O monumento existe para celebrar o passado. Sua grandiosidade é proporcional à importância daquilo que se deseja lembrar, eventos que parecem merecer o lugar das coisas eternas. Mas a modernidade se mostra incompatível com esse investimento: primeiro, ela cobra a consciência de que o sentido das coisas é produto de um tempo determinado, em seguida, impõe a ideia de que passagem desse tempo não conspira a favor da humanidade. Daí que o monumento já não garante uma presença minimamente estável daquilo que deveria ser lembrado, apenas demarca o espaço do que tende a ser esquecido. O que resta nele não é um sentimento compartilhado pelo passado, mas a autoridade de uma história oficial que recuperamos de forma um tanto burocrática. Nesse sentido, a memória do monumento é o avesso da memória afetiva. Uma é exuberante, a outra é afeita aos pequenos suportes. O espaço de uma se mede pelo tamanho, o da outra, pela intensidade. Uma é arbitrária, a outra é involuntária. Uma é apreendida como informação, a outra é vivenciada como experiência. Desmonumentalização é o resultado de um olhar que recusa tratar a história de uma cultura como protocolo: a viagem é uma experiência de alteridade rica demais para que esses lugares sejam abordados com a superficialidade do turismo. É preciso deter o olhar e buscar um diálogo mais efetivo. Num trabalho anterior, Souvenirs (2004-2011), Fernando de Tacca já havia se apropriado de objetos comprados em lojas de museus para inseri-los em narrativas tão pessoais quanto perturbadoras. Desta vez, ele se volta para objetos já desgastados por tantos registros e olhares apressados, para desconstrui-los em novas formas. Quando o excesso de exposição resulta em invisibilidade, a dissolução da imagem pode ser a condição necessária para a reativação dos sentidos, na dupla acepção do termo: o significado histórico desses espaços e a sensibilidade do corpo que nele se insere. Trata-se portanto de retirar o olhar de sua condição de submissão e automatismo, e de desmistificar o caráter impositivo dessa memória grandiosa. Benjamin que, em sua Pequena História convidava a
pensar não apenas a fotografia como arte, mas também a arte vista por meio da fotografia, já observava na redução de escala dos grandes edifícios algo que ajudava o homem “a assegurar sobre as obras um grau de domínio sem o qual elas não mais poderiam ser utilizadas”. Nestas fotografias, outros gestos dessacralizantes se sobrepõem: a edificação mais perene é registrada com o equipamento mais vulgar, uma câmera lomo de plástico, com construção e acuidade duvidosas, feita para não durar. Além disso, pela sobreposição de enquadramentos, as fotos decompõem as formas e afrontam a ordem de visibilidade que todo monumento, como imagem que também é, impõe ao olhar. A fotografia captada com a lente olho de peixe resulta num enquadramento circular que lhe é muito próprio, mas que tem antecedentes nas vivências do autor. Em um de seus ensaios teóricos sobre a fotografia, encontramos o relato sobre a casa de sua avó onde passou parte de sua infância. O desencadeador dessa narrativa é o único objeto que restou daquele lugar: o olho mágico da porta de entrada. Na semelhança das imagens que esses aparatos produzem – a olho de peixe e o olho mágico –, a memória do monumento recupera qualidades da memória afetiva. A história dos lugares que o autor visita reencontra uma forma marcante dos tempos de sua própria infância, e se torna alvo da curiosidade mais autêntica, como a da criança que também vê o mundo de baixo para cima, mas que nem sempre se rende à autoridade daquilo que lhe parece superior. Com sua câmera lúdica, Fernando de Tacca desmonta não apenas o protocolo dos monumentos, mas também o programa da fotografia. De uma só vez, recusa a fetichização da passado e da técnica para buscar formas mais autênticas de magia: aquela que permite recuperar da história o que nela permanece como latência, as tensões que os relatos oficiais tendem a recalcar. Magia que dá movimento às edificações mais sólidas, bem como ao tempo estático que elas pretendem impor. RONALDO ENTLER
“Sagrada Família, Barcelona, 2006”
“Felipe IV (de Pietro Tacca), Madrid, 2011”
“Plaza Mayor, Madrid, 2011”
“Museo Reina Sofia, Madrid, 2011”
“Brushstroke, de Roy Lichtenstein, Madrid, 2011”
“Arc de Triomphe, Paris, 2010”
“Tour Eiffel, Paris, 2010”
“Obelisco, Buenos Aires, 2008”
“Monte Alban, México, 2010”
“Monumento aos Candangos (de Bruno Giorgi), Brasília, 2012”
“Teotihuacán, México, 2010”
“Jardin du Luxembourg, Paris, 2012”
“Passage Vivienne, Paris 2012”
“Mirador,Torre Latinoamericana, México 2010”
“El Caballito ( de Enrique Carbajal), México, 2010”
“Floralis Generica (de Eduardo Catalano), Buenos Aires, 2009”
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Tacca, Fernando de (1954 - ) Texto: Ronaldo Entler Campinas: Anne, 2014 22 p., ilustrado ISBN 978-85-916467-0-8
Índice para catálogo sistemático: © Fotografia: Artes 770
Projeto Gráfico: Ivan Avelar Diretoria de Apoio à Produção Instituto de Artes/UNICAMP Gráfica: Silvamarts Tiragem: 250 exemplares FERNANDO DE TACCA é fotógrafo e professor no Instituto de Artes da UNICAMP. Foi contemplado com o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia (FUNARTE, 1984/2010) e a Bolsa Vitae de Artes 2002. Em 2006 recebeu o Prêmio Zeferino Vaz de Reconhecimento Acadêmico (Unicamp) e o Prêmio Pierre Verger de Ensaio Fotográfico (Associação Brasileira de Antropologia). Criador e editor da revista Studium. Contato: fernandodetacca@gmail.com Apoio: