Ilha do Sumiço

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Ilha do SumIço


Fotos: Rossana Di Munno Tratamento de imagens: Sylvia Massini Capa e design: Luiza Ruberti

A única coisa que me derruba atualmente, são os dias de chuva. Rebato a vontade de sumir me dedicando à edição deste livro. A partir de um projeto antigo que reuniria imagens para um fotolivro sobre o Rio de Janeiro, nasce esse álbum de família fictício. Nem tão irreal assim, já que algumas pessoas bem que poderiam fazer parte do meu clã. A menina de laço na cabeça, por exemplo, é parecida com todas as primas de meu pai. Áurea Rampazzo viu no meu álbum um bom exercício de personagens. Luiza Ruberti sugeriu a edição de um livro com textos que acompanhassem as imagens. Distribuí, então, as fotos entre a minha “turma da literatura”, como diz meu amigo carioca Marcelo Carnevale, sou cheia das turmas. Entre cantigas de ninar, saudades, luto e festa, eis minha nova família. Rossana Di Munno São Paulo, maio de 2016


TURMA DA LITERATURA Beto Gabrilli Eva Wongtschowski Guita Piva Hilda Gil Lourdes Gutierres Marcelo Carnevale Paulo Akira Nakazato Rossana Di Munno


Naquela idade, quando ainda sentíamos perfume de leite na pele, não sabíamos que o leite podia talhar, virar soro e sumir.


“Sussu, ó menino, o que é que tem? Tua mãe foi à fonte, logo vem.”

São Pedro entre triste e feliz disse a ele na porta do céu: —Você se adiantou, demais da conta. Mas não pense que se safou de ir à escola, tomar banho, comer com garfo e faca...


A mim não pertenciam esses olhos puros, nem essa pele de alvo cetim; tampouco me via com cabelos. Graças, Vida, tudo tem seu fim.


— Saiu agora. Está quentinho. Você quer?

Entre um monossílabo e um soluço um dropes Dulcora de anis.


Sempre achei bonito esse vestido de palinha rendada, só que me pinicava o pescoço.

— Prefiro shoppings à paraísos tropicais.


Tão elegante, desde ontem até quando o tempo não contar mais.

Fiz a sobrancelha, bem fininha. Botei brinco, baton e flor. Morri mesmo assim.


Suava. Tanto que seu vestido coloriu o summer do rapaz.

— Morre logo, Maria! Aqui, no meio desta festança, só está faltando você.


Olhos fundos, não vejo cor, nem dor. Firme ele me fita, seu bigode sorri. Um casal.

— Sim, eu trouxe comigo. Mas continuo achando que errei na medida.


Desfez a cerimônia, ele a traia. Teria muito tempo pela frente. Não teve.

Ela enterra os saltinhos nos pedregulhos, quando se abaixa, o decote é carnudo, não andava assim antes.


Não importa que suba ou desça, levo sempre o meu chapéu. Se é proibido cobrir a cabeça, fico, pois, entre o inferno e o céu.


Normalmente ela me traz cravos ou orquídeas. Às vezes, no entanto, vem com ramos de flor de urtiga. Meu irmão é quem cultivava urtigas.

“Morreu meu marido no meio das flores. Acabou-se a alegria. Acabou-se os amores.”


Por entre frestas espio o cenário. A visão se esvai em ruínas e pó.


Tua ida Minha solidão Sentinela Atenta A maçaneta Espreita Espera Tua mão.


No baú da sala deixei três toalhas de mesa rendadas, vários panos bordados, bainhas de crochê, inúteis.

Vendo o céu, à noite, eu desejei muito as estrelas longínquas. Não sabia que um dia elas ficariam ainda mais distantes.


Saias lenços pulseiras tranças cores colares cobre ouro sina dança sorte crença raça rito arte errante. Ó, Santa Sara, santificai as ciganas, salvai com seu xale seu fado, seus filhos, da saga racista que ceifa seu sangue.


Era um jardim. Foi um passeio.

— Tudo está sob controle. Nada mudou.


Aposto que não apagaram a luz, nem fecharam a porta direito.



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