Relação-ruína

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[04] ¡estrondo! relação-ruína

por isabella atayde

relacao.ruina@gmail.com | @isabellaatayde coordenação geral michelle bastos curadoria cinara barbosa e elza lima (1ª convocatória) projeto gráfico e diagramação diana salu

Atayde, Isabella. Relação-Ruína / Isabella Atayde. Brasília, DF: Estrondo!, 2020. 32 p. : il. color. ISBN 978-65-88259-00-9

1. Fotografia. 2. Arte digital. I. Título.

¡Estrondo! é um projeto realizado com o apoio do Fundo de Apoio à Cultura do DF (FAC-DF), fomentado pela Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa e pelo GDF.


[relação-ruína]

isabella atayde



sinto a agonia dos casarios que impõem-se em sua plena decadência.

que usos deles fizeram ao longo dos anos? quantos pensamentos saíram por aqueles balcões? quantas alegrias e tristezas vivenciaram? por que foram relegados à ruína e ao esquecimento? corredores assombrados povoam meu imaginário, sujeitos coadjuvantes dessas construções centenárias. nos seus salões, momentos gloriosos que não sei se houve. e jamais saberei… compartilho inquietações, ao perceber que o tempo é, de fato, senhor de dádivas e derrotas. açoita na sua pressa e acalenta na sua parcimônia. dóime saber que corro em vão para perguntar e descobrir. e a sensação branda de que a moléstia da memória nunca me abandonará...


as intempéries do acaso se aliam ao tempo

e mangam de nós que, à mercê da ocasião, seguimos quase sempre sem muita coragem. coisa bonita essa de deixar acontecer quando o que se quer mesmo é descontrolar. aí entra o sonho, tempestivo, contribuindo para que o improvável desejado ganhe vez, despudoradamente. é estranho o desvio do desejo e do sonho. é como se entregar a um túnel que tarda em terminar, mas quando acaba já é noite sem lua cheia. puro breu. é como seguir a vida sem rumo, um caminhar sem intenção. é um equívoco, um abraço à renúncia, um largar a vida em febre, suplicando presenças e urgências.


eu sei. minha ausência é injustificável.

nesses incontáveis dias cheios de horas vagas, tudo o que não encontrei foi tempo. tenho andado a esmo, sem rumo mesmo, distraída com as incongruências da vida. das muitas vidas. tantas que já nem quero contar. para essas andanças, separei um pequeno caderno branco. peso leve e morto, que voltou tão alvo quanto antes. sem rabiscos nem memórias. só faço tentar entender o porquê de tantos passos sem propósitos. no fundo, talvez fuga. vislumbro e anseio a crise como tentativa vã de ser expulsa desse estágio inerte complacente


eu sei. minha ausência é injustificável. pois tudo se apresenta em processo. voltas e voltas em círculos viciosos despretensiosos.


e o tempo se esvai em um fluxo que independe de nĂłs.

sinal de que os anos passam ligeiros enquanto os desejos dormem em sono vigilante. puro desperdĂ­cio...



drama, na vida e na arte.

e seguimos na resistência, para que não podem nossa alma criativa. haja vista a fúria com que temos nossos corpos domesticados, nossas asas cortadas. de mãos atadas e bocas amordaçadas, seguiremos incontestavelmente invisíveis. depois da poda, só a nossa dor fica.



acordei hoje como se nada existisse.

o quarto semiescuro. da rua vinham semiruídos. meu corpo semi-imóvel sentia o contato com o lençol macio. uma semilembrança de sonho que insistia em desaparecer. os olhos semifechados e o pensamento lá onde não se sabe como chegou nem se quer partir. respiração branda de aceitação. ali me encontrava. em perspectiva, podia ver-me apenas como um corpo que jaz, simplesmente. do alto, eu imóvel, via a cama girar comigo inúmeras vezes, volta ao mundo a favor e ao contrário do sentido e da falta de sentido das horas. penso. não existe um problema. não existe um sonho. não existe apenas um problema. não existe apenas um sonho. não existe uma saída. não existe apenas uma saída. não existe um/uma. não existe. nada existe sem perspectiva. por isso me coloco nela. porque não sou uma. não sou apenas uma. e em perspectiva, me contraponho uma frente a outra, aquela frente aquela outra e me vejo dentro e fora de mim, com tudo o que pode dentro e fora caber ou sobrar. nessa hora transbordo. enfadonha a existência que se pretende una, apesar de sermos únicos. antes, no meu semblante, nenhuma mudança, nem apenas uma marca. agora consigo esboçar sorrisos verdadeiros. enquanto minhas facetas se escancaram na minha cara, recobro aos poucos a consciência de ser complexa. mas não dou conta de todas. e me ajoelho diante dos velhos sabedores, que me acolhem com sua voz doce e seu olhar antigo. lá dentro, vejome em perspectiva e aquieto-me. e as águas mais uma vez provam, pois marejo só de lembrar.


eu quero a delicadeza

do tempo deleitado, mesmo que nas mais esquecidas memórias. quero sentir toda a planta dos meus pés no chão, como se tateassem o futuro, que virá sem a ânsia da espera. quero ares perpassando-me de ponta à cabeça, descabelando, alvoroçando a saia, aí onde o movimento revela-se. quero desfalecer-me em plena criação, o instante em que o coração pulsa e os olhos expulsam águas e sais de instintiva alegria, tanto efêmera quanto contagiante.


defronte à porta do meu sonho,

me vi na boca de uma encruzilhada. a passos lentos, tateando o nada, sobressaltada, entre medos e curiosidades. tudo o que ainda não sabia e não via, só sentia. da porta do meu sonho, eu acordada via, que havia alegria, só que eu tinha que descobrir como seguir adiante. olhei pra trás e vi meu passado, eu criança, olhos atentos ao mundo imenso e confuso. voltei a mirada adiante e me encontrei anciã, quase um passarinho, sentada sozinha em um banco de madeira, tomando sol. os olhos eram os mesmos, curiosos, rápidos no ver e no surpreender-se. os mesmos sequiosos de vida, antes e depois. nesse caminho entre passado e futuro, com tudo em suspenso, tudo por ser e acontecer, tento ver-me nessa que fui e na que, talvez um dia, serei. e peço, se possível, de volta o brilho nos olhos que tive e terei porque agora, sem ele, está difícil saber qual direção tomar.


caminhar não é mais uma escolha. passos adiante e olhar no céu. é onde encontro respostas. onde as coisas fazem sentido.

guardo um tempo antigo dentro de mim. Tão antigo que não se conta no intervalo das dores do mundo. cada passo, uma lágrima. e assim as águas descem, cada vez mais abundantes.


infinitas voltas em minha volta

tantas e tantas vezes. perco meu eixo. aperto o passo ou me detenho? nĂŁo importa, nĂŁo saio do lugar. o apego ĂŠ mesmo cruel. abandono-me... abandona-me!



quando não é quase dia e nós ainda cobertos de ontem . luz no céu anuncia o nascer de um dia. luzes da cidade invadem a noite, que finda sem nossa alegria. paisagem fria, vento forte assovia, mais um dia se inicia. o tempo toca as janelas, se infiltra nas minhas paredes ainda mornas. um calafrio fino perpassa desde meu céu até minha terra, tão árido quanto meus pensamentos em noites escuras de lua nova. tem noites que duram uma eternidade. e dias que não deveriam acontecer. quando é assim, em que tempo me demoro?


eu ouço e sigo

os passos deixados por minhas mulheres. percorro seus rastros, as admiro em minha observação silenciosa, as respeito e aplaudo sem mãos infinitas vezes, na discrição absoluta de quem ama sem querer dizer, por pura incapacidade. contento-me em observá-las e ter consciência que apenas sinto, muito. o presente mais bonito, além da presença, é saber que existirá sempre, mesmo que um dia não mais esteja. e de pensá-lo já me vem uma saudade ancestral, que me abraça e caminha ao meu lado, também em silêncio.


atrasou o passo e espiou o dia findava lento tanta coisa quis fazer e aquela preguiça morna arrastando-se sem pressa

desatenta, assuntou sem real interesse no fim, não era nada o fato é que não tem sido nada suspirou sem ânsias nem expectativas e seguiu rumo incerto eita, vida tão fina que se esticar demais, esgarça e aí mesmo é que nada volta para o lugar lugar este misterioso que ninguém sabe mesmo onde é no fundo, não faz tanta diferença nem afobação nem parcimônia um dia o imbróglio se resolve sozinho e a angústia talvez vá ser não ter com o que se preocupar.


por onde se perderam teus sonhos?

no futuro, me verei contigo através das lentes da memória. tanta história que nem saberei mais contar dos idos de meus anos. queria carregar-te comigo pelos séculos a fio e da tua varanda espreitar a vida da rua, a mais interessante de todas as vidas. o melhor canal de TV do tempo de outrora. agora te vejo assim, decadente, mas saiba que percebo o teu charme senil. e te invejo por ter visto e vivido tantas coisas. coisas que não verei nem viverei e somente por pura ousadia, tento imaginar. continue de pé, mesmo que a duras penas. se um dia desabas, por cansaço ou descaso, prometo guardar-te em meus sonhos mais bonitos.


águas caem do céu e dos olhos.

o melhor do dia de hoje foi ter chovido. d’outra janela aprecio o vendaval. ao longe já sentia o prenúncio do dilúvio. raios, trovoadas, estrondos, ecoando lá fora e aqui dentro. aí, veio a chuva, com gana e gosto, dessa bem grossa e densa. chuva de quebrar quebranto, de purificação, de encharcar cidadão. chuva de doer... agora é deixar que as águas refaçam seus caminhos e encontrem meio de escorrerem sem sangrar.


se lá em cima nós nos cruzássemos

e nos deixássemos cair no abismo do indefinido soprados leve, como uma flor que se desprende do caule, que entende o momento certo de lançar-se porque, se resiste ao tempo, sofrerá por dores senis se lá em cima nós nos cruzássemos e sorríssemos com gosto pelas memórias compartilhadas agora cansadas e levadas pela brisa de um respiro longo que esgotou por entenderem que tudo um dia esgota-se se lá em cima nós nos cruzássemos e não precisássemos nada dizer apenas uma troca de olhares seria suficiente para compreender que somos e seremos o que antes fomos e cambalhotando pelos ares nos distanciaríamos e voltaríamos a nos cruzar enquanto distantes, em queda livre infinita, ao longe ouviríamos nossas gargalhadas gostosas e quando o ciclo dos ventos permitisse nosso reencontro, daríamos as mãos com força para alongar os segundos e dançaríamos a nossa pequena breve ciranda aérea até um golpe de ar espalhar tudo e lançar-nos para longe outra vez.


por onde andamos

enquanto nos procuramos? fugi tanto de nós que não consegui nem mais ser só. tua lembrança ainda povoa minhas memórias inventadas. de tuas mãos não recordo mais o toque, se é que houve. só o peito agora grita quando, muda, digo teu nome. Nessas horas, me sinto desfalecer. vida derretendo lentamente, escorrendo quente pelos anos a fio, dia após dia, sem descanso. e nada de nós, nunca. Nossos descaminhos deixados à mercê de nossa covardia. quanta ironia! mas ainda sinto teus olhos ciganos. isso, tenho certeza, não foi invenção. ainda me atravessam quando me olham pela janela do tempo que não passou. e doces, sorriem ternos, só pra mim. se existe eternidade, aí nos encontramos.


foi-se tempo bom

e já deixa saudade, mesmo que ainda seja. mais um pedacinho de coração vai sendo deixado por esses caminhos de terra vermelha e poeira. como semente que só brotará quando encontrar terreno propício. tantos pedaços de coração semeados sem vingar por aí. talvez também não seja aqui que haja terreno fecundo para tanto amor. por enquanto, semeio palavras.

na iminência da partida,

com a promessa vazia da volta, me dou conta de que mesmo antes de partir já não quero voltar. é a vida dando voltas, voltas e voltas. fecho os olhos, respiro fundo e escuto suas gargalhadas gostosas se abrindo a futuras situações imaginadas. se tudo é possível, agora eu sei, escolho o sonho, que me acolhe e convida a dançar no melhor estilo, o próprio, sem regras, sem limites, na leveza que se pede em tempos necessários de transição. transito-me.



as horas pedem para dar menos atenção aos trilhos e voltar os olhos para o céu, de onde os sinais resolvem cair como chuva fina, gota a gota. a garoa chegou despretensiosa. levei o rosto úmido de noites e solidão. medo caiu por terra, levado pelo tempo das tempestades. sentidos se configuram conforme as horas passam.

um galho de alegria brota por onde o medo escoou. é a esperança que o renascimento traz. o vazio deixou de ser amedrontador. nele, infinitas possibilidades de criação. No meio dele, solto um grito. seu eco reverbera até minhas mais esquecidas gerações. ainda lá sou eu no caminho vasto de ser.


essa mania de construir e destruir,

de criar e esquecer. me assombra a capacidade humana de abandonar e deixar ruir. me escoro nas ruínas e aprendo que resistir é parte incondicional da existência. vejo através dos escombros e sinto as vidas que por ali sobreviveram. sinto a alma encantadora dos casarios. um dia ali alguém foi feliz. um dia por ali alguém chorou. sentimentos não morrem com os corpos que os sentiram. sentimentos resistem, como deflagram as cores das portas e janelas, o jardim abandonado, a piscina desladrilhada vazia... tudo tinha um propósito e por trás havia gente, muita gente, com desejos, com intenções, com afeto. o tempo liberta. vidas se renovam. a memória persiste e o afeto abraça.


pensamentos vêm e vão,

como as ondas, sábias em sua obediência às marés. meus pés na areia fina, sentem as texturas de existir. em cada grão, uma história, um átimo de sentimento, o arrebato do susto, aqueles milésimos de segundo antes da queda, o instante quando as coisas começam a fazer sentido.


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com o atraso dos indecisos, renasço. sinto novo pulsar no peito, generoso e involuntário. e reconheço não poder mais esquivar-me da libertação de você que sou eu. talvez seja chegada a hora de devolver-me a alegria leve, vibrante e solar daqueles tempos. essa que tratei de camuflar para poder rever e reter-te em meus escritos e, assim, dedicar-te as mais sinceras linhas de minhas recônditas memórias.


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