Revelado : páginas da fotografia brasiliense V.2

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S171r Salmito, Armando. Revelado: páginas da fotografia brasiliense v.2 / Armando Salmito; Arthur Monteiro; Isabela Lyrio (Orgs.); fotografias André Coelho, Ivaldo Cavalcante, Janine Moraes. - 1 ed - São Paulo: Editora Sebo Clepsidra, 2019. 64p. ; il.; 20cm ISBN: 978-65-80559-01-5 1. Literatura brasileira 2. Fotografia. I. Título CDD: B869.91 CDU: 82-1(81)


FOTOGRAFIA ANDRÉ COELHO IVALDO CAVALCANTE JANINE MORAES ORGANIZAÇÃO ARMANDO SALMITO ARTHUR MONTEIRO ISABELA LYRIO


REGISTRADA POR LENTES,

BRASÍLIA CRESCEU SOB OS OLHOS DO MUNDO

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Ícone da arquitetura modernista, centro do poder político – rótulos que enquadram Brasília na mesma foto há décadas. Este imaginário, calculado como os ângulos de Niemeyer, reduz a cidade a um eterno cartão postal e eclipsa a explosão de vida que se gerou desde que as primeiras paredes foram erguidas na capital. Como rios que deságuam no interior do país, uma farta massa humana fluiu para as terras altas do Planalto Central, nutrindo o antigo solo do Cerrado com povos e saberes de todos os cantos do Brasil. Os trabalhadores migrantes passaram a conviver dentro de um pequeno retângulo cortado no mapa ocupando assentamentos provisórios, enquanto o Plano Piloto seguia um (quase) inabitado canteiro de obras. Após a inauguração, a cidade começou a cumprir sua missão e chegaram os primeiros servidores públicos transferidos para trabalhar na administração do país. O Brasil não engolia Brasília e a pensava um deserto. Nos anos 60, o alemão Peter Scheier produziu o livro Brasília vive! enquanto trabalhava para uma agência norteamericana. Registrou as jovens avenidas em movimento, os primeiros moradores ocupando os blocos do Plano Piloto e os burocratas trabalhando a pleno vapor nos escritórios governamentais - um recorte que pretendia mostrar novo ponto de vista à opinião pública.

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Aos poucos, os candangos reinventavam o brasileiro e preenchiam a descampada paisagem com vida. Na década de 70, Joaquim Paiva chegou do Rio de Janeiro para seguir carreira diplomática. Fotógrafo e colecionador, sentiu falta de gente nas ruas e tinha pouco interesse pela óbvia e monocromática arquitetura. Buscava a essência do povo simples que crescia junto com a cidade, seja na rodoviária ou no Núcleo Bandeirante, os lugares mais frequentados da época.

A fotografia documental moldou seus fundamentos a partir do fotojornalismo, com uma estrutura clássica que remonta à década de 1930, sustentada no tripé verdade

objetividade

credibilidade

Gozando de liberdade experimental e tempo para pesquisa, o fotodocumentarista imerge em seu campo de investigação orientado por um desejo de expressar seu engajamento humanista. Como contadores de histórias, interpretam o mundo e nos instigam a vivenciar histórias de povos e lugares para além do nosso horizonte particular.

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60 e 70 como falar se a lei é calar? Ainda não tinha assentado a poeira vermelha nas ruas quando Brasília foi convocada a assumir seu papel de capital. Em 1964 os militares invadiram a cidade e tomaram o poder. O cineasta Jorge Bodanszky, na época aluno de arquitetura na Universidade de Brasília, usou uma câmera fotográfica emprestada por seus professores para registrar o dia a dia dos estudantes, protestos contra o regime militar, ações do exército e alguns panoramas experimentais. A censura teve grande adesão da imprensa, que tinha interesses econômicos para se manter na ativa. Enquanto nos textos escritos era mais fácil limitar o livre fazer jornalístico, aos censores faltava sensibilidade para interpretar a subjetividade do código visual. Esta foi a oportunidade para os fotógrafos contrários ao regime registrarem imagens que expressavam sua visão política. Em 1965, ao se demitir da UnB em protesto contra a demissão de alguns colegas, o professor de arquitetura Luis Humberto começou a trabalhar na fotografia como repórter fotográfico, editor e pensador. Na década de 70, “construiu um dos mais importantes e consistentes trabalhos de documentação da política e do cotidiano 7


de Brasília. Com fina ironia, trouxe vida inteligente para a fotografia dessa época, insinuando, nas entrelinhas, irreverência e criatividade. (...) ele desvendou a estética do poder no regime militar e muito contribuiu para que a fotografia se tornasse um poderoso instrumento de informação.” (Rubens Fernandes Júnior). Com o fim da ditadura, Luis Humberto retornou à Universidade e continuou documentando o cenário em constante transformação em ensaios íntimos - dentro e fora de casa – reinventando o olhar sem se curvar aos desafios do tempo. Os anos de chumbo revelaram outros fotógrafos cronistas que aproveitaram o impacto social da imagem para legitimar a capital política, como Orlando Brito, que chegou criança à cidade em construção, iniciou sua carreira nos jornais durante o regime militar e até hoje segue apontando a câmera para as contradições do teatro do poder. Estar na ponta da lança dá ao fotógrafo a oportunidade de observar o mundo em primeira pessoa, de pensar e de fazer uma leitura privilegiada dos acontecimentos, atuando como mediador cultural que pode desfrutar desta posição para produzir uma narrativa crítica. Muitos fotojornalistas realizam projetos documentais paralelamente ao trabalho formal para a imprensa, atendendo ao compromisso com suas verdades pessoais.

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Os processos de criação não são deflagrados por iluminações súbitas, de origens misteriosas, destinadas aos indivíduos privilegiados, mas pelas circunstâncias de momentos históricos, restritivos ou generosos, determinados por uma conjuntura política, econômica e cultural. Assim sendo, é preciso, mesmo que resumidamente, que procuremos nos situar dentro das dificuldades do país, decorrentes de sua conduta peculiar e das origens externas de seus males. Afinal, que tipo de sociedade estamos criando e para quê? Quais os limites que nos são impostos? Como superá-los? Como poderemos mudar a face hostil de nossa realidade? Há uma nova guerra pela sobrevivência da dignidade e pelo respeito à inteligência e à sensibilidade, mas, sobretudo, em favor do homem como um ser plural, capaz de, a cada instante e a seu modo, reinventar a vida.” Luis Humberto

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Através de fotografias seremos capazes de encarar nosso passado para não repetir a história? No Brasil democrático do século XXI alguma coisa mudou? André Coelho foi à Terra de Ninguém, onde os catadores de lixo lutaram uma guerra pela sobrevivência da dignidade em meio aos rejeitos da capital do poder. Ivaldo Cavalcante nos convida a abrir os olhos e a alma para enxergar a face hostil da realidade dos invisíveis no Castelo de Grayskull. Janine Moraes tem o privilégio do encontro com famílias que estão reinventando suas vidas e acompanha o prosperar do Assentamento Maria da Penha Resiste.

“TUDO ISSO É HOJE APENAS. SÓ DEUS SABE O QUE ACONTECERÁ COM BRASÍLIA. É QUE O ACASO AQUI É ABRUPTO” Clarice Lispector

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André Coelho, é fotojornalista e busca histórias que demonstrem a diversidade do Brasil e do mundo. Atraído pelo estilo documental, produz grandes reportagens sobre realidades à margem da sociedade, se permitindo tempo para pensar, entender e desenvolver os temas aos quais se dedica.

Ivaldo Cavalcante é fotógrafo, documentarista e serígrafo desde os anos 70. Se graduou em fotojornalismo nas ruas, retratando o universo dos excluídos nas periferias de Brasília. Com imagens impactantes, conquistou prêmios internacionais, produziu livros e exposições.

Janine Moraes fotografa desde 2008. Tem interesse, principalmente, pelo espaço urbano como cenário para suas imagens que provocam reflexões políticas, metafísicas e metalinguísticas. Gosta de perscrutar espaços, gentes, coisas, numa tentativa criativa de entendimento, comunicação, que pensa ruídos, limitações, filtros. Desde 2016 integra o Mamana, coletivo de mulheres que fotografam na rua.

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Apenas 24 quilômetros separavam o centro nervoso do poder no Brasil do vai-e-vem de enormes caminhões carregados com toneladas de lixo. Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, todo o lixo produzido na Esplanada dos Ministérios, no Congresso Nacional, no Palácio do Planalto e em todo o Distrito Federal alimentava o maior aterro sanitário da América Latina, segundo a DWaste, considerado o atlas da gestão global de resíduos. Criado sob a sombra da chamada “cidade projetada” e seus monumentos, o Aterro do Jockey, popularmente chamado de “Lixão da Estrutural”, se estendia por uma área de 200 hectares e ocupava a vigésima terceira posição entre os maiores em atividade no mundo. A comunidade que lhe dá nome gradualmente surgiu ao redor do aterro e 70% de seus 50.000 habitantes tinham alguma relação direta ou indireta com o que era produzido em seu interior. Do topo de sua montanha de lixo com mais de 50 metros de altura, se podia ver o horizonte e bairros da capital federal. A poucos metros de sua base está o cinturão verde do vizinho Parque Nacional de Brasília, onde um estudo da Universidade de Brasília (UnB) aponta para uma possível contaminação do solo por chorume, o líquido tóxico resultante da decomposição de resíduos. Em 19 de janeiro de 2018, o lixão da Estrutural fechou definitivamente suas portas após quase 60 anos de funcionamento ininterrupto. 12


André Coelho

Terra de Ninguém

André Coelho

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T ERRA DE N I N GUÉM

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ANDRÉ COELHO

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É difícil começar a escrever depois de ter adentrado pelas lentes do Castelo de Grayskull. Preciso usar palavras duras, assim como as imagens. Preciso escrever engasgada, assim como a realidade fotografada que não me desce pela garganta. Preciso enxugar as lágrimas e fazer do líquido tinta impressa em letra de manifesto/de denúncia, assim como imagino Ivaldo fotografando. Existem castelos visíveis e invisíveis, mas só alguns são negligenciados e tapados com um manto mágico tecido pelo poder econômico. Os castelos visíveis são blindados, cheios de alarme e segurança, protegem patrimônios. Os castelos invisíveis são vulneráveis, estão a céu aberto, protegem o fôlego - aquele sopro de vida que ainda resta. Castelos no Brasil foram construídos com tijolos e escombros da desigualdade social. Não podemos tapar os olhos, fingir que não vemos e apenas acreditar no noticiário da televisão. O mesmo noticiário que dilata com o pânico e o medo a distância entre as realidades e as pessoas que nelas vivem. É muito confortável estar no meu castelo intocável e usufruindo todos os meus privilégios, enquanto ao negro e ao pobre estão sendo negados direitos básicos. O mínimo não existe para os castelos invisíveis. O máximo faz castelos visíveis. Não olhe para essas fotos com seus olhos fechados, abra-os! Castelos invisíveis carregam tudo o que possuem dentro de um carrinho de supermercado. Castelos visíveis todos


os meses enchem carrinhos de produtos industrializados. São homens, são mulheres, são crianças, você está vendo? Você sabia que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão?! Está no Art. 227 da nossa constituição federal de 88. É o que você vê? Se você não vê, não se culpe, somos adestrados (as) a não enxergarmos. Faz parte do jogo cruelmente bem estruturado que estamos desempenhando numa sociedade individualista e capitalista, onde o ser humano – o humano – não tem valor. Claro, quando não tem nada. E não adianta olhar para o humano aqui fotografado, com o olhar encharcado de um falso mérito como se as oportunidades fossem as mesmas. Lembra-se do mínimo e do máximo? Como caminhar sem o mínimo? O Castelo de Grayskull torna visível o que é invisível e visibilidade pode ser um fator chave para combater as injustiças. É dolorido fotografar o que sangra nos olhos, mas é preciso. A fotografia do Ivaldo sangra nossos olhos, pois captura fragmentos invisibilizados pelo sistema. Fazendo-nos refletir para além dos nossos próprios castelos. Isadora Lima


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Ivaldo Cavalcante

Castelo de Grayskull Ivaldo Cavalcante


CAST ELO DE G R AYSK U L L

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I VA L D O C AVA L C A N T E

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Este trabalho tem uma foto de uma menina que, num pulo, se lança no escuro. É assim que gosto de sair para fotografar: sem saber o que vai acontecer, sem um plano claro traçado, me expondo ao imprevisível e invisível, buscando ampliar o significado de uma cena banal com um recorte poético, metafísico ou metalinguístico. Procuro sempre por fotos como essa, enquanto faço todas as outras, que têm uma estética mais descritiva, documental. Hoje, me divido entre esses dois jeitos de fotografar. Uma procura solitária, andarilha, observadora, caçadora/coletora de imagens sintéticas e a que apresento aqui, criada a partir do encontro. Onde há compromisso com o vínculo estabelecido entre fotógrafa e fotografadas(os), com a narrativa histórica dessas pessoas e desse Assentamento, com a maneira como se veem e desejam ser retratadas. Ou seja, fotografias que não as faço sozinha, senão a partir do encontro possível. Os primeiros encontros com as pessoas aqui retratadas aconteceram em um cenário de demolição e luta pelo direito básico à moradia. À época, maio de 2016, uma forte disputa em torno processo de impeachment da Presidenta Dilma Roussef tomava conta do país. Sentia que precisava colocar meu trabalho à disposição de narrativas com as quais me alinhava: em defesa de direitos básicos que estavam ameaçados pelo processo político em andamento. Nesse contexto, realizei a cobertura jornalística da reintegração de posse do acampamento Maria da Penha Resiste, em 46


Nova Petrópolis, Planaltina, que abrigava, há nove meses, aproximadamente 500 famílias às margens da BR 020, no seu KM 19. Acompanhei-os durante duas novas ocupações. Após três anos de luta, em janeiro de 2018, 59 famílias, conseguiram seus lotes. Retomo em 2019, este trabalho. O ensaio publicado aqui é o estágio inicial do projeto que se propõe a acompanhar a comunidade e suas construções em terrenos próprios. Procurei as famílias que conquistaram seus lotes e oferecilhes meu trabalho como fotógrafa disposta a co-criar retratos que deixem registrados esse momento de suas vidas. Desejos e vontades dos fotografados são acolhidos. A cada visita, levo as fotos feitas anteriormente. A entrega da foto leva sempre a uma nova, cada vez mais próxima e complexa, e avançamos na construção do trabalho fotográfico e da intimidade.

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Janine Moraes

Assentamento Maria da Penha Resiste Janine Moraes

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ASSENTAMEN TO MA RIA DA PE NHA RE S IS TE

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JANINE MORAES

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Fotografia

Organização Editorial

André Coelho Ivaldo Cavalcante Janine Moraes

Armando Salmito Arthur Monteiro Isabela Lyrio

Coordenação geral

Prólogo

Arthur Monteiro

Isabela Lyrio

Design

Designer Assistente

Armando Salmito

Tayelen Castro

Revisão de textos

Gestão Financeira

Patrícia Lira

Katiane Brito

Apoio



ISBN: 978-65-80559-01-5

9 786580 559015

Este projeto é realizado com recursos do fundo de apoio à cultura do DF


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