O silêncio das casas ocas como se a gente tivesse pedido licença a Deus para uma certa invisibilidade. Não vergonha de estar ali, mas de deixar a paisagem falar por nós, como as pedras que guardam as feições de outros homens viventes dos mesmos dramas se encarregassem de repetir o coro Greco-sertanejo.
Hoje está bonito para chover. No contraponto da moça meteorológica e metropolitana da televisão, que acha feio o que não é céu aberto e praieiro, lindo no sertão é quando fecha o tempo. Um trovão é uma bênção, um relâmpago é o atrito de pedras de amolar futuras belezas.
Que me permitam mais um Amarcord, um capítulo a mais do inesquecível amarcordezinho que levaremos para o túmulo: os relâmpagos, eu já na rede para dormir, iluminavam o sorriso da minha mãe Maria do Socorro, toda feliz com a festa lá em cima, cobrindo seus meninos com aposta de possível fartura nos olhos.
Meu velho não, todo trabalhado na descon ança. Era muita espera. Até quando chovia ele cava de botica. “É só uma chuvinha passageira”. Ouvia ele resmungando, eu ainda acordado, teimoso, mesmo depois de todo dengo e cantiga materna. “Tenha fé, homem de Deus”, minha mãe dava uma dura.
Qualquer chuvinha que caía, toda a paisagem era tingida de verde, quase como mágica.
Pra gente era uma festa. Festa besta. Sem questionamentos nem mais cobranças aos céus que nos protegem e protegiam.
“Quando o verde dos teus olhos,/ se espalhar na plantação”. Era uma sinfonia de Luiz Gonzaga. Pronto. Era lúdico. Era o cão de bom. E pronto. Um mundo verdejante.
Para o velho, não. Só descon ança e resmungos em volta do sol que retornara com tudo. O velho virava um paiol na beira da estrada, o velho era um espantalho capaz de desencorajar todos os pássaros, hordas de famintos e rapinas que se arvorassem a bicar as suas roças em rebento de seca verde.
“Ficar bonito nos olhos, quero ver é car bonito no bucho”, dizia uma das suas máximas, dirigindo-se a nós, seus lhos, que pinotávamos nas poças na maior felicidade na vista.
Falava-se em seca verde quando chovia apenas para esverdear o mato e pronto, chuva ilusória para os olhos, incapaz de tirar do chão qualquer cereal ou proveito. Nessa tal de seca verde, o velho enlouquecia de vez. Era como se fosse melhor a vida seca e cinza de sempre. Só faltava comer barro feito uma criança, de tanta fúria.
“Se é infértil aqui em cima, mesmo verdejante nos olhos, que pelo menos fertilize as lombrigas, elas gostam de terra, de infância”, delirava o velho, em uma oratória que ainda hoje não entendo direito. Só recordo que era justamente esses dizeres malucos que me lembravam os profetas doidos das feiras do Crato e das romarias de Juazeiro.
“Homem de Deus!”, tentava amaciar nossa mãe. Era pior ainda. “Se é para enganar a vista, que não venha essa chuva”, rebatia ele. Aquela brabeza toda, no entanto, era também feita de esperança. Minha mãe chamou muitas vezes para partir. Uma tentativa até de agradá-lo. E ele nada. Nunca conseguiu sair da roça. Ainda hoje está lá, Sítio das Cobras, Santana do Cariri. Contempla o mesmo horizonte desde pequeno. Com os mesmos olhos que a terra há de comer. Outro dia mesmo, ele meio adoecido, me revelou:
“A seca verde é uma agrado de Deus pra vista da gente, só pra gente mudar de conversa, como quem muda a cor dos olhos, a lente dos óculos fundo-de-garrafa”.
Achei que era delírio do velho.
Está bonito para chover. Nem meu pai mais duvida. Hoje ele me ligou do sertão, do mesmo canto de sempre, para dizer que relampeja. Imagina, parece que está acreditando nos céus! Nada. É que, de um tempo para cá, a memória da espera cada vez mais nos interressa.
Este livro foi como a primeira chuva, um replay que despertou um Amacord para os meus olhos gastos com a banalidade esfumaçada das metrópoles. Por mais bestas e idiotas que nos tornemos, sempre há uma goteira que nos pinga uma lição sonora e visual no juízo para acordar a memória.
Xico Sá
Rua da Aurora, Recife, Pernambuco, 19 de março, dia de São José, o santo da chuva no Nordeste, ano da graça de 2012.
As fotos que fazem parte deste livro foram tomadas a partir de viagens realizadas pelo Sertão Nordestino, à partir do ano de 1994. Foram viagens esporádicas, com o proposito de fotografar para revistas, empreendimentos governamentais, cinema, ONGs, industrias e agroindústrias. Viagens realizadas tanto no período da seca quanto no inverno, e as fotos aqui reunidas, feitas durantes os deslocamentos, sempre fora do contexto de pautas ou encomendas.
Reunir estas fotos em livro não foi um projeto preconcebido, e sim uma necessidade ao concluir que não havia somente uma coleção de imagens de um mesmo tema, e sim uma re exão sobre este lugar conhecido como Sertão.
Não há dúvidas que a seca é um imperativo sertanejo, seu drama maior, e que a imagem do Sertão foi associada de forma tão intensa a seca, que o Sertão Verde pode parecer uma peça de cção. Toda a estrutura simbólica do Sertão está ligada a Seca. Na literatura, nas artes plásticas e nas artes visuais o Sertão foi consagrado como o território da ausência e da di culdade.
A chuva divide estes dois Sertões, tão distintos e tão iguais. Assim como o sol reina no Sertão de pedra, pau e poeira, o seu avesso é a chuva, que limita estes dois territórios, trazendo um novo ciclo de vida, reconectando e acelerando o que parecia silencioso e parado.
As chuvas que ocorrem entre os meses de janeiro e julho ocasionam a mudança radical da paisagem e da vida no Sertão. Neste período, as plantas adquirem tonalidades de verdes, amarelos, laranjas e vermelhos criando uma paleta de cores bem distinta dos tons esbranquiçados da caatinga castigada pelo sol nos meses de estiagem.
Mas que Sertão é este, que se veste de cores exuberantes e horizontes de nuvens imensas e carregadas de agua?
Foi a partir deste dilema que o livro se formou. Não de de um projeto planejado e executado com logística e prazos meticulosos, mas de um arquivo que se fez intuitivamente, impondo-se como as paisagens que surgiam a cada curva das estradas percorridas. Foi na estrada, vendo a chuva cruzar a imensidão dos planos abertos que este Sertão Verde se fez. Um livro de estrada, um diário de viagem, um roadmovie fotográ co, onde a imensidão das chapadas se apresenta, onde a sua natureza tão cruelmente estigmatizada pode também mostrar seu lado preservado e escondido.
É tão imensa esta paisagem, que o homem se faz perceber como vestígio, lembrança, mesmo que através de objetos modernos como a antena parabólica e a motocicleta ou pela sua moradia em meio aos vales, várzeas e veredas.
Aqui neste Sertão Verde o contemporâneo é a certeza do moto-contínuo da paisagem, que se modi ca e permanece. Efêmero é o tempo.
Fred Jordão Recife, junho de 2012
Fred Jordão
Natural de Bonito PE em 13/08/1964.
Formado em Comunicação Social pela Universidade Católica de Pernambuco em 1988.
Pós-graduação em Economia da Cultura – URGS/FUNDAJ 2009.
Direção de Fotografa – CANNE Fundaj 2009.
Repórter Fotográfco do Jornal do Commércio 1989-1991.
Repórter Fotográfco do Diário de Pernambuco 1993-1994.
Repórter Fotográfco free-lance de revistas e jornais com circulação nacional.
Sócio-fundador da Imago fotografa Ltda. 1991-2008.
Curadoria de fotografa para o Observatório Cultural Malakoff 2002-
2005
Exposições individuais:
1988 - Tráfco de Imagens - Galeria Metropolitana de Arte do Recife-PE
1995 - As Cidades Invisíveis - Museu do Estado de Pernambuco-PE.
1997 - Baile Perfumado - Centro Cultural Itaú - São Paulo-SP.
2006 - A Praia Boa Viagem - Observatório Cultural Malakoff - Recife-PE
Exposições coletivas:
1990 - Fotojornalistas Pernambucanos - Shopping Center Recife
1998 - A Ver Pernambuco - MAMAM - Recife-PE
2000 - Retratos Pernambucanos - XX FIG - Garanhuns-PE
2003 -O Rio São Francisco a Natureza e o Homem - Espaço Cultura
Artística - São Paulo-SP
2003-Recife a Cidade Multicultural do Brasil - Cosmopolis Espace International Nantes FR
2005- Opara Un paisaje de identidad cultural - Universidad de Salamanca - Espanha
2006- Coletivo Fotográfco - MIS SP e Centro Cultural da Caixa RJ
Livros:
Projeto Lambe Lambe - Edição dos autores
Rio São Francisco - O Homem e a Natureza - 50 anos da CHESF.
Pernambuco Preservado - Edição CELPE Ibedrola
5 Décadas de Arte em Pernambuco- Ed. Quadro Design.
Pernambuco Popular - Um toque de Mestre - Edição Relicário.
Eu Vi o Mundo - Edoção Fanzine
José Claudio – Vida e Obra – Edição Relicário.
É do Coco, é do coqueiro – Edição Relicário.
Estrelas de Couro: A Estética do Cangaço – Ed. Escrituras
Leitura de Portfólios:
V Mês Internacional da Fotografa - São Paulo SP, 2002.
XVI Encontro de Imagens de Braga - Portugal, 2003.
Prêmio
Bolsa de Pesquisa em Fotografa 46º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco 2005
“A Praia Boa Viagem”
Copyright @ 2012 Fred Jordão Imagens
www.fredjordao.com.br
Ficha técnica
Idealização, concepção de projeto e fotografas | Fred Jordão
Assistente de fotografa | Felipe Ferreira
Produção executiva | Pró 4
Coordenação de produção | Bianca Pimentel
Textos | Xico Sá e Fred Jordão
Projeto gráfco e capa | Romero Pereira
Digitalização e tratamento das imagens | Robson Lemos
Tradução | Peter Ratcliffe
Revisão de textos | Norma Baracho
Assessoria de imprensa | Escritório de Jornalismo
Pré impressão, impressão e acabamento | Gráfca Santa Marta
Tiragem:1500 exemplares
Foto da capa: Nonono nonoon
Agradecimentos
Maria Rosa, Helena e Francisco | Luci Jordão | Gilse e Mairon Maia | Georgiana e
Alexandre | Laís, Rodrigo e Marina | Marisa, Gil e Pedro Gil | Luciana, Gilmar, Artur e Davi;
Famílias Valadares, Jordão, Brito e Maia.
José Abdonal Jordão (in memoriam);
Paulo Jacinto Feijão (in memoriam);
Germano Coelho Filho (in memoriam);
Felipe Ferreira | Raimundo Pereira | Barbara Cunha, Paulo Caldas e Tom |
Raul Lody | Alcir Lacerda Filho | Beto Martins | Luciana da Costa e Marcelo Luna |
Joyce e Fausto Chermont | Penna Prearo | Poly Camaroti e Beto Azoubel |
Fernanda Ferrario e Dida Maia | Noé Sergio | Alice e Milton Botler | Carla Gama,
Claudia e Bruno Lisboa | Jaci e Chico Ribeiro | Noé Sergio | Sergio Barbosa |
Gustavo Acioli | Abdon Neto;
Veronica Pragana | Viviane Brochardt | Fernanda Cruz | Geliciane Nogueira |
Mariana Mazza e todos da Articulação do Semi-Árido (PE) | Maria do Socorro Gouveia
e todos da ASPA (PB) | Micilene Vieira, Iracema Bezerra, Antonio Liberato Jr,
Antonio Railton e todos do Sertão Verde (RN) | Neilda e Itamar da Diocese (PE) |
Mario e Claudio da Diaconia (PE) | Carlos e Adeildo do Centro Sabiá (PE) |
José Maria, Pinheiro, Ana Paula, Neto e Antonio José do CERAC e Mandacaru (PI) |
Welton Sindeaux do CDDH (CE) | Marcelle Honorato, Djan Xavier e Francisco
Leonardo Diaconia (RN) | Genivaldo do Catimbau | Amaral e Lucas (Compesa) |
Cabral (Seplan PE) | José Ulisses DNOCS (CE) | Genivaldo do Catimbau |
Zeca Lustoza | Rafael Lima da Costa | Rosivaldo de Melo
Xico Sá | Bianca Pimentel | Ana Paula Lacerda | Adriana Teles | Orlando Mindelo |
Aldânio Carvalho | Luciana Carneiro Leão | Gabriel Ramos | Jorge Jr. |
Raphael Feitosa | Romero Pereira | Robson Lemos | Norma Baracho | Peter Ratcliffe,
e a todos que alguma forma ajudaram a concretizar este trabalho.
FICHA CATALOGRÁFICA
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Este livro foi composto ............., impresso na
Gráfca Santa Marta, em abril de 2012.