Quando vivemos a alegria de um trabalho bem-sucedido, devemos nos lembrar que não somos um fenômeno raro da natureza, mas decorrência de uma herança daqueles que nos antecederam e também o resultado do carinho e afeto dos que nos cercam. Obrigado, Usha Velasco e Rinaldo Morelli. Luis Humberto
Fotografias e curadoria: Luis Humberto Assistência de curadoria: Rinaldo Morelli e Usha Velasco Expografia: Ralph Gehre Produção executiva: Aloísio César Assessoria de imprensa: Luiz Alberto Osório Assessoria de comunicação para mídias on line e plano de divulgação e distribuição: Luísa Molina Edição e design gráfico de catálogo: Usha Velasco Este projeto foi realizado com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal
A reforma do olhar possĂvel Luis Humberto
BrasĂlia, 2018
Dedico este trabalho a todos aqueles que viram seus sonhos chacinados pela mediocridade e pela ambição despropositada, a todos que não se renderam e aos poetas que nos ensinam a ver o mundo com um novo olhar, como Manoel de Barros, Mário Quintana, Chico Alvim, Ana Cristina César, TT Catalão e Pablo Neruda.
Ferramentas para pensar Usha Velasco
Tive a sorte de ser aluna de Luis Humberto na Universidade de Brasília, onde me graduei em comunicação nos idos de 1986 a 1991 (aos trancos e barrancos, inclusive parindo minha primeira filha no meio do percurso). Ele foi meu professor em quatro disciplinas: Análise da Imagem, Políticas Culturais, Fotojornalismo 1 e 2. Também orientou meu trabalho de conclusão de curso – a edição e o design gráfico de um livro de fotografias de um engenheiro que documentou, de forma belíssima, os primeiros anos de construção da cidade. Sempre fui patologicamente tímida. Apesar de boa aluna, tive duas reprovações no meu histórico universitário, pois simplesmente abandonava as matérias quando não conseguia convencer os professores a aceitar trabalhos escritos em vez de me submeter ao pavor das apresentações orais. Essa esquisitice hoje em dia tem nome e CID (fobia social), mas na época eu não sabia; se soubesse, teria me livrado de um bocado de sofrimento. Digo isso para explicar que para mim, uma apavorada caloura de 18 anos matriculada em Análise da Imagem, Luis Humberto tinha tudo para ser uma figura temível. Alto, de cabeça erguida e voz possante, entrava na sala com o porte de um galo pronto para a briga, tinha um discurso contundente e não pou-
pava palavras fortes em suas críticas aos meios de comunicação onde se esperava que nós trabalhássemos no futuro próximo. Até aí tudo bem, mas já na primeira aula ele revelou algo verdadeiramente terrível: era o tipo de professor que a todo momento provocava os alunos a falar. Muitas vezes apontava para alguém e dizia: “Você, o que você pensa disso? Diga-me coisas!” Naturalmente eu me escondi o melhor que pude na última fileira, me abaixando atrás dos colegas na tentativa de ficar fora do seu campo de visão. Mas ainda na primeira aula percebi que, no final das contas, a impressão que me ficou do impressionante professor podia se resumir em uma palavra: doçura. Luis Humberto nos olhava, ele nos via, ele fazia questão de nos ouvir. Sim, ele nos colocava contra a parede com suas perguntas, mas com um respeito fora do comum pela nossa opinião, nossas dúvidas – enfim, com um respeito fora do comum pelos pirralhos que éramos. Não consegui escapar de seus “diga-me coisas”; vez ou outra me vi obrigada a murmurar algo pouco inteligível e abaixar a cabeça, na esperança de que ele desistisse. Jamais imaginei que um professor fosse se incomodar ou sequer reparar nisso.
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Foi um professor que nos ensinou muito, muitíssimo mais do que constava nas ementas de suas disciplinas. Ele nos ajudou a construir ferramentas para pensar. Ele nos acompanhou passo a passo no delicado processo de abrir os olhos e ver
Porém, no final do semestre Luis Humberto chamou a mim e a uma colega para dizer que tinha “sido obrigado” a repensar seus critérios de avaliação, onde a participação na aula tinha um peso muito grande. Isso porque a nossa participação era nula mas nossos trabalhos, segundo ele, eram “lindamente escritos”, e ele não queria ser injusto. Ele se lembra dessa história até hoje, mais de trinta anos depois, mesmo tendo me encontrado tão poucas vezes nesse intervalo. E eu me lembro com muita clareza de suas aulas, de longe as melhores e as mais importantes da minha vida estudantil. Foi um professor que nos ensinou muito, muitíssimo mais do que constava nas ementas de suas disciplinas. Ele nos ajudou a construir ferramentas para pensar. Ele nos acompanhou passo a passo no delicado processo de abrir os olhos e ver. Para mim seu papel foi semelhante ao de uma parteira: ele esteve presente no nascimento do meu interesse pelas artes visuais, contribuiu de forma inestimável para esse processo e marcou, assim, toda a minha trajetória. Digo parteira, e não médico, porque esse papel foi cumprido com ternura, com doçura, com verdadeiro interesse por nós, alunos. As aulas de Luis Humberto foram inesquecíveis. Nós discutíamos, ríamos sempre, algumas vezes chorávamos, saíamos de lá com as ideias fervilhando.
Depois de me formar passei três anos sem vê-lo, para então me surpreender ao encontrar o professor no momento mais difícil da minha vida: quando meu irmão mais novo foi morto de forma trágica, lá estava Luis Humberto para me dar um silencioso e eloquente abraço apertado. Ele nem se lembra mais disso, mas eu nunca vou me esquecer. Conto essas coisas irrelevantes sobre mim apenas para dar meu testemunho sobre o homem generoso e incomum que é Luis Humberto. Porque a sua história, o seu trabalho e o seu papel são bem conhecidos. Jovem arquiteto, veio a Brasília em 1961 para trabalhar na equipe que projetou a Universidade de Brasília, sob o comando de Niemeyer e Darcy Ribeiro. Foi um dos fundadores da UnB e fez parte do primeiro grupo de professores do Instituto de Artes, ao lado de Athos Bulcão, Alfredo Ceschiatti, Zanine e Glênio Bianchetti. Junto com outros duzentos professores, demitiu-se em 1965, em protesto contra as intervenções militares no campus. Tornou-se fotógrafo e revolucionou o fotojornalismo brasileiro com imagens geniais, focadas no que ia “além do óbvio, o que escapava à rigidez do poder”. Segundo a historiadora Simonetta Per-
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Bem de acordo com seu perfil nada conformista, ele nos faz rir com piadas sobre suas mazelas físicas, continua a fotografar e a escrever. Neste ano de 2018 publicou um novo livro e realizou uma nova exposição
sichetti, “é quase impossível falar de fotojornalismo sem citar o papel de Luis Humberto no desenvolvimento dessa linguagem”. Coordenou, no hospital Sarah Kubitschek, o Centro de Criatividade, o Programa de Ação para a Comunidade e a Divisão de Foto-Imagem. Em 1985 e 1986 foi diretor da Fundação Cultural do Distrito Federal e do Teatro Nacional de Brasília. Voltou à UnB em 1986 e foi oficialmente reintegrado durante o processo de anistia de 1988. Em 2011 a universidade concedeu-lhe o título de professor emérito. Luis Humberto publicou belíssimos livros, ganhou medalhas, foi homenageado inúmeras vezes. Teve um mais que justo reconhecimento da sua contribuição à sociedade como artista e como pensador. Nem vou tentar falar sobre isso, porque ele certamente me mandaria refazer este texto... Mas vou retomar o meu testemunho. Há alguns anos fui visitá-lo junto com uma amiga (a colega tímida que ficava calada ao meu lado naquela turma de 1986). Ele estava com problemas de saúde e pessimista em relação ao futuro; chegou a fazer comentários que beiravam o mórbido, embora sempre com o seu característico bom humor. E com o passar dos anos as dificuldades realmente pioraram: precisou
usar cadeira de rodas e passou a sofrer de um progressivo tremor nas mãos, coisas que limitam, e muito, suas duas atividades mais preciosas, fotografar e escrever. Mas ele não se rendeu à doença nem se entregou à autopiedade. Ao contrário do que muitos fariam, e bem de acordo com seu perfil nada conformista, ele nos faz rir com piadas sobre suas mazelas físicas, continua a fotografar e a escrever – sempre à mão. Neste ano de 2018 publicou um novo livro (o volume de poesias intitulado Para Márcia) e realizou uma nova exposição, este lindo trabalho do qual tive a alegria de participar. Ao querido mestre Luis Humberto, o meu carinho e os meus agradecimentos.
Diga-me coisas! Rinaldo Morelli
Ao passar os olhos pelas prateleiras da estante, displicente e sem objetivo, Roland Barthes me sorriu enigmático como La Gioconda, de Da Vinci. Parecia me chamar para contar um segredo. Peguei o livro A câmara clara, todo sublinhado pelo seu verdadeiro dono, o amigo fotógrafo Beto Rocha, que com certeza há décadas se pergunta para quem emprestou ou onde foi parar seu livro. Deixei passar as folhas entre os dedos como quem procura um papel, um bilhete, perdido no tempo. No fim da página sessenta e dois Barthes conta que em 1937 a revista Life recusou as fotos de André Kértez porque “falavam demais, elas faziam refletir, sugeriam sentido”. Pensei: O que esperar da fotografia senão sugerir sentido? É isto. Fotografias sugerem sentido, contam histórias – não só as dos fatos e momentos registrados, mas também as histórias que vivem, às vezes inquietas, dentro da subjetividade do fotógrafo. Confessam, apontam, paralisam e eternizam, ao mesmo tempo, um pequeno instante. Luis Humberto, nestas fotografias, conta um pouco de sua história recente. Supera-se diante dos novos desafios, compreendendo os limites como propostas de novas possibilidades. Reafirma sua condição de cronista do dia a dia, traduzindo a densidade que podemos encontrar no banal. As imagens nos contam de seu cotidiano, de seu tempo nos lugares, percebendo os de-
talhes e as relações entre os objetos, construindo e atribuindo sentidos, propondo conversas e indagações. A luz em suas fotografias é fio condutor de seu tempo e de seu olhar aguçado. Tem em mãos a tecnologia digital, outro desafio para quem em sua trajetória fotografou sempre em filmes e principalmente em cromos (slides), imprimindo na exposição exata sua Paisagem doméstica. As fotografias conduzem o espectador através do olhar do fotógrafo; apesar de siamesas com a realidade, se recusam a dizer as mesmas coisas. O fotógrafo reinventa a realidade, que também é interpretada por aquele que a olha. Fotografar é um convite à cumplicidade, é um compartilhar de segredos, é uma declaração tácita de sua visão de mundo. O espectador é livre para encontrar novos significados, construir outros discursos. Isto para o fotógrafo às vezes causa uma certa angústia; não há controle sobre a interpretação do outro sobre nossas imagens. A fotografia quando vem ao mundo – e segundo outro amigo, Marcelo Feijó, “fotógrafos não tiram fotos, colocam fotos no mundo” – cria vida própria e podemos pensar o que quisermos dela. A fotografia – parafraseando o professor Luis Humberto, que de supetão interpelava seus alunos em sala: “diga-me coisas!” – a fotografia é assim, diz coisas.