A “POLPA DA COR”: A PERSISTÊNCIA DO DISPÊNDIO NA TEORIA NEOCONCRETA DE FERREIRA GULLAR Sérgio B. Martins
Lá pelos idos de 1960, Aluísio Carvão recobriu um cubo de cimento próximo em tamanho de uma bola de vôlei com uma camada de tinta de um vermelho denso e algo fosco, ela própria misturada em cimento. O procedimento resultou num objeto ambivalente: por um lado, seu tamanho sugere o peso que de fato verificaríamos se o levantássemos de súbito com as duas mãos; por outro, é o toque leve das pontas dos dedos que sua superfície parece solicitar. É como se tal toque fosse necessário para confirmar que, por detrás de sua textura, há de fato um objeto sólido, e não uma mera aglomeração de pigmento. Poroso e abaulado, este é um cubo de Gestalt hesitante, como se sua clareza formal estivesse na iminência de ser consumida por sua intensidade cromática. Poucos evocaram tão vivamente o nó perceptivo de Cubocor (1960) quanto o poeta Ferreira Gullar, ao afirmar que o trabalho neoconcreto de Carvão supera a “resistência do objeto” para alojar-se “na polpa da cor” (GULLAR, 1999, p.258). Na verdade, Cubocor não foi feito para ser tocado; é irônico, aliás, que tenha se tornado a obra-prima de um artista cuja produção consistia quase que exclusivamente de pinturas. Mas, como bem sabemos, Carvão não adentrava sozinho a zona cinzenta entre pintura e escultura: foi naquele mesmo ano, por exemplo, que sua colega neoconcreta Lygia Clark começou a produzir seus Bichos (1965). Foi com tais trabalhos em mente que Gullar desenvolveu a “Teoria do Não-Objeto” calcando-a numa dupla operação. Por um lado, informado pela filosofia que vinha lendo – sobretudo da fenomenologia de Merleau-Ponty –, Gullar esmerou-se na descrição de obras de arte que envolviam o sujeito na participação ativa ou projetiva, rompendo assim com a dicotomia sujeito/objeto 321