28 minute read
Cariacica nas lentes do tempo: um olhar nativo
Cariacica nas lentes do tempo: um olhar nativo
Amarildo Mendes Lemos (IFES)15
Advertisement
O topônimo Cariacica é derivado de “Cari-jaci-caá”, de matriz tupi. Literalmente o termo pode ser traduzido como “forasteiro-rio-lugar” e se popularizou como lugar de "chegada do homem branco” ou “porto do homem branco”, além de “chegada de estrangeiro" ou “porto de estrangeiro”. Cariacica também era o nome do rio que descia entre a encosta da serra e a formação granítica conhecida como Moxuara, desaguando na baía de Vitória, e que hoje é chamado de rio Bubu. O rio Cariacica foi navegável até pelo menos a década de 1950, serviu de meio de transporte e fonte de alimentação para a população local, e hoje absorve o esgoto que depois é lançado ao mar. Com um relevo diversificado, cerca de 50% do território de Cariacica é montanhoso e o município conserva por volta de 25% de mata atlântica nativa. Isso se reflete no clima do município, que faz limite com Santa Leopoldina, Vila Velha, Viana, Vitória, Serra e Domingos Martins, este pela região de Biriricas. Como parte desse relevo privilegiado, temos o monte Moxuara que encanta o turista e o habitante nativo do Espírito Santo. Visto desde a Serra passando pela parte continental de Vitória ou de Vila Velha, o Moxuara está presente em quase todo o acervo imagético que busca traduzir em imagem a beleza natural da baía de Vitória. Seja da Ilha das Caieiras ou da Terceira Ponte é impossível que o Moxuara não seja notado em um clique que se faça do poente, quando se vê o astro-rei descansar atrás desse patrimônio natural de Cariacica. De origem incerta, o nome Moxuara, possivelmente, é originado de Muxanara ou Muchauara (pedra irmã). Segundo uma versão, considerada lendária, o nome teria origem em Monchuar ou Muchuar que seria traduzido como veio de diamantes e, em outra, seria uma suposta exclamação de tripulantes franceses ao adentrarem a baia de Vitória, “Mouchoir! (lenço)”, depois de observarem nuvens no monte. Há quem diga que seja derivado de Amõ-xuara, “o que está distante”. Moxuara, em Cariacica, e Mestre Álvaro, em Serra, são personagens de uma lenda que trata de uma história de amor entre dois jovens de tribos inimigas que ousaram ouvir seus corações e, por isso, teriam sido transformados nessas formações rochosas.
15 Professor de história do campus Serra do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES). Doutorando vinculado ao Laboratório de História das Interações Político-Institucionais (HISPOLIS) do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHIS-UFES).
Passando dessas considerações linguísticas e topográficas, passamos daqui em diante a fazer alguns apontamentos históricos para situá-los no contexto histórico de produção imagética sobre o município e também ilustrar o panorama no qual diversos olhares em diferentes épocas colocaram Cariacica nas lentes do tempo. Como temos visto no presente, onde as redes sociais dominam a comunicação, a fotografia eterniza momentos da mesma forma como o verbo os conectam. Assim, por meio da escrita esperamos que os diversos acervos fotográficos possam conversar entre si, apesar dos mesmos não possuírem tal objetivo em sua constituição inicial. Na tessitura dessa prosa esperamos contribuir para o rico acervo que o leitor passa a ter acesso por meio dessa obra.
Da colônia ao Império: Cariacica como parte da formação econômica agrárioexportadora escravista
O morador ou visitante que circunda a região de Roda D’Água ou de Duas Bocas tem a oportunidade de conhecer a paisagem rural de Cariacica que guarda o bucolismo de um tempo no qual ainda tal formação ainda estava em gestação, esperando a obra de seus criados. O açúcar e a cachaça foram os primeiros produtos da ocupação portuguesa que ensejou a criação dessa cidade erguida sobre terras ocupadas originalmente por goitacazes e puris, no sul, e botocudos, no norte. No Porto das Pedras, próximo à rodovia do Contorno, temos uma região que teve um fluxo intenso de pessoas e mercadorias no século XIX, na época em que aconteceu a Revolta do Queimado (1849). O marco da conquista portuguesa no Espírito Santo é o dia 23 maio de 1535, quando o conquistador português Vasco Fernandes Coutinho chegou à baía de Vitória para tomar posse da capitania que recebeu pelos serviços prestados à coroa portuguesa na expansão ultramarina na Ásia, tendo lutado em Goa, Málaca e provavelmente na China e administrado uma feitoria em Ormuz. Criando os primeiros engenhos para produção de açúcar, Vasco Fernandes Coutinho fundou a primeira sede da capitania do Espírito Santo foi em Vila Velha (chamada à época de Vila do Espírito Santo), na prainha na base do Morro da Penha, onde foi construído o Convento da Penha, cujas obras se iniciaram em 1558 e foram finalizadas em 1561. Com uma vista privilegiada das embarcações interesse em adentrar a baía de Vitória, o Convento da Penha era uma construção que atendia finalidades religiosas e militares naquele contexto de invasões de outras potências europeias.
Em 08 de setembro de 1551, com a derrota dos indígenas Goitacazes, o esforço desses conquistadores na expansão da lavoura açucareira, foi ampliado com a criação de uma nova sede na ilha de Vitória, que permite melhor acesso ao continente e garante melhor segurança contra embarcações que são obrigadas a cruzar o estreito. Como sabemos pela lendária personagem Maria Ortiz, contada para tratar das invasões holandesas, vitória foi disputada por outras potências estrangeiras. Naquela época, para se proteger do temido corsário inglês Thomas Cavendish a entrada da baía de Vitória foi guarnecida, em 1592, por dois fortins, um no morro do Penedo, em Vila Velha, e outro que depois veio a se chamar Forte São João, na ilha de Vitória. Essa estrutura de proteção protegia a sede administrativa da capitania na “Ilha do Mel”, que pelo seu reduzido território não comportava a empresa açucareira necessária à manutenção daquela formação social e política iniciada pelos portugueses. A empresa açucareira garantiu o sucesso da conquista portuguesa, a qual contou desde o início com o trabalho forçado de indígenas e depois de africanos. Apesar disso, somente a partir do século XVIII os territórios ocupados deixaram de ser espaços isolados e foram integrados a Vitória. Aqui no Espírito Santo, um dos polos mais dinâmicos de produção foi administrado pela Companhia de Jesus, cuja sede ficava no Colégio São Tiago, fundado em 1551, pelo padre Afonso Brás. Com a expulsão dos Jesuítas, o Colégio São Tiago tornou-se sede da administração secular, cumprindo essa função ainda hoje. Durante o período colonial, os jesuítas recebiam terras de outras ordens, contribuições particulares (esmolas, doações e heranças) desfrutaram de isenções no pagamento de taxas, escravos, especiarias, ornamentos sacros, além de outros bens e privilégios, permitindo que os mesmos exercessem um papel ativo na economia transformando-se em produtores e administradores.16 Conhecida pelo volume de suas riquezas e pela ampla instrução de seus ordenados, a Companhia de Jesus contava com várias fazendas e imóveis urbanos que cumpriam funções diversas nos seus empreendimentos e uma das mais notáveis foi a fazenda de Araçatiba fundada no século XVII e em pleno funcionamento no século XVIII, abrangendo terras que hoje pertencem a Viana, Vila Velha e Cariacica. Araçatiba era uma região privilegiada do ponto de vista da produção açucareira no Espírito Santo. Vale lembrar que mesmo no chamado “século do ouro” (XVIII), o açúcar garantiu a maior parte das receitas de nossa balança comercial. Entretanto, no século
16 CONDE, 2011.
XIX, na ocasião da visita do príncipe germânico à região, vemos que o mesmo já testemunha uma realidade de decadência da atividade produtiva decorrente da expulsão dos jesuítas. Apesar disso, como ressalta o historiador Bruno dos Santos Conde:
Bazilio Daemon descreve a avaliação dos bens da fazenda ocorrida em 1780. A variedade e a quantidade destes bens demonstram a opulência de tais terras. São varias relíquias religiosas, jóias, construções, imensas terras, ferramentas, gado e outros itens. Mas o que mais chama a atenção é o número de servos: havia um total de 852 trabalhadores, entre “escravos pretos, pardos e cabras”. Até poucos anos antes da avaliação, Araçatiba era administrada pelos jesuítas, com notória produção dos derivados da cana, tais como o açúcar, além de melado, aguardente e mel. A quantidade de escravos serve, inclusive, para demonstrar tal importância.
No Espírito Santo a produção de aguardente envolvia também os padres jesuítas. A análise de registros do século XVIII indica esse fato, apontando ser a fazenda jesuítica denominada Araçatiba, na vila do Espírito Santo, o principal centro dessa produção. Queixavam-se as autoridades da época sobre o fato dos ditos padres controlarem a navegação do rio Jucu, importante curso para o escoamento de gêneros agrícolas em direção a Vitória. Tal controle, ao mesmo tempo em que punha em posição de vantagem a comercialização do destilado pelos religiosos, dificultava os negócios dos demais produtores.17
Pela citação acima vemos o motivo pelo qual Cariacica ficou bastante conhecida pela tradição na produção de aguardente. Bruno Conde salienta ainda a importância da fazenda de Itapoca, que compreendia terras próximas ao rio Formate, que conflui para o rio Marinho e deságua na baía de Vitória:
após se desfazer da fazenda de Carapina, a principal propriedade jesuítica de Vitória passou a ser a de Itapoca. Fazenda que se especializou na fabricação de farinha, Itapoca passou para as mãos dos jesuítas no século XVIII. Localizava-se numa faixa de terra atualmente correspondente à cidade de Cariacica, próxima à capital. Era comum entre os jesuítas a instalação de propriedades na área urbana, não muito distantes de seus colégios. Elas teriam a incumbência de fornecer os itens básicos a sua manutenção, tais como hortaliças, frutas, granjearias entre outros.18
Cariacica é uma região privilegiada pela quantidade de rios (Santa Maria, Formate, Bubu, Duas Bocas) e afluentes que favoreciam a atividade agrícola, e pela posição na baía de Vitória que favorecia o escoamento da produção e a administração das fazendas. Com a expulsão dos Jesuítas, em 1759, além dos prejuízos para a catequese, “uma importante força econômica local” abandonou a capitania e as suas fazendas. Entretanto,
O fato das fazendas jesuíticas apresentarem muitos escravos, notáveis extensões, além de uma relativa diversidade de gêneros produzidos gerou a impressão de
17 CONDE, 2011, p. 83; 120. 18 CONDE, 2011, p. 85.
que a sua saída resultaria numa desorganização da estrutura produtiva local. É verdade que as suas fazendas vivenciaram a diminuição do número de cativos e deixaram de figurar nos registros como símbolos de opulência em meio ao cenário espiritosantense, mas isso foi contrabalanceado pela diversificação da produção local e a ampliação das exportações, ainda que muito timidamente em relação às capitanias vizinhas. (...) Assim, se a capitania deixou de contar com a ação dos inacianos e sua importância em termos econômicos, educacionais e, até mesmo do ponto de vista da ocupação do território, no mesmo contexto viu sua produção diversificar-se e ganhar novos rumos, rompendo um cenário que há tempos vigorava no plano local. Foi naqueles idos que tanto as capitanias vizinhas quanto a metrópole passaram a receber gêneros produzidos no Espírito Santo.19
Assim, muitos colonos aproveitaram a escravaria e deram continuidade aos engenhos que permaneceram em Cariacica. Além da fé cristã, os engenhos da região de Roças Velhas, Ibiapaba, Maricará, Itapoca e Caçaroca estão entre as heranças dos jesuítas aos cariaciquenses. No começo do século XIX, Cariacica foi ponto de partida para o esforço de comunicação com Minas Gerais, hoje realizada principalmente pela BR 262 que liga Cariacica a Belo Horizonte. Em registro daquele tempo, temos o relatório do presidente da província de 1848, do Sr. Antônio Pereira Pinto, escrito na ocasião de entrega da presidência da província do Espírito Santo ao “Commendador José Francisco de Andrade e Almeida Monjardim”. Nesse documento encontramos registros sobre a ocupação nas proximidades do rio Santa Maria da Vitória, que inclui o Porto das Pedras que faz parte do município de Cariacica, onde podemos desfrutar de uma linda paisagem da baía de Vitória. Nesse documento, Antônio Pereira Pinto informa sobre suas obras, incluindo a ponte do “rio Mangarahy”, a qual estaria “prestes a findar-se, e tive ocasião de vel-a na minha passagem por esse lugar”20 Outra coisa que chama a atenção nesse relatório é o registro de que, nessa época, havia pouca conexão dos capixabas com outras regiões do Brasil e do mundo. Sobre isso, trazemos as palavras de Antônio Pinto para ilustrar:
Nas minhas digressões pelo Queimado, rio Santa Maria, Mangarahi, Cariacica e Viana, visitei algumas fazendas de assucar e café, observei, porem, que nenhuma destas industrias tem ainda tocado o gráo de bem entendido adiantamento. Optimas são as terras para o cultivo do café, mas a sua manipulação acha-se ainda muito á quem do aperfeiçoamento, e tanto isto é verdade, que esse genero, exportado dessa provincia, não tem conceito algum no mercado do Rio de Janeiro. A causa desse facto, no meu franco modo de entender, ou se refira ao café, ou ao assucar, é o costume, que os lavradores desta provincia tem acceito de venderem seus produtos dentro della, sem estabelecerem correspondências directas no Rio de Janeiro.21
19 CONDE, 2011, p. 150. 20 PINTO, 1848, p.33.
21 PINTO, 1848, p.9-10.
Vale um destaque em nosso texto, sem querer cansar o leitor com muitos registros de caráter historiográfico, que nessas paragens, no começo do século XIX, ocorreu, inclusive, uma importante revolta contra a exploração da força de trabalho, não em busca da alforria, mas por melhores condições de trabalho, chamadas de fugas-reivindicatórias. Sobre isso, um relato do recém-chegado governador da província Silva Pontes, em 1800, registrou uma revolta que reuniu cerca de 300 escravos de diversos proprietários locais. Segundo a historiadora Patrícia Merlo, estudiosa desse período, o início da revolta se deu com um primeiro grupo 113 escravizados comprados dos jesuítas por Gonçalo Pereira Porto e herdados pelo seu sobrinho Francisco Pinto Homem, os quais descontentes com seus “novos proprietários e persuadidos da esperança de voltarem a seus antigos donos, não se conformavam com outros senhores.” Eles viviam em dezoito casas de palha em Itapoca nas proximidades da estrada que dava acesso às lavouras do sertão e chegaram a reunir mais de trezentos cativos entre “as grotas e riscos da Serra do Mochuá, metidos no mato em ranchos fortificados e emaranhados”.22
O processo de emancipação no século XIX: de freguesia a cidade
Pela abundância de rios e córregos, como já falamos, em 1894 foi inaugurada a primeira represa com águas do rio Pau Amarelo. O projeto atraiu o interesse do Governo do Estado que ampliou em 1909 as instalações, com o objetivo de atender, além da capital, outras regiões. Em 1918, as obras de represamento foram concluídas e Cariacica ainda hoje é abastecida por sua própria fonte de água, enquanto que Vitória foi abastecida exclusivamente por água proveniente de Duas Bocas do ano de 1918 até pelo menos 1951. Ao longo do século XIX, com a expansão das lavouras de café, Cariacica notabilizou-se também por ser onde descia o café proveniente das colônias localizadas na região serrana do Espírito Santo e por onde subiam mercadorias que chegavam de outras partes do mundo pelo porto de Vitória. No Brasil Império, Cariacica registrou uma quantidade de população livre e de escravos superior à encontrada na capital, Vitória, que funcionava como centro político. Da “antiga Roças Velhas dos Jesuítas” às fazendas escravocratas do século XIX, a produção agrícola foi a base de sustentação do município. O Solar Barão de Monjardim, por exemplo, hoje um museu em Vitória, era a casa grande do presidente da província do Espírito Santo, que possuía muitas de suas terras e escravaria em Cariacica, especificamente em Itaquari.
22 MERLO, 2004, p.143-4.
O município de Cariacica foi oficialmente reconhecido em 16 de dezembro de 1837 e denominado como freguesia de São João Batista de Cariacica, sem igreja e sem padre. Somente em 30 de dezembro de 1890, Cariacica foi desmembrada do município de Vitória. Embora o município conte com essas duas datas ligadas aos processos políticos para suas comemorações, é no 24 de junho, a data do padroeiro, que o cariaciquense comemora a emancipação de Cariacica, homenageando um homem que ficou conhecido pelos católicos como um mártir da justiça e da verdade e que é o padroeiro de mais cinco municípios no Espírito Santo. Embora a construção da Igreja matriz fosse uma exigência oficial da estrutura administrativa do Brasil Império (1822-1891), a inauguração do templo não acompanhou a criação da freguesia. Em 1839 foi ordenada a construção do templo, contudo, a obra iniciou-se somente em 1845 e foi entregue ao público em 1851, depois de muitos esforços do padre italiano frei Ubaldo Civitella di Trento. Segundo o jurista Omyr Leal Bezerra, o art. 1º da Lei nº 6, promulgada pelo presidente de província, em 1839, “ordenava a imediata construção, que só veio a ser realizada seis anos depois, em 1845, pelo padre italiano Civitela do Trento”.23 No entanto, segundo o relatório do presidente da província Antônio Pereira Pinto, de 1848, havia ainda “desintelligencias entre seus habitantes á respeito do lugar mais apto para edificar-se a igreja”. Como forma de resolver o conflito, Pinto descreve para o novo presidente de província que “uma chapada, que se descobre perto do lugar denominado - Água-fria - é muito conveniente para esse fim por ser o meio, mais ou menos dessa povoação”.24 Enquanto que o frei capuchino de Cariacica, Ubaldo de Civitella de Trento25 , encontrava dificuldades com a construção da igreja, assim como a de Itapemirim, o presidente da província descrevia que “a do Queimado, vae tambem tendendo para a sua
23 BEZERRA, 2009, p.51. 24 PINTO, 1848, p.14. 25 Segundo informações da professora Sonia Maria Demoner, colocadas em nota produzidas por Luiz Guilherme dos Santos Neves para a 3ª edição do livro de Affonso Claudio,de 1979, o “Frei Ubaldo de Civitella de Trento, originário da província italiana dos Abruzzos, chegou ao Brasil em junho de 1847. No mesmo ano foi designado para a província do Espírito Santo e encarregado da catequese e civilização dos indígenas. Aqui missionou algum tempo junto com o frei Gregório de Bene. Em 1848 assumiu na freguesia do Rio Doce o aldeamento de Linhares. No ano seguinte foi nomeado vigário da freguesia de Linhares. Em 1850, indo a negócios de sua paróquia, caiu doente, atacado de febre amarela, tendo falecido em 16 de junho” (ROSA, 1999, p.87). Outra nota informa sobre “o ofício de 22 de setembro de 1849 ao comandante do vapor Guapiaçu, solicitando passagem para a corte para os missionários frei Ubaldo e frei Gregório” (ibidem, p.89).
conclusão pela constancia, e actividade de Frei Gregorio de Bene, a cujo ardor apostolico deve-se o seu começo”.26 No contexto da Revolta do Queimado (1849), o transporte por canoas pelo rio Santa Maria era uma atividade bastante lucrativa e permaneceu como tal ainda no início do século XX, resistindo à substituição do transporte fluvial pelo terrestre, por causa da precariedade das estradas. Sempre que as fortes chuvas faziam o rio transbordar deixavam as estradas em péssimas condições, os canoeiros do rio Santa Maria dominavam o sistema de transporte. No recenseamento de 1870, foram registrados os seguintes números: Paróquia de São Pedro de Itabapoana 5.691 almas; paróquia de São Mateus 4.657 almas; paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Viana 4.649 almas; Paróquia de Nossa Senhora da Vitória 4.361 almas; paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Serra 4.294 almas; paróquia de São José do Queimado 3.385 almas; (...) paróquia de São João de Cariacica 1.157 almas.27 Por meio do transporte fluvial e dos tropeiros muitas mercadorias chegavam aos “sertões” capixabas pelo rio Santa Maria da Vitória, por onde também se escoava a produção agrícola que chegava ao porto de Vitória, tendo o Porto das Pedras como entreposto. Assim, os fluxos de mercadorias e de pessoas indicam uma integração econômica, social e cultural entre as regiões de Cariacica, Serra, Vitória e Santa Leopoldina. Entretanto, no início do século XX, a construção da estrada que liga Cariacica a Vitória, posteriormente unida ao trecho entre Santa Leopoldina e Cariacica, e a Ponte Florentino Ávidos, passou a ligar as praças comerciais de Santa Leopoldina e de Vitória, reduzindo o transporte fluvial e o papel dos tropeiros. Entre 1900 e 1930, diretamente conectada ao município de Cariacica, Santa Leopoldina foi um “importante empório comercial e um dos maiores centros de atividade tropeira do Estado”28. A primeira exportação de café no Espírito Santo ocorreu em 1812 e a posição de Santa Leopoldina como centro tropeiro relaciona-se com o crescimento da produção de café em fazendas localizadas na região serrana, em Vitória, em Serra e também em Cariacica. Porém, enquanto Santa Leopoldina foi perdendo expressão econômica, com a BR-101, Cariacica passou a fazer parte do corredor que conecta diversas regiões do estado e do país e hoje é conhecida por ser um “porto seco” que
26
PINTO, 1848, p.15. 27 DAEMON, 2010, p.537-8. 28 MORAES, 1989, p.92.
atende às necessidades logísticas da atividade de exportação e importação na região metropolitana da Grande Vitória.
João Bananeira como grito de liberdade no passado escravista
Procissões e comemorações religiosas cristãs povoam a memória e a história do município de Cariacica. As datas de festas do calendário religioso da Igreja Católica eram esperadas pela população brasileira durante o período colonial (1500-1822) e também durante o Império (1822-1889). Há séculos, o ponto alto do calendário religioso capixaba é o dia de Nossa Senhora da Penha, padroeira do Espírito Santo. Nesse dia, acontece a tradicional Festa da Penha no Convento da Penha em Vila Velha, que atrai moradores de diversas regiões. Entretanto, para os cariaciquenses, em especial para os que habitavam áreas próximas às serras capixabas, havia muita dificuldade para se deslocar até o Convento da Penha. Assim, a tradicional Festa de Roda D’água durante os festejos da Penha é uma forma de superar o obstáculo da distância e manter a tradição religiosa. Durante a escravidão, havia irmandades, procissões e rituais de brancos separadas da dos negros. Neste contexto, aparece a figura do João Bananeira, caracterizado por ser uma espécie de disfarce para escravos, fugitivos ou não, que não queriam ser identificados durante os festejos. O disfarce feito com máscaras coloridas, tecidos de chita e folhas secas de bananeira materializavam o anseio de liberdade daquelas pessoas que sofriam o peso da escravidão e do preconceito racial. João Bananeira é cultura de Cariacica, é um grito de Liberdade.
Explosão demográfica e crescimento desordenado do município de Cariacica
A memória dos brasileiros que viveram na década de 1980 encontra-se marcada pela estagnação econômica, pelos elevados índices de inflação e por problemas relacionados à dívida externa, à concentração de renda e à diminuição da renda por habitante. De 1980 a 1989 o crescimento do PIB não acompanhou o crescimento populacional e a inflação chegou a 1.157,6% ao ano. Tal quadro beneficiou especuladores e parcelas da população que podiam se dar ao luxo de viver de juros bancários, gerando inclusive na memória de muitos a ideia de que a democracia trouxe desordem social e que
a ditadura militar seria um período de prosperidade e de bem-estar social que não possuía nenhuma relação com aquela realidade dos anos 1980.29 Entretanto, a explicação da crise econômica dos anos 1980, ou seja, do quadro de miséria e exclusão social que repercutia em altos índices de violência característicos deste período, deve ser buscada em aspectos conjunturais e também na política econômica adotada durante o período da Ditadura Militar. Na década de 1950 o setor primário compunha 60,1% da economia e despencou para 29,9% em 1980, ou seja, até meados do século XX a agricultura era a principal atividade econômica do país e a maior parte da população vivia no campo até a década de 1970. Somente a partir dos anos 1970, após anos de queda nos preços do café, que a população urbana ultrapassou a população rural no Brasil. A evolução demográfica capixaba apresentava um perfil majoritariamente rural até a década de 1970, quando a população do campo, apesar de não perceber um aumento populacional da mesma envergadura que a urbana, ainda continuava crescendo em menor proporção. Nota-se que a queda da quantidade de pessoas estabelecidas no campo coincide com a política de erradicação dos cafezais, que se encerra em 1967, quando a curvatura do gráfico declina. A concentração populacional a partir daí passou a se localizar nos municípios de Cachoeiro de Itapemirim, Cariacica, Vila Velha e Vitória. Os migrantes foram atraídos em grande parte pelo sonho do trabalho na “cidade grande”.30 A migração rural e o inchaço urbano – termo que ressalta não só o aspecto do crescimento, mas a forma como o mesmo se deu, ou seja, sem levar em consideração a questão social – têm suas raízes no programa de erradicação dos cafezais, iniciado em 1962 e intensificado nos anos de 1966 e 1967. Esse quadro de crise na lavoura foi reforçado pela exaustão dos solos menos férteis e pela impossibilidade de expansão da fronteira agrícola. A modernização, articulada com o capital internacional, não se preocupou em dar condições de incorporação da massa de trabalhadores nos territórios que as receberam. Pelo contrário, a lógica de acumulação capitalista vigente promoveu a reestruturação econômica capixaba com foco na industrialização sob o comando do “grande capital” de forma extremamente excludente.
29 LEMOS, 2014. 30 SIQUEIRA, 2010.
Crescimento populacional do Espírito Santo (1950-1991)
FONTE: Criado por Amarildo Mendes Lemos a partir de dados de MORAES, 1999, p. 51-2. Reforçando nossa argumentação, a tabela 1 permite verificar essa transformação no município de Cariacica, e evidencia como a população dessa região mais que duplicou em uma década. Isso explica a sobrevivência de tradições rurais no meio incompletamente urbanizado que guarda uma grande parte de área rural e a mentalidade dessa população que já nasceu nos espaços mais urbanizados, mas que conserva raízes rurais. Muitas dessas pessoas vieram do campo pela impossibilidade de continuar a vida no campo como seus antepassados e, por não terem condições de se alfabetizarem, tiveram que se submeter a serviços subalternos e mal remunerados como condição de sobrevivência. Assim, muitos bairros surgiram de ocupações irregulares (“invasões”), aterros de mangue ou locais com nenhuma infraestrutura, ou seja, ausência de saneamento básico, água encanada, energia elétrica, escolas, calçamento, praças, enfim sem as condições mínimas de dignidade do ser humano. O projeto de modernização levado a cabo durante esse período de explosão demográfica atendeu aos requisitos de grandes proprietários de terras e de grandes empresários e não se preocupou em criar condições para receber essa massa populacional oriunda do campo.
Tabela 1 - Evolução demográfica do município de Cariacica
Ano 1878 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2010 População 5.31831 15.228 21.741 39.608 101.422 189.171 274.532 348.738
31 Sendo 1.174 escravizados.
Entre os efeitos da modernização promovida na ditadura militar está a violência, identificada no crescimento da criminalidade. Acompanhando outros indicadores, as taxas de homicídios de jovens entre 15 e 29 demonstram o agravamento do quadro de violência. Nas principais regiões metropolitanas do país esse índice aumentou ao longo da década de 1980 e no Espírito Santo não foi diferente, algumas de suas cidades passaram a figurar entre os municípios com muito elevado índice de violência. E pior ainda, a Região Metropolitana da Grande Vitória chegou a alcançar na década de 1990 o posto de cidade mais violenta do país. Isso fica evidente quando até mesmo um coronel da Polícia Militar, o cel. Ayres chegou a afirmar: “o grave problema de nosso país ainda é a estrutura social”.32 Em 2018, encontramos declaração parecida do general Braga Netto para explicar a incapacidade de resolver o problema da violência no Rio de Janeiro somente com o uso da força:
Para que esse resultado se estenda e seja perene, será preciso, como também propomos, a adoção de outras iniciativas por parte de setores do governo e da sociedade, como projetos de inclusão social e oferta de serviços públicos. Segurança pública é uma demanda que não se resolve apenas com ação policial.33
Por isso, reiteramos, o problema da violência em Cariacica exige ação social, educação, saúde, saneamento, áreas de lazer, trabalho digno, enfim de que os direitos humanos sejam respeitados. Assim, conseguiremos apagar o estigma que aflige essa terra tão querida!
Considerações finais
O brasão do município busca representar os principais elementos constitutivos da formação econômica e simbólica de Cariacica. Nele estão representados o patrimônio natural identificado por meio do Moxuara, a agropecuária (banana, cana-de-açúcar e gado) e a indústria. Na sua criação original, em 1972, a bandeira do município não incluiu o Moxuara como símbolo, o que só veio a ser acrescido em projeto de lei de 1992 que criou o brasão do município em conformidade com a heráldica. No brasão, lemos ainda a data de emancipação do município, 30 de dezembro de 1890. O assassinato do Padre Gabriel, liderança religiosa que veio da França e atuou ativamente nos movimentos de reivindicação de moradia em Cariacica, é uma marca do conflito social dos anos 1980 e 1990. Por sua luta e pela forma covarde como foi
32 CORONEL atribui onda de crimes à estrutura social. A Gazeta. Vitória. 07 set. 1986, p.23. 33 RANGEL; VETTORAZZO. Só ação da polícia não basta contra violência, afirma interventor no RJ. Folha de São Paulo, 12 mar. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/03/so-acao-da-policia-nao-bastacontra-violencia-afirma-interventor-no-rj.shtml, acesso em: 14 out. 2021.
assassinado, Padre Gabriel foi homenageado na criação de um bairro do município que recebeu o seu nome em reconhecimento ao seu clamor por justiça social e pela dignidade do ser humano. Recentemente, em 2019, Padre Gabriel recebeu uma linda homenagem da APAE-Cariacica, no Carnaval de Congo de Roda D’Água. Com uma banda liderada pelo mestre de capoeira e de congo Jeffinho (ACAPOEIRA), os alunos da APAE-Cariacica carregavam um estandarte com o rosto de Padre Gabriel homenageando essa importante liderança religiosa, cuja luta merece ser continuada, uma vez que o direito à moradia digna está longe de ser alcançada no município. Assim como São João Batista e como o João Bananeira, Padre Gabriel é mais um símbolo dos sonhos que perpassam os moradores dessa região que sofrem com tanta desigualdade. Esperamos contribuir ter contribuído para introduzir algumas referências básicas para o leitor sobre a trajetória desse município para que o mesmo possa percorrer o acervo imagético do município ciente de que se trata de uma região com inúmeras possibilidades de leitura. Esse ambiente incompletamente urbanizado ou incompletamente rural é o terreno que foi conquistado para a “chegada do homem branco”, mas que conservou parte da cultura indígena na alimentação, no modo de falar e nos topônimos. É também berço para muitos forasteiros que perderam suas raízes em Minas Gerais, na Bahia, no Rio de Janeiro e no interior do Espírito Santo ao longo do século XX e que hoje são tão cariaciquenses quanto as famílias tradicionais cujas origens remontam ao período colonial. É um retrato do Brasil no que há de pior, devido à desigualdade, ao patriarcalismo e ao racismo, mas também é uma imagem dos desafios que temos a superar e do quanto já avançamos em relação a isso ao longo de nossa história.
Cronologia
1759 - Expulsão dos Jesuítas do Brasil e, portanto, dos territórios que hoje compreendem Cariacica. 1817 – Com Francisco Alberto Rubim, governador do ES, começou a estrada ligando o ES a MG, começando por Itacibá. 1829 a 1833 - Registros dos primeiros imigrantes vindos da Europa com a missão de fazer a “limpa da estrada que passando por Itacibá devia comunicar-se com Minas Gerais”. 1837 - Reconhecimento oficial da freguesia de São João Batista de Cariacica como “termo da capital”. 1839 - Ordem de construção da Igreja da freguesia São João Batista de Cariacica. 1845 - Início da construção da Igreja da freguesia de São João Batista de Cariacica pelo padre italiano Civitela do Trento. 1851 - Inauguração da Igreja da freguesia São João Batista de Cariacica. 1890 - Emancipação Política – “Villa de São João”. 1894 - Inauguração do serviço de canalização da água na vila de Cariacica, também chamada Água Fria desde o período do Império. 1904 – Inauguração da Estação de Porto Velho de onde saiu o primeiro trem da Estrada de Ferro Vitória a Minas. 1910 - Inauguração da Estação de Cariacica 1911 - Substituindo a navegação fluvial pelo rio Cariacica (hoje chamado Bubu) inaugurou-se a primeira rodovia a atingir a capital, a mais antiga do estado do ES. 1913 - Inauguração do serviço telefônico 1914 - Inauguração da iluminação elétrica na vila de Cariacica e 4 lâmpadas em Porto de Cariacica (desativadas em 1926). 1943 - Inauguração de Posto Telegráfico e Estação de Itacibá situado no Município de Cariacica. Serviu às Oficinas de Carros e Vagões. 1945 - Inauguração da Estação de Flechal ou Flexal que desprezou o leito anterior que passava por Cariacica-Sede. 1947 - Inauguração da Estação Vasco Fernandes Coutinho. Nome anterior “Alfredo Maia”. 1955 - Inauguração de posto telegráfico e Estação Ferroviária de Santana.
Referências
BEZERRA, Omyr Leal. Cariacica: resumo histórico. Cariacica: Ipedoc, 2009. CONDE, Bruno S. Depois dos jesuítas : a economia colonial do Espírito Santo (1750-1800). 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais. p. 173. 2011. DAEMON, Basílio de Carvalho. Província do Espírito Santo: sua descoberta, história cronológica, sinopse e estatística. 2.ed.Vitória : Secretaria de Estado da Cultura; Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2010. LEMOS, Amarildo M. Agora é Max: a trajetória política de Max Freitas Mauro (1970-1990). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais. Vitória. p. 311. 2014. LEMOS, Amarildo M. Modernização econômica e conflito social no Espírito Santo na década de 1980”, in L. C. M. Ribeiro et. al. (Orgs.), Modernidade & Modernização no Espírito Santo. Vitória, Edufes, 2015. MERLO, M. S. Insurreições escravas em Vitória (ES), séc. XIX: algumas considerações. Dimensões - Revista de História da Ufes, Vitória, v. 16, p. 141-148, 2004. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2649. MORAES, Ornando. Por serras e vales do Espírito Santo. A epopéia das tropas e dos tropeiros. Vitória: Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 1989. MORAES, Paulo Stuck. Evolução Demográfica do Espírito Santo (1940-1991). Vitória: Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, Cadernos de História, nº17, 1999, p.51-2. NOVAES, Maria Stella de. Lendas Capixabas. Vitória: Secretaria Municipal de Cultura, 2017. OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. 3. ed. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo; Secretaria de Estado da Cultura, 2008. ROSA, Afonso Cláudio. Insurreição do Queimado: episódio da história da província do Espírito Santo. Vitória: FCAA, 1999. PINTO, Antônio Pereira. 1848. Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Antonio Pereira Pinto entregou a Presidência da Província do Espírito Santo ao Exm. Sr. Commendador José Francisco de Andrade Almeida Monjardim, Segundo Vice-Presidente da mesma - 1849 (30/11/1848). Disponível em <https://ape.es.gov.br/Media/ape/PDF/Relatorios/ANTONIO%20PEREIRA%20PINTO%20%E2%8 0%93%20Presidente%20da%20Prov%C3%ADncia.pdf> SIQUEIRA, Maria da Penha S. Industrialização e Empobrecimento Urbano: o caso da Grande Vitória (1950-1980). 2ª Ed. Vitória: Grafitusa, 2010. EFVM. Estrada de Ferro Vitória a Minas. Disponível em: <http://www.estacoesferroviarias.com.br/efvm/efvm.htm>.