O rei e o baião

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Gostaria que lembrasse muito de mim, que sou filho de Seu Januário e Dona Santana, que decantei os pássaros, os animais, os valentes, os covardes, os pobres, os beatos e o Nordeste. Gostaria que lembrassem que este sanfoneiro amou muito seu povo e o seu Nordeste

Luiz Gonzaga

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Paredes desenhadas da Casa de Forró, construida na década de 1980 por Luiz Gonzaga na fazenda Araripe, Exu/PE, onde nasceu – Fotos: Francisco Alemberg

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Bené Fonteles org.

O Rei eo Baião Ensaios

Antônio Risério Bené Fonteles Elba Braga Ramalho Gilmar de Carvalho Hermano Vianna Sulamita Vieira Ensaios Em Xilogravura

João Pedro do Juazeiro José Lourenço Francorli e Carmem Ensaio fotográfico

Gustavo Moura

Ministério da Cultura


DirEitos autorais

Bené fonteles© 2010 antônio risério© 2010 Elba Braga ramalho© 2010 gilmar de carvalho© 2010 Hermano vianna© 2010 sulamita vieira© 2010 João Pedro do Juazeiro© 2010 José lourenço© 2010 francorli e carmem© 2010 gustavo moura© 2010

coorDEnação EDitorial, PEsquisa, EDição E ProJEto gráfico:

Bené fonteles

EDitoração ElEtrônica, ProJEto gráfico E EscanEamEnto DE imagEns: rEvisão:

licurgo salustiano Botelho

sandra fonteles

consultor Para assuntos gonzaguEanos: colaBoraDorEs:

Paulo vanderley tomaz

carla Barreto e valberto cardoso

responsável pela difusão dos ritmos da música do povo nordestino, esse pernambucano de Exu, mestre sanfoneiro

foto Da caPa: chico

albuquerque (cortesia icca)

Xilogravura Da contracaPa:

cícero lourenço

filho de Januário e de Santana, professor de tantos talentos brasileiros, comparado aos nossos maiores músicos, villa-lobos, noel, Pixinguinha, Dorival caymmi, tom Jobim, soube com maestria assimilar os

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ritmos que a migração lhe apresentou, misturá-los e transformá-los numa música que representa a sonoridade e a sofisticação dos sons brasileiros. a fundação athos Bulcão sente-se

Dados internacionais de catalogação na Publicação (ciP) 78.071.1 r347 o rei e o baião / Bené fonteles (organizador), ensaios antônio risério ... [et al.]. – Brasília : fundação athos Bulcão, 2010. 380 p. : il. ; 30 cm. isBn : 978-85-88797-07-9.

honrada em ser a realizadora deste tributo ao “velho lua”, o eterno “rei do Baião”, luiz gonzaga! Brasília, novembro de 2010

1. Música - Biografia. 2. Cultura - Nordeste. 3. Antropologia cultural. I. Bené Fonteles. ii. antônio risério. Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Georgia Fernandes do Nascimento CRB1/2319

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Este livro é dedicado a meu pai José Ribamar,

que me ensinou a amar e admirar Luiz Gonzaga

(...) luiz respeita Januário luiz, tu pode ser famoso, mas teu pai é mais tinhoso E com ele ninguém vai, luiz respeita os oito baixo do teu pai! (...) luiz gonzaga / Humberto teixeira


XILOGRAVURA/COLAGEM –

Francisco de Almeida


sumário

Introdução

Juca ferreira .................................................................................................... 15

Apresentação

gilberto gil ...................................................................................................... 19

Grande Sertão, Gonzagas

Bené fonteles .................................................................................................. 25

Gonzagão

José lourenço | Ensaio Em Xilogravura ............................................................... 43

Banho de Lua no Solo da Sanfona

antônio risério ................................................................................................ 57

Ser Tão Gonzagueano

gustavo moura | Ensaio fotográfico .................................................................. 79

O repertório de Luiz Gonzaga

Elba Braga ramalho ....................................................................................... 115

O Sertão Gonzagueano

João Pedro do Juazeiro | Ensaio Em Xilogravura ................................................ 163

Luiz Gonzaga Remix – CRIAÇÃO E APROPRIAÇÃO DAS SONORIDADES SERTANEJAS

gilmar de carvalho ........................................................................................ 173

Nascimento, Vida e Morte de Luiz Lua Gonzaga

francorli e carmem | Ensaio Em Xilogravura ..................................................... 189

O Sertão em Ritmo de Baião

sulamita vieira ............................................................................................... 213

Iconografia gonzagueana ................................................................................. 235 Invenção do Nordeste

Hermano vianna ............................................................................................ 301

Eu e o Rei - Um depoimento

Bené fonteles ................................................................................................ 311

Indicações para compreender e sentir o universo Gonzagueano ............ 319

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Introdução

Juca Ferreira

Ministro da Cultura

Esta homenagem coletiva orquestrada por Bené fonteles é mais um

passo para manter vivas no coração dos brasileiros a pessoa e a obra de luiz gonzaga, o rei do Baião. Pernambucano e nordestino, tornou-se ainda jovem um símbolo do país inteiro, quando o baião passou a ser o estilo musical mais tocado no Brasil, entre os meados das décadas de 1940 e 1950. o baião foi sucedido pela Bossa nova, pela Jovem guarda, e recuperado para espaços mais “nobres” pelo tropicalismo, mas nunca deixou de ser ouvido, tocado e composto. É ainda hoje um estilo musical que em qualquer lugar do mundo é reconhecido como brasileiro, tanto quanto o samba. luiz gonzaga foi um verdadeiro moinho, uma usina de processamento onde a memória coletiva de sua terra e de sua gente era continuamente recuperada, e recriada em forma de canções. os pássaros e as plantas, os modos de vestir e os modos de falar, os trabalhos e os folguedos, a ameaça da seca e a alegria da chuva. a música nordestina teve grandes nomes antes dele, mas gonzaga surgiu num momento privilegiado em que a indústria do disco e a rede radiofônica estavam no ponto ideal para receber um talento como o seu, capaz de unir o país de ponta a ponta. como todo grande artista, luiz gonzaga foi capaz de tomar uma criação coletiva e torná-la universal; de absorver toda a vivência cultural de centenas de milhares de pessoas e torná-las objeto de admiração e de afeto para dezenas de milhões. o Brasil é um país tão extenso e tão diverso que precisa ser o tempo todo apresentado a si mesmo. luiz gonzaga apresentou ao Brasil um nordeste que o Brasil desconhecia. numa época em que a imagem nordestina era associada apenas à seca e ao cangaço, gonzaga foi abrindo aos poucos o leque de uma obra gigantesca que, sem ignorar a

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seca e o cangaço, revelava um mundo cheio de novidades e de belezas para o Brasil que o escutava ao pé do rádio. Poucos terão cantado tão bem quanto ele e seus parceiros os dramas do povo nordestino; mas acima de tudo foi a alegria de viver do nordestino que ele revelou. muitos brasileiros aprenderam a amar e respeitar o Nordeste depois de serem cativados pela voz confiante de Luiz Gonzaga, e pelo seu sorriso, que exprimia uma inabalável alegria de viver. neste livro, um grupo de estudiosos e artistas se reuniu para interpretar o fenômeno do surgimento do baião e de seu criador. antonio risério registra o caráter múltiplo do nordeste, entrecruzamento de diferentes paisagens físicas e antropológicas, que produzem uma desconcertante variedade de formas culturais, todas distintas, e todas típicas da região. De tantos em tantos quilômetros, um mundo diferente. gonzaga surgiu como representante típico da massa cabocla do sertão. Destinado a plantar no coração da metrópole as sonoridades, os versos e a memória coletiva de um povo que nunca sonhava em ir para a cidade, e só o fazia quando o seu mundo começava a se acabar. Elba Braga ramalho enfoca o repertório de gonzaga e lembra essa divisão entre dois fluxos de sertanejos: o que foge para as cidades por causa da seca, e o que retorna mal começam as chuvas. um vai-e-vem incessante de gente, uns numa “triste partida” constante, outros num retorno festivo. E sua análise musical examina as peculiaridades de ritmo, de melodia e de entonação que deram ao baião de gonzaga as características espontâneas do canto popular, temperadas pelas sutilezas musicais do sanfoneiro, que soube assimilar influências de tudo quanto ouviu e aprendeu antes de iniciar-se como compositor. o pesquisador gilmar de carvalho mostra como a música de gonzaga absorve toda uma cultura rural que inclui o romanceiro, a cantoria de viola, folguedos e manifestações de religiosidade popular. E que transcende o próprio nordeste, trazendo para seu universo de ressonâncias tradições orais de muitos pontos do Brasil. sulamita vieira reconstitui, apoiada em farta pesquisa, a carreira pessoal de gonzaga e o modo como o baião foi se espalhando em círculos concêntricos, a partir do rio de Janeiro, cidade onde Gonzaga e Humberto Teixeira deram forma definitiva ao gênero que os consagrou. O baião surge como reflexo das migrações, das trocas culturais entre mundo urbano e mundo rural, e da história pessoal do músico a quem coube compor um cancioneiro onde essas questões complexas são refletidas de maneira simples e comunicativa. Já o antropólogo Hermano vianna analisa a modernidade de gonzaga,

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seu uso consciente e inovador da instrumentação e do figurino, e seu papel na criação e consolidação de uma identidade nordestina, forjada ao longo do século 20 por uma série de transformações políticas e culturais do país. Aqui está presente também uma iconografia que registra a transformação do visual de Gonzaga, criando a imagem que ficou famosa, com chapéu de couro e gibão. A mais completa reconstituição, até agora, do processo de composição da imagem do artista, acompanhando sua presença em peças publicitárias, nos palcos, nas rádios, ao lado de outros cantores e de personalidades do Brasil de seu tempo. suas raras fotos de terno e gravata, e as numerosas imagens com chapéu de couro, quando ele era sempre o centro das atenções pelo Brasil afora. além, é claro, de suas capas de discos, centradas em sua imagem e nos elementos rústicos da vida sertaneja. Afirmação cheia de auto-estima de um migrante em terra alheia, determinado a orgulhar-se daquilo que lhe diziam ser motivo de constrangimento. Afirmação positiva de uma cultura que era vista sempre com um viés pejorativo. Afirmação do artista, visto e ouvido por multidões, e capaz de dizer a essas multidões que não têm motivo para se envergonhar do que são. E no campo visual estão também as fotografias de Gustavo moura captando a aura do sertão e a alma do sertanejo; as reproduções de obras de artistas plásticos sobre gonzaga, inclusive em locais públicos; e as xilogravuras de João Pedro do Juazeiro, francorli e carmem, e José lourenço. E finalmente temos os textos de Bené Fonteles. Por um lado, a análise do processo formativo do povo em que gonzaga nasceu, da sua própria história pessoal desde a infância, e principalmente o processo de formação de sua música, uma música de migrante, música do “Brasil da rio-Bahia”, a famosa estrada em que a via-crucis do pau-de-arara nordestino foi tantas vezes encenada. Por outro, um depoimento pessoal, uma história de vida que de certa forma simboliza a história pessoal de cada um de nós, fãs de luiz gonzaga, contando como a sua música entrou em nossas vidas e as modificou para sempre. Bené narra sua descoberta da música e depois a sua amizade com o rei do Baião, num relato cheio de afeto e de admiração, ao mesmo tempo, pela grandeza e pela simplicidade de “seu luiz”. neste livro vamos encontrar gonzaga e sua música, gonzaga e as imagens do seu sertão, gonzaga e a cultura oral que ele absorveu e reprocessou como poucos. Está aqui o resultado da história de um migrante humilde que se tornou, em certo momento, o cantor de todo o país.

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A p r e s e n ta ç ã o

Gilberto Gil

O grande artista e sua obra,

o extraordinário impacto de um criador original sobre a vida e a cultura do seu tempo, as ondas de choque desse impacto sobre o futuro – o tempo do criador para além da sua própria vida. tudo isso começa, finalmente, a ser bem estabelecido em relação a Luiz Gonzaga e este livro está a serviço dessa reescritura, dessa reinscrição. através de uma série respeitável de projetos musicais, literários, teatrais e museais, ao longo das duas últimas décadas, vamos vendo se consolidar a memória do rei do Baião, no gráu de importância, abrangência e profundidade que ela merece e carece ter entre nós. aos poucos, vamos devidamente instalando mais um dos nossos grandes mestres, para mais além do nosso panteon popular, no Panteon da nação. no caso de luiz gonzaga, os discos, os livros, as casas de cultura, os trabalhos jornalísticos e toda uma variedade de registros documentais sobre a vida e a obra do maior de todos os artistas populares do nordeste, têm proliferado em quantidade e qualidade, configurando, nos últimos anos, o que se pode considerar como um comovido mutirão reverencial bem a calhar, aliás, a considerar o grande número de santos, beatos, heróis populares, mitos e mundos encantados reunidos na cultura nordestina que o nosso sanfoneiro representa. associando-se a esse esforço reverencial aqui está este livro, reunindo textos poéticos de Bené fonteles, ensaios arrojados e arrebatados de antônio risério e Hermano vianna, trabalhos de profunda imersão nas águas da antropologia, da sociologia, da lingúistica, da musicologia e da mitologia do novo mundo. Escorado na terra firme das obras de autores como Euclides da cunha, guimarães rosa, gilberto freyre, câmara cascudo, Darcy ribero, ariano suassuna e múltiplos outros escritos de estudiosos da civilização Brasileira, clássicos ou contemporaneos, este livro serve de cacimba, caixa 18

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d’água, caminhão-tanque, quem sabe mesmo, de grande açude : recolhe-se em suas páginas “um rio são francisco inteiro” de generoso pensamento e ousada reflexão sobre esse mundão sertanejo, sobre esse Brasil interiorano e o que tem brotado daí, a regar o solo imenso da nossa cultura. Escorre por essas páginas uma chuvarada de auto-estima e orgulho do país que criamos, com esse manancial inesgotável do povo do sertão desembocando na urbis brasileira, juntando-se às águas que formam o grande lago da identidade nacional. Este livro armazena uma boa parte do que a nossa alma já pode evocar como “espírito brasileiro”, dando conta da proporção arcana dessa vertente civilizadora que é a cultura nordestina, em especial no seu viés popular, o mais importante, aquele no qual se insere, justamente, a obra gonzaguiana. o “rei e o Baião” traz, no entanto, como livro devocional, para além dessa impressão digital literária e cientifica de suma importância, um outro elemento de extraordinária relevância para a qualificação do registro da memória de Luiz Gonzaga: o estrato, ou melhor, o extenso pictórico, a paisagem iconográfica da presensa histórica desse artista junto ao seu povo. E é aî que se encontra a originalidade autoral mais aguda deste livro, um livro, primeiro, para os olhos, um livro de retratos. De fotos de albuns de família, de fotos de capas de discos, de fotos de capas de brochuras de gravuras de cordéis, de fotos de desenhos e de rabiscos, de fotos de cartazes artísticos e publicitários, de fotos de ensaios`a moda da moda de hoje em dia, (quem diria!) , tudo isso ainda lá, no seio, no meio do século passado, quando o nosso primeiro artista pop em solo nativo (como bem observa caetano veloso) se prestava aos primeiros experimentos, se entregava aos primeiro gestos, se deixava esculpir em etátuas gráficas, pioneiras entre nós, erguidas em praças, telas de cinema, salas de visita e salas de aula (nos cadernos de fotos das meninas do rio, de fortaleza, de salvador e do Recife!). Afirma-se, aqui, a maneira pela qual a nova imagem mais o novo som do mulato catingueiro passavam a desenhar os traços de uma recente aliança entre a cultura de massas brasileira, em seu nascedouro, e a sua mabaça norteamericana, já dona do mundo, depois da vitória na ii guerra mundial. a esse propósito, o livro não esquece de lembrar a semelhança dos perfiís de Luiz Gonzaga e Carmen Miranda, nossos primeiros astros no firmamento pop.

XILOGRAVURA – Nilton Cruz / 45 anos Projeto Gravura de Inverno (SE)

Este livro é um livro bem ao feitio do seu autor, Bené fonteles, um artista de marcante viés poético mas entregue a todas as musas com o ardor do discípulo aplicado: diante de um gigante, de um titan do agreste, de um cabra da peste como o mestre de Exu, não poude ficar indiferente e, num rasgo reverente, dedicou o melhor do seu talento a nos confecionar e nos entregar este presente. a efervecente cultura brasileira, como(vida) agradece. 20

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Naquela época, eu percebia que todo cantor regional, todo cantor estrangeiro

Gonzaga, para se comunicar melhor com esse seu povo sertanejo, criou o segundo

tinha uma característica própria. O gaúcho, aquela espora, bombacha, chapelão. O

ícone pop da cultura brasileira, depois do de Carmem Miranda, ao fundir a roupa de

caipira tinha lá o seu chapéu de palha. O carioca tinha a famosa camisa listrada

couro do vaqueiro nordestino, dura e resistente, como uma segunda e segura pele

e o chapéu-coco. Os americanos, os cowboys. Quando Pedro Raimundo veio pra cá vestido até os dentes de gaúcho, eu me senti nu. Eu digo: “Porque o Nordeste não tem a sua característica? Eu tenho que criar um troço.” Só pode ser Lampião. Apanhei por

usada contra as intempéries e agruras do juremal da caatinga, com a roupa lendária do cangaceiro Virgulino Lampião, a quem tanto admirava. E apesar das críticas sofridas por Gonzaga, pois as pessoas enxergavam aí um tributo ao controverso cangaceiro, ele persistiu bravamente na imagem escolhida de cangaceiro, para afirmar

causa de Lampião. Eu digo: “Eu vou usar o chapéu de Lampião.” Aí escrevi para a mamãe

a luta por uma identidade cultural. E deu certo, porque à frente da iconografia

pedindo um chapéu de cangaceiro com toda urgência. No primeiro portador que ela

vigorosamente assumida, estava uma força musical potente e desconhecida. Mais

teve, ela mandou o chapéu.

tarde, Gonzaga acrescentou ao seu chapéu a coroa de rei que o transformou, em

Rapaz, quando eu botei o pé no palco da Rádio Nacional só faltaram me matar de raiva. “Como é que você, um mulato formidável, um artista fabuloso, se passa por um negócio desse? Reviver o cangaço, cangaceiros, facínoras, ladrões, saqueadores?” Eu disse: “Não se trata disso. É outra coisa.” Eu agora sou um cangaceiro musical. Aí fiquei com essa característica.”

cultura de uma vasta região. Curiosamente, numa foto de divulgação da primeira formação do conjunto musical de Gonzaga, enquanto ele vestia a roupa iconográfica e simbólica de sua cultura sertaneja, os outros músicos, Catamilho (zabumba) e Zequinha (triângulo), vestiam roupa de gala muito mais apropriada para se apresentar num conjunto musical

Luiz Gonzaga O Pasquim / 1972

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definitivo, no soberano não só de um ritmo, mas da representação simbólica da

americano no antigo Cassino da Urca nos anos 1930 ou 1940. Bené Fonteles

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O nordestino reconhece no meu trabalho o amor pela terra, o carinho e o respeito por suas coisas, por suas tradições. (...) Em minhas canções eu procuro sempre o caminho do povo Luiz Gonzaga

Grande Sertão, Gonzagas Bené Fonteles

XILOGRAVURAS

João Pedro do Juazeiro

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“O sertão é Ele” Câmara Cascudo

O Brasil ainda é sertanejo. mesmo depois de todo o processo desumano

de urbanização, o país ainda é caboclo. Da amazônia ao sertão catingueiro. caboclo, do cerrado aos baixios das águas pantaneiras. caipira, das gerais mineiras às plagas paulistas. É caiçara e caipira habitando grande parte da mata atlântica. E é gaúcho nos campos sulinos e nos pampas. o povo nordestino faz arte brincando com a sanfona, instrumento trazido ao nordeste pelos mascates judeus, que vendiam suas especiarias no lombo de jegues e cavalos pelas estradas poeirentas do sertão. foi com um desses caixeiros-viajantes, um português, que o lavrador e sanfoneiro Januário ouviu, pela primeira vez, tocar numa sanfoneta os motivos musicais de danças e cantos populares do além-tejo.(1) certamente, canções originárias dos povos sefarditas, judeus da península ibérica, que se espalharam depois pela áfrica e pelo oriente médio. Dos portugueses, também nos veio a influência mourisca presente nos cantos de aboios dos vaqueiros e nos improvisos de repentistas violeiros. o povo sertanejo anima-se durante o ciclo das festas juninas, pagãs como nos tempos primevos, em que o profano se mistura ao sagrado, num misticismo alegre e espontâneo, seguindo o fluxo natural da vida. nessas festas de celebração da colheita, no sertão nordestino, além de mesa farta, é farta também a comunhão, entre fogueiras, fogos de artifícios e quadrilhas. foi nesse cenário que surgiu um artista popular que se tornaria signo e mito a partir dos anos 1940. Um rei cuja figura iconográfica persiste na memória musical do país: o artista viajante, o rei do Baião.

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luiz gonzaga torna-se não só rei de um ritmo, o baião, mas de toda uma rica cultura regional que passa a ser adotada nas festas populares do sudeste e do sul, festejos que celebram os santos juninos, santo antônio, são João e são Pedro, como se comemora também, há séculos, nos povoados ou sítios de Portugal. É uma canção de gonzaga com zé Dantas que nos diz mais sobre tudo isso: No Rio está tudo mudado / nas noites de São João / em vez de polca e rancheira / o povo só dança e só pede o baião / No meio da rua / inda é balão / Inda é fogueira / É fogo de vista / mas dentro da pista / o povo só dança e só pede o baião / Ai, ai, ai, ai São João / É a dança da moda / pois em toda roda / só pedem baião. assim, na terra do samba e das marchinhas carnavalescas, o baião, e os ritmos derivados dele, como o xote e o xaxado, torna-se o terceiro ritmo mais tocado nas manifestações populares e não mais somente durante as festividades de junho. no início da carreira de luiz gonzaga, o forró pé-de-serra era tratado de modo tão pejorativo quanto o samba era no nordeste e até no próprio rio de Janeiro que o viu crescer. fora trazido já taludo da Bahia por tia ciata – na passagem do século XiX para o séc. XX – em forma de samba de roda do recôncavo Baiano. mas é a cidade do rio que acolhe, generosa, esse novo ritmo, quando gonzaga é absorvido pelos nordestinos migrantes, a maioria formada por domésticas e trabalhadores da construção civil. A mesma recepção acontece em São Paulo, entre os migrantes que vão se identificar de imediato com os ritmos e motivos cantados. tais composições ajudam a matar um pouco a saudade de sua terra e de sua gente, que ficou na privação de um sertão árido e abandonado pelas políticas públicas. Disso tudo nos fala a canção Baião de São Sebastião, de Humberto teixeira, que a compôs pensando em gonzaga como o personagem tema: Vim do Norte / quengo em brasa / fogo e sonho do sertão / e entrei na Guanabara com tremor e emoção / era um mundo todo novo, diferente, meu irmão / mas o Rio abriu meu fole e apertou a minha mão / Ê, Rio de Janeiro do meu São Sebastião / pare o samba três minutos pra escutar o meu baião. o rio de Janeiro escutou, contagiou-se e nunca mais foi o mesmo, ao projetar gonzaga como uma síntese do que havia de menos sofrido e mais complexo na alma nordestina. luiz gonzaga passa a ser visceral, simbólico e necessário não apenas em seu meio cultural, mas em tudo o que se pensa e faz na cultura brasileira. O artista nos aponta o desafio de um Brasil que, por não conhecer e compreender seu sonho de nação, esquece ou deixa de lado seu eixo ancestral e primordial. a presença exemplar de luiz gonzaga é um dos muitos elos com as tradições fundamentais vindas do além-mar que aqui foram e continuam sendo dinamicamente recriadas.

do povo catingueiro, de corpos narrativos vislumbrados na paisagem natural, biológica e psicológica do seu meio, e, sobretudo, da alquímica associação com o talento poético e musical de alguns nativos nordestinos migrantes como ele, veio a inventar um gênero musical, o baião”.(2) além disso, ao mesmo tempo em que a carreira artística de gonzaga é engenhosamente arquitetada para lançar o baião, sua originalidade também vai se dever ao fato de ele não ter perdido suas referências sertanejas. sua contribuição é das mais extraordinárias por traduzir e vislumbrar os anseios e sonhos de um povo. no Brasil, só se encontra similar na obra musical de um Dorival caymmi, que cantou e compôs o mar da sua encantada salvador e espalhou sentimentos praieiros por todo o litoral brasileiro. gonzaga, por sua vez, cantou a caatinga de sua chapada do araripe, entre ceará e Pernambuco, e, como caymmi, deu-lhe notoriedade universal. todas essas abrangências circulares colocam gonzaga certamente entre os principais pilares da música brasileira, junto a villa-lobos, Pixinguinha, noel rosa, tom Jobim e Dorival caymmi, com uma obra fundamental. uma vasta obra, compostas de canções produzidas ao lado dos parceiros mais conhecidos, como Humberto teixeira, zé Dantas, João silva e onildo almeida, somando 592 canções, além daquelas composições que são de sua única autoria. outros 63 parceiros estão registrados nas centenas de faixas que gonzaga gravou, dos discos de 78 rpm aos lPs, entre elas, 114 regravações de seus clássicos. cabe destacar o papel primordial dos arranjadores de suas canções, notadamente dos maestros chiquinho do acordeon, severino araújo e orlando silveira. o extraordinário maestro e compositor guerra Peixe também fez arranjos e regências para as composições registradas no disco A Grande Música de Luiz Gonzaga, trabalho que mostra a complexidade e a riqueza musical da obra do mestre lua. E por meio desta rica sonoridade orquestral sinfônica, transforma o que era o mais popular no mais erudito. aliás, o compositor erudito camargo guarnieri compôs em 1961 o seu Baião, enquanto o mestre do cavaquinho valdir azevedo compôs para esse instrumento o seu Baião Delicado ainda na década de 1950.

gilberto gil observa que luiz gonzaga “Se inscreve na galeria dos grandes inventores da música popular brasileira, como aquele que, graças a uma imaginativa e inteligente utilização de células rítmicas extraídas do pipocar dos fogos, de moléculas melódicas tiradas da cantoria lúdica ou religiosa

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Ponte e Pau-de-Arara Toda a obra musical de Gonzaga, como intérprete ou autor, definida inicialmente nas parcerias com Humberto teixeira e zé Dantas, estabelece uma ponte entre a força lúdica do sertão e o desafio do migrante em assimilar as novidades adversas das grandes cidades para onde são compelidos a migrar. Desde as décadas de 40 e 50 - quando o baião toma corpo e é sucesso nacional -, este ritmo continua sendo uma ponte que liga natureza e cultura de forma autêntica e vibrante. um bom exemplo dessa simbiose é a canção Estrada do Canindé, que diz que o sertão pro mode vê / o cristão tem que andar a pé. ou seja, pôr o pé no chão e a alma no céu, contemplar a paisagem árida e viver com retidão e prontidão nas estradas da vida sertaneja. as canções de gonzaga e seus parceiros vão retratar e expor os detalhes e as sutilezas dessa cultura mais do que singular ou singela. cito alguns exemplos – entre centenas de canções - em que esta natureza cultural é plenamente sentida, urdida nas ambiências ecológicas com a arguta compreensão, integração vivencial e sentimental do sertanejo em meio aos seres e paisagens: Asa Branca, Juazeiro, A Volta da Asa Branca, Riacho do Navio, Légua Tirana, Acauã, Assum Preto, Sabiá, Algodão, Baião da Garoa, Apologia ao Jumento, Fogo Pagô e Amanhã Eu Vou. tais canções nos fazem conhecer as dificuldades da vida que o sertanejo enfrenta sem nunca perder a força da fé. Algo como diz manoel de Barros, no seu livro das ignorãnças: As coisas tristes são mais belas. nessas composições, como em muitas outras, as relações intrínsecas entre o ser humano e o meio em que vive urdem um diálogo poético e natural do sertanejo com a fauna e a flora, abrangem o tempo de fartura e de seca, faltas e presenças, tristezas e festas nas celebrações de fertilidade e bonança. não há notícia de artista no Brasil que tenha a abrangência de gonzaga, no sentido de catalisar tantas nuances culturais de um povo, sem esquecer-se de um único tema a ser abordado e aprofundado em sua essência. E ainda vencia o desafio, como bom cantador que era, de colocar os assuntos, como os repentistas, numa refinada crônica musical e existencial. fenômeno do começo da industrialização do país e surgido em plena era do rádio, quando se iniciava a indústria cultural, gonzaga era o porta-voz mais credenciado para falar dos anseios de sua gente, ao inserir os sonhos nordestinos na alma da nação, e ajudá-la a erguer-se nova com muito penar, suor, sangue e som. o baião, como ritmo manifesto de um movimento cultural criado por gonzaga e teixeira, passa a ser o símbolo sonoro 30

dessa ansiedade e necessidade migratórias do nordeste, tornando-se mania e sucesso em quase todo o território brasileiro, uma vez que este ritmo vai revelar identidades, traduzir anseios de um povo, cuja voz tinha sido desde sempre silenciada pelos poderosos e suas promessas de nuvem. Poderosos que se alimentavam e se aproveitavam da ingenuidade e credulidade do povo nordestino. manuela carneiro da cunha observa: Riquezas culturais podem advir de condições inteiramente adversas. Numa situação de resistência, exacerba-se a produção cultural para afirmar sua identidade. A cultura nasce desta dinâmica. Resistindo sempre, o povo do Nordeste encontra em Gonzaga, enfim, a sua mídia mais espontânea e verdadeira, a sua mais completa e complexa tradução, uma válvula de escape de toda a força cultural reprimida e que passa a ser compreendida e assimilada pela cultura oficial do Estado Novo. a relação intrínseca entre a adversidade da natureza e a resistência cultural, que sempre manteve aceso o poder de transformar as dinâmicas criadoras, provou-se eficaz por gerações de artistas de todas as linguagens expressivas do nordeste. Essas dinâmicas culturais, quase ao mesmo tempo profanas e sagradas, vão encontrar em gonzaga o perfeito médium cultural de manifestações tão antropofágicas quanto era o sonho dos criadores modernistas na década de 1920, ao encontrar inspiração nos similares artistas e escritores europeus. assim, os artistas criadores vindos do nordeste, na bagagem pau-de-arara de gonzaga, trazendo a coragem e a cara, encontram no confronto com a refinada cultura sulista uma perfeita ambiência para se misturar e expressar sua diversidade cultural, sem sequer pensar no conflito existencial que se poria em pauta. carmem miranda foi também vetora de um movimento musical, ao gravar e promover os compositores mais expressivos do samba, as marchinhas carnavalescas, na boca dos alto-falantes e no imaginário do povo. miranda preparou uma bela e jeitosa cama para o que viria depois, com o fenômeno luiz gonzaga e seus fabulosos retirantes musicais, gravando inclusive Baião, na década de 40. os dois conquistaram, assim, a alma brasileira, brejeira, trigueira e inzoneira, como queria ary Barroso ao pintar sua Aquarela do Brasil. o baião tem origem na marcação rítmica advinda do maracatu africano, transcriado nas danças populares do nordeste, como a naucatarineta, congos, bumba-meu-boi. tem ainda raízes no fado, no fandango português e na batida modal da viola de cantadores e repentistas. Então, tudo o que ainda se ouve de música no Brasil deve-se ao que gonzaga assimilou e estimulou, por sua atuação musical e seu poder de arquétipo. o país teve que se render à cultura dos paus-de-arara, dos baianos, dos paraíbas e nortistas, que traziam no saco, cujo cadeado era um nó, a doce vingança rítmica e comportamental que contagiou e celebrou um Brasil de dentro, interiorano, recriado do meio da seca, da solidão e da poeira. os nordestinos propunham um lugar utópico, mais do que messiânico, em meio a uma poética musical que já não era mais nem sertaneja nem citadina. Juntava-se o lavrador primitivo ao homus faber da era industrial. a simbiose desses tipos humanos era a solução ainda imperfeita, porém a mais viável para a construção do ser cosmopolita, com novos modos de encarar as diferenças e

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as adversidades, mesmo que o pé-de-serra acabasse segregado na favela. aliás, favela é o nome de uma planta que veio do nordeste, trazida pelos migrantes. foi em tal contexto que nasceu e se consolidou o baião, ritmo que inspirou o movimento musical que iria surgir na década de sessenta, a mPB (música Popular Brasileira). gonzaga é testemunho de todo esse processo cultural desde que migrou de Exu,(3) sua terra sertaneja, até a ilha do governador, sua última morada, no rio de Janeiro, onde viu favelas crescerem. Em meio a essa realidade, fundou a primeira casa de forró, matriz de todas as outras espalhadas pelo país, que assimilava a urbanidade crescente do baião. nesse contexto, gonzaga nunca deixou de ser o que sempre fora, o próprio sertão. E pela grande força emanada de sua vida e de sua arte, amalgamadas como terra e céu, o sertão é que se tornou gonzaga, como bem disse câmara cascudo.

Sanfona, vestimenta e voz a sua voz, sempre clara e potente, dialoga matreira - cheia de segundas intenções - alegre ou emocionada com uma sanfona tocada com destreza e originalidade inigualáveis. Juntar as duas coisas de forma tão extraordinária só se veria novamente no final dos anos 50 na figura de um baiano de Juazeiro, João gilberto, cujo violão fraseia dissonâncias melódicas, enquanto o canto suave entoa uma outra bossa-nova, tão danada de boa. não é à toa que a primeira música composta por João gilberto já dizia: ...É só isso o meu baião / e não tem mais nada não / o meu coração pediu assim só... Em João Gilberto, havia uma sofisticada singularidade sertaneja. A mesma singularidade que luiz gonzaga soube muito bem manifestar de forma completamente extrovertida, ao contrário de João gilberto. Dos palcos da rádio nacional e dos teatros ao improviso mambembe sobre as carrocerias de caminhão e nas feiras, gonzaga, mesmo já artista consagrado, nunca se recusou a cantar para a sua gente, onde quer que ela estivesse. E recusou, muitas vezes, a se apresentar onde seu público pobre não poderia pagar. Por isso, aceitava a chancela dos patrocinadores, fossem eles políticos ou empresários. gonzaga, para se comunicar melhor com esse seu povo sertanejo, criou o segundo ícone pop da cultura brasileira, depois do de carmem miranda, ao fundir a roupa de couro do vaqueiro nordestino, dura e resistente, como uma segunda e segura pele usada contra as intempéries e agruras do juremal da caatinga, com a roupa lendária do cangaceiro virgulino lampião, a quem tanto admirava. E apesar das críticas sofridas por gonzaga, pois as pessoas enxergavam aí um tributo ao controverso cangaceiro, ele persistiu bravamente na imagem escolhida de cangaceiro, para afirmar a luta por uma identidade cultural. E deu certo, porque à frente da iconografia vigorosamente assumida, estava uma força musical potente e desconhecida. mais tarde, gonzaga acrescentou ao seu chapéu a coroa de rei que o transformou, em definitivo, no soberano não só de um ritmo, mas da representação simbólica da cultura de uma vasta região.

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curiosamente, numa foto de divulgação da primeira formação do conjunto musical de Gonzaga, enquanto ele vestia a roupa iconográfica e simbólica de sua cultura sertaneja, os outros músicos, catamilho (zabumba) e zequinha (triângulo), vestiam roupa de gala muito mais apropriada para se apresentar num conjunto musical americano no antigo cassino da urca nos anos 1930 ou 1940. Gonzaga, além de assumir-se como cronista fiel das coisas do sertão, muito movido pela voz autoral de seus parceiros, também inova a linguagem musical quando introduz a fala em meios aos versos de um baião, xote, toada ou xaxado, ao conversar com os músicos, cantores convidados ou ao fazer interjeições solitárias. são fabulosos estes seus diálogos com Dominguinhos, Elba ramalho, fagner, gal costa e com o seresteiro nelson gonçalves, com quem fez uma gravação antológica de Asa Branca. faz, desde o início de sua carreira, o que se poderia chamar de os primeiros raps nordestinos, semelhantes aos repentistas nas feiras do sertão. os comentários jocosos são rápidos e pontuais, maliciosos, cheios de humor e que sempre acabam em suas risadas abertas e gostosas. o grande momento deste gonzaga genial como contador de causos dramatizados musicalmente é alcançado em Samarica Parteira. conta a história de capitão Balbino, que manda o narrador buscar samarica, a quem se refere como a dita cuja, para fazer o parto de sua esposa, que está com dor de menino, ordenando-lhe que a traga antes que o cuspe seque no chão. sua fala é acompanhada pela sanfona ligeira, como a urgência do pedido, e com ela, pontua uma sonoplastia sertaneja, ao imitar, junto com o coro, o ranger das cancelas e porteiras, o barulho das águas e o som dos animais na estrada. gonzaga nos envolve totalmente em sua travessia, da casa do capitão para a casa da parteira e desta, para a casa do solicitante. E nos coloca não só como meros ouvintes, mas como testemunhas da ambiência natural, criada pela agilidade narrativa com que expõe os fatos no linguajar peculiar e viçoso de caboclo sertanejo. Outros momentos significativos de sua genialidade em contar causos em músicas-narrativas vamos encontrar em Karolina com K e Apologia ao Jumento – O jumento é nosso irmão. A língua falada e cantada de Gonzaga nada tinha de errada, ao ser fiel às expressões idiomáticas do sertanejo nordestino, que recria palavras, como fez guimarães rosa ao dar voz a riobaldo e Diadorim. antônio cândido, em sua tese de doutorado para a usP, Os Parceiros do Rio Bonito, de 1954, revela que é o caipira paulista quem mais correto fala o português brasileiro, pois é o

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herdeiro mais próximo do português castiço, erudito, provençal, escrito pela língua poética de luiz de camões. tudo isso nos remete a outro pernambucano, o poeta manuel Bandeira, no poema Evocação ao Recife: A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil.

O intento O Rei e o Baião não só documenta, como expande, pela análise de vários ensaístas, a obra de luiz gonzaga produzida entre as décadas de 40 e 80, momentos em que sua música e suas atitudes comportamentais, principalmente até os anos de 1960, ditaram uma moda e um jeito nordestino de ser para os brasileiros. criaram também um novo conceito musical de raízes, que transformou e revolucionou a cultura popular. além disso, o livro quer facilitar, para as gerações que não viveram o fenômeno luiz gonzaga em seu tempo, a compreensão de sua figura emblemática de Rei do Baião, talvez o primeiro artista voltado para o consumo de massa do país. Pretende também realçar sua imagem pop não fabricada, cujo surgimento espontâneo apontava não só para o poder ainda absoluto do rádio nos anos 40 e 50, mas também para firmar Gonzaga como um autêntico ídolo popular com cativante poder de comunicação a emanar uma aura de magia. sabe-se que, no início, tanto os diretores de rádio quanto os de gravadoras, não queriam sua voz à frente dos microfones, pois a achavam estranha e, por isso, não comercial (a destoante voz de taboca rachada), já que o que valia ou o que estava na moda era o bel canto de artistas como orlando silva, sílvio caldas, nelson gonçalves e vicente celestino. luiz apenas tocava sua expressiva sanfona, o que para os diretores já era suficiente. Gonzaga conta que o compositor e radialista fernando lobo, então diretor da rádio tamoio, da qual era contratado, deixou no quadro de avisos: Ao sanfoneiro Luiz Gonzaga é proibido cantar. até que um dia, contando com o apoio do apresentador átila nunes, exigiu a sua voz junto à sanfona trigueira. logo, teve o respaldo do público que já formara nos famosos programas de auditório, como o do temível apresentador ary Barroso. as gravações se sucederam consagrando a voz rasgadamente sertaneja, como a dos cantadores e repentistas das feiras, para nunca mais sair de nossa memória musical e afetiva. sua obra transforma-se numa das mais renovadoras referências culturais, ao invadir também o imaginário dos artistas e dos poetas que se tornam seus grandes parceiros, como o advogado e também compositor Humberto teixeira e o médico zé Dantas. torna-se também uma inspiração permanente para as centenas de intérpretes nacionais e internacionais que redimensionaram suas canções. sua genialidade musical reside não apenas no fato de ele ter transportado para a música as condições inóspitas de uma região, mas também pela forma como cantou, com imaginação e sensibilidade, a delicadeza das relações entre ser humano e natureza. O Rei e o Baião, portanto, pretende facilitar, por meio dos ensaios, em sua maioria escritos especialmente para este livro, a compreensão do fenômeno de assimilação do homem sertanejo 34

pela cultura de massa das grandes cidades, mediada pela sabedoria da música popular. Pretende mostrar como luiz gonzaga e seus parceiros criaram uma mitologia particular e original, extraída do arcaico, para atuar com eficácia, a partir de uma arte contra o preconceito e contra a discriminação para com o migrante nordestino, denunciando, por meio da poética, sua condição social de oprimido. a música de gonzaga, vinda de um nordeste dividido entre a dor e o prazer, posto à prova na faina e na festa da alegria, anuncia a redenção de uma região pobre e messiânica, mas rica no mistério revelado pela poderosa poética popular dos cordelistas, pelo grafismo imaginoso dos xilógrafos, dos cantadores das feiras que dão voz a repentes em emboladas, dos músicos de forró pé-de-serra, dos maracatus, bumba-meu-boi, rabequeiros, das bandas cabaçais e de pífaros. com tal riqueza cultural, vinda da herança miscigenada de brancos, mouros e europeus, africanos e índios, gonzaga, o caboclo, cria um movimento cultural autêntico sem ter, no entanto, a intenção intelectual de fazê-lo de modo programático. Esse movimento vai desvelar o sertanejo e sua relação com a terra em uma música essencialmente ecológica. assim, ao tornar clara a condição trágica do ser humano que vive nesse árido ambiente e nele é sumariamente explorado, torna-se o precursor da música de protesto que vai surgir nas décadas de 1960 e 1970. Luiz Gonzaga, ao mesmo tempo em que firmou uma cultura de raiz, elevando a autoestima de seu povo, tornou esta cultura conhecida e admirada, de norte a sul do país. trouxe o baião e os ritmos similares, como o xote, o xaxado, a toada e o aboio, para um contínuo e constante movimento de recriação e renovação de linguagem. E de forma eficaz também pela ousadia do traje e da dança, aliada ao vigor estético de suas performances, derrubou as frágeis fronteiras existentes entre a vertente popular e o vértice da erudição. Gonzaga dá, portanto, como o fizeram os compositores de seu tempo, Pixinguinha, Noel Rosa e Dorival caymmi, uma outra dimensão à música popular brasileira, elevando-a ao patamar de uma cultura originalíssima, nem popular nem erudita. gonzaga, como na lírica grega, unia palavra e música numa só entidade e dava sem querer, mais uma vez, razão ao que defendia nietzsche: A lírica popular guarda as bases do mito original. tornou-se um artista ícone, parte desse mito fundador originário de todas as culturas que formaram o sertão nordestino.

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A fonte inspiradora o livro também pretende arguir, discutir e ampliar, à luz da antropologia cultural, a importância de Luiz Gonzaga e do baião, suas influências para a valoração e consolidação da identidade cultural da nação nordestina. E, neste contexto, luiz gonzaga inspirou as novas gerações de artistas nordestinos, alguns dos quais ele mesmo descobriu e colocou em cena, como marinês e sua gente, abdias do acordeon, Jackson do Pandeiro, sivuca, trio nordestino, Dominguinhos e muitos outros. Gonzaga foi também uma constante influência para artistas como Hermeto Paschoal, Edu Lobo, geraldo vandré, caetano veloso, gilberto gil, sérgio ricardo, quinteto violado, fagner, geraldo azevedo, zé ramalho, alceu valença, Elba ramalho, maria Bethânia, nara leão e gal costa. também imprimiu sua marca naqueles que ousaram novos movimentos culturais, da tropicália às suas dissidências e destas a outras confluências musicais e comportamentais que desaguaram, mais recentemente, nos pernambucanos mestre ambrósio, chico science & nação zumbi, mundo livre s/a e o cordel do fogo Encantado. gonzaga traz o frescor das novidades nordestinas, assimilando e ditando a moda e os costumes da vida do cangaço, via lampião e maria Bonita, corisco e Dadá; da religiosidade mística advinda do culto ao Padre cícero do Juazeiro ou ao frei Damião, de quem luiz foi devoto; do mundo agreste dos vaqueiros e boiadeiros; dos cantadores como cego aderaldo e cego oliveira; dos ceramistas como vitalino e zé caboclo; dos lavradorespoetas como Patativa do assaré e oliveira de Panelas; dos cantores-repentistas como zé limeira e Pinto de monteiro; dos xilogravuristas como mestre noza e abrãao Batista; ou dos artesãos do couro como seu Espedito seleiro e zé do mestre, que vestiram gonzaga para suas apresentações.

aliás, conta-se que Januário levava luiz, escondido da mulher santana, para as festas de forró de chão batido que gostosamente animava por uns tantos trocados, para iniciá-lo com prazer no ofício. ali, noite adentro, gonzaga, ainda menino, dormia nas redes das camarinhas o resto do sono começado nos tamboretes das salas de forró, onde sentava, prestando atenção às manhas do pai. Essas foram as primeiras lições que o menino gonzaga recebeu antes mesmo de aprender a ler o beabá ou de pegar firme no prumo da enxada e fazer calo nas mãos, como faziam todos os meninos, crias do sertão. assim, os temas tocados por seu pai permaneciam na memória do artista e ele iria reinventá-los, tempos depois, letrados pelos seus parceiros, tornando-se sucessos nacionais. conta Dominguinhos que, numa prosa com Januário, este lhe confessou que tocava o tema musical de Asa Branca desde que luiz era menino e arrematou: Aquele nêgo safado me roubou! Conversas à parte, Gonzaga afirmou: Asa Branca é do folclore, que adaptei com Humberto Teixeira e assinamos. Se a gente não fizesse isso, outros fariam.

De onde é que vem? Esta rica cultura musical originária das brenhas sertanejas, quase escondida entre a caatinga e o semi-árido da região do vale do cariri, a chapada do araripe, no limite entre o ceará e Pernambuco, vai ganhar legitimidade com a voz solta e inusitada do menestrel nordestino. À voz expressiva, acompanhada de sua sanfona calorosa, no toque destro dos 120 baixos, gonzaga vai acrescentar a zabumba - já muito comum nos forrós nordestinos – a quem dá o papel do baixo ao lado dos graves e o triângulo de metal que funcionará como auxiliar dos agudos da sanfona. gonzaga descobrira tal instrumento enquanto andava pelas ruas, observando os ambulantes tocarem-no, para chamar a atenção da freguesia. assim, gonzaga inventa o primeiro trio nordestino, cujas fortes marcações ritmicas servirão para acentuar o ritmo binário do baião, que se torna o mais conhecido do norte, como chamavam os sulistas, referindo-se a tudo o que vinha da outra parte do país.

Por fim, ainda ao universo amplo de gonzaga, acrescenta-se o genial intérprete, compositor paraibano, Jackson do Pandeiro, o rei do ritmo.

gonzaga cria assim, com sua música, uma nova forma de sentir e cultivar a sabedoria mística e milenar de sua gente. E traz este saber redimensionado para a pauta de uma indústria cultural e de uma mídia ainda nascentes. É exatamente com o uso sábio e esperto dessas mídias, fundamentalmente centradas nas revistas, no rádio e nos discos de cera em 78 rpm, que, de forma inteligente e sensível, ele conduz sua carreira e desvela seu talento, explorando a imagem de nordestino típico, sem se deixar cair no folclórico.

a toda essa diversidade cultural gerada por uma cultura de resistência do sertão nordestino, gonzaga acrescenta seu gênio criador, assimilando os vários ritmos tradicionais a que seu pai, o sanfoneiro Januário, animador de forró dos bons, lhe apresentara, tocando com perícia manhosa sua pequena sanfona de oito baixos – apelidada de pé-de-bode.

luiz gonzaga, antropofagicamente, comeu do pirão dessas identidades diversas de um nordeste ainda não culturalmente reconhecido em suas potencialidades. os sulistas, centrados em seu próprio umbigo, não valorizavam a contento os gênios do samba em suas fases áureas, como Pixinguinha, ismael silva, noel rosa e assis valente, que já eram gravados e sucesso na voz das duas mirandas, carmem e aurora, e na de aracy de almeida em plenas décadas de 1930

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e 1940. É nos anos 40 que Gonzaga começa a intensificar suas constantes atuações musicais no mundo do rádio, da discografia e dos shows por todas as regiões do Brasil, fazendo, como argumenta sivuca, a operação inversa da habitual: leva a arte do nordeste para o sul, quando era este que ditava o repertório de seu cancioneiro popular para todo o país.

De toda esta forte irradiação nordestina, gonzaga torna-se um artista mais que brasileiro, universal, ao gerar uma nova imagem mítica e midiática. assim, consagra e fundamenta um estilo popular de múltiplas amplitudes culturais e espirituais, mais pela política da arte poética que a arte na política.

o rei do Baião, com seu talento inato e uma rara ousadia, transpôs e recriou toda uma rica herança rural, expondo sua pureza, malícia, singeleza, complexidade, dando-lhes novas dimensões interculturais, ao assimilar naturalmente o que havia de mais saudável no meio social sulista. um meio social discriminador e pretensioso, como dizia gonzaga: Metido à besta!

contudo, o mais importante é que, ao mirar as noites estreladas - juninas ou não – do sertão e das cidades brasileiras, é Ele, o rei do Baião, que ilumina até aqueles que só conhecem o que é do escuro. Para todos, esplende seus fogos musicais com som e sabor das coisas de outras veredas cheias de eternidade.

E daí, ele se torna para seu povo o primeiro herói musical nordestino a dar status cultural ao que antes era desprezado. gonzaga propiciou, portanto, uma mudança radical na forma de ver a música nordestina, pelo poder de seu vestuário simbólico, pela dança ágil e sensual, pelo ritmo marcado, denso e profundo, que buscava a pulsação do coração da terra. Dele emanava uma força, desconhecida e vital, que gilberto gil compreendeu tão bem, quando compôs De onde vem o baião. E aqui vale transcrever toda a letra, pois foi gil quem melhor traduziu numa canção as lições mestras de luiz gonzaga:

no imaginoso grande sertão, são muitos os gonzagas em gonzaga.

Brasília, junhos de 2005/2010

Debaixo do barro do chão da pista onde se dança suspira uma sustança sustentada por um sopro divino que sobe pelos pés da gente e de repente se lança pela sanfona afora até o coração do menino Debaixo do barro do chão da pista onde se dança é como se Deus irradiasse uma forte energia que sobe pelo chão e se transforma em ondas de baião, xaxado e xote que balança a trança do cabelo da menina, e quanta alegria! De onde é que vem o baião? Vem debaixo do barro do chão De onde é que vem o xote e o xaxado? Vem debaixo do barro do chão De onde vem a esperança, a sustança espalhando o verde dos teus olhos pela plantação? Vem debaixo do barro do chão.

(1) Luiz Gonzaga contou-me, no começo dos anos 80, que Januário havia lhe dito que a primeira vez que as pessoas de sua região na Chapada do Araripe – entre Pernambuco e Ceará - haviam visto uma sanfona tinha sido por meio de um mascate judeu – ou cristão novo – vendendo tecidos e outros pequenos produtos ligados à moda, no lombo de um jumento. Ele tocava numa sanfoneta os temas das danças regionais do Além Tejo em Portugal, de onde devia se originar o ambulante. Este ensinou a outros que, por sua vez, ensinaram a Januário, que passou a maestria para o filho Luiz. Curioso é que ainda na mesma década, num encontro com o compositor português Sérgio Godinho, pergunto-lhe sobre aquela faixa de seu disco tão parecida com o ritmo do baião. Ele disse que era um tema por ele desenvolvido de canções de festividades da colheita de sua região e que ele sempre achou também similar à música nordestina no Brasil. Assis Ângelo, em seu Dicionário Gonzagueano, de A a Z, conta que “Baião é, além do gênero musical extraído da viola repentista nordestina, uma vila portuguesa de 3 mil habitantes localizada no distrito de Porto. Surgiu nos tempos da Idade Média. No Brasil, mais precisamente no Pará, existe uma cidade com essa mesma denominação, fundada por volta de 1800”. E os desafios da viola repentista nordestina, a que o autor se refere, têm grande influência dos ponteados mouros ou as mesmas células sonoras, também comuns nas canções dos judeus sefarditas da Península Ibérica. (2) Trecho da apresentação de Gilberto Gil para o livro Vida de Viajante: A Saga de Luiz Gonzaga de Dominique Dreyfus. (3) Exu é uma corruptela do nome Inxu, uma espécie de abelha braba da Chapada do Araripe/CE-PE, onde viviam os indígenas Cariri-Inxu, tão bravos quanto as abelhas nativas.

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Luiz Gonzaga é um raro pretexto para compreender qual o melhor caminho a seguir para um nordeste que ele também ajudou a configurar. O Nordeste que recriou para alimentar de poesia nosso imaginário, que ele mesmo começou a desvendar musicalmente na distância da migração. gonzaga o revelou para o Brasil desde a década de 1940, como se quase nada a nação soubesse da região e do seu potencial de rico imaginário criativo.

Mas, doutor, uma esmola a um homem que é são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão Luiz Gonzaga e Zé Dantas

sua obra tornou claro aos brasileiros o grande sertão que se divide nos três nordestes geográficos básicos: o sertão do agreste, o sertão do semiárido e o sertão da zona da mata. sertões de brasileiros crioulos, caboclos, sertanejos, fadados a uma religiosidade propensa ao messianismo, como apontou Darcy ribeiro. qual nordeste, denso e complexo, doador e carente, envolto na mística cega da fé e na lida da arte embrenhada na vida, é o sertão de gonzaga, que, em si, já é diversos e geniais gonzagas? a partir de sua música, muitas vezes triste, tantas vezes alegre e sempre bela, criou ambiências culturais e espirituais as mais imaginosas, para o paraíso possível em meio às Vidas Secas de um inferno terreal. Bené Fonteles

DESENHO EM NANQUIM –

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Jack Ohly

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Como minha mãe não gostava, para eu poder tocar em determinados lugares, meu pai tinha que me roubar Luiz Gonzaga

ENSAIO EM XILOGRAVURAS

José

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Lourenço

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Meu pai Januário me ensinou a ter perseverança e seguir sempre em frente... Luiz Gonzaga

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Eu sempre preferi espetáculo ao ar livre, pra divertir quem não pode pagar. Ou então espetáculos de circo. Clube, não. Tem sempre quem pergunta: quem é esse cara? (...) Quando me convidam para cantar numa festa, a primeira coisa que digo é: vão cobrar ingresso para me ver? Se dizem vamos, eu não vou. Eu gosto de cantar para o povo livre. Luiz Gonzaga

Banho de Lua no Solo da Sanfona Antônio

Risério

XILOGRAVURAS

João Pedro do Juazeiro

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Luiz Gonzaga – Lua – partiu de um solo cultural arcaico, transfigurando-o criativamente para injetá-lo, por meio das então novas tecnologias da comunicação de massas, na veia de um Brasil que se modernizava, entre a ditadura do Estado Novo, o fim da Segunda Guerra Mundial e o suicídio de Vargas. Parafraseando Walter Benjamin, gonzaga é a refundação da poemúsica sertaneja na época de sua reprodutibilidade técnica, numa sociedade que tomava o rumo urbano-industrial. ou, dito de outro modo, gonzaga nasce do solo rico e generoso da cultura popular tradicional do nordeste brasileiro – do “Brasil sertanejo”, na tipologia de Darcy ribeiro –, mas encarna esta cultura de uma perspectiva inovadora. Ele não apenas carrega ou retrata uma tradição. Ele a reinventa. recria a cultura nordestina, para inserir suas formas e conteúdos na sociedade que então se configurava no país a partir de uma estratégia estética claramente definida: o baião. Costumo dizer que ele e Caymmi eram sociologicamente previsíveis. Não que fossem necessariamente acontecer, como efeitos de alguma lei inflexível que regesse as coisas do mundo, mas porque os ambientes ecológicos e sociais eram propícios às suas aparições. caymmi nasceu num recôncavo negromestiço impressionantemente aquático, pleno de orixás, onde ressoavam a poesia e a música do samba de roda e dos terreiros do candomblé. não foi apenas por acaso que nasceu na Bahia, dona da maior fatia do litoral brasileiro, um poeta como ele – o raro e claro autor das canções praieiras. gonzaga, por sua vez, nasceu entre jagunços, lavradores e vaqueiros, na região da pecuária e da cultura do couro, marcada por longos períodos de seca. Era esperável que as circunstâncias socioecológicas se gravassem nas criações poético-musicais de ambos (no caso de gonzaga, incluindo seus principais parceiros, Humberto teixeira e zé Dantas). E elas se encarnaram. não é por outro motivo que devemos tratar caymmi como uma expressão estética concentrada da cultura tradicional litorânea da Bahia de todos os santos e seu recôncavo. E luiz gonzaga, como uma expressão estética concentrada do amplo e rico contexto em que se configurou a cultura nordestina sertaneja. Mas é preciso fazer um esclarecimento. A definição do que seja o Nordeste é, aqui e ali, mais histórico-política do que geográfico-ambiental. As configurações ecossistêmicas podem ser deixadas de lado por determinações de ordem política ou econômica. De uma perspectiva 58

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ecológica, a mata atlântica, ao deixar a Bahia, não se interromperia na fronteira com o Espírito santo. Descia (e o que dela resta ainda desce) em direção ao rio de Janeiro. É difícil, por isso, aceitar a classificação do Recôncavo Baiano no Nordeste. Do mesmo modo, o cerrado conecta o oeste da Bahia não ao recôncavo, mas ao planalto central do país. Em outro extremo, as terras frescas do maranhão, em vez de se vincular ao raso da catarina ou ao agreste pernambucano, ligam-se, naturalmente, ao mundo amazônico. E temos uma coisa única no mundo: um semiárido relativamente bem povoado. De qualquer sorte, mesmo mantendo a visão já sedimentada do assunto, o nordeste não é uma área homogênea. E podemos aprender muito, ainda hoje, com a visão dualista da região, que nos vem de escritores-pensadores como Euclydes da cunha, gilberto freyre e roger Bastide. Em Os Sertões, Euclydes contrapôs a lonjura sertaneja à extensão praieira. o que ele vê no sertão é a paisagem atormentada. o “martírio da terra”, que se deixa ler “no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em esgalhos”. no interior desse martírio da terra é que ele vai situar o martírio humano, “reflexo da tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da vida”. E assim como vê a diferença ambiental entre o território interiorano e a orla marítima, ele também vê a diferença antropológica entre o habitante do litoral e o do sertão. a fachada atlântica é, sobretudo, o espaço do cruzamento de brancos e negros, gerando, como produto típico, o mulato. o sertão, por sua vez, aparece como o reino da mistura de brancos e índios, gerando mamelucos, caboclos. Dessa leitura ecoantropológica, resultam, é claro, dois nordestes. o nordeste mestiço do litoral mulato e o nordeste mestiço do sertão caboclo. Essa visão dualista vai reaparecer, enriquecida e matizada, em estudos como Nordeste, de gilberto freyre, e Brasil, Terra de Contrastes, de roger Bastide. freyre distingue entre o nordeste litorâneo da cultura do açúcar, alongando-se, por terras de massapê e várzeas, do recôncavo da Bahia ao mar do maranhão, e o nordeste pastoril que se alarga para o interior. o primeiro – e mais velho – é o nordeste das casas-grandes recobertas pela cal dos mariscos, dos sobrados de azulejos, dos mocambos de sapé e palha de coqueiro. “um nordeste oleoso onde noite de lua parece escorrer um óleo gordo das coisas e das pessoas. Da terra. Do cabelo preto das mulatas e das caboclas. Das árvores lambuzadas de resinas. Das águas. Do corpo pardo dos homens que trabalham dentro do mar e dos rios”. O outro é o Nordeste das “figuras de homens e de bichos se alongando quase em figuras de El Greco”. Nordeste das secas. Das ossadas esbranquiçadas. Dos “sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés”. Das “paisagens duras doendo nos olhos”. não é o nordeste dos canaviais sedeando ao vento. mas o nordeste dos mandacarus e dos cavalos magros, angulosos. Bastide acentuou tais contrastes, do plano genético ao simbólico. Até a religião se modifica, quando passamos de uma zona a outra. “No sertão, a religião é tão trágica, tão machucada de espinhos, tão torturada de sol quanto a paisagem; religião da cólera divina, num solo em que a seca encena imagens do Juízo final”. E ainda: “a civilização da cana é uma civilização carnal. a do sertão tem a dureza do osso”. um é o nordeste barroco-canavieiro, místico-erótico, com suas praias e seus orixás. outro é o nordeste do gado e do couro, o nordeste seco, ascético-milenarista, com procissões que se arrastam pedindo chuva.

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apesar das ressalvas e revisões que devemos fazer (impossível colocar num mesmo saco a chapada Diamantina e canindé do são francisco, por exemplo), a divisão, grosso modo, se sustenta. um é o universo de Vidas Secas, outros são os mundos de Tenda dos Milagres e Viva o Povo Brasileiro. um é o mundo da caatinga e das arapongas. outro é o mundo das coxas morenas do frevo. o rei do Baião pertence ao nordeste do sol sinistro e do chão malcriado. um nordeste distinto, em termos ecológicos e culturais. Em clima, fauna, flora, composição etnodemográfica, moral sexual, culinária, religiosidade. na distância que vai do pai-de-santo ao Padre cícero. se quisermos ser mais precisos, podemos aceitar a subdivisão daquele espaço geográfico nordestino em três áreas principais, que se diferenciavam, inclusive, no plano econômico. tínhamos, então, a zona litorânea, o agreste e o sertão. agreste e sertão que, ainda hoje, são muito rurais. o agreste era uma região de latifúndios, vivendo da pecuária, da produção de algodão (gonzaga e zé Dantas, aliás, compuseram Algodão), etc. caminhando mais para o interior da região, no rumo do seu solo mais seco, os latifúndios começavam a rarear, substituídos por pequenas propriedades voltadas para a subsistência. Já o sertão propriamente dito se caracterizava, basicamente, pela pequena pecuária e pelos roçados empenhados na produção alimentar. gonzaga é um poetamúsico do interior do agreste e do sertão. Passar da rosinha de O Mar (caymmi) à rosinha de Asa Branca (gonzaga-teixeira) é passar de um universo sociológico a outro. De um a outro mundo etnolinguístico. De um horizonte estético-ideológico a outro. são reveladoras, sob esta luz, as diferenças no relacionamento com a “terra”, tal como esta aparece nas criações de caymmi e de gonzaga. o homem do recôncavo da Bahia – pisando numa terra “pegajenta e melada”, que se “agarra aos homens com modos de garanhona”, na pitoresca definição de Freyre – não é tão intensamente ligado à terra, ao barro, quanto o sertanejo. Este, filho dos “areais exsicados” (Euclydes), não raro é obrigado a se mudar, espécie de “judeu errante”, como a personagem de graciliano ramos, um “vagabundo empurrado pela seca”. no entanto, é fortemente atado à terra. uma comparação entre João Valentão (caymmi) e Asa Branca esclarece tudo. Em João Valentão, a palavra “terra” é empregada no sentido de terra natal. Em Asa Branca, no sentido concreto de solo nordestino, chão batido ou rachado que se tem sob os pés.

É nesse contexto nordestino-sertanejo que surge a cidadezinha de Exu, onde gonzaga nasceu. Escreve Dominique Dreyfus, em Vida do Viajante: a Saga de Luiz Gonzaga: “a chapada do araripe é o dedo de Deus: quando o sertão todinho está cinzento, sedento, torrado pela seca, o araripe verdeja, qual um oásis sertanejo. apesar de se localizar na região semiárida do nordeste, a serra do araripe é uma das melhores faixas de terra da região, que só as grandes secas conseguem atingir. nascendo na Paraíba, ela vai morrer na serra do inácio, na fronteira de Pernambuco com o Piauí. sua inclinação drena todas as águas pendentes para o vale do cariri, região mais nobre e rica do ceará, zona de cultivo da cana-de-açúcar para a fabricação da cachaça e da rapadura. No entanto, à altura do Exu, essa conformação topográfica muda e a terra se inclina levemente para o estado de Pernambuco. Daí a riqueza da terra exuense, com suas numerosas fontes de água que protegem a região das desolações da seca”. foi aí que veio ao mundo o futuro sanfoneiro luiz gonzaga do nascimento. E aqui já aparece um dado interessante. o pai se chamava Januário dos santos – a mãe, ana Batista de Jesus, chamada

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santana. Por que, então, luiz gonzaga do nascimento? simples. Porque a criança nasceu no dia 13 de dezembro, dia de santa luzia. logo, luiz. Porque o nome completo de são luís era luís gonzaga. logo, luiz gonzaga. Porque dezembro é o mês do nascimento de Jesus. logo, Luiz Gonzaga do Nascimento... E o menino foi crescendo por ali, filho de moradores pobres de uma fazenda no sertão pernambucano. a divisão do trabalho na família era curiosa. Januário vivia da sanfona, mandando ver no fole, em festas e forrós. além de tocar, tinha uma pequena oficina de sanfona, consertando os foles da região. Santana pegava duro no batente. Costurava as roupas da família. fiava rede, coxim de forrar sela, cordas de caroá, que vendia na feira do Exu. mas, sobretudo, trabalhava na roça, plantando feijão-de-corda, vagem, mandioca, batata doce, algodão. todo sábado, botava as mercadorias no lombo do jumento e seguia ao lado, pé no chão, duas horas de caminhada, até à feira do Exu. Passava o dia na feira, vendendo seus produtos. E só voltava para casa à noite, caindo aos pedaços. a música era onipresente naquele mundo. Dentro de casa, o sanfoneiro Januário e a cantadora ou cantadeira santana, puxadora de reza (dos nove filhos do casal, cinco se tornaram sanfoneiros profissionais), entoando novenas e benditos. fora de casa, festa e música não faltavam. reisado, bumba-meu-boi, são João. Procissões com banda de pífanos. E um forró atrás de outro. como em Pé-de-Serra. Exu não deixava de ser tocado pela seca, mas era coisa rara. gonzaga poderia ter passado ao largo do assunto. mas não. seu projeto era outro – e maior. Ele quis encarnar e encarnou, graças também a seus parceiros, o complexo cultural e existencial sertanejo. E a seca é um dado fundamental na vida deste nordeste. ouçam Légua Tirana. ali, no sertão, o que se tem é o cruel excesso do estio, com o sol queimando tudo. guimarães rosa retrata essa realidade em Grande Sertão: Veredas (freyre chegou a falar, a propósito, de uma “nordestização” da criação literária rosiana, o que é correto, desde que boa parte do romance, mesmo em sua faixa mineira, se passa dentro da zona de minas gerais incluída no chamado “polígono das secas”). “Dá o sol, de onda forte, a luz tanta machuca” – escreve. mais: “o sol vertia no chão, com sal, enfaiscava”. E ainda: “a luz assassinava demais”. na seca, a caatinga é um inferno. como bem disse Dadá, mulher de corisco, duros eram os tempos em que “a chuva se esquecia de molhar a terra”. sim: as chuvas assumem, nas terras do nordeste, um valor vital. E sempre referido. ainda não se tem muita consciência, nas grandes cidades do Brasil, do quanto todos dependemos das precipitações celestes. vem daí – da seca – a relação especial do nordestino com a água. conta câmara cascudo que o general Cordeiro de Faria lhe disse que, na Escola Militar, eles “identificavam os cadetes vindos do nordeste pelo ciumento cuidado em apertar as torneiras dos lavatórios”. Em Vozes da Seca, composição feita em cima de uma seca que, na época, assolava o nordeste – e que hoje é encarada, retrospectivamente, como uma antecipação da chamada música ou canção de protesto da década de 1960 –, gonzaga e zé Dantas retrataram o grande sofrimento regional, a falta de chuva implicando fome. Daí que o sertanejo aprenda a adivinhar chuva. a ler os signos da estação chuvosa se manifestando em plantas, árvores ou insetos. É uma questão pragmática. um envolvimento ecossistêmico que diz respeito à sobrevivência rural. Jumentos, bodes e sapos – além de árvores, borboletas e formigas – se convertem em signos dessas leituras meteorológicas. E isto para não falar de 62

peixes, visagens e outras configurações astrais. Podemos colher um exemplo no Xote das Meninas, parceria de luiz gonzaga e zé Dantas. a natureza é um texto – que, desde a infância, o nordestinosertanejo aprende a ler. E o inverno, o tempo das chuvas, na região, é sempre bem-vindo. É sempre bendito. são bocas e corações bendizendo a chuva. coisa bem diferente do que podemos ver em nossas atuais conformações urbanas, onde as chuvas, quase sempre, são sinônimo de incômodos e transtornos. nas cidades do litoral, “tempo bom” é sinônimo de sol, céu claro, alto e azul. o avesso desta concepção nitidamente urbana está no sertão. aqui, “tempo bom” é o que pressagia a chuvarada. “o sign of a very fine day, para o sertanejo brasileiro, é a garantia de uma farta chuvada. E não dia de sol. tempo-bonito é um anúncio de inverno”, escreve câmara cascudo. Esta é, de fato, a visão vaqueira das condensações aquosas em cirros, cúmulos e nimbos. E aqui não interessam nuvens claras, finas ou esfiapadas, mas as pesadas e cinzentas. Nuvens ruivas desatando. E é claro que isto se insinua, se presentifica e se expande na criação simbólica regional. numa região em que rezas e cânticos suplicam chuvas – e todos saúdam enxurradas e aguaceiros, desde que não produzam enchentes devastadoras –, a poemúsica não passaria ao largo do tema. Especialmente, uma criação poético-musical que, como a de luiz gonzaga e seus parceiros, sempre se quis enraizada na concretude da experiência comunitária. veja-se A Volta da Asa Branca – canto buliçoso e vicejante, canto de regozijo pela volta das chuvas. cabe aqui outra obser vação. Estamos habituados a fazer um desenho trágico do nordeste. Está certo. mas – mesmo quando sublinhamos as secas, ou dizemos que o recôncavo Baiano é carnal e místico, em contraposição a um sertão ascético e milenarista –, não podemos jamais pretender, com isso, abolir ou sequer desfigurar a alegria sertaneja. A realidade nordestina é dramática, machucada. mas não exclui, de modo algum, a alegria. a festança. a gargalhada. Podemos ver isso até no cangaço. quem quer que conheça a realidade jagunça ou cangaceira sabe disso. o cangaço era uma farra. colorida. o bando de lampião, cheio de poetas e músicos, fazia festas e mais festas. mesmo quando não havia mulheres nas redondezas, os cangaceiros dançavam homem-com-homem, o chamado “dançar de marmanjo”. Há inúmeros relatos sobre o assunto. quando luiz gonzaga, em A Volta da Asa Branca, canta “sertão das muié séria, dos home trabaiadô”, não diz exatamente uma inverdade. mas uma meia-verdade. A definição nasce do padrão ideológico dominante na região, que, evidentemente, tem sua correspondência factual. mas o certo é que nenhuma leitura da dor pode eliminar o prazer da vida sertaneja. festa e sensualidade. não quero dizer com isso que o sertanejo não seja “trabaiadô”. É, sim. mas é também o rei do forrobodó. Basta ouvir Dezessete Légua e Meia. Do mesmo modo, não estou afirmando que as mulheres nordestinas não sejam “sérias”. O que digo 63


é outra coisa: erotismo é erotismo em qualquer lugar. Euclydes já falava dos “meneios sensuais” das moças sertanejas. E há caboclas que são senhoras da sedução. o baião é – também – um reino de malícia, deliciosa malícia. quem já dançou um bom forró, sabe o que é encoxação. sabe o que quer dizer uma obra-prima como Vem, Morena, de gonzaga e zé Dantas: a cabocla remexendo gostosa e fungando quente no pé do pescoço do caboclo. E gonzaga providencia o acasalamento: o fungado da sanfona e o fungado da cabocla.

Outros elementos fundamentais, na formação da paisagem cultural sertaneja recriada por gonzaga, foram o curral e o cangaço. Em Fidalgos e Vaqueiros, Eurico alves viu bem: “foi o boi que provocou a descoberta do sertão, assinalando os pontos cardeais da província com o rastro do seu passo vagaroso e constante. teciam os seus rastros embaralhado cordeame de caminhos por todo canto. viu-se o criador premido pelo apertado dos pequenos e primitivos pastos do litoral, face à crescente reprodução de seus rebanhos... olhou-se o nordeste e olhou-se o vale sanfranciscano para nas suas terras se apascentar o rebanho aumentado. E esta imposição se estendeu a todo o sertão”. a expansão sertaneja da pecuária foi contemporânea da expansão litorânea dos canaviais. alguém ganhava uma sesmaria e despachava seus vaqueiros para a abertura de currais no campo imenso. E isto foi fundamental para a existência do Brasil. Em Formação do Brasil Contemporâneo, caio Prado Júnior escreveu: “...bastaria, à pecuária, o que realizou na conquista de território para o Brasil, a fim de colocá-la entre os mais importantes capítulos de nossa história”. Para acrescentar, surpreendendo pela imagem: “...ela [a pecuária] ainda aí está, idêntica ao passado, nestas boiadas que, no presente [década de 1940] como ontem, palmilham o país, tangidas pelas estradas e cobrindo no seu passo lerdo as distâncias imensas que separam o Brasil; realizando o que só o aeroplano conseguiu em nossos dias repetir: a proeza de ignorar o espaço”. Esse mundo tinha, na figura do vaqueiro, seu elemento central. O vaqueiro de gibão e chapéu de couro, que se embrenhava pelos matos, arranhando-se em galhos de jurema e afastando onças. o vaqueiro que engendrava um cotidiano, tecido entre o casebre, o curral e o pasto. E é por isso que o sertão deve a ele a tessitura básica de sua vida social e cultural. foi sob o olhar do vaqueiro e ao som de sua voz suja de poeira que se modelou e modulou a vida sertaneja. ouçamos capistrano de abreu, Capítulos de História Colonial. ao vaqueiro “cabia amansar e ferrar os bezerros, curá-los das bicheiras, queimar os campos alternadamente na estação apropriada, extinguir onças, cobras e morcegos, conhecer as malhadas escolhidas pelo gado para ruminar gregariamente, abrir cacimbas e bebedouros. Para cumprir bem com seu ofício vaqueiral... deixa poucas noites de dormir nos campos, ou ao menos as madrugadas não o acham em casa, especialmente no inverno, sem atender às maiores chuvas ou trovoadas, porque nesta ocasião costuma nascer a maior parte dos bezerros e pode nas malhadas observar o gado antes de espalhar-se ao romper do dia, como costumam, marcar as vacas que estão próximas a ser mães e trazê-las quase como que à vista, para que parindo não escondam os filhos de forma que fiquem bravos ou morram de varejeiras”. a paisagem antropológica do sertão não é a mesma do litoral açucareiro. Por uma razão básica: a relativamente tardia e fraca presença do negro no sertão. o vaqueiro foi, no princípio, um homem ibérico, um lusitano, ou já um luso-brasileiro, um mazombo. mas, na maioria das 64

vezes, foi um mestiço, um mameluco, descendente de portugueses e índios. formou-se ali, no sertão, um tipo humano de extração basicamente lusitana e ameríndia. o negro chegou mais tarde e foi de algum modo absorvido na massa etnocultural sertaneja. É claro que podemos ver sua diferença nítida em alguns pontos. mas eles não são muitos. além disso, aqueles amplos espaços do sertão viveram, durante um bom tempo, isolados, curtindo cruzamentos internos. nos meados do século 20, em O Médio São Francisco – Uma Sociedade de Pastores e Guerreiros, Wilson Lins escreveu: “Nas cidades ribeirinhas ainda podem ser encontrados alguns negros. Nas aldeias do interior dos municípios, porém, o elemento negro é praticamente nulo. o camponês das caatingas distantes e dos brejos remotos é quase sempre branco, ou puxado a branco, cabelos avermelhados, nariz e lábios de construção maciça. quando não é assim, é acaboclado, olhos oblíquos, lábios grossos, cabelos lisos, exibindo em tudo a predominância do sangue indígena”. também Darcy ribeiro, em O Povo Brasileiro, fala do “fenótipo predominantemente brancóide de base indígena do vaqueiro nordestino, baiano e goiano”. mas não nos esqueçamos de que luiz gonzaga era mulato. Exibia remotos traços indígenas – e a região onde nasceu foi, inicialmente, povoada por índios. mas era, principalmente, um negromestiço. ou, como ele mesmo se definiu, “um mulato beijador”. E, por isso mesmo, exemplo do que foi dito acima, acerca da diluição de matrizes negras no sertão. mulato razoavelmente escuro – e de origem humilde, pobre –, chegou mesmo a ter problemas com isso: discriminação, preconceito, autodepreciação. na relação conjugal, inclusive. Em Exu, havia uma certa ambivalência dos mais ricos com relação a ele. uma mescla de orgulho por seu sucesso e de racismo diante de sua figura. E ele foi ferido por agressões verbais racistas. Mas a verdade é que nem por isso encontramos, em sua obra ou em suas falas, uma base cultural de extração nitidamente africana. Ele é exemplo consumado do descendente de negros que foi absorvido na massa etnocultural sertaneja.

O sertão foi conquistado na constância. na vigorosa marcha lenta das boiadas e dos vaqueiros – que fizeram nascer uma paisagem de ranchos, malhadas, pastos e currais. Não foi obra de garimpeiros, nem de preadores de índios. mas dos criadores de gado. foi aí, na vida dos currais, que se formou a chamada cultura do couro. “Época do couro” foi a expressão que capistrano empregou para designar a primeira fase do pastoreio brasileiro, explicando: “De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as bruacas e surrões, a roupa de entrar no mato, os banguês para curtume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se o tabaco para o nariz”. E a matériaprima para tudo isso era dada pelo gado. Bois e vacas forneciam, ainda, estrume para adubar alguma rocinha secundária, que se quisesse fazer no curral. E o que significava, culturalmente, um curral? Erguer um cercado para criar animais e uma casa no meio do mato – ainda que uma cabana de barro, couro, cipó e palha – não é o mesmo que armar uma tenda ou barraco de acampamento. no primeiro caso, o que temos é um projeto de permanência. a expressão singela

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de um desejo do definitivo. No segundo, o que se vê é uma declaração do provisório. “Seria de sorte efêmera a paisagem sem o curral, mostra clara de evidente sedentarismo. mesmo as tentativas em busca de salitre ou da concretização do sonho de robério Dias não desvirtuam a origem e o sentido inicial da colonização dos sertões, que estava no curral”, sublinha Eurico alves. o curral é o avesso do nomadismo. Da errância de bandeirantes à cata de ouro ou de índios. É claro que havia deslocamentos de vaqueiros e boiadas, mas quando a necessidade falava mais alto, fosse pela pressão de grupos indígenas ainda reagindo à invasão de suas terras, fosse porque os pastos se haviam tornado poucos ou ralos. O curral era signo do permanecer. Do querer ficar. Era sinônimo não de um pouso rápido na beira do caminho, mas de reduto gravado no corpo da terra. Daí que ele tenha exercido o papel de foco de colonização. É certo que não se pode comparar o curral ao engenho. são grandezas diversas. o tripé formado por casebre, pasto e curral não tinha a solidez, a imponência, a significação demográfica, o aparato tecnológico e a vida cultural do quarteto formado por casa-grande, senzala, capela e fábrica. Eurico alves Boaventura: “a primeira fase [do pastoreio], a da fixação dos currais, verdadeiramente foi reduzida de expressão humana, em se falando de número. não pedia um curral primitivo grande número, largo contingente de trabalhadores. Bastava um casal para gerir uma fazenda e fazer com que germinassem os mestiços de que se encheu o sertão. as instalações de uma fazenda daqueles idos... eram rudimentares e sumárias. Expressão do ciclo vaqueiro tão só. rigorosamente de pouca coisa se necessitava para fundar uma fazenda, então: coragem e desprendimento pela própria pessoa. E, depois, o essencial para os currais eram a casa, a trancos e barrancos levantada, de qualquer jeito, o cercado do curral, do aprisco propriamente, os couros – armadura para as investidas contra os inimigos solertes da caatinga – e a vara-de-ferrão, o ferro com as iniciais do dono ou o desenho da sua predileção e só”. o curral era coisa simples, quase a encarnação da simpleza. mas nem por isso deixou de promover um novo tipo de povoação das terras sertanejas. nem de desempenhar, ali, uma função colonizadora. ao ser aberto em algum segmento do sertão, jamais deixaria de produzir uma certa modificação no lugar. Apresentava alimentos até então desconhecidos, como a carne e o leite bovinos, e mesmo um que outro espécime vegetal. introduzia uma técnica de criação de animais, outra de fabrico de utensílios. Exibia um casebre algo distinto das habitações indígenas. criava mais um pequeno ponto onde era possível ouvir a língua portuguesa. E, sobretudo, gerava mestiços, que constituiriam a base de uma nova gente sertaneja.

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além disso, outro aspecto deve ser enfatizado: a multiplicação dos currais. as sesmarias, os grandes latifúndios, não cessavam de gerar novos currais, pontilhando suas terras com criatórios. os currais iam se sucedendo na distância. compondo uma rede. E essas malhas de currais formavam uma espécie de frente colonizadora. uma frente que, no seu avanço, ia gerando pequeninos arraiais. futuras vilas. talvez, cidades. na região do são francisco. Em sergipe. no Piauí. Em Pernambuco. no ceará. na Paraíba. Eurico: “vê-se que, em toda parte por onde rolou um aboio vespertino para um pouso, marcando o final de uma marcha, ou se acendeu a trempe para o repasto rude de uma tropa, caiu a semente de uma cidade ou vila sertaneja. a história de muita vila, de muita cidade, quando não é o eco de um salmo ou de uma ladainha... é a ressonância de um aboiado, de uma estada das grandes boiadas”. na própria região onde gonzaga nasceu, diversos povoados brotaram em fazendas. como Baixio dos Doidos, depois timorante, na fazenda da caiçara. ou araripe, onde Januário e santana se casaram, que era um povoado dentro da fazenda Várzea Grande. Nesses espaços se foi configurando, enfim, com o tempo, uma variante específica no conjunto cultural brasileiro. É a cultura do sertão, com seus traços tão fortemente distintivos. Darcy ribeiro sintetiza, falando de “uma subcultura própria, a sertaneja, marcada por sua especialização ao pastoreio, por sua dispersão espacial e por traços característicos identificáveis no modo de vida, na organização da família, na estruturação do poder, na vestimenta típica, nos folguedos estacionais, na dieta, na culinária, na visão de mundo e numa religiosidade propensa ao messianismo”. É o sertão dos açudes, da carne de sol, de procissões monótonas pedindo chuvas, do senhor Bom Jesus da lapa, do Padre cícero, das pequenas capelas rurais, das romarias, da mula sem cabeça, das rezadeiras e benzeduras, do culto às santas almas dos vaqueiros, das feiras coloridas, da lealdade jagunça, do xaxado, do xote, do baião. E do cangaço. o cangaço seduziu e aterrorizou, simultaneamente, nossa população sertaneja. De uma parte, havia o fascínio por aquela vida viril – nômade e livre –, que não se prendia ou se submetia à rotina a serviço dos grandes proprietários rurais, além de desacatar e desafiar ordens de autoridades públicas. mas, de outra parte, havia o medo (o pavor até) de topar com um cangaceiro, numa vila, numa feira, numa estrada qualquer. as razões que levavam um indivíduo a se tornar cangaceiro tinham raízes diversas e muitos matizes. E a escolha não deixava de ser facilitada pela dimensão da violência que marcava a vida nordestina. violência e misticismo vincavam fundamente a vida no Nordeste. E, não raro, se entrelaçavam. Beatos e jagunços eram figuras reversíveis. o mesmo sujeito que debulhava o terço podia despachar caroços de chumbo. terra de rezas e rifles, portanto. De ladainhas e tiroteios. De penitências e punhais. Ali, alguns caíram no cangaço por mero espírito de diversão e aventura. outros, para escapar do horizonte fechado da região. Para ganhar dinheiro e mulheres. muitas vezes, apenas se ajuntando a parentes que já integravam grupos bandoleiros. Porque, enfim, viam no cangaço uma perspectiva de vida bem mais interessante do que o rame-rame de um cotidiano entre o casebre e a roça, os dias se passando iguais ao cabo da enxada. mas, na maioria dos casos, ao que parece, o sujeito se fazia cangaceiro quando, vítima de alguma injustiça, resolvia não baixar a cabeça ou se resignar em silenciosa amargura. Mas se vingar de seus opressores. Cometido o crime, dificilmente teria como permanecer na vida de sempre, plantando milho ou feijão, ordenhando cabras, vendendo 67


infusões numa barraquinha de feira, cultivando sua rocinha ou trabalhando numa fazenda. se não se convertesse em jagunço de algum coronel do sertão, o mais provável era que o sujeito fosse empurrado para a margem maldita da sociedade. obrigado a se tornar um fora da lei. alguns decidiam sumir, meter o pé na estrada, mudando-se para algum lugar distante do local do crime, onde ninguém teria notícias do seu passado. outros terminavam ingressando no cangaço. ao entrar para o cangaço, caindo fora do encadeamento rotineiro das coisas do sertão, o sujeito adotava um novo modo de vida. Esta passagem – no caso do bando de lampião, por exemplo – era assinalada ritualmente. o recém-chegado ganhava um novo nome. não raro, herdava o apelido ou nome-de-guerra de algum cangaceiro morto em refrega, reiteração nominal talvez impregnada de sentido mágico. E seu novo modo de vida, sua diferença com relação ao grosso da população rural, se expressava em gestos, nos cabelos e nas vestimentas, simbolicamente semantizados. não por acaso, os cangaceiros roubavam e compravam tantas joias. Era a semiótica vestual do cangaço. uma realidade que, em termos de “banditismo social”, é generalizada, como nos mostrou Eric Hobsbawm, sublinhando o alto grau de formalização do inconformismo no vestuário dos banditti – que, para ele, encontraria a sua expressão mais elaborada nas indumentárias extravagantes dos haiduks búlgaros e dos klephts balcânicos. quando criança, aliás, o sonho de lua era ser cangaceiro. E quando se fala de cangaço, uma dimensão não deve ser deixada de lado. É a dimensão lúdico-estética. Havia uma poesia no cangaço, tradição nordestina do cordel, retrabalhando temas e formas de origem ibérica, com suas sextilhas e redondilhas, em tantas quadras e tantos pés. Havia música, também – a trilha sonora do cangaço, sempre tudo ao som do fole, da viola e do pandeiro. E havia uma poemúsica do cangaço, quando palavra e acorde se casavam, ainda no caminho trovadoresco. Poesia, música, poemúsica, que acompanhavam os cangaceiros em suas andanças e escaramuças por terras nordestinas. arte e festa. a própria guerra era uma festa. E não só em torno dos preparativos para o ato bélico. a batalha era uma folia. algazarra. tiroteio entre chistes, cantigas, urros e palavrões. incursões mais festivas do que os assaltos da quadrilha Barrow, no Bonnie & Clyde de arthur Penn. fácil imaginar a cabroeira pelo meio da noite, fuzis faiscando ao luar do sertão – e a briga pipocando de repente, bala pra todo lado, incêndio no mato e nas casas, reses feridas estrebuchando, gente abatida sem pena, gritaria. E o bando entoando trovas guerreiras ou sexuais no meio do fogo. Em Lampião – Memória de um Oficial de Forças Volantes, optato gueiros relata uma refrega entre sua tropa e o bando, ocorrida em 1926, no riacho serrotes, onde lampião “entretinha-se com as morenas bonitas da família Pequeno”, tradicional família de bandoleiros nordestinos. conta optato que, “no mais aceso da luta”, os cangaceiros “cantavam, descompunham, relinchavam e imitavam muitos outros animais”.

Esta mistura de festa e violência na vida sertaneja vai, naturalmente, além do cangaço. gonzaga recriou esteticamente o tema, como em O Fole Roncou e Forró de Mané Vito, parcerias com nelson valença e zé Dantas, respectivamente. farra, forró e fuá. mas gonzaga pega a porrada na festa. Enquanto que, no caso do cangaço, trata-se do que há de festivo na guerra. mas nem só de violência e misticismo viveu o cangaço. como foi dito, viveu de festa também. E se as coisas eram assim no pleno guerrear, imagine-se em tempos de paz relativa. o árabe Benjamin, 68

que passou seis meses filmando o bando, deixou o seguinte depoimento: “Quando tinha certeza de que estava em lugar seguro e completamente a salvo de ataques da polícia, [lampião] tocava sanfona dias inteiros”. a turma adorava um forró. organizava festas para comemorar cada surra dada nos “macacos”, cada empreitada bem sucedida ou, simplesmente, para farrear. Eram bailes na caatinga, com os cangaceiros tocando, dançando e improvisando seus versos ao quebrar da barra, quando se pega o sol com a mão. Em Lampião: as Mulheres e o Cangaço, corrêa de araújo escreveu: “os cangaceiros tinham os bailes como seu principal divertimento, tanto é que várias vezes foram atacados, e até mesmo mortos alguns, enquanto dançavam”. mergulhão e moreno morreram assim. E araújo está certo: “a diversão predileta dos cangaceiros era dançar... ao som alegre da música sertaneja”. no bando do poeta lampião. ou do artista, já que virgulino era “multimídia”. artesão, aos 17 anos já sabia fazer tudo que era obra de couro, coisas vaqueiras, tipo sela, perneira, gibão, alforje. guerrilheiro, aplicou uma tira de couro para detonar sucessivamente seu rifle, transformando-o numa espécie rude de pré-metralhadora. Músico, tocava sua viola e uma sanfona de oito baixos. Poeta, poetava. nos volumes de Lampião, seu Tempo e seu Reinado, Bezerra maciel enfatiza os dons artísticos do rei do cangaço, cuja formação poética se processou entre versões nordestinas das proezas de carlos magno, narrativas orais sobre cangaceiros famosos, como antonio silvino, aventuras de cabras sertanejos romanceadas por autores e cantadores de cordel. lampião curtiu cordel desde a infância e é natural que tenha extraído daí seu modelo da personalidade heroica. uma de suas diversões favoritas, quando criança, era justamente brincar de cangaceiro, além de comprar folhetos “para ler, decorar e cantar no pinicado da viola. ou na sanfona de oito baixos, da qual, desde os nove anos de idade, já tirava acordes”. atualmente, aliás, não existem menos do que 200 folhetos de cordel tematizando a vida de virgulino – e mais uma centena falando de seus feitos post mortem, embates e arruaças no além, geralmente batalhas contra o capeta, mas também ao menos uma passagem pelo paraíso, em “a chegada de lampião no céu”, de rodolfo cavalcanti. tudo isso converge para a criação gonzagueana. mas é bom sublinhar o seguinte: o baião ou baiano é uma coisa – o baião de luiz gonzaga é outra. Para fazer o que fez, gonzaga teve de partir, com toda a sua disposição crítica e criativa, para uma reformulação dos gêneros poéticomusicais nordestinos. gonzaga escolheu o baião. Para nele imprimir ou realçar uma vitalidade rítmica para a qual definiu um desenho sonoro, à base de sanfona, zabumba e triângulo, com a percussão respondendo aos chamados do fole, assim substituindo o tradicional trio composto de viola, rabeca e pandeiro. mas o que me interessa aqui não é tentar refazer a história do baião. o que importa é sublinhar a maravilhosa recriação gonzagueana da estética musical nordestina. caetano veloso: “não é absolutamente verdade que luiz gonzaga tenha abastardado a música nordestina numa redução comercial. você que já conheceu luiz gonzaga no rádio e no disco não venha agora com onda carioca. Ele foi o cara que, no seu tempo, mais e melhor explorou a riqueza possível dos novos meios técnicos. Ele inventou uma forma de conjunto, um tipo de arranjo, um uso do microfone. Ele sugeriu uma engenharia de som”. Esta é a questão. “Baião” ou “baiano”, segundo câmara cascudo, era uma dança. “Dança rasgada, lasciva, movimentada, ao som de canto próprio, com letras, e acompanhamento a viola e pandeiro, e originária dos africanos”, segundo a informação de Pereira da costa. mas cascudo avisa ainda que, entre os 69


cantadores sertanejos, “baião” não era canto nem dança. Era “uma breve introdução instrumental, executada antes do ‘desafio’, antes do debate vocal entre os dois cantadores”. E mais: “o baião pode ser tocado à viola apenas, sem canto”. gonzaga partiu justamente desse pequeno trecho musical, mas para nele colocar toda a ênfase e o brilho de sua sanfona. luiz gonzaga (na reportagem “o Eterno rei do Baião”): “quando toquei um baião para ele [Humberto teixeira], saiu a ideia de um novo gênero. mas o baião já existia como coisa do folclore. Eu tirei do bojo da viola do cantador, quando faz o tempero para entrar na cantoria e dá aquela batida, aquela cadência no bojo da viola. a palavra também já existia. uns dizem que vem do baiano, outros que vem de baía grande. Daí o baiano que saiu cantando pelo sertão deixou lá a batida e os cantadores do Nordeste ficaram com a cadência. o que não existia era uma música que caracterizasse o baião como ritmo. Era uma coisa que se falava: ‘Dá um baião aí...’ tinha só o tempero, que era o prelúdio da cantoria. É aquilo que o cantador faz, quando começa a pontilhar a viola, esperando a inspiração”.

O que Luiz Gonzaga fez foi instaurar um gênero. foi organizar, na sua sanfona, o que rolava de modo esparso e difuso no mundo sertanejo. E soube concentrar as coisas, em função de sua intervenção. uma formação de banda instrumental, tipicamente concebida para estúdios de gravação, rádios, shows. E que deu certo. Como, ainda hoje, dá. De que é exemplo a perfeitíssima adequação de palavra e som, de sílaba e acorde, num encadeamento irresistível, em Pé de Serra. É aí que vamos ver a originalidade gonzagueana, enquanto arranjador maior dos sons do sertão. E como introdutor do baião no vasto salão da música popular urbana do Brasil. um gênero que impressiona e mobiliza o corpo pelo fato de ser essencialmente rítmico. luiz gonzaga era um grande sanfoneiro, um grande músico, um grande arranjador. Escrevem luiz carlos saroldi e sonia virginia moreira, em Rádio Nacional: o Brasil em Sintonia, ainda que numa visão muito esquemática: “o problema não era de falta, mas de excesso. tratava-se de selecionar, no vasto mundo dos ritmos sertanejos, o de mais fácil assimilação no centro-sul do país. também a instrumentação utilizada nas origens (viola, rabeca, etc.) cedia lugar ao trio acordeão, triângulo e zabumba, síntese mais acessível aos grandes centros urbanos. todos os ingredientes estavam prontos para provocar uma grande mexida na música popular brasileira. E o cenário desta revolução dispunha de quinhentas poltronas estofadas e transmissores de cinquenta quilowatts”. Em 1946, o grupo Quatro Ases e um Coringa gravou Baião. “foi no auditório da rádio nacional que os cinco rapazes cearenses tiveram a primazia de ensinar o Brasil a dançar o baião, espécie de febre musical que logo se espalhava de norte a sul do país, multiplicada por êxitos como Paraíba e Baião de Dois, ambos criados por Emilinha Borba, não por acaso uma das estrelas de primeira grandeza do auditório da PrE 8”. tinhorão, em sua Pequena História da Música Popular, atribui o sucesso do baião ao ritmo quente, altamente dançável: “...o novo tipo de canção popular e ritmo de dança explodiu em 1946 no mercado musical saturado de boleros e sambas-canções abolerados como uma redescoberta da vitalidade rítmica”. a própria letra de Baião apresentava o gênero como ritmo de dança. ainda tinhorão: “como lembraria com muita oportunidade o musicólogo cruz cordeiro no artigo intitulado Folcmúsica e Música Popular (revista da música Popular, n. 7, maio-junho de 1955), enquanto o samba se amolengava desde meados da década de 1940, ‘sendo mais bolero, blues, tango, qualquer outra coisa menos

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samba brasileiro’, o baião ia ganhar rápida popularidade pela vitalidade da sua contribuição rítmica: ‘o baião – escrevia cruz cordeiro referindo-se em 1955 aos quase dez primeiros anos de existência do gênero – se manteve única e exclusivamente pelo ritmo próprio pelo qual se tornou música popular e internacional’”. mas vamos colocar isso de uma perspectiva mais ampla. a música popular se impôs no Brasil na convergência de grandes transformações sociais e tecnológicas. Entre as últimas décadas do século 19 e as primeiras do século 20, tivemos: a abolição do sistema escravista; a intensificação do processo de urbanização do país; a chegada, entre nós, da tecnologia de reprodução da voz; a projeção massiva das emissoras de rádio. quando luiz gonzaga nasceu, a abolição da escravidão no Brasil era coisa de pouco mais de 20 anos antes. Ele veio ao mundo quando a lei áurea completava 24 anos de promulgação. Era coisa recente, em termos históricos, sociais e culturais. quando gonzaga cresceu, havia cidades para receber e disseminar seu som. assim como a história do futebol, a história da música popular, tal como a conhecemos, é sociologicamente indissociável da abolição da escravidão e do fenômeno urbano. a abolição de 1888 não foi um simples autógrafo da Princesa isabel num pedaço de papel, mas uma revolução social de consequências então imprevisíveis. não vamos negar ingenuamente suas repercussões. líderes negromestiços choraram na época. foi uma vitória que teve muito de espetacular. E a verdade é que há um abismo entre ser escravo e não ser escravo. Depois de 1888, pretos e mulatos passaram a circular com outro corpo pelas ruas das cidades brasileiras. E aquele foi também um período digno de nota na história da cidade no Brasil. aumentou o grau de urbanização do país, graças principalmente à expansão da cultura cafeeira e ao declínio do sistema escravista. o desenvolvimento da cafeicultura provocou o crescimento e mesmo o nascimento de cidades. aglomerados urbanos nasciam modernos ou se modernizavam, com praças, teatros, hotéis, iluminação a gás, transportes coletivos, serviços telefônicos, etc. Em três décadas (1870-1900), triplicou a população do rio de Janeiro, enquanto a de são Paulo aumentou sete ou oito vezes, impondo novas formas de convívio. o café aprimorou ainda o sistema brasileiro de transportes. tornou-se rotineira, naquela época, a navegação a vapor. Enramou-se a nossa urdidura ferroviária. O que significa que distâncias encurtaram, contatos se fizeram mais dinamicamente, isolamentos foram rompidos. A tecnologia de reprodução da voz data de fins do século 19. “No Brasil, o aparecimento das então chamadas máquinas falantes, primeiro usando cilindros, e mais tarde discos de 78 rotações, verificou-se em um momento precioso: praticamente contemporâneo da abolição do regime 71


escravo”, notou tinhorão, em Música Popular: do Gramofone ao Rádio e TV. as primeiras pessoas que tiveram a voz gravada no Brasil faziam parte da elite dirigente. um ano depois da abolição da escravidão, o fonógrafo foi apresentado no palácio imperial de laranjeiras. Em seu livro sobre a história da música popular brasileira, ary vasconcelos diz que, entre os primeiros brasileiros a ter sua voz reproduzida, estavam Pedro ii, a princesa isabel, o visconde de cavalcante, o conde d’Eu, etc. tinhorão informa que, naquela noite, o príncipe Pedro augusto “solfejou”. foi o primeiro brasileiro a gravar cantando. mas quem imaginaria ali, na noite imperial das laranjeiras, que, tempos depois, seriam gravados e aplaudidos nacionalmente os batuques negromestiços da ralé? Para que isso acontecesse, foi preciso não apenas que houvesse produção de discos (coisa que, no Brasil, se iniciou aí por volta de 1904), mas também que o rádio tivesse se tornado comercial, que as vibrações elétricas escapassem das asas do Estado e, entregues à iniciativa privada, deixassem de lado os concertos de música erudita. a década de 1930 foi decisiva. surgiu ali o rádio comercial. E, como não dava para ganhar o grande público com uma receita de música erudita e propósitos pedagógicos, nossa música popular enxameou nas emissoras. O rádio se profissionalizou e houve uma enorme expansão na venda de aparelhos receptores. Essas conjunções entre música popular e disco, entre canção e rádio, produziram alterações profundas na sociedade brasileira. mudaram o nosso jeito de ser e de estar. claro: rádio é mass medium. E era o grande canal de informação e entretenimento daqueles tempos pré-televisuais. transmitindo formas e conteúdos a grandes distâncias, pôs à disposição de inumeráveis ouvintes o repertório musical brasileiro. E nossos músicos, distribuindo suas especiarias, participaram do processo psicossocial de transformação das estruturas da sensibilidade brasileira. através do rádio, a música popular nos mostrou a nós mesmos, em todo o nosso colorido de cultura. veio à luz a multiplicidade cultural brasileira. com caymmi trazendo o samba-de-roda e as canções praieiras. com o samba da malandragem carioca. com o samba “al sugo” de adoniran. com ary, geraldo Pereira, lupicínio, assis valente, etc. na promoção dos discursos populares brasileiros, o rádio revelava nossa natureza de país mestiço, sincrético e plural. E aqui luiz gonzaga – circulando no eixo das cidades mais modernas do Brasil, tocando nas emissoras de rádio e gravando discos – entrou com o Brasil Sertanejo. Desde o final da década de 1930, Gonzaga começou a aparecer no rádio. Em programas de calouros. tocando tango ou chorinho, por exemplo. mas, no ano de 1940, resolveu mandar ver em base totalmente nordestina, sertaneja. “nesse dia, gonzaga saiu da tupi feliz da vida. conseguira realizar vários sonhos de uma vez só: tocar numa rádio importante, tirar nota máxima no mais exigente dos programas de calouros, ganhar 150 mil réis, impressionar ary Barroso... no entanto, naquele bendito domingo, o maior êxito de gonzaga foi o de ter afirmado, com sucesso, sua personalidade própria, sua originalidade, interpretando não aquilo que estava na moda, como fazia nos bares, nos dancings, nas esquinas das ruas e nos programas de calouros, mas o que ele próprio estava a fim de tocar. A bem-sucedida passagem pelo ‘Calouros em Desfile’ rendeu-lhe dinheiro, o prazer do sucesso, um impulso para seguir na direção escolhida” (Dreyfus). Em seguida, tocava na rádio transmissora (futura globo), com zé do norte. E foi de emissora em emissora, empolgando públicos cada vez maiores. no programa “alma do sertão”, na rádio clube. na mayrink veiga. na tamoio. Etc. E muito nas rádios record e cultura, em são Paulo, cidade então cheia de nordestinos, todos eletrizados pelo baião.

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Mas as coisas não aconteceram de uma hora para outra. na cabeça do artista, uma obsessão: apresentar, em sua inteireza (a qual ele sentia e intuía), o projeto nordestino. gonzaga: “Eu queria cantar o nordeste. E pensava que o dia em que encontrasse alguém capaz de escrever o que eu tinha na cabeça, aí é que eu me tornaria um verdadeiro cantor”. gonzaga: “Eu queria cantar o nordeste. Eu tinha a música, tinha o tema. o que eu não sabia era continuar. Eu precisava de um poeta que saberia escrever aquilo que eu tinha na cabeça, de um homem culto pra me ensinar as coisas que eu não sabia. Eu sempre fui bom ouvidor. cheguei até a enganar que era culto!”. E o “alguém” apareceu. foi o advogado cearense Humberto teixeira. no primeiro encontro, em poucos minutos, os dois compuseram Pé de Serra. logo adiante, Baião, sucesso total. Em seguida, brilhou outro “alguém”, o médico zé Dantas. gilberto gil, também ele um homem de formação essencialmente sertaneja, deu um depoimento comovido sobre o assunto, quando soube da morte do rei do Baião: “luiz gonzaga iluminava a minha vida, do mandacaru ao pé-de-serra. Eu era menino, vivia no sertão, na caatinga, numa pequena cidade do interior da Bahia. Gonzaga refletia a nossa cara. Vinha com uma temática que até nos envaidecia, porque falava de nossa vida. Da vida no mundo rural do sertão brasileiro. E a gente ficava vaidoso porque a nossa vida era tocada no rádio. Ele interpretava o homem sertanejo. A vida severina. o humor característico do homem do sertão. Era um misto de crítica, felicidade e nostalgia. fazia uma certa crítica da cidade, celebrava a alegria interiorana e falava de uma certa nostalgia do mundo sertanejo. Podia ser melancólico em ‘vozes da seca’ e bem-humorado em ‘Baião de Dois’. E ele soava com essa alegria porque era cioso do seu pioneirismo em desbravar a cidade com o sertão. Descrevia o umbuzeiro, o romeiro, o tropeiro, o retirante, o boiadeiro, a função da feira na vida social sertaneja, o gado, etc.”. lua atuava sem nenhuma inibição nos meios de comunicação de massa. caetano veloso: “a formação de luiz gonzaga é pop, uma solução que ele, emigrante, morando no rio, tentando a vida, ali na transação da rádio nacional e gravadoras. Ele inventou algo que funcionou. É algo pop, como os Beatles. luiz gonzaga, para mim, é um grande artista pop”. Dominique: “luiz gonzaga, primeiro produto industrial da cultura nordestina, tinha se tornado um fenômeno de massa, comparável, num nível nacional, aos futuros Elvis Presley e Beatles”. Desde que começou a ganhar dinheiro, tocando em bailes como sanfoneiro profissional, Gonzaga sempre reservou uma parte da grana para caprichar nas roupas. no visual. lua gostava de música, elegância e sexo. sempre esteve muito atento para a intervenção no campo visual das relações humanas e sociais. vemos isto no aspecto vestual de seu desempenho. toda uma semiótica se revela aí. Ele se vestia ora de vaqueiro, ora de cangaceiro, ora misturando as duas coisas. gonzaga batalhou por seu projeto nordestino. até conseguir o que queria, chegou a imitar carlos gardel e a tocar valsas e boleros (Farolito, entre outros). mas abrigava, de modo até obsessivo, o seu projeto. Demorou, mas conseguiu levá-lo à prática. a conjuntura não deixava de ser propícia a uma recuperação forte e criativa do nordeste e da cultura sertaneja. mas, mesmo assim, não foi fácil. a começar, justamente, pelo lance vestual. gonzaga: “Ele [o sanfoneiro gaúcho Pedro Raimundo] já tinha me influenciado porque sendo gaúcho ele fazia tudo de lá, então eu tinha que fazer tudo ao contrário dele. mais uma vez ele me serviu, porque usava bombacha, botas, chapéu gaúcho, guaiaca e chicote. Então, eu achei que Pedro raimundo era minha base, comecei 73


a pensar que tipo eu podia fazer, porque o carioca tinha sua camisa listada, o baiano tinha o chapéu de palha, o sulista era aquela roupa do Pedro. mas e o nordestino? Eu tinha a oportunidade de criar sua característica e a única coisa que me vinha à cabeça era lampião... telegrafei para minha mãe, pedindo que me enviasse um chapéu de couro bonito, lembrando lampião”. Era um momento em que o Brasil estava se mostrando a si mesmo. mas quando gonzaga apareceu de chapéu de couro no auditório da rádio nacional, foi simplesmente proibido de cantar. “aqui não é casa de cangaceiro”, disse-lhe, rispidamente, o diretor artístico da emissora, floriano faissal. gonzaga tinha de trabalhar becando “summer”. mas, com o tempo, gonzaga venceu. E não só de chapéu de cangaceiro. mas com gibão de couro, cartucheira, sandálias. Por tudo isso, foi luiz gonzaga – e não caymmi – a estrela da migração nordestina para são Paulo. o rei do Baião se projetou no contexto dessa migração massiva. E desempenhou aí o papel de referencial de cultura, influenciando na coesão psicossocial do migrante e, graças ao sucesso que alcançou no sul do país, no processo de integração do “baiano” na nova realidade sudestina. É evidente que ele não foi o único a tematizar esses fluxos migrantes. Peguei um Ita no Norte, de caymmi, é um equivalente litorâneo do Pau-de-Arara, de gonzaga e guio de moraes. mas o caso de gonzaga tem sua especificidade. Gonzaga é a grande expressão poético-musical da onda migratória nordestina que – especialmente, a partir da década de 1940 – cresceu em direção ao centro-sul do país, voltando-se, sobretudo, para são Paulo. mas de um segmento perfeitamente delimitável dessa onda migratória: o popular. ao contrário do que geralmente se costuma pensar, a migração não é um fenômeno restrito às massas trabalhadoras. Há migrantes de todas as classes sociais. cada um se engaja a seu modo, e dentro de suas posses, na mudança. gonzaga fala do ponto de vista do migrante pobre. Pau-de-Arara é isso.

A intensidade das migrações nordestinas, no período focalizado por gonzaga, levou alguns estudiosos a falar que o homem do nordeste tinha uma espécie qualquer de “instinto migratório”. ou, o que é ainda mais engraçado, achava-se possuído de alguma “mania ambulatória”. o atraso tecnológico, a miséria social e as asperezas ecossistêmicas convergiram para situar, no nordeste, as zonas mais expulsivas que se poderia encontrar, então, em toda a extensão do território brasileiro. fato que gerou, inclusive, a crença regional de que sair do Nordeste significaria, invariavelmente, melhorar de vida. Daí que o sociólogo Luiz Aguiar Costa Pinto fale de uma “ideologia migratória” característica desse espaço geossocial, cuja “ideia dominante é circular, é sair fora do quadro sociológico local e tradicional”. o nordeste fora excluído do universo da produção industrial brasileira. restavam, na região, cidades voltadas

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para atividades de comércio e de serviços. E uma arcaica estrutura agropastoril. mas enquanto o nordeste vegetava, havia o avanço da indústria no Brasil meridional. também na dimensão econômica, o nordeste se convertera em área expulsiva. E o ímã que atraía seus migrantes era o polo dinâmico da economia brasileira, axiado em são Paulo. o nordeste – especialmente, a partir do esforço de atualização histórica promovido por getúlio vargas (quando a região foi marginalizada pelas políticas econômicas governamentais) – aprofundou então seus processos de descapitalização e de evasão da mão-de-obra. não foi por acaso que apareceram, nessa época, os primeiros estudos sobre migrações internas no Brasil. Este fluxo migratório em que se insere luiz gonzaga é dos mais complexos. não se trata de migração de uma zona rural para outra. De migração de roças para pequenas cidades. ou de migração de um centro urbano para outro. mas de migração de antigas e tradicionais comunidades campestres – praticamente paradas no tempo, cultivando de geração a geração os velhos valores de sempre – para o explosivo mundo urbano-industrial, que então começava a se configurar no país. Mais do que de uma transição, trata-se de um corte brusco e radical. Eram milhares e milhares de camponeses que passavam, de repente, à condição de urbanitas. a história da cidade, no Brasil, foi marcada por isso. Por este deslocamento massivo da communitas à gesellschaft. E isto traz à luz, de modo agudo, o problema da integração social e cultural do migrante. o sujeito caía na roda-viva de um novo universo geográfico, climático, social e cultural. E jamais se dá sem dificuldade este salto de uma gente “tradition-directed” em direção a uma outra ordem, onde passavam a vigorar direitos e modos associativos dessemelhantes dos que as pessoas conheciam em seus lugares de origem. Entravam em jogo, em são Paulo e num horizonte de crise, toda uma teia de valores, padrões de comportamentos, estruturas de crenças e relações de trabalho etc. E tudo se desdobrando num meio muitas vezes hostil, em cujo âmbito se multiplicavam as piadas de baiano. luiz gonzaga não só tematizou essa migração, como em Paraíba e Asa Branca, ambas em parceria com Humberto teixeira, como teve uma presença fundamental na vida do migrante. E qual o papel de Gonzaga no entrecho dessa conjuntura? Simples. Penso que é possível afirmar que Luiz Gonzaga desempenhou o papel nada insignificante, social e culturalmente, de uma força antidesagregadora. atuando na dimensão dos signos – e em plano de massas –, gonzaga trazia consigo um universo familiar aos nordestinos, com suas representações conhecidas e seus referenciais nítidos. “o sertão é ele”, declarou câmara cascudo, à lembrança dos ritmos e das paisagens dos sertões pernambucanos. assim, enquanto devolvia ao nordeste um espelho onde a região tratasse de se contemplar e rever, gonzaga exerceu uma função importantíssima com relação ao impacto nordestino na história social de são Paulo. contribuiu para a coesão psicossocial do migrante. Para a preservação de formas e práticas culturais nordestinas, sertanejas, nesse contexto migratório. E para a introdução de tais formas e práticas no mundo urbano-industrial que se formava. Logo, contribuiu, decisivamente, para os processos de afirmação, assimilação e fixação (inclusive, em assentamentos urbanos diferenciados) da corrente migratória. Desse modo, evitou que se esgarçasse ou se rompesse, na migração, o tecido original da cultura sertaneja nordestina. E ainda contribuiu para sua afirmação nos bairros que hoje compõem o cinturão mais colorido e mais vivo da periferia da maior cidade que os brasileiros construíram. francisco 75


Weffort, em sua leitura a vôo de pássaro da história das “massas populares” (existem “massas elitistas”, Weffort?), em São Paulo, sublinha a “visibilidade cultural dos nordestinos”. Gonzaga é indestacável deste processo. Desta realidade. com sua poesia, sua música, sua indumentária lampiônica, ele contribuiu, mais do que qualquer “deputado baiano”, para esta “visibilidade cultural”. a destruição de um modo de vida tradicional encontrou, no sanfoneiro gonzaga, um anteparo – e uma antena. lua não só retratou um “arcaísmo social”, com se dispôs a penetrar, com sucesso, no mundo das paixões e pulsões da sociedade urbano-industrial do Brasil meridional. viu que era possível reconstruir uma unidade na dimensão da cultura. E isto a partir de uma adequação – não subordinada – do subsistema cultural sertanejo às realidades em movimento numa nova esfera metropolitana.

Mas vamos finalizar. o fato foi que gonzaga se impôs. conheceu herdeiros e futuros herdeiros. Em 1954, aliás, na feira de garanhuns, conheceu o futuro grande sanfoneiro Dominguinhos, então ainda uma criança, tocando em troca de uns trocados. adiante, topou com a Patrulha de Choque de Luiz Gonzaga, onde brilhava Marinês. Mas não vamos ficar aqui fazendo um rol. No final da década de 1950, Gonzaga podia olhar para trás e se congratular consigo mesmo pela espetacular vitória cultural de seu projeto nordestino. Depois disso, veio o declínio – no horizonte da cultura de massa de um país que se atualizava e procurava se afirmar no mundo como nação moderna. Era o Brasil sob o signo de Brasília. No campo especificamente musical, o rock’n’roll e a bossa nova – em seguida, a jovem guarda – ocuparam o centro da cena. gonzaga como que foi tangido de volta para o sertão, embrenhando-se por terras interioranas. Por cidades distantes, longe dos grandes centros urbanos do Brasil. a realidade então era outra – tanto a realidade cultural do país, como a realidade pessoal do cantor. com o tempo, no entanto, gonzaga renasceria para todo o país. cantando e soando na voz da novíssima geração da década de 1960. caetano vai recorrer a Asa Branca, para falar de uma seca metafórica: a desolação das terras brasileiras que o forçaram ao exílio londrino. ao poder voltar do exílio para sua terra natal, caetano vai de novo lançar mão de gonzaga, cantando A Volta da Asa Branca. E o baião continuou dando frutos – e os frutos do baião são muitos. sua lição central é a do trato novo do arcaico, no campo de uma dialética que atravessa a cultura brasileira: a dialética entre invenção e tradição. E temos de ver o baião, também, como um modo brasileiro de leitura e tradução de gêneros musicais estrangeiros. como no caso do reggae jamaicano. num disco de gilberto Gil, às vezes, ficamos sem saber onde começa uma coisa e termina a outra. Em suma: o baião, embora tenha sido coqueluche, não foi somente moda. Veio para ficar, transfigurando-se. Ele e seu rei – e para sempre. mesmo quando o sanfoneiro partiu, subindo por dentro das estrelas, com a luz clara de seu fole prateado.

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Fui um moleque feliz. No sertão, todo moleque que não vive no domínio de senhores perversos é feliz. Tem suas compensações a pobreza. A liberdade ampla, a natureza imensa a sugerir uma grandeza que está longe de atingir. Luiz Gonzaga

Ser Tão Gonzagueano Ensaio fotográfico

G u s tav o M o u r a

xilogravura

João Pedro do Juazeiro

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“Eu gostaria de ter um prefixo, assim como um aboio (...) eu senti que Boiadeiro não marcava uma região, que era uma canção que podia ser cantada no Brasil inteiro como sendo sua e eu então achei que boiadeiro se prestava a isso e apliquei ali um aboio...” Luiz Gonzaga

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“Bom vaqueiro nordestino Morre sem deixar tostão O seu nome é esquecido Nas quebradas do sertão” Luiz Gonzaga e Nelson Barbalho

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“O sertão é o terreno da eternidade, da solidão...” Guimarães Rosa

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Uma visão geral do repertório de Gonzaga A discografia de Luiz Gonzaga revela um repertório significativo de gravações — cerca de 1.538 gravações de 633 canções — que abrangem as seis décadas de sua vida profissional. A quantidade de gravações de sua obra realça sua participação como parceiro ou mesmo autor e, principalmente, como cantor e acordeonista. A função desses elementos, juntos, aponta para a importância de sua popularidade como um artista de muitos talentos. Gonzaga, com certeza, é um modelo de alguém que chegou ao estrelato pelo próprio esforço, muito antes de a indústria cultural no Brasil consolidar-se.1 Sua determinação para ser artista superou vários estádios até receber o título de “Rei do Baião,” em São Paulo, no ano de 1951. Em sua primeira fase, — 1941-46 — revelou-se como intérprete do repertório popular do Rio de Janeiro, que incluía desde Ernesto Nazareth até suas composições de mazurcas, choros, valsas, polcas, sambas, todas executadas no acordeon. Uma ou outra vez ele introduzia o repertório que tocava no sertão nordestino, repleto de xotes, xamegos, xaxados, miudinhos, seridó, calangos, uma variedade de danças muito populares nos sambas e forrós. Intencionalmente, faço uso dos dois últimos termos que, na sua origem, nomeavam geograficamente os locais onde se realizavam os bailes e, em nossos dias, indicam dois dos principais gêneros da música brasileira. Além de tudo, Gonzaga costumava imitar outros intérpretes.2 Gonzaga cresceu lentamente em popularidade. Sua segunda fase, pode-se dizer, caracteriza-se pela procura de um parceiro, fato ocorrido por volta de 1945, quando encontrou Miguel Lima e alguns outros com quem produziu várias das letras para sua imaginação de músico. Até aqui ele não andava satisfeito. Queria encontrar alguém com quem compartilhasse suas aspirações de expressar-se no idioma de sua cultura de origem: todo o acervo que guardava na mente, de suas vivências junto ao velho pai Januário, tocador das festas no sertão. Miguel Lima, nascido no Sul, nada sabia dessas raízes.

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De Acordo com Luiz Tatit (1996:41) os artistas tradicionais brasileiros, isto é, aqueles que se lançaram nos palcos antes dos anos 70, costumavam servir de “estímulo inicial” a ser investido pela indústria do disco. Ver ‘Gonzaga por Ele Mesmo’. in Luiz Gonzaga. ed. M. Claret. (São Paulo, 1990). p.58.

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Em 1946, conheceu Humberto Teixeira com quem partilhou a divulgação do gênero Baião para uma grande audiência. Até então, gravava como acordeonista, pois não era admitido como cantor. Seu timbre de voz não condizia com a “cor vocal” dos cantores da época. Por isso, suas composições deveriam ser interpretadas por outros. Como assinalou na autobiografia, Gonzaga já tinha em mente o que queria fazer, mas não sabia de antemão o “como fazer”. Depois do “Baião”, vieram os sucessos “No meu Pé de Serra” (xote), e “Asa Branca” (toada) — as três primeiras canções de sua parceria com Teixeira — que sedimentaram o caminho para a realização de seu projeto estético, tornando-o o incomparável embaixador da música popular nordestina durante sua longa carreira artística. Paralelamente, Gonzaga teve outro grande parceiro, Zé Dantas, em 1947, completando assim o trio que deu suporte ao crescimento da popularidade do baião e de outros gêneros similares. Teixeira e Dantas (cada um se destacando pela abordagem pessoal de um mesmo assunto), em parceria com Gonzaga, construíram o que há de mais representativo no repertório da música popular do Nordeste, repertório que continua sendo relançado até os nossos dias, em releituras de outras gerações. 3

Gonzaga, referindo-se aos dois parceiros, comenta que Teixeira era homem urbano, enquanto Zé Dantas se inspirava mais nas raízes sertanejas.4 Vários parceiros se seguiram a esses dois acima, por dificuldades de relacionamento, e mesmo porque Gonzaga interpretava outros autores.5 Ele teve parcerias relevantes para sua produção, se considerarmos a popularidade de canções como “Boiadeiro” (Klecius Caldas / Armando Cavalcante), “Baião na Garoa”, “Xaxado”, “Vida de Viajante” (as três com Hervê Cordovil), “Pau-de Arara” (com Guio de Morais). No entanto, a consolidação de sua carreira ocorre nessa fase e permanece até os anos sessenta. A partir daí, atravessa um período de obscuridade. Seu ressurgimento pode ser considerado como uma terceira fase e ocorre nos anos 1970, pelas mãos de estudantes universitários e seus ídolos, principalmente os tropicalistas, que o recuperaram como figura emblemática para as gerações novas.

a proliferação das Casas de Forró7 por todo o País, tomou a iniciativa de produzir um amplo repertório de danças.8 Ele próprio abriu sua Casa de Forró na Ilha do Governador, onde tinha residência fixa. Se considerarmos o repertório de Gonzaga como um todo, pode-se dizer que a produção provém de sua atitude diante da vida. Ele canta sobre suas experiências, que, ao mesmo tempo, têm muito em comum com as vivências de sua audiência: a migração e, consequentemente, as imagens do mundo dual que ele conheceu — o sertão que deixou e o contexto social urbano onde se inseriu. Dentro dessas abordagens generalizadas que inspiraram o conteúdo das letras, Gonzaga introduziu a riqueza dos ritmos nordestinos, desde a toada (canção sentimental) aos mais variados gêneros de dança, com destaque para o baião. Entretanto, é impossível estabelecer uma classificação rígida da temática das letras, uma vez que os conteúdos se interpenetram permanentemente. Mesmo na canção “Asa Branca”, pode-se verificar essa interpretação. O que parece mais fácil é considerar a predominância de um assunto principal e, nesse sentido, pode-se traçar uma lista de temas. Um modo útil de relacionar as principais tendências para onde evoluiu a produção certamente será do enfoque inicial nas duas principais temáticas características da explosão dos mais profundos sentimentos humanos: de um lado, o sofrimento causado pela emigração, que comporta tanto o rompimento com as raízes, como o confronto com o desconhecido do mundo urbano; de outro lado, o contexto das celebrações no sertão, que promove a sociabilidade familiar e em cuja atmosfera, por contraste, se gera alegria. Em relação ao primeiro desses temas, algumas das canções delineiam esse sentimento, descrevendo a paisagem que se alterna e que sugere o movimento em duas direções: a saída e a volta. Nas letras de “Paraíba” e “Asa Branca”, percebe-se a dor do migrante. Vejamos a primeira: Paraíba. Baião. L. Gonzaga / H. Teixeira. 1952 Quando a lama virou pedra E mandacaru secou Quando ribaçã, de sede, Bateu asas e voou Eu entonce vim m’embora Carregando a minha dor Hoje eu mando uma abraço pra ti, pequenina

Não poderia afirmar que essa fase tenha sido mais vigorosa, se comparada com seu ápice nos anos cinquenta. Mas Gonzaga foi apto o suficiente para enfrentar com êxito a indústria cultural em sua plena consolidação.6 Gonzaga também se revelou bastante lúcido para descobrir o melhor modo de manter sua popularidade: apesar da reprodução de seu repertório clássico, que inclui a produção referida há pouco,— que compreendia ainda o repertório da época de São João — ele, presenciando 3 4 5 6

Ver Sinval Sá, O Sanfoneiro do Riacho da Brígida. (Fortaleza, 1966), p.145. Este livro pode ser considerado uma transcrição do relato pessoal de Gonzaga sobre sua vida. As palavras de Gonzaga: —… em Zé Dantas eu podia sentir cheiro de bode! — indicam a imagem que ele fazia das ligações de Zé Dantas com a cultura do sertão. in Jornal do Brazil, 30/07/83. Citado por Martin Claret ed.. op cit. p. 66. Neste caso, o próprio Gonzaga personifica a canção popular com tal intensidade, que se torna difícil equiparar esses outros autores à sua grande popularidade. Entre 1970-1975, o volume da indústria do disco no Brasil cresceu a 1.375%. in ‘Disco em São Paulo’. Pesquisa 6. IDART. 1980. Citado por Renato Ortiz, in A Moderna Tradição Brasileira. (São Paulo, 1988). p.127.

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Mundicarmo Ferretti diz que as Casas de Forrós tornaram-se popular entre os estudantes universitários nos anos 70, em consequência da decadência das discotecas. Além disso, o próprio Gonzaga e outros conjuntos de músicos nordestinos compartilhavam dos shows. Ver, desta autora, Baião dos Dois, (Recife, 1988), p. 94. Um dos parceiros que mais produziu com Luiz Gonzaga, João Silva, — cerca de 87 canções — começou tal parceria nessa época, afirmou-me Batista Alves, em comunicação pessoal. (Recife, 1996).

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Em “Propriá”, o poeta faz referência à perda de suas raízes: Propriá. Baião. L. Gonzaga / Guio de Morais. 1951 Tudo o qu’eu tinha Deixei lá, num truçe não Deixei o meu roçado Prantadinho de feijão Deixei a minha mãe Com meu pai e meu irmão E com a Rosinha Eu deixei meu coração Ai, ai, ui, ui Eu tenho que voltar Ai, ai, ui, ui Minha vida tá todinha in Propriá Em “A Volta da Asa Branca”, ele completa a saga com seus sonhos acerca do retorno: A Volta da Asa Branca. Toada. L. Gonzaga / Zé Dantas. 1950 Já faz três noites que pro Norte relampeia A Asa Branca, ouvindo o ronco do trovão Já bateu asas e vortou pro meu sertão Ai, ai, eu vou m’embora Vou cuidar da prantação “Pau-de-Arara”, talvez uma das canções mais emblemáticas, pois sintetiza o destino do migrante, é também um bom exemplo. O título em si se refere ao caminhão,9 adaptado para transportar os nordestino para o Sul.10 Nessa canção, Gonzaga descreve a própria experiência como emigrante, como se pode ler nos versos: Pau-de-Arara. Maracatu. L. Gonzaga / Guio de Morais. 1952 Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó A malota era o saco e o cadeado era um nó 9 Estes caminhões, com carroceria coberta, têm vários bancos para os passageiros. 10 A migração no Brasil, e particularmente no Nordeste, vem de séculos. Segundo a pesquisadora Juraci Cavalcanti, este tem sido um elemento crucial na construção social da juventude brasileira. No entanto, a migração tem outras características no momento presente: por exemplo, a juventude rural deseja usufruir dos bens de consumo da vida moderna, desde que o mundo rural tem sido “cenário” de ambas: a tradição e o modo de vida urbano mostrados diariamente na televisão. Ir e vir se torna contínuo, pois a migração é sazonal. Levas de gente saem no verão para trabalhar na construção civil e retornam na estação chuvosa para plantar. Em função das facilidades de transportes e de comunicação, vários protagonistas participam desse processo, tais como os membros familiares residindo nas cidades; além disso, os meios de comunicação de massa (rádio, telefone, correio) e as companhias de ônibus alcançam facilmente os pequenos vilarejos. No Nordeste, em particular, a migração tem se intensificado mais recentemente do que há tempos atrás. (Maria Juraci M. Cavalcanti. Fortaleza, 1996. Comunicação pessoal). Esta pesquisadora defendeu tese de doutorado, à época da entrevista, na Universidade de Oldemburg/Alemanha, sob o título Die Sozio-Historischen Grundlagen der einer Migratorischen Tradition in Nordortbrasilien.

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Só trazia a coragem e a cara Viajando num Pau-de-arara Eu penei, mas aqui cheguei Eu penei, mas aqui cheguei A estrofe seguinte relata o conteúdo de sua bagagem cultural: Truce um triângulo, no matulão Truce um gonguê, no matulão Truce um zabumba dentro do matulão Xote, maracatu e baião Tudo isto eu truce no meu matulão Esses versos refletem o desejo de Gonzaga por um melhor espaço cultural, no qual pudesse tornar-se artista profissional. Entre seus pertences, estavam as principais ferramentas que teriam função na realização de seu projeto estético: os instrumentos musicais com os quais expressaria os ritmos do Nordeste — triângulo, zabumba e gonguê — e o repertório que ele aprendera da tradição oral, principalmente xote, maracatu e baião. Tudo parece sintetizar o apparatus de que fez uso para introduzir-se no novo mundo musical que teve de enfrentar. No contexto das celebrações tradicionais, referidas anteriormente, o ciclo junino integra várias delas, uma vez que requer uma variedade de canções e de danças como parte de todas as festividades. A devoção a São João, muito popular em Portugal, foi transplantada para o Brasil no início da colonização. O catolicismo português costumava associar antigas tradições das celebrações da colheita ao dia de São João, 24 de junho. Completando o ciclo junino, Santo Antônio, dia 13, e São Pedro, dia 29 do mesmo mês, ocorrendo na véspera as principais celebrações.11 Os eventos espalharam-se por todo o País e no Nordeste adquiriram um significado especial por coincidir com a colheita. Embora tenha havido modificações nos festejos por conta do processo de modernização, deve-se enfatizar alguns dos elementos que caracterizavam as vivências de Gonzaga na sua meninice, verdadeiras fontes de inspiração para suas criações: fogueira, fogos de artifício e os terreiros adornados com bandeirinhas constituíam o espaço apropriado para a realização do casamento matuto, a quadrilha e o arrasta-pé. Outras particularidades dos costumes rurais também podem ser realçadas: as comidas típicas, principalmente aquelas à base de milho e mandioca, de influência indígena. A música propriamente dita compreende o repertório de dança oriundo da tradição européia do século XIX, acrescido das danças tradicionais nordestinas, tais como xotes, baiões, forrós etc.

11 Câmara Cascudo se refere às antigas tradições entre os povos rurais da Europa, Ásia e África em homenagem aos seus deuses, com rituais em torno de fogueiras para agradecer pela colheita. Portugal incorporou todos esses cultos — e cristianizou-os sob a égide do padroeiro São João. Podem-se perceber essas ligações através de certos símbolos, como o da reprodução, refletida na idéia do casamento matuto, que comporta uma série de crendices e adivinhações. Ver Luís da Câmara Cascudo: Dicionário do Folclore Brasileiro, 2. (Rio, 1969). pp. 20-36.

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O próprio Gonzaga tornou-se o principal intérprete desse repertório com alcance em todo o País.12 Mesmo no Rio de Janeiro, nos anos cinquenta, as festas juninas introduziram o baião e outras danças similares. Em A Dança da Moda, Gonzaga destaca as mudanças ocorridas com o advento do baião, num claro relato da grande popularidade desse gênero por ele e Teixeira introduzido no Sul: A Dança da Moda. baião. L. Gonzaga / Zé Dantas. 1950 No Rio tá tudo mudado Nas noites de São João Em vez de polca e rancheira O povo só dança, só pede o baião No meio da rua Inda é balão Inda é fogueira É fogo de vista Mas dentro da pista O povo só dança, Só pede o baião Ai, ai, ai, ai, São João Ai, ai, ai, ai, São João É a dança da moda Pois em toda roda Só pedem o baião Comparando duas outras canções, “São João do Carneirinho” e “Noites Brasileiras”, percebe-se o mundo dual que percorria a imaginação de Gonzaga: aquele do sertão que ele deixara pra trás e a cidade onde ele estava inserido Na primeira, pode-se acompanhar o desenrolar do ciclo do plantio, em 19 de março, dia de São José, os lavradores lançam as sementes do milho ao solo. Confia-se em que Deus mande chuva, para que o milho brote em 20 dias, mas ainda se pede a intermediação para reforçar o pedido de chuva a São João. Aqui, letra e música integram a estrutura da marchinha rural típica, repleta de dialeto inserido na moldura estrofe-refrão: São João do Carneirinho. baião. L. Gonzaga / Guio de Morais. 1952. La, laiará la laiará etc. Eu prantei meu mio todo No dia de São José 12 De acordo com o colecionador Batista Alves (Recife, 17/10/95), em seu arquivo constam as seguintes canções relacionadas ao ciclo junino: (Baile na Roça (1989); Dança da Moda, A (1950); De Fiá Pavi (1987); Dia de São João (1989); É Noite de São João (1989); Festa do Milho; Festa na Roça (1989); Festa no Céu (1958); Fogo sem Fuzil (1965); Fogueira de São João (1959); Lascando o Cano (1954); Lenda de São João (1956); Madruceu o Milho (1968); Maior Tocador, O (1965); Manhã de Junho (1989); Meninas do Grotão, As (1969); Noite É de São João, A (1970); Noites Brasileiras (1954); Olha pro Céu (1951); Pedido a São João (1963); Piriri (1985); Pisa no Pilão (1961); Polca Fogueteira (1957); Queimando Lenha (1986); São João Antigo (1957); São João Chegou (1953); São João do Carneirinho (1952); São João na Roça (1952); São João nas Capitá (1976); São João no Arraiá (1960); São João sem Futrica (1984); Tei Tei no Arraiá (1974); Toca Sanfoneiro (1952); Véspera de São João (1941).

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Se me ajuda a Providença Vamos ter mio à grané Vou cuiê pel’os meus carco Vinte espiga em cada pé [coro]: Pelos carco vou cuiê Vinte espiga em cada pé Ai, São João São João do carneirinho Você é tão bonzinho Fale com São José Fale lá com São José Peça pro meu mio dá Vinte espiga em cada pé De outro lado, “Noites Brasileiras” reflete a Noite de São João idealizada, onde se envolvem crianças que brincam de roda, jovens que saltam a fogueira para fazer seus pedidos e velhos que soltam balões. Essa canção já mostra no seu contorno melódico influências das bandas de música urbanas: Veja-se a letra: Noites Brasileiras. Baião. L. Gonzaga / Zé Dantas. 1954 Ai que saudades q’eu tenho Das noites de São João Das noites tão brasileiras das fogueiras Sob o luar do sertão Meninos brincando de roda Velhos soltando balão Moços em volta à fogueira Brincando com o coração Eita São João dos meus sonhos Eita saudoso sertão, ai, ai, Outra vertente tematiza os gêneros musicais do sertão lançados por Gonzaga. Há canções didáticas que ensinam como se deve dançá-las, como “Baião”, “Xaxado”, “Machucado”, “Seridó”. A propósito do gênero baião, há várias canções relacionadas com sua repercussão nacional, como se pode observar nas letras “Tudo é Baião”, “Baião no Brás”, “Abraço do Baião”.

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Além disso, Gonzaga também procurou recriar para a imaginação de sua audiência canções que se constituem esboços do contexto dos forrós no sertão, principalmente alguns daqueles eventos muito animados que em geral terminam com a intervenção da polícia para controlar os excessos provocados pela cachaça ou mesmo pela introdução de gêneros de danças censurados. Da parceria com Zé Dantas, surgiram as mais bem humoradas letras sobre tais eventos, como, por exemplo, nas canções “Derramaro o Gai”, “Forró do Quelemente”, “Forró no Escuro”, “Forró de Mané Vito”. Em “Forró de Mané Vito”, o protagonista descreve seu relato ao delegado, sobre um forró que terminou em violência: Forró de Mané Vito. Zé Dantas / L. Gonzaga. 1950

Em “Forró do Quelemente”, ele focaliza a coreografia do miudim,15 um dos gêneros de dança favoritos, embora não permitido no ambiente familiar: O Forró do Quelemente — Chote miudinho. L. Gonzaga / Zé Dantas. 1951

Seu Delegado Digo a Vossa Senhoria Eu sou fio de uma famia Qui num gosta de fuá Mas trasantonte No forró de Mané Vito Tive qui fazer bonito A razão vou lhe explicá

Eu fui dançá Um chote miudim Mas Chico Quelemente Me chamou logo atenção Caba tome jeito P’a você dançá dereito Cum Maria minha fia Ou lhe expulso do salão

Quincola no ganzá Préia no reco-reco Na sanfona Zé Marreco Se danaro pra tocá Daqui prali pra lá Dançava com Rosinha Quando Zeca de Soninha13 Me proíbe de dançá

Mas eu que sou decente Num sou de traficança Contei p’a Quelemente Que a culpa era da dança Ontonce Quelemente Com todo o seu purmão Gritou p’o sanfoneiro Que tocasse um baião

Seu Delegado Sem encrenca eu num brigo Se ninguém bulir cumigo Num sô home pra brigá Mais nessa festa Seu doutô perdi a carma Tive qui pegá na arma Pois num gosto de apanhá

Ha, haa! Ói o baião que alivia!

Pra Zeca se assombrá Mandei pará o fole Mas o cabra não é mole 13 Na linguagem do sertão, geralmente se perde o nome de família em favor do nome de batismo da mãe ou às vezes do local de origem, não importa a idade do indivíduo ou mesmo seu nível social. Na literatura, por exemplo, o personagem da obra de Manoel de Oliveira Paiva, D. Guidinha do Poço, tem em seu sobrenome o local onde vivia, o Poço da Moita.

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Quis partir pra me pegá Puxei no meu punhá Soprei no candieiro Botei tudo pro terreiro Fiz o samba14 se acabá

Com essa nova dança A festa ficou mansa O samba ficou carmo E acabou-se a descussão Porém o Quelemente Encheu a cara de vim E lá p’a meia noite Só queria miudim E lá p’a meia noite Só queria miudim 14 Samba, neste contexto, significa o lugar onde se dança. 15 Variante regional de miudinho.

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Era o próprio Quelemente Que queria o miudim Era o próprio Quelemente Que queria o miudim [fala]: Ha! ha! Todo mundo agarradim ! Ôi! ……… O trabalho no sertão pode ser sumariado no repertório de Gonzaga relacionado ao vaqueiro, como nas canções “Boiadeiro”, “Feira de Gado”, “Aboio Apaixonado”, “Aboio”, “A Morte do Vaqueiro”. A anual Missa do Vaqueiro, em honra a todos aqueles homens bravos que perderam suas vidas na atividade do pastoreio, foi iniciativa de Gonzaga. A celebração ocorre desde 1964, depois da morte do vaqueiro Jacó, e atrai uma multidão de vaqueiros, anualmente, à cidade de Serrita, interior de Pernambuco.16 A canção é conhecida em toda parte, pois Gonzaga costumava cantá-la no início de suas performances: uma peça estrófica com refrão, que evolui de modo repetitivo, até mesmo sugerindo a rotina dos vaqueiros na sua lida com o gado. Boiadeiro — Toada. Klecius Caldas / Armando Cavalcanti,17 1950. Vai boiadeiro que a noite já vem Leva o teu gado e vai pra junto do teu bem De manhãzinha quando eu sigo pela estrada Minha boiada pra invernada eu vou levar São dez cabeça, é muito pouco quase nada Mas num tem outras mais bonitas no lugar Vai boiadeiro que o dia já vem Leva o teu gado e vai pensando no teu bem De tardezinha quando eu venho pela estrada A fiarada tá todinha a me esperar São dez fiim, é muito pouco quase nada Mas num tem outros mais bonitos no lugar E quando eu chego na cancela da morada Minha Rosinha vem correndo me abraçar É pequenina, miudinha, quase nada Mas num tem outra mais bonita no lugar 16 Ver José de Jesus Ferreira (1989: 68-69). 17 Klecius Caldas e Armando Cavalcanti — letristas e compositores mineiros, muito conhecidos por seu repertório carnavalesco, impressionados com a popularidade do baião, prestaram-lhe homenagem com a canção “Boiadeiro”. Eles também produziram para Gonzaga as canções “Cigarro de Páia” (1951), Sertão de Jequié. Esta última, nunca gravada pelo homenageado, teve o privilegio de ir para o ar na voz de Dalva da Oliveira. Ver Dreyfus (1996: 144-145).

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Vai boiadeiro que a noite já vem Leva o teu gado e vai pra junto do teu bem O repertório de Gonzaga voltado para a mulher encontra-se em várias canções, como “Xote das Meninas”, “Cintura Fina”, “Mariá”, “Vem Morena”, “Imbalança”. Observe-se o comportamento machista que elas delineiam. “Imbalança” é uma canção que demonstra a destreza poética de Zé Dantas em utilizar metáforas para interpretar imagens do cotidiano doméstico feminino. Tira proveito de imagens da natureza para estimular a sensualidade corporal que seu parceiro sugere: o movimento das folhas do coqueiro, da jangada no mar e mesmo o ato de rodopiar como pião. Tudo isso para bem dançar o baião. A canção em si desenrola-se num movimento contínuo e vivo, à maneira das emboladas. Imbalança. L. Gonzaga / Zé Dantas. 1952 Óia a paia do coqueiro quando vento dá Óia o tombo da jangada nas onda do má Óia o tombo da jangada nas onda do má Óia a paia do coqueiro quando vento dá Imbalança, imbalança, imbalançá Imbalança, imbalança, imbalançá Pra você aguentar meu rojão É preciso saber requebrar Ter molejo nos pés e nas mão Ter no corpo o balanço do mar E virar fôia seca no ar Para quando escutar meu baião Imbalança, imbalança, imbalançá Imbalança, imbalança, imbalançá Imbalança, imbalança, imbalançá Imbalança, imbalança, imbalançá Imbalança, imbalança, imbalançá Oia a paia do coqueiro quando vento dá, etc. Você tem que vivê no sertão Pra na rede saber imbalá Aprender a batê no pilão Na peneira aprender penerá Vê relampo no mei dos trovão Fazer cobra de fogo no ar Para quando escutar meu baião Imbalança, imbalança, imbalançá 127


Não se pode esquecer que a religiosidade tradicional também faz parte do repertório, principalmente nas referências à religião popular, que reflete o culto dos santos, como foi referido anteriormente. “Beata Mocinha” e “Baião da Penha” situam-se entre as músicas mais populares. Na primeira, ele presta homenagem a uma das principais devotas do Padre Cícero — a Santa Beata Mocinha. “Baião da Penha” relata sua intenção de subir centenas de degraus até alcançar a igreja de Nossa Senhora da Penha, padroeira de um dos subúrbios do Rio de Janeiro, para pagar uma promessa. Uma vez mais, Gonzaga alimenta seus dois mundos — o que ele deixara e aquele onde vive — fazendo uso das letras mais apropriadas e dos gêneros também adequados: uma valsa no estilo dos cânticos dos romeiros e um baião para os ouvintes do Rio de Janeiro: Beata Mocinha — Valsa-romeira. Manezinho Araújo / Zé Renato. 1952. Minha Santa Beata Mocinha Eu vim aqui, vim ver meu Padrim Meu Padrim fez uma viagem, oi Deixou Juazeiro sozim Meu Padrim fez uma viagem, oi Deixou Juazeiro sozim Meu Padrim Padrim Ciço Foi pro céu vendo o povo sem sorte Pro Sinhô foi pedir Proteção pros romeiro do Norte Baião da Penha. Guio de Morais / Davi Nasser. 1951 Demonstrando a minha fé Vou subir a Penha a pé Pra fazer minha oração [coro]: eu vou, eu vou Vou pedir à padroeira Numa prece verdadeira Penha, Penha Eu vim aqui me ajoelhar Venha, venha Trazer paz para o meu lar Nossa Senhora da Penha Minha voz talvez não tenha O poder de te exaltar 128

Mas dê benção padroeira Pr’essa gente brasileira Que quer paz pra trabalhar Eu vim aqui me ajoelhar, etc. Gonzaga e Teixeira foram bem sucedidos na busca de um tema que descrevesse a evolução do músico em relação à bagagem que trouxera, quando recorreram à imagem do pai Januário como referência, na canção “Respeita Januário”. Gonzaga costumava dizer que essa canção foi concebida para ser cantada em Exu na primeira vez que voltava à casa dos pais, após 16 anos de ausência. O conteúdo dos versos enfatiza o prestígio e o reconhecimento do velho pai por parte da população local. Focaliza, apesar da diferença que faz, o possante acordeon de Gonzaga e a concertina de oito baixos de Januário: Respeita Januário — Baião. L. Gonzaga / H. Teixeira. 1950 Quando eu voltei lá no sertão Eu quis mangar de Januário Com meu fole prateado Só de ‘baixo’, cento e vinte Botão preto bem juntinho Como nego empareado Mas antes de fazer bonito De passagem por Granito Foram logo me dizendo: De Taboca a Rancharia De Salgueiro a Bodocó Januário é o maior E foi aí que me falou, Meio zangado, o véi Jacó: Luiz, respeita Januário Luiz, respeita Januário Luiz, tu pode ser famoso Mas teu pai é mais tinhoso E com ele ninguém vai, Luiz, Luiz, Luiz, Luiz, Respeita os oito baixos do teu pai Respeita os oito baixos do teu pai [Gonzaga fala]: Eita, com seiscentos milhõe, mas já se viu? Dispois que este fi d’uma égua vortou do Sul, tem sido um arvoroço da peste lá pa banda do Novo Exu. Todo mundo vai ver o diabo do nego. Eu também fui, mas num gostei. O nego tá muito modificado. Nem parece aquele

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molequinho que saiu daqui em 1930: era amalero, bochudo, cabeça de papagaio, zambeta, feio p’a peste. Qual o que? O nego agora tá gordo que parece um ‘Major’. É uma gasemira (casimira) lascada, um dinheiro danado. Enricou! Tá rico! Pelos carco qu’eu fiz ele deve possuir pa mais de dez contos de réis. Sofonona grande danada: cento e vinte baixo! É muito baixo! Eu nem sei pra que tanto baixo. Porque, arreparando bem, ele só toca em dois. Januário, não. O fole de Januário só tem oito baixos, mas ele toca em todos oito. Sabe duma coisa? Luiz tá com muito cartaz. É um cartaz da peste. Mas ele precisa respeitar os oito baixos do pai dele. E é por isso qu’eu canto assim:

Luiz, respeita Januário Luiz, respeita Januário Luiz, tu pode ser famoso Mas teu pai é mais ‘tinoso’ E com ele ninguém vai, Luiz, Luiz, Respeita os oito baixos do teu pai Respeita os oito baixos do teu pai Esse comentário de Gonzaga merece algumas observações. O texto focaliza o paralelo que o observador faz entre o tipo do jovem sertanejo — pálido, bochudo, zambeta etc., — e as mudanças adquiridas por Gonzaga, agora saudável, depois que adquirira um status social melhor. Sua nova aparência comporta um corpo em boa forma, vestido com terno de casemira, e portando seu acordeon de 120 baixos. Contudo, para o observador, o novo layout de Gonzaga não fez o povo mudar o respeito pela fama de Januário, um grande tocador de “oito baixos”. A produção de Gonzaga comporta também um amplo repertório de propaganda. Ele introduziu alguns jingles, além de ter produzido canções encomendadas com esse fim, como se pode verificar em algumas delas, como “Paraíba”, “Algodão”, “Café”. Até para si mesmo cuidou de não se fazer esquecido, como em “Óia Eu Aqui de Novo”. Nesta canção, anuncia seu retorno ao sertão, já como homem maduro de meia idade, mas ainda muito capaz de bom desempenho até em dançar forró: Oia eu Aqui de Novo. Antônio Barros. 199518 Oia eu aqui de novo, xaxando Oia eu aqui de novo, para xaxar Oia eu aqui de novo, xaxando Oia eu aqui de novo, para xaxar Vou mostrar pra esses cabras Qu’eu ainda ‘dou no couro’ Isso é um desaforo Qu’eu num posso levar 18 Esta canção foi lançada após sua morte e não há dados sobre a data precisa da gravação.

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Oia eu aqui de novo, cantando Oia eu aqui de novo, xaxando Oia eu aqui de novo, mostrando Como se deve xaxar Vem cá, morena linda Vestida de chita Você é a mais bonita Desse lugar Vai chamar Maria, chamar Luzia Vai chamar Zabé, chamar Raqué Diz qu’eu tô aqui com alegria Seja noite ou seja dia Eu tô aqui pra ensinar xaxar Eu tô aqui pra ensinar xaxar Eu tô aqui pra ensinar xaxar Eu tô aqui pra ensinar xaxar (Fala): Superado, hem veím? Superado é uma Sulipa! Enxuto! Um fato interessante é que vários desses títulos se tornaram neologismos, como “Paraíba” e “Pau-de-arara”. A primeira canção foi encomendada pelo Chefe da Casa Civil do então Presidente Dutra para promover a candidatura de José Américo a Presidente da República. O refrão que destaca o posicionamento corajoso do pequeno Estado da Paraíba durante a Revolução de 1930 foi interpretado pela oposição como um insulto à mulher paraibana, gerando tumulto, quando do lançamento no comício.19 Mesmo assim, teve grande sucesso e, por outro lado, em razão das palavras “mulher macho, Paraíba”, contidas no texto, tornou-se sinônimo de lésbica. “Pau-de-Arara”, denominação dos caminhões que transportavam nordestinos para o Sul, passou a identificar os próprios migrantes do Nordeste. Alguns assuntos de circunstância utilizados por Gonzaga mantiveram-no sempre mais perto de sua audiência. Leia-se, por exemplo, esta bem humorada canção, na qual se refere à moda feminina da tanga, lançada nos anos 70: Deixa a Tanga voar — Forró. L. Gonzaga / Onildo Almeida. 1991. Zé Matuto foi à praia Só pra ver como é que é Mas voltou ruim da bola De ver tanta rabichola Nas cadera dar mulé

19 Ver D. Dreyfurs Vida do Viajante: a Saga de Luiz Gonzaga. (São Paulo, 1996) p. 140.

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Zé Matuto matutou, Matutou, escreveu pra Clodovil Ele logo respostou e atacou: Isso é a ‘cara’ do Brasil

Eu andava triste quase apavorado Estavam me fazendo de pobre coitado Minha companheira tá feliz porque Eu comprei ovo de codorna pra comer

Uma tanga, minitanga Piquitinha, miudinha Não precisa amarrar Ora pomba, ora bola Jogue fora a rabichola E deixa a tanga voar

Eu quero ovo de codorna pra comer {x2 O meu problema ele tem que resolver

E deixa a tanga voar E deixa a tanga voar Ora pomba, ora bola Jogue fora a rabichola E deixa a tanga voar Ovo de Codorna (1971) e Capim Novo (1976) também pertencem a esse elenco: Ovo de Codorna — Xote. Severino Ramos. 1971 Eu quero ovo de codorna pra comer {x2 O meu problema ele tem que resolver Eu tô madurão, passei da flôr d’ idade Mas ainda tenho alguma mocidade Vou cuidar de mim pra não acontecer Vou lhe dar ovo de codorna pra comer Eu quero ovo de codorna pra comer {x2 O meu problema ele tem que resolver Eu já procurei um doutor meu amigo Ele me falou, pode contar comigo Ele me ensinou, he, eu passo pra você Eu comprei ovo de codorna pra comer Eu quero ovo de codorna pra comer {x2 O meu problema ele tem que resolver

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Capim Novo. Severino Ramos - RCA/BMG. 1988 [Fala]: Capim novo é a pedida dos coroas! Ha, hai! ! Nem ovo de codorna, Catuaba ou tiborna, Não tem jeito não Não tem jeito não, não, não Amigo velho, Pra você tem jeito não } bis Esse negócio de dizer que droga nova Muita gente diz que aprova Mas a prática desmentiu O doutor disse Que o problema é psicológico Não é nada fisiológico Ele até me garantiu Não se iluda, amigo véi Vá nessa não Essa tal de droga nova Não passa de ilusão Certo mesmo é o ditado do povo: Pra cavalo velho, o remédio é capim novo

{x2

[Fala}: Aí é pra machucar, minha gente Capricha, minhas fia! Capim novo é a sustança dos coroas!

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Gonzaga também se reporta à permanente destruição do meio ambiente, no “Xote Ecológico” (1989), que se tornou homenagem ao líder Chico Mendes, assassinado: Xote Ecológico — Xote. L. Gonzaga / João Silva. 1989. Não posso respirar Não posso mais nadar A terra está morrendo Não dá mais pra plantar Se plantar não nasce Se nascer não dá Até pinga da boa É dificil de encontrar Cadê a flor qu’ tava aqui? Poluição comeu O peixe qu’ é do mar? Poluição comeu O verde onde é qu’ stá? Poluição comeu Nem o Chico Mendes sobreviveu Essa mostra caracteriza os principais temas abordados por Gonzaga em seu repertório, embora eu tenha omitido, intencionalmente, outras canções que não significam muito para meu principal enfoque. A seguir, pretendo referir-me, com detalhes, a alguns aspectos de seu estilo. Procedo à apresentação de alguns elementos que o caracterizam, para depois analisar uma de suas canções.

As principais características artísticas do repertório de Luiz Gonzaga

Os biógrafos de Gonzaga são unânimes em considerar que a música popular do Nordeste tem ocupado uma importância significativa no País em face de seu valor musical. Eles também apontam para várias categorias de seguidores, tais como aqueles que se limitaram a reproduzir sobre as matrizes e os mais cosmopolitas que, tendo absorvido outras influências, desenvolvem sua produção em direção a um estilo mais misturado, por um lado, ou a um estilo próprio de alto nível. Entretanto, escutando a todos, pode-se distinguir o idioma musical do Nordeste. O que faz essa diferença? Necessário é, certamente, retomar o próprio repertório de Gonzaga para acentuar tais características. Não é somente em relação à temática, trabalhada pelos poetas letristas, referida anteriormente, mas alguns detalhes que Gonzaga utiliza para enfatizar o conteúdo. Em sentido geral, há uma próxima ligação entre a entoação da melodia e da própria fala. Digo até que é praticamente um canto declamado! Tal simbiose é explicada por Kiefer (1973:44) como um dos principais traços que identificam aqueles compositores mais espontâneos no campo da música popular brasileira. Ao lado da dimensão poética que seus principais parceiros colocaram nos versos, Gonzaga, certamente o mais responsável pelo aspecto melódico-rítmico, apresenta um componente expressivo muito singular que pode ser entendido como uma perfeita integração de entonação melódica e a fala. Bruno Kiefer (1973: 39-48) refere-se à “melodia embrionária” contida no idioma falado, que se revela no âmbito da música daqueles compositores mais espontâneos: sua música nasce geralmente do ritmo e do conteúdo dos versos. Pode-se perceber em trechos de canções, como “Respeita Januário”, a ocorrência de tal fenômeno.

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Kiefer afirma:

Ex. 3.a: “Vozes da Seca”

Cada Língua tem a sua estrutura própria melódico-embrionária. Já existe nela, portanto, o germe de uma música que expressa a alma do povo. É sintomático que na antiguidade poesia e música eram inseparáveis. Hoje em dia, em nosso meio, os compositores populares têm uma vantagem sobre os eruditos: possuem mais liberdade para serem espontâneos. Embora mais restritos quanto aos recursos, quanto ao âmbito de vivências expressas, suas melodias, muitas vezes, nascem diretamente do ritmo e do conteúdo dos versos.20

Considerando os dois pontos focalizados pelo autor — ritmo e conteúdo dos versos — como algumas das características embrionárias para o processo de criação da canção, pode-se afirmar que são muito evidentes nas músicas de Gonzaga. A predominância do estilo de canto declamado, isto é, de uma melodia inteiramente submetida ao ritmo das palavras, é uma estratégia comum. Tal recurso tira proveito da prosódia da língua portuguesa. Por exemplo, em alguns trechos de canções como “Respeita Januário”, pode-se perceber a ocorrência de tal fenômeno. O rigor da asserção do “Velho Jacó” coincide com o movimento descendente e contínuo da melodia, nesta transcrição que realizei: Ex. 1: “Respeita Januário”

“Vozes da Seca” também apresenta outra particularidade. É o padrão rítmico dos instrumentos que contrasta com o estilo do canto, como se pode observar no exemplo a seguir: Ex. 3.b: “Vozes da Seca” — padrão rítmico do conjunto instrumental ( faixa 3)

A recorrência à estruturação do verso popular, de características do mundo rural, pode ser observada em “Forró de Mané Vito”, onde o conteúdo da letra preenche o contínuo movimento rítmico e repetitivo da embolada: Ex. 2: “Forró de Mané Vito” A total entrega da melodia à rítmica do texto pode ser observada na canção “Aboio Apaixonado”, um belo recitativo de caráter doloroso que traduz o desencanto do vaqueiro abandonado pela amada: Ex. 4: “Aboio Apaixonado”

Outro estilo poético compreende a estrofe de oito versos de “Vozes da Seca”, uma canção concebida como as narrativas dos romances nordestinos. A prevalência do canto declamado é evidente, como se pode observar, ouvindo “Vozes da Seca” e seguindo a transcrição musical aproximada:

20 In Bruno Kiefer, Elementos de Linguagem Musical. (Porto Alegre, 1973) p. 44.

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Outra característica a ser enfatizada é o modo como palavras-chaves do texto poético são valorizadas. Por exemplo, em “Légua tirana”, a expressividade de alguns termos essenciais se mostra na sua localização em relação à melodia — em geral, a região mais aguda — e no emprego de figuras rítmicas de longa duração. Escutando a peça, verifica-se que a localização estratégica das palavras “estrada... comprida tão tirana”, que, reunidas, já fazem sentido, reforça a mensagem da peça: uma estrada que não tem fim, a ser percorrida a pé num clima escaldante. Ex. 5: “Légua Tirana” 21

Outras características a considerar são os padrões melódicos e harmônicos em relação ao que inspiram. O ponto culminante das melodias — o ápice de sua curvatura melódica, ou seja, sua nota mais aguda — usualmente ocorre no início. Em “Vem Morena” e em “Vozes da Seca”, a melodia começa com o som mais agudo de seu contorno. Outras vezes, esse ápice ocorre paulatinamente por arpejos23, — como em “Baião” e “No Ceará não tem disso não” — e prossegue, descendentemente, em processo gradativo. Esse tipo de contorno é consequência da tendência ao caráter modal dessas canções. São formuladas nos modos Jônio, Eólio, Mixolídio, Lídio e mesmo em modos misturados, como em “Baião na Garoa” e “Baião da Penha”. É interessante citar Baptista Siqueira (1951:73) e Hélio Sena (1990) a respeito desse assunto. Ambos se referem à predominância da estruturação melódica de caráter modal, que implica a progressão de cadências plagais evidenciadas pela predominância do movimento descendente das melodias. Outra consequência é a ausência da nota sensível (o sétimo grau da escala), como se pode verificar nos padrões cadenciais de “Vem Morena” (Ex. 8). Nessa peça, a cadência final apresenta a progressão harmônica de V-I, com a figura de antecipação da nota de chegada que é a tônica:

Esse fenômeno apresentado em “Légua tirana” é mencionado por Tatit (1996),22 como um recurso que enfatiza a subjetividade, isto é, que propicia o desencadeamento do estado de “paixão”. Por outro lado, o estímulo à “ação” corporal pode ser alcançado pelo ritmo. Na primeira parte de “Vem Morena”, a figura rítmica reiterativa das duas palavras iniciais (Vem morena…) é a estratégia embrionária que favorece esse processo: o impulso à dança.

Em “Respeita Januário” (Ex. 9), a tônica final é precedida de notas repetidas e alcançada por antecipação melódica com a progressão IV-II-I:

Ex. 6: Em “A Volta da Asa Branca” (Ex. 10), a resolução da cadência ocorre pela progressão harmônica II–I , e a nota final — a tônica — é alcançada a partir da figura melódica de suspensão: A aceleração rítmica, em razão do processo de enjambement, é o recurso correspondente ao vigor dos dançarinos do baião.Ex. 7 (versos 5-6 de “Vem Morena”)

21 A gravação denota uma tonalidade entre mi bemol menor e ré menor. Optei pela transcrição em ré. 22 Luiz Tatit (1996: 10-11) chama atenção para a alternância entre estados psicológicos do “ser” e do “fazer”, representados por “modalização da ação” e “modalização da tensão”, como características gerais encontradas nas canções populares. Essas fases, expressas simultaneamente em som e ritmo, ocorrem por meio da redução da duração das vogais e de sua freqüência, ou pela ampliação de ambas. Seu impacto incita a audiência ora ao ímpeto somático ou dimensão do fazer ora ao estado subjetivo da paixão ou dimensão do ser.

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Ex. 10: “A Volta da Asa Branca”

23 A utilização da tétrade arpejada, como ponto de partida melódico, denotando a presença do modo mixolídio, é um recurso comum.

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Há casos, porém, da presença da nota sensível que, entretanto, não se movimenta diretamente à tônica. “Assum Preto” (Ex. 11) é um bom exemplo. Nessa canção, ocorre a progressão harmônica V-I com a seguinte configuração melódica, isto é, a nota sensível alcança a tônica passando pelo segundo grau da escala. Ex. 11:

Ex. 13: A expressão “qui nem jiló”:

Nesse momento, é importante, ainda, tecer considerações sobre o grupo instrumental Em termos de expressividade, é evidente que, apesar de as letras conterem quase sempre alusão ao sofrimento causado pela tragédia social motivada pelas secas sucessivas e migrações ou mesmo pela dor das separações das figuras amadas, nenhuma dessas canções reflete diretamente tal intensidade dramática. Tatit (1996:156), citando a canção “Assum Preto”, faz distinção entre a ocorrência de motivos rítmicos vivos do acompanhamento instrumental como atenuante da dramaticidade, uma asserção que pode ser generalizada como característica do estilo de Gonzaga, isto é, o drama inserido nas letras aparece suavizado pela rítmica pulsante do instrumental. Essa característica pode também ser aplicada ao estilo toada, um tipo de balada que se presta à expressão de sentimentos de melancolia e alegria e até mesmo sentimentos amorosos. Há outras variantes desse estilo que apresentam mudanças de andamento; do canto declamado de “Aboio Apaixonado”, passando por valsas-toadas, como em “Légua Tirana” e “Boiadeiro”; a toadas propriamente, como “Asa Branca”, “Assum Preto”, “A Vida do Viajante”; até à mista toada-baião de “Estrada de Canindé” e “Vozes da Seca”. Mesmo assim, a toada não apresenta dramaticidade.

utilizado por Gonzaga que caracterizou a veiculação de seu conteúdo poético-musical. O próprio Gonzaga privilegiou a combinação de determinados timbres percussivos para integrar o acordeon como principal instrumento melódico. Antes dele, os primeiros grupos nordestinos que apareceram no Rio de Janeiro costumavam executar suas peças fazendo uso do conjunto típico dos chorões cariocas, tais como violão, cavaquinho, flauta, tamborim. Gonzaga descreve como concebeu seu próprio conjunto25: Eu, no início da minha carreira, tocava sozinho … porque não sabia tocar, só sabia imitar os tocadores de valsas, de tangos. Foi quando me lembrei das bandas de pife que tocavam nas igrejas, na novena lá do Araripe e que tinham zabumba e às vezes também um triângulo. Quando não havia triângulo para fazer o agudo, o pessoal tanto podia bater num ferrinho qualquer. Primeiro eu botei o zabumba me acompanhando. Mais tarde, numa feira no Recife, eu vi um menino que vendia biscoitinho, e o pregão dele era tocando triângulo. Eu gostei, achei que daria um contraste com o zabumba, que era grave. Havia os pífanos, que têm o som agudo, mas eu não quis utilizá-los porque a sanfona, com aquele sonzão dela, ia cobrir os pífanos todinhos. Depois eu verifiquei que esse conjunto era de origem portuguesa, porque a chula do velho Portugal tem essas coisas, o ferrinho (o triângulo), o bombo (o zabumba) e a rabeca (a sanfona) … é folclore que chegou de lá no Brasil e deu certo. Agora, o que eu criei, foi a divisão do triângulo, como ele é tocado no baião. Isso aí não era conhecido.26

A canção “Qui nem Jiló”, um vivo baião, mostra o emprego balanceado de tais recursos. Aqui, ambos os estados de tensão — o da paixão e o da ação — apontados por Tatit constituem um todo simbiôntico, com prevalência sobre o impulso para o movimento (“ação”), para a dança. Entretanto, as palavras-chaves (a saudade e a frustração do amor desfeito) são reforçadas por grupos de notas repetidas na região aguda como que para “alongar” a duração da vogal “a” de saudade, enquanto que a expressão Qui nem Jiló (uma metáfora da dor subjetiva expressa no gosto amargo dessa fruta) está inserida em figuras rítmicas curtas, com acentuação no segundo tempo do compasso binário e reforçada pela antecipação rítmica da última sílaba, correspondendo a uma redução da frequência do som.

Como bem expressa a canção “Pau-de-Arara”, Gonzaga trouxe em seu matulão o instrumental e o seu repertório principal: xote, maracatu e baião.

Ex. 12: “Qui nem Jiló”24: a palavra “saudade”:

Ex. 14.a:

24 Esta gravação também traz uma altura entre Fá # e Sol. Optei pela transcrição em Sol.

25 In Dreyfus. (1996: 150-151). 26 In Dreyfus, op. cit. pp. 150-152.

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Em relação ao baião e às outras danças similares, como o xaxado, o xote, o xamego, a embolada, o coco, o forró ou até mesmo a toada, o ritmo básico inserido num compasso binário tem sua principal acentuação no segundo tempo do compasso. Ex. 14.b:

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Essa característica é também peculiar em outros estilos, desde a habanera até o charleston, denotando uma clara influência da música africana (Appleby, 1983:73-80). Entretanto, o que faz a diferença entre eles é a variedade de combinações rítmicas e de acentuações distribuídas na moldura do compasso binário, reforçadas por diferentes durações que tornam quase impossível a transcrição precisa em partitura. Desde o baião, passando por outras danças, como xaxado, xamego, por exemplo, até o forró dançado atualmente, tem ocorrido uma aceleração gradual dos andamentos, ou seja, uma tendência a que as músicas para dançar se tornem, gradativamente, mais rápidas. Baptista Siqueira (1951:73) observou três ritmos-padrão utilizados pela percussão como acompanhamento do baião, que denotam similaridade com aqueles transcritos por Appleby, a seguir. Ex. 15:

Siqueira também apresenta outras figuras rítmicas complementares, mais comuns nas linhas melódicas, cujas características principais são a ausência da síncope e a acentuação na parte fraca do tempo (1951:87): Ex. 16:

estabelecer limites, mas é possível perceber tendências que se acentuam, se compararmos a prevalência da mão-de-obra africana no litoral, de um lado, com essa predominância cabocla no sertão, de outro. A origem do baião tem sido objeto de discussão entre pesquisadores, gerando várias interpretações relevantes. Primeiramente, o estudo do baião pressupõe uma total compreensão do significado do termo. 27 28 As palavras baiano, baiana, baianá, baião guardam uma relação etimológica relacionada ao Estado da Bahia. Baião, presumivelmente, é uma contração de baiano (adj. = da Bahia, isto é, baiano/baiana = habitante da Bahia). Baião é também versão regional de bailão. Entretanto, 29 baião é um termo mais específico do que baiano ou baiana, o primeiro denotando um estilo de música, embora o último tenha nos seus primórdios também se referido ao indivíduo que gosta de dançar. Portanto, na tentativa de definir a palavra baião, é também necessário rever as relevantes definições de baiano. A fonte mais óbvia para recolher esses significados é o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo. Cascudo descreve baiano como uma dança viva que requer muitas improvisações e agilidade dos 30 pés e do corpo por parte dos dançarinos. Mais adiante, descreve baiano como sendo dançado por ambas as classes sociais, baixa e alta, em grandes festividades públicas do final do século XIX. Cascudo faz alusão a vários autores que se referem a alguns dos termos aqui mencionados. 31 Primeiramente, ele cita Pe. Miguel Sacramento, que em 1842 mencionou a dança baiano como típica de casamentos e batizados, e também preenchendo funções folclóricas, tais como no Circo-de-Cavalinho ou no Bumba-meu-Boi. 32

Ex. 17:

Até mesmo sua transcrição do Baião confirma seu argumento. Ex. 18:

Esses padrões rítmicos genéricos, como traços peculiares, caracterizam uma área geográfica do Nordeste não propícia ao cultivo da cana-de-açúcar, portanto, quase sem a presença da mão-de-obra africana; nela, mais se desenvolveu a criação de gado, atividade que requeria o tirocínio do caboclo no domínio das trilhas dentro do sertão. Não somente as características rítmicas, mas o “tecido” da melodia mencionado antes, comportam a base para o desenvolvimento do idioma musical do Nordeste sertanejo. Não é minha pretensão 142

Cascudo cita então Pereira da Costa, que define baiano como dança lasciva e viva, com suas próprias letras e melodias acompanhadas por viola e pandeiro. Seria, pois, uma evolução de danças de origem africana, tais como os maracatus e os batuques. Mais importante é que Costa descreveria baião como variante de baiano. Segundo Cascudo, parece que os termos baião e baiano adquirem versões mais precisas em torno de 1883, quando Silvio Romero (1954:56), referindo-se a baiano, descreve uma performance envolvendo ambos os dançarinos e tocadores de viola. De acordo com Romero, pois, significam música e dança envolvendo coreografia e improvisação instrumental precedendo o desafio dos cantadores.

27 Baiana significa tanto “mulher da Bahia” quanto o traje típico que ela usa — um longo vestido branco, rendado, rodado, muitos colares em volta do pescoço e um turbante na cabeça. Este termo também define uma capa de couro In Luís da Câmara Cascudo. (1969, I: 188-190) 28 O termo baianá indica o baile popular como evento. ibid. vol. I 199. 29 José Ramos Tinhorão (1990): o autor menciona o termo baiana como sinônimo da dança do lundu, que chegou ao Ceará na segunda metade do século XIX. 30 ‘ibid. p. 191. 31 Pe. Miguel do Sacramento Lopes Gama (24/12/1842), O Carapuceiro (jornal), nº 77, Recife, (in Cascudo, 1969: 191). 32 Pereira da Costa. (1909) ‘Vocabulário pernambucano’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro: p.66.(in Cascudo, 1969: 192).

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Cascudo também cita a descrição de Romero sobre a umbigada — um ato ritual de toque do umbigo pelo casal dançarino — em conexão com a dança baiano, isto é, um tipo de brincadeira de “pega-pega” que vai envolvendo mais e mais os dançarinos. É claro que a descrição do que Romero considera o baiano é resultado de uma considerável aculturação étnica, um produto mestiço que integra o maracatu africano, danças indígenas e o fado português. 33

Outra fonte de Cascudo é a versão de Aluísio Alves, datada de 1940, onde este autor chama tanto baião como baiano um tipo de sapateado no qual os dançarinos fazem um extensivo “estalar de dedos”. Alves afirma que o povo é convidado a dançar não pelos outros dançarinos, mas 34 pelos violeiros, enquanto Monteiro escreve em 1942 que o convite à dança é assinalado mais pelo “estalar dos dedos” do que pela umbigada. Monteiro também considera ambos, baiano e baião, como parte do samba. Baptista Siqueira (1951: 72-3) distingue baião (uma contribuição cabocla do sertão nordestino) de baiano (um remanescente do lundu, dança do litoral da Bahia). Siqueira, seguindo Câmara Cascudo, afirma que baião vem dos intermezzos dos violeiros, isto é, daquele trecho instrumental que separa o diálogo poético dos cantadores em desafio. Segundo o autor, tocar baião, na linguagem da cantoria, é reproduzir os padrões rítmico–melódicos que os cantadores executam na viola e que são encontrados no Ceará, em Pernambuco, ou na Paraíba. Tais padrões também podem ser percebidos nas bandas de pífaro, nos grupos instrumentais de sanfona de oito baixos, pífano, triângulo, zabumba e mesmo nas cantigas de cego. Luiz Gonzaga e Zé Dantas, em algumas de suas músicas, mostram a amplitude do termo baião, como se pode observar em duas de suas canções “Tudo é Baião” e “Braia Dengosa”: “Tudo é Baião” — Baião. L. Gonzaga / Zé Dantas. 1952. Bom, bom, bom, bom, Dlim, dlim, dlim, dlim, dlim, dlim, dlim Eu vou mostrar pra vocês Donde é que vem o baião O baião, o baião Andam dizendo que o baião é invenção Quem disse isso nunca foi no meu sertão Pra ver o/os cego nesse ritmo cantando E o violeiro, no baião improvisando Os sanfoneiro no Moxotó Desde o Navio ao Piancó Do Pajeú a Cabrobró Toca baião lá no forró 33 Aluísio Alves. (1940) Angicos. Rio de Janeiro, (in Câmara Cascudo, 1969: 192) 34 In Renato Almeida org. (1942).

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Pois o balaio lá no sertão E o xenhenhém que é seu irmão Até as cantiga do Lampião Na minha terra, tudo é baião. [fala]: Pedro, Ô Pedro! Home Será que há sinceridade nisso? “Braia35 Dengosa” — Maracatu. L. Gonzaga / Zé Dantas. 1957. O maracatu, dança negra E o fado tão português No Brasil se juntaram Num sei em que ano, que mês Só sei é que foi Pernambuco Quem fez essa braia dengosa, Que nos deu o baião Que é dança faceira e gostosa Português c’o fado e guitarra E o nego ao som do batuque Chorava de dor Com melê, com gonguê Com zabumba e cantando nagô, Ô! Foi a melodia do branco E o batucar de Zulu Quem nos deu o baião Que nasceu do fado e do maracatu Entretanto, o próprio Cascudo, em seus escritos de 1959, descreve baião com um sentido mais limitado: como a introdução instrumental executada pelos violeiros antes de cada desafio. De fato, é isso o que se entende ainda por baião, entre executantes e amantes da Cantoria, embora tal significado pareça ser desconhecido da grande maioria da população brasileira, que faz a conexão do baião com o tipo de música divulgada por Luiz Gonzaga. Obviamente, esse consenso popular implica uma definição mais ampla do termo do que a oferecida por Cascudo, uma vez que a música de Gonzaga mostra, claramente, como podemos observar, muitas das características mencionadas pelos autores que antecederam Cascudo.

35 O autor faz alusão ao tipo de trote do cavalo que se chama “braia”, uma variante regional de bralha. Neste caso, a dança do baião é qualificada como braia dengosa.

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Essa definição mais abrangente é proposta por Guerra Peixe.(1955: 2-3 e 32.) em artigo publicado no ano de 1955. Ele se refere ao termo baião como abrangendo várias performances populares de canto e dança, com uma rica variedade de ritmos. Incluindo a descrição de Siqueira, o baião está presente no bumba-meu-boi e nos ciclos de caboclinhos, embora nem todas as canções apresentem o padrão rítmico do baião. O alegre repicar de sinos nas igrejas de Recife também se chama baião. Um termo derivado — abaianado — é aplicado às variações rítmicas das bandas de pífano e também aos cultos afro-brasileiros do Recife. Com relação às influências dos violeiros, Guerra Peixe enfatiza os intermezzos entre as estrofes como um motivo relacionado ao baião. Toda essa amplitude do termo baião, acrescenta o autor, configura a característica comum de “alegria, variação e vivacidade” que alcançam o mesmo patamar de outras manifestações populares denominadas de samba e mesmo de batuque.

o mesmo papel do instrumento — a voz como instrumento musical — enquanto na seara da canção popular a presença do cantor, do “dono da voz”, é requerida como destaque:

Gonzaga percebeu isso muito cedo, ao tempo em que os intérpretes tinham a primazia.39 Como resultado, tornou-se também “o dono da voz”, isto é, tornou-se o cantor e o intérprete das próprias canções, mesmo aquelas elaboradas com parceiros. E por isso, passou a ser tão identificado com o repertório como intérprete que, na maioria das vezes, era o único que se sobressaía em detrimento de seus parceiros.

Pode-se concluir que baião pertence a uma ampla variedade de estilos de canções e de dança do Nordeste tradicional, mesmo nos nossos dias. Entretanto, Gonzaga foi bastante perspicaz e sensível para enfatizar todos esses traços apresentados por Guerra Peixe, utilizá-los com a parceria de Teixeira, que lhes deu versão estilizada, a qual pauta o caminho para a aceitação da canção nordestina no Rio de Janeiro, desde os anos 1940. O primeiro baião foi lançado em junho de 1946, preenchendo o espaço vazio de repertório de meio de ano com uma grande novidade para a audiência de rádio e do disco.36

Gonzaga costumava dizer que preferia apresentar-se em espaços abertos, em cima de caminhões transformados em palcos, pois facilmente alcançaria seu público favorito: as classes populares. A seu favor, fora premiado com um timbre vocal semelhante ao dos vaqueiros e cantadores que ressoam a longa distância, dispensando a parafernália de microfones e potentes caixas de som. Começava cada apresentação com a toada “Boiadeiro”, muito apropriada para tais ambientes, e conduzia o roteiro de acordo com o desejo dos ouvintes, exercitando seu modo particular de intervir com comentários repletos de humor.

Gonzaga estabeleceu o próprio estilo de performance: enriqueceu o conjunto regional carioca (cavaquinho, violão, flauta, pandeiro), anteriormente referido; como acordeonista, introduziu efeitos inusitados, a exemplo do “trinado” no fole, que se tornou idiomático no seu estilo de tocar; como cantor, sua emissão não necessariamente corresponde àquela do “bel canto”, mas seu estilo anasalado de cantar também o distingue. Além disso, Gonzaga intencionalmente enfatiza o uso do dialeto, ou seja, emprega em sua linguagem arcaísmos regionais, como se pode perceber em várias de suas interpretações.

Todos esses aspectos citados até aqui compreendem as principais características que integram o som e seu emissário, oriundos da tradição cabocla, promovendo assim o desenvolvimento da moderna música popular do Nordeste brasileiro.

… Sem a voz que fala por trás da voz que canta não há atração nem consumo. O público quer saber quem é o dono da voz. … [Quem é] aquele que faz da voz um gesto. in Luiz Tatit, op. cit. (1996) p. 14.

Também se deve levar em consideração o fato de que a maioria de suas canções se identifica muito mais com o cantor Luiz Gonzaga do que com os próprios compositores que as criaram. Ele ultrapassa a dimensão dos autores e as personifica como se suas fossem. Aliás, Tatit (1996:14) considera esse fato como uma tendência muito comum entre os cantores de música popular brasileira até os anos 70, a tal ponto que os compositores, a partir daí, passaram a ser intérpretes das próprias composições.37 Tatit também aponta o timbre dos cantores como de crucial importância no “apparatus” que envolve a produção de uma canção. Há cantores que se destacaram além dos letristas e compositores.38 A razão, diz o autor, é que a música popular brasileira trilhou um caminho diferente da canção erudita. Nesta, o timbre tende a desempenhar 36 Sabe-se que grande parte do repertório em disco de música popular brasileira prenchia duas das mais importantes estações do ano: o carnaval e o meio de ano. 37 Ver, por exemplo, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil etc. 38 Este é o caso da geração de cantores dos anos 40-50, a exemplo de Chico Alves, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Sílvio Caldas, Araci de Almeida, Marlene, Maíza, Elizete Cardoso etc.

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39 De acordo com Luiz Tatit, a prevalência de compositores como intérpretes somente emergiu durante os anos 60 e 70. Ver ‘Canção, estúdio e tensividade’.Revista USP, (São Paulo, 1989-90). p. 43.

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Análise de “Asa Branca”

uma discussão a partir da interconexão da música com a região e seu povo, aos quais o conteúdo da letra faz referência. A canção “Asa Branca” foi primeiramente lançada por Luiz Gonzaga como gênero toada, em 1947 e, mais adiante, em 1952, ela surge numa segunda versão, como baião. Foi relançada várias vezes — 1971, 75, 77 (duas vezes), 78, 79, 85, 9340 — inclusive como reprodução das duas primeiras versões citadas acima. De fato, “Asa Branca” alcançou grande repercussão no meio artístico, pois, apesar de sua identificação imediata com Gonzaga, outros intérpretes a incluíram em seu repertório.41 A versão original de “Asa Branca”, uma canção de trabalho, era familiar a Gonzaga. Ele mesmo mostrou-a ao seu parceiro Humberto Teixeira em 1947, mencionando duas versões incompletas da letra, das quais infelizmente não existe grafia musical: versão A Asa Branca bateu asa Foi s’embora do sertão La, ra, ra, não chore não42

Este estudo visa a identificar os traços característicos da música do sertão nordestino e as razões da popularidade de “Asa Branca” — uma das suas canções mais representativas. Resgata a versão original da canção, estabelecendo um paralelo entre esta e a primeira versão elaborada por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, destacando as particularidades de cada uma, os elementos comuns que permaneceram e as modificações ocorridas em decorrência dos diferentes momentos históricos que ambas representam. “Asa Branca” sintetiza um dos principais conteúdos — em letra e música — do repertório de Gonzaga, isto é, a migração. A ave citada no texto, por exemplo, é um ser migrante do sertão nordestino, é esse o elemento poético central. Está sempre relacionado com a migração dos sertanejos, sendo ele o último ser vivo a deixar seu ambiente tangido pela seca. Sua partida pressagia, na tradição popular, que não haverá estação chuvosa. A canção ressalta algumas das estruturas rítmicas e melódicas características da paisagem sonora do Nordeste. A concepção de uma abordagem que considera poesia e música como complementares é o pressuposto metodológico para esta análise. Assim, procura-se entender as razões da popularidade dessa canção que ultrapassou seu âmbito geográfico de origem. “Asa Branca” é uma das canções mais populares do repertório de Luiz Gonzaga. Trata da temática comum ao cancioneiro do Nordeste, ou seja, da saga do nordestino em luta permanente com as secas periódicas. Do ponto de vista musical, a canção resume algumas das mais marcantes características da música popular nordestina — mais precisamente, a música do sertão — em relação ao repertório proveniente dos centros urbanos. A principal tarefa que se impõe ao pesquisador é estabelecer 148

versão B Asa Branca foi-se embora Bateu asa do sertão Outras duas transcrições de versões pré-existentes, registradas por Baptista Siqueira (1956:17) e (1978:187), não apresentam qualquer informação sobre datas de coleta. Entretanto, ambas parecem anteceder a versão de Gonzaga e Teixeira, sobretudo pelas diferenças que apresentam: trazem pequenas variações tanto na linha melódica quanto no ritmo; ambas são arcaicas, no sentido de terem sido moldadas no modo lídio gregoriano o que não ocorre na versão de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. A primeira versão de Siqueira é um fragmento melódico, sem texto, intitulado “Não chore não, viu?”…, como veremos abaixo no exemplo nº 19:

40 De acordo com informação de J. Batista Alves. Comunicação pessoal. (Recife, 21/06/95). 41 Ouvir as versões de George Goulart & Trio Melodia & Trio Madrigal mais o conjunto de Guio de Morais (1952); Altamiro Carrilho (flauta) & Banda (1952); Julião (viola, 1961); Geraldo Vandré (1965); Caetano Veloso (1971), Conjunto de Sérgio Mendes (1971); Inezita Barroso (1973). Uma versão em Inglês realizada pelo cantor grego Demis Roussos (1973). Ver Chagas, Luiz. ‘Gonzaga/ Cronologia’. in Luiz Gonzaga. M. Claret ed. (São Paulo, 1990), pp. 37-48. 42 Esta versão, segundo Gonzaga, é uma tradicional canção de trabalho, típica das atividades de colheita do algodão. Ver (1996: 120).

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Na segunda versão (exemplo nº 20), cujo título é Asa Branca, a melodia aparece integral. Baptista Siqueira (1978:187) afirma que ela é oriunda da serra da Borborema, do banco do Rio Pajeú, no alto sertão do Nordeste. Eis a transcrição integral de letra e música:

Entretanto, a primeira palavra do último verso — “Seu” — é parte do verso anterior e está ritmicamente conectada com ele, formando uma espécie de enjambement que, numa interpretação mais exata, pode-se afirmar serem dois versos de 6 (seis) sílabas cada um.

“Asa Branca” (versão original da letra)

3) A segunda estrofe apresenta uma métrica mais regular, embora contenha dois diferentes padrões: dois versos iniciais de 7 (sete) sílabas, e 4 versos de 4 (quatro) sílabas cada um; em vez de dois versos de 8 (oito) e 9 (nove) sílabas, é com essa configuração rítmica que eles são cantados.

Pelo lagrimar dos olhos A gente vê quem tem amor!… Não chore não, viu? Não vá chorá, viu? Que a vida é essa… __Seu amor torna a voltar (vortá) Asa-branca pequenina, Já voou de meu sertão, Por farta d’água morreu meu gado Morreu de sede o alazão Ex. 20: “Asa Branca” (melodia registrada por B. Siqueira)

Um paralelo pode ser feito entre as estruturas poética e musical, por estarem intimamente ligadas. Em se tratando da forma musical, a peça consta de uma estrutura melódica com duas seções principais: a primeira — contendo os dois versos iniciais de cada estrofe — alcança o maior âmbito melódico em direção ascendente, como se pode observar nos exemplos nº 21 e 22: Ex. 21:

Ex. 22:

A segunda seção contém a quadra que começa com uma variante melódica no primeiro verso no ex. 23: Como se pode observar nessas versões pré-existentes, “Asa Branca” é concebida em estrofes, a estrutura poética mais apropriada para a composição de canções (Smith. 1974:59).43 Essa estrutura é também uma característica muito comum aos desafios dos cantadores nordestinos. O texto original de estrutura “AB” consiste de duas estrofes, que diferem no número de sílabas poéticas: 1) A primeira estrofe contem dois versos, um de 7 (sete) e um de 8 (oito) sílabas, com o mesmo ritmo; a diferença de uma sílaba (7-8) ocorre no começo do segundo verso pelo acréscimo do artigo “a”. 2) Segue-se uma quadra com dois versos de 5 (cinco) sílabas cada um e mais dois versos que, aparentemente, compreendem uma relação de 4 (quatro) e 7 (sete) sílabas, respectivamente. 43 De acordo com Smith (1974: 98-99), …quando se trata de canções, a forma estrófica tem sido a estrutura mais apropriada para uso dos poetas … (p. 59). Ela acrescenta que as rimas infantis, os acalantos tradicionais e as canções folclóricas, em geral, se estruturam por um processo de adição, ou seja, entre estrofes fixas pré-existentes que, em geral, compõem o início e o final do poema, é possível a sua expansão pelo acréscimo de um número sem limites de novas estrofes; a redução das estrofes também pode ocorrer, sem perda do sentido. Ver Smith, Barbara H. Poetic Closure: A study of How Poems End (Chicago, 1974), p. 98-99).

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e finaliza numa linha melódica em movimento gradativamente descendente, como no exemplo nº 24:

É importante notar que o motivo do “trítono” descendente (si-fa) — no Ex. 6— acompanha os versos que expressam a mais intensa angústia dentro do poema (“não vá chorá, viu?” e “morreu meu gado”). Em termos de conteúdo, essas duas estrofes aqui analisadas e registradas não apresentam entre si uma relação lógica de causa e efeito. Aparentemente, sua ordem pode ser alterada e até mesmo ter outras estrofes acrescentadas. É importante ressaltar as diferenças entre as concepções poéticas

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daqueles que pertencem a culturas de tradição oral — até mesmo as culturas que ainda retêm resíduos de estados de consciência dessa tradição de um lado, — e as daqueles já pertencentes a uma cultura que interiorizou os instrumentos da escrita e da leitura. Nas culturas de tradição oral, o processo de conceber ideias ocorre por adjunção, ou seja, pelo acréscimo de uma ideia a outra (Ong. 1982:37); nas culturas de escrita e leitura, as ideias são concebidas a partir da relação de causa e efeito. Por isso é que, comumente, se observa na poesia rural do Nordeste do Brasil um processo de criação coletiva que bem se adapta àquele modo de concepção (por adjunção). Mário de Andrade assinala essa particularidade na canção “Mulher Rendeira” na versão por ele registrada em pesquisa realizada no Nordeste entre os anos de 1928-29,44 verificou que as duas últimas estrofes foram possivelmente acrescentadas, pelo fato de apresentarem um padrão de rima diferente das outras. Voltando à versão original de “Asa Branca”, vê-se que a sua temática nos apresenta dois níveis de comunicação poética: 1) a comunicação do poeta com o seu ambiente, quando descreve a paisagem deserta, torturada pela seca (implícita no texto), tirando partido de uma situação familiar ao cotidiano do sertão; e 2) a comunicação intersubjetiva, em que o poeta se refere a alguém que está sofrendo porque seu amor se foi. Considerando a melodia da canção, observa-se que ela foi construída no âmbito de cinco notas (fá-dó), com a alternância entre o movimento descendente do trítono (dó-si-lá-sol-fá) e o salto ascendente do intervalo de quarta justa (fá-si bemol). Esses contornos melódicos mostram uma ambiguidade modal, isto é, a ocorrência simultânea dos modos lídio e mixolídio.

Estudo de “Asa Branca” na versão de Gonzaga e Teixeira A versão final de “Asa Branca”, lançada em 1947 por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira;, consta de um total de 5 (cinco) estrofes precedidas de uma introdução e intercaladas por um refrão, ambos instrumentais. O poema é mais elaborado em relação à versão original recolhida por Siqueira. Entretanto, permanece o princípio gerador da concepção das estrofes: as estrofes de seis versos têm a mesma configuração formal. É importante salientar que, na estrutura estrófica como um todo (os dois versos heptassilábicos e mais a quadra), ocorre um processo de “afunilamento” formal, como também alternâncias entre a terminação poética feminina e masculina (entre palavras paroxítonas ou oxítonas). Dentro do cancioneiro popular tradicional, observa-se sempre a presença do estilo declamatório de cantar e da estrutura simétrica de frases articuladas. Na canção analisada, encontram-se os dois estilos: o estilo declamatório — impresso nos dois primeiros versos, com prevalência para a palavra — e a estrutura simétrica de frases articuladas presente nas quadras, que dão prioridade ao aspecto rítmico-musical. Vejam-se, a seguir, a letra e a música:

“Asa Branca”. L. Gonzaga / H. Teixeira Quando oiêi a terra ardendo Quá fogueira de São João Eu preguntei-ei A Deus do Céu, ai Pru que tamanha Judiação Qui braseiro, qui fornáia Nem um pé de prantação Pru farta d’água Perdi meu gado Morreu de sede Meu alazão Inté mesmo a Asa Branca Bateu asas do sertão Entonce eu disse Adeus Rosinha Guarda contigo Meu coração Hoje longe muitas légua Numa triste solidão Espero a chuva Cair de novo Pra mim vortar Pro meu sertão Quando o verde dos teus óio Se espaiá na prantação Eu te asseguro Num chore não, viu? Que eu vortarei, viu? Meu coração

44 Ver Mário de Andrade: Ensaio sobre a Música Brasileira. (São Paulo, 1972), pp. 115-116.

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Ex. 25: ( melodia da versão Gonzaga/Teixeira):

A unidade temática das estrofes conserva a estrutura da versão original, que expressa alternância entre o discurso mais geral dos dois primeiros versos e um discurso mais pessoal nos quatro seguintes. Na versão de Gonzaga e Teixeira, as estruturas temáticas das estrofes expressam os sentimentos do poeta, primeiramente por meio de uma abordagem metafórica da paisagem , e, a seguir, pela ênfase dada às suas emoções. É importante observar os tempos de verbo empregados pelo poeta, porque eles acentuam a estrutura de todo o poema: o passado (oiêi, preguntei, perdi, morreu, bateu, disse) significando o que ele deixou para trás, a sua terra; o presente (no emprego de dois verbos no modo imperativo –“guarda” na terceira estrofe e “chore” na quinta — para enfatizar seu amor a Rosinha, e o emprego do tempo presente em espero na quarta estrofe, ambos se referindo às aspirações pessoais); e, finalmente, o devir (subjuntivo e infinitivo — cair, vortar, espaiá, vortarei), expressando seus desejos. O emprego do tempo presente na estrofe central, quando o poeta se refere à asa branca ( o pássaro e não o título da canção) e a Rosinha, é o clímax da peça, constituindo, portanto, o ponto central em relação à temática. Esse evento poético, localizado exatamente na parte central, é fundamental para a unidade da canção: a terceira estrofe torna-se intermediária às duas primeiras e às duas seguintes. Em vez de uma estrutura discursiva — ou seja, introdução, desenvolvimento, conclusão — apresenta-se uma outra ordem estrutural: “situacional em vez de abstrata” (Ong. 1982: 49). A força poética, localizada no centro do poema, apresenta um “tempo subjetivo” dinâmico que consiste em níveis de emoção distintos: 1) passado, incluindo as lembranças do quadro dramático que a seca produz, e uma evocação dos seres mortos ou expulsos do sertão por causa da fome, isto é, os animais domésticos e até mesmo o próprio poeta; 2) presente que compreende seus comentários sobre o ambiente e sobre seus sentimentos pessoais; 3) futuro, que encerra sua esperança de que a chuva volte para fazer renascer a paisagem, condição para realizar no futuro o desejo de voltar para sua amada. É interessante salientar que todas as estrofes têm a mesma estrutura formal. Ainda em relação ao conteúdo da poesia, observa-se que esta apresenta imagens da paisagem a partir da ótica do migrante: ele descreve o cenário utilizando-se do fogo como metáfora para expressar a tensão entre o sonho e uma realidade que não pode aceitar. A “terra ardendo”, com a qual se defronta, não representa a imagem da fogueira de São João, mas o signo da morte — não há mais água para fazer crescer as plantas, não há comida e a fome já fez suas primeiras vítimas, o gado e seu cavalo. O pássaro “asa branca”, símbolo da resistência no sertão, abandonara seu ambiente. O sertanejo, por não dispor de conhecimentos objetivos para avaliar a causa real do drama, implora a justiça divina indagando: “por que tamanha judiação?”.

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Assim como a “asa branca”, ele deve fugir e pede a Rosinha que guarde seu coração, símbolo do seu amor por ela, como o mais precioso presente. O sentimento que leva consigo é a saudade que mantém “acesa” sua relação com tudo o que deixou para trás. Humberto Teixeira mostra seu talento criativo, ao lidar metaforicamente com esses elementos distinto, por exemplo, quando traça paralelos entre a terra solitária — seca e sem vida — e sua solidão. Essa sensação enche sua mente com imagens da estação chuvosa, da abundância que o inverno traz, fazendo renascer a vegetação e a vida animal, tornando possível realizar o seu desejo de retornar ao sertão: Espero a chuva Cair de novo Pra mim vortar Pro meu sertão Rosinha é fonte de outra imagem poética. O poeta lhe diz: Quando o verde dos teus óio Se espaiá na prantação Eu te asseguro Num chore não, viu? Que eu vortarei, viu? Meu coração O fato de a seca não ser mencionada diretamente acentua a intensidade poética da ideia. A recorrência a metáforas, como “terra ardendo”, “qui braseiro”, “qui fornaia” reforça a leitura poética do tema. O título “Asa Branca” parece sintetizar todos esses elementos. No entanto, apesar de ser o fulcro da canção, o nome da ave surge uma única vez, na terceira estrofe. É importante destacar o valor expressivo das rimas em “ão”, que realçam algumas das principais ideias da canção: “João” (um dos santos mais populares do ambiente sertanejo), “judiação” (numa alusão ao sofrimento de Jesus nas mãos dos judeus e o sofrimento causado pelas contínuas secas), “prantação” (a terra cultivada), “alazão” (o cavalo castanho-avermelhado), “sertão” (a terra propriamente dita), “coração” (o amor do poeta). Essas palavras exercem uma importância fundamental no contexto da canção, pois, além de oxítonas, funcionam como terminação das estrofes e, consequentemente, encontram-se situadas nos pontos de articulação da melodia, reforçados pela cadência melódica masculina, além de conterem um rico efeito de reverberação, causado pela produção dos sons em “ão”. No entanto, elas contrastam com outros versos de terminação feminina, recurso mais comum da prosódia da língua portuguesa. O cantor-intérprete enfatiza algumas terminações: quer pela transferência da acentuação métrica do tempo forte para o tempo fraco do compasso, como se pode ouvir em “Eu preguntê -ei”, quer pela alteração do acento tônico, quando a palavra é paroxítona como em “pru que tamanha,” ou ainda pelo acréscimo de palavras com em “a Deus do céu, ai”.

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Todos esses artifícios, aqueles que acontecem nos três primeiros versos da quadra juntamente aos terminados em “ão”, reforçam o simbolismo das palavras nas quais eles ocorrem. As mudanças prosódicas nas palavras produzem um efeito sonoro no conteúdo poético, uma vez que coincidem com figuras rítmicas de longa duração, revigoradas pelo movimento melódico ascendente ou então pelo prolongamento do som numa mesma altura. Tais características são ressaltadas por Tatit (1986:33) em sua pesquisa sobre a canção popular brasileira. No caso de “Asa Branca”, aquelas figuras poéticas que se destacam pela mudança do acento tônico da penúltima para a última sílaba adquirem mais relevo dentro da canção, porque situadas em movimento melódico ascendente. Entretanto, na interpretação de Gonzaga, isso ocorre não somente por sua maneira de cantar, alterando o ritmo grafado por Batista Siqueira, como também se confirma pelo acompanhamento da sanfona. Pode-se observar essa ocorrência, comparando, pela audição, os finais dos versos de sete sílabas e dos versos 1, 2 e 3 das quadras (ver exemplos a seguir): Ex. 26: (prolongamento na mesma altura):

Ex. 27: (prolongamento por movimento ascendente):

O conjunto instrumental que acompanha o cantor —violão e cavaquinho — também acentua o tempo fraco da subdivisão métrica do pulso, seguindo a mudança da prosódia referida.

Ex. 29:

Nesse ponto, ocorre o clímax do poema, com a ênfase dada à sua principal imagem poética. As próprias vogais — a-a-a-a-a — inseridas nas palavras “a asa branca” ressaltam o efeito de intensidade poética, principalmente as duas vogais justapostas no início do grupo de palavras com “a”, um lance de genialidade, naturalmente oriundo da versão primeira do domínio popular. A canção “Asa Branca”, nessa versão de 1947, recebeu o acréscimo de uma introdução instrumental que expressa uma espécie de assimilação dos intermezzos dos violeiros, adaptada por Luiz Gonzaga para a região aguda da sanfona. Sua estrutura comporta três seqüências melódico-rítmicas distintas, — cuja unidade se mantem por um bordão soando na região grave, que permanece em toda a peça. Cada sequência tem estruturas diferentes, talvez trazidas por empréstimo de versões anteriores. A primeira é caracterizada por uma figura rítmica sincopada; a segunda, pela repetição de curtos motivos rítmicos; a terceira se distingue pelo estilo declamatório, remetendo-se a um melisma modal. A introdução se inicia em andamento vivo que vai gradativamente tornando-se mais lento para preparar a entrada da canção propriamente dita. Como um todo, a Introdução é assimétrica, contrastando com a simetria formal da estrutura da canção em termos de melodia e ritmo. A terceira seção, quando inserida entre as estrofes — como refrão — funciona como um motor sonoro, levando o ouvinte a sair de sua imersão na monotonia da canção. Ex. 30: “Asa Branca”— trecho melódico da introdução:

Ex. 28:

Nessa primeira versão de Asa Branca para gravação, o instrumental nordestino — sanfona, triângulo e zabumba — funde-se com instrumentos do conjunto regional do choro carioca: violão e cavaquinho. Os efeitos sonoros produzidos pela orquestração realçam outras peculiaridades, características da música folclórica brasileira, como, por exemplo, a polifonia pararela em intervalos de terças, feita na sanfona, e a acentuação na parte fraca do compasso reforçada por todos os instrumentos (ver ex. nº 28). É interessante observar que o trecho da poesia onde se menciona o pássaro asa branca é ressaltado musicalmente, porque se expressa em notas repetidas numa mesma altura. Esse evento rítmico-musical dá função especial ao texto, pois Humberto Teixeira explora tais elementos para dar mais significado às suas ideias poéticas, introduzindo a palavra “Asa Branca” na terceira estrofe, exatamente quando as notas repetidas estão situadas no âmbito mais agudo da melodia (ver Ex. nº 29):

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As estruturas de que se compõe a canção na sua totalidade podem ser melhor explicitadas se analisados o âmbito, o modo, a harmonia, o compasso, o metro e as características rítmico-melódicas.

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O âmbito melódico — difere entre introdução e a canção propriamente dita. A primeira apresenta-se em movimento melódico descendente, utilizando-se da polifonia em terças (ver exemplo nº 30), dentro do modo de sol. A melodia da canção em si está contida numa extensão de cinco notas (de sol a ré), como já mencionado. Estas duas partes que formam a peça mostram claramente uma alternância de modos, pela inconsistência do sétimo grau do modo abaixado. Na introdução, ele se encontra na própria linha melódica. Harmonia — observa-se que a “introdução” requer principalmente a progressão harmônica de V-I graus, enquanto a melodia da “canção” sugere, de preferência, uma sequência de IV-I graus (confere-se estas progressões harmônicas precisamente nas palavras … “de São João”, e … “tamanha judiação” — na primeira estrofe). Pode-se observar que essa instabilidade é reforçada pelo uso das terças pararelas (polifonia de terças), realizada pela sanfona durante a execução. O compasso — embora a canção se estruture em binário, a introdução mostra assimetria na métrica, um artifício que rememora o estilo declamatório baseado predominantemente no ritmo das palavras. Entretanto, quando a mesma estrutura reaparece, como interlúdio, na terceira seção da “introdução”, ela se apresenta perfeitamente simétrica. Quase todas as características ora citadas permanecem na segunda versão lançada em disco no ano de 195245, exceto a estrutura da introdução, que se reduz apenas à terceira seção. Certamente, a repercussão nacional do gênero baião levou à transformação de “Asa Branca”, de toada para baião, nas gravações posteriores.

Síntese Asa Branca, de canção relacionada proeminentemente com a cultura nordestina, conquistou status de canção nacional pela popularidade adquirida a partir das apresentações de Luiz Gonzaga e também em razão de contínuas reinterpretações por novas gerações de artistas. Até mesmo releituras da versão original com roupagem mais sofisticada não têm alterado sua simplicidade, tanto literária quanto musical. Uma das características mais interessantes do cancioneiro nordestino é a presença do “trítono descendente”, já aludido, denotando arcaísmo de linguagem por se vincular ao modo frígio gregoriano. Na adaptação da dupla Gonzaga/Teixeira, embora esse elemento tenha sido omitido, seu eco permanece no texto por meio das imagens poéticas que expressam o sofrimento, a dor, a morte, a saudade — e, por contradição, a esperança. Teixeira preserva ainda algumas das estruturas formais e temáticas que asseguram sua identidade com a cultura popular brasileira e podem ser assim sintetizadas: 1) ênfase no dialeto nordestino que comporta tanto arcaísmo quanto variantes regionais de palavras: presente em expressões como oiêi, quá, preguntei, pru que, fornáia, prantação, farta, inté, entonce, vortá, óio, espaiá, prantação. 2) distorção da prosódia natural das palavras: nos versos com terminação masculina, pelo acréscimo de mais uma sílaba, como em [eu] pregunte-ei, ou pela acentuação da última sílaba de palavras paroxítonas, como em [Pru] que tama-nha; 3) ênfase na rima em –“ao”: elemento de pontuação das duas principais seções do segundo e sexto versos de cada estrofe; 4) utilização de fragmentos poéticos constantes da versão original: “não chore não”/“morreu de sede meu alazão”; 5) abordagem dos elementos temáticos das estrofes: a alternância de duas situações psicológicas, isto é, a descrição de uma situação geral, nos dois primeiros versos, numa estrutura declamatória e a descrição de seu sofrimento diante do quadro desolador da paisagem, numa estrutura rítmica mais simétrica; 6) omissão do trítono descendente: embora ele tenha sido omitido nesta versão de Gonzaga e Teixeira, seu eco permanece no texto por meio das imagens poéticas que expressam o sofrimento, a dor, a morte, a saudade — e por contradição, a esperança. Pode-se afirmar que o poder de comunicação de Asa Branca resulta da simplicidade melódica facilmente memorizada pelo ouvinte e das brilhantes soluções obtidas por Humberto Teixeira a partir das fontes poéticas oriundas da versão original. A melodia da canção propriamente dita, cujo âmbito é um intervalo de quinta (de sol a ré), baseia-se na repetição do motivo melódico

45 Esta versão tem outro arranjo. Foi executada pelo regional de Canhoto. Ver José de J. Ferreira. (1989: 39).

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do primeiro verso. O uso repetido da rima em “ão” também contribui para sua fácil apreensão. Aliás, esse modelo de rima pode ser considerado como um intrumento estético empregado por Teixeira, pois ele o constrói de maneira a conduzí-lo à estrofe central, com força “centrípeta”. A popularidade de “Asa Branca” também se deve à interpretação de Luiz Gonzaga. Um fato a ser mencionado é que, durante a primeira gravação em 1947, os funcionários da gravadora reagiram com ironia, passando uma bandeja para coleta de gorjetas como o faziam os cantadores de rua. 46 A razão é que a melodia de “Asa Branca” tem, nas suas estruturas rítmicas, melódicas e na sua monotonia, uma ligação íntima com as cantigas de cegos. Por outro lado, a evidência de qualquer elemento que identificasse o Nordeste subdesenvolvido criava uma situação embaraçosa, devendo ser disfarçada. Entretanto, “Asa Branca” ultrapassou seus significado e contexto, pois, de canção identificada com os migrantes nordestinos, tornou-se metáfora para os exilados dos anos 60/70.47 Ela representa, em nossos dias, no coração de cada brasileiro, seu mais profundo sentimento de dor, solidão, saudade e mesmo de esperança.

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46 Ver “Gonzaga por ele mesmo” in M. Claret editor. (1990:64). 47 Escutar a versão de Caetano: LP Caetano Veloso. Philips.1971.

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___ 2000. O Sertão em movimento: a dinâmica da produção cultural. São Paulo: Annablume.

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Minha vida é andar Por esse país Pra ver se um dia Descanso feliz Guardando as recordações Das terras por onde passei Andando pelos sertões E dos amigos que lá deixei Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil

” O Sertão Gonzagueano Ensaio em xilogravura

J oã o P e d r o d o J ua z e i r o

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“A seca fez eu desertar da minha terra Mas felizmente Deus agora se alembrou De mandar chuva Pr’esse sertão sofredor Sertão das muié séria Dos home trabaiador” Luiz Gonzaga e Zé Dantas

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Eu canto só para o meu público, onde estou à vontade. (...) Aonde eu vou é aquela festa, aquela beleza, aquele reconhecimento, e nada mudou desde que comecei a cantar nos anos 40. (...) Foi o povo que me empurrou, botou aquele foguinho, pois como todo nordestino comecei por debaixo da ponte Luiz Gonzaga

LUIZ GONZAGA REMIX CRIAÇÃO E APROPRIAÇÃO DAS SONORIDADES SERTANEJAS G i l m a r de C a r va l ho

XILOGRAVURA

João Pedro do Juazeiro FOTOS

Francisco Sousa

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Falar de Luiz Gonzaga é falar do Nordeste. Terra e homem se

imbricam tão intimamente e de tal forma que, hoje, falar de um é falar de outro, ainda que com o viés poético, talvez uma forma mais sensível de expressão, multifacetada, com a prevalência dessa função da linguagem sobre a qual muito se fala e à qual pouco se recorre. Pode-se dizer que tudo é Gonzaga e tudo é Nordeste. Mas nem sempre foi assim. O “rei” teria começado a ganhar contornos em um momento que reclamava a atuação decisiva de um sistematizador da cultura da região. Essa sistematização, em um primeiro momento, dispensou as abstrações teóricas e foi feita por um intérprete chamado Luiz Gonzaga. As teorias chegaram depois, para adequar o que ele fizera às necessidades do momento, para encaixar o que fora feito no quadro das lacunas e para tentar explicar o que não precisava de explicação. Voltemos ao século XIX. O que hoje chamamos de Nordeste era ainda o Norte. Perdíamos prestígio político e importância econômica. O centro hegemônico se deslocara para o Sudeste, desde a chegada da Corte (1808), que se fixou no Rio de Janeiro, esvaziando Salvador, nossa primeira capital. Pernambuco continuava a fabricar açúcar, mas os novos tempos reclamavam uma nova atitude. Franklin Távora, no prefácio da primeira edição de “O Cabeleira” (1876), chama a atenção para o problema e atiça: “Norte e Sul são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua. Cada um tem as suas aspirações, seus interesses, e há de ter, se já não tem, sua política”, de acordo com as lições do mestre Antonio Candido. Era uma espécie de constatação dessa perda de importância e um manifesto a escancarar o que passamos a sentir mais fortemente, tempos depois.

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Não se tratava de um equivocado Nordeste independente, mas de uma constatação de que estávamos à deriva, de que estávamos fora da festa e de que deveríamos correr em faixa própria, ressaltando uma unidade nacional que se fazia da soma das diversidades. Távora chamava a atenção para a pedra que estava no sapato. Instalava-se a consciência do incômodo e a partir daí não seríamos os mesmos. Muitos estudiosos, como Sílvio Romero, Rodrigues de Carvalho, Leonardo Mota e Câmara Cascudo, levantaram o legado da tradição. Tínhamos acesso à contribuição de violeiros, cordelistas, emboladores, conquistas e uma gama variada das manifestações da voz e das suas poéticas estava registrada. Os folcloristas teriam um papel fundamental nessa catalogação. Algum tempo depois, Luiz Gonzaga iria beber nessa fonte inesgotável de sabedoria popular. Um mundo de possibilidade se abria a partir dos românticos, que buscavam a alma de uma nação a partir dessas contribuições do passado, que serviriam como raízes e como cimento para moldar a sociedade no presente. Mário de Andrade veio ao Norte em busca do amigo e correspondente Câmara Cascudo e empreendeu uma viagem iniciática, a qual renderia um material que será sempre importante, no campo da tradição e como ponto de partida para a criação estética. Nem turista, tampouco aprendiz. Certo é que a recolha dos folcloristas passou a ser tratada de forma mais rigorosa.

O chamado “romance social”, da década de 1930, vai lançar uma geração que fez da realidade nordestina matéria-prima para a alta literatura. Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Américo, Rachel de Queiroz, dentre os mais evidentes, tratavam com os códigos da literatura o que Portinari, por exemplo, traduziu em formas e cores. Era uma literatura de denúncia, incômoda, que falava de temas nada digestivos e evidenciava o papel militante desses escritores, comprometidos com uma dicção social e com um engajamento estético e também político. Parte dessa valiosa produção será depois adaptada pelo cinema. São imagens em movimento que vão dizer do drama de retirantes, beatos e penitentes. Instaura-se um outro instante, sob a égide do chamado “Cinema Novo”, no final dos anos 1950. O sertão “gonzagueano” está sendo gerado sob várias influências e vem se constituindo como contexto de onde brotará uma das obras mais consistentes e valiosas do cancioneiro nacional.

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Para tanto, deve-se retroceder à possibilidade do disco no Brasil, trazida pela Casa Edison, em 1902. A riqueza e a diversidade dos registros desembocaram, e não poderia ser de outra forma, no rádio que chegou, em emissões experimentais, durante os festejos do centenário da Independência, em 1922. A oralidade difusa, presente em todos os instantes de nossas vidas, ganhou estatuto de mídia e regras da ainda incipiente Indústria Cultural, expressão proposta, em 1947, pelos teóricos alemães Adorno e Horkheimer, da Escola de Frankfurt. O rádio se inicia com a estrutura de rádio clube ou rádio sociedade, espécie de grupo de “seletos” ouvintes que bancavam o “hobby” caro e faziam com que as primeiras emissões fossem restritas a um público elitista, longe do apelo que o veículo teria para as massas, nas décadas seguintes. Dizem os estudiosos das mídias que o rádio começa a ganhar importância quando vem a regulamentação para a inserção de anúncios, para a veiculação de “spots” de empresas que atrelavam suas imagens a esse veículo em ascensão. Vão além, ao mostrar o uso que Getúlio Vargas fez do rádio, quando subiu ao poder, no bojo de um movimento chamado “Revolução de 30”. O rádio logo atingiu a dimensão de um veículo de massas ou para as massas. Os programas de auditório vieram alimentar o cancioneiro nacional e criou-se uma exigência de lançamentos, uma roda-viva de sucessos, com um sistema que implicava a formação de ídolos e buscava o “novo”, mantidas certas especificidades para que esse “novo” não levasse a um estranhamento e a uma incomunicabilidade. Antes, o “novo” vinha sempre atrelado a um consumo para um público que aumentava cada vez mais, delirava e desmaiava nos auditórios das grandes emissoras e comprava discos de cera onde estavam registrados os sucessos dos ídolos. A música se profissionalizava e passava a ser gerenciada de outra forma. Nesse contexto, surgiu Carmen Miranda, que foi estilizar uma baiana para compor um tipo brasileiro de exportação, ao gosto do figurino geopolítico da época, que apregoava uma política de boa vizinhança com a América Latina, com a hegemonia cada vez mais crescente dos Estados Unidos da América.

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Luiz Gonzaga, como diz Sulamita Vieira, no seu clássico “O Sertão em Movimento” (São Paulo: Annablume, 2000), toma de empréstimo o gibão do vaqueiro e o chapéu do cangaceiro, com espelhos, signo de Salomão (estrela de cinco pontas) e outros símbolos da religiosidade sertaneja, dos valores e da cultura nordestina, para se impor como algo mais telúrico no cenário cultural brasileiro de então. Superou o traje passeio completo tradicional, ultrapassou o repertório dos boleros, “fox”, “standards” do jazz e do blues e criou um contexto no qual as tradições nordestinas passaram a ocupar uma posição central. Aos poucos, pelas bordas, como quem não tem pressa e não quer conseguir tudo de uma vez, Gonzaga compôs uma obra que se instalou no âmago de um registro identitário e como construção de uma ideia de Nordeste que é o que existe (e resiste) de mais fino e de mais sensível, do que se fez sobre a região, em todos os tempos, em todas as linguagens e mídias (suportes). Foi além da denúncia da perda de prestígio da região, porque humanizou os dramas, ecoou outros anseios, mais presentes e mais próximos, e trabalhou com o inefável. Ele cantava o que parecia que ninguém seria capaz de cantar. Fez do trivial matéria para clássicos, com a parceria e a imbricação total com seus parceiros de letras, como Humberto Teixeira e Zé Dantas, para ficarmos entre os mais frequentes e os mais memoráveis. Não se trata de querer despolitizar ou desideologizar a obra de Gonzaga, mas dizer que o que ele fez foi muito importante porque longe dos clichês, das figuras clássicas da retórica e das expectativas mais óbvias de seus ouvintes. Ele pode até ter partido de algo que já existia, mas deu a sua roupagem, envolveu a tradição em um contexto que trazia sua marca, não apenas sonora, mas de uma visão de mundo.

Deve ter provocado uma comoção essa figura matuta, vestida de modo anticonvencional, em um contexto onde o Nordeste era índice de atraso, onde ficava fácil recorrer ao típico, ao insólito, para mostrar um híbrido de vaqueiro e cangaceiro, intérprete de um povo e porta-voz de uma região que, parafraseando Saramago (“Jangada de Pedra”), se distanciava, cada vez mais, do centro hegemônico, das decisões do País e se colocava, metaforicamente, como vitimal, como bode expiatório de tantos problemas e território dos “coronéis”, de uma política assistencialista, baseada no clientelismo e no compadrio. Mas onde foi que Luiz Gonzaga foi buscar a matéria-prima para uma criação tão fina e tão antenada com o povo? 178

Pode-se dizer que no “oco do sertão”, parafraseando o “oco das gerais”, de outro grande criador (tão grande quanto ele) chamado João Guimarães Rosa. Esse escritor, mineiro de Cordisburgo, dizia trazer o sertão dentro dele. E quem mais trouxe o sertão tão vivo e tão plangente dentro de si que esse pernambucano de Exu, nascido no dia de Santa Luzia, em 1913, caboclo cafuso, prova de que o hibridismo é a marca mais forte da constituição do Brasil? Poucos compreenderam tão bem o “ethos” nordestino quanto Gonzaga. E não se está falando apenas de vivências ou de capacidade de processamento de informações. Ele foi muito além do que se poderia esperar de um produto, hoje descartável, feito em série para a Indústria Cultural, que é a canção de consumo. Gonzaga imprimiu sua marca e fez do efêmero um monumento cultural. O que ele nos propõe é de uma possibilidade polissêmica de leituras que impressiona. Não se fica insensível ao canto torto e forte desse homem que parece vir do chão e se constituir como a referência que foi, é e será para sempre. Pode-se perguntar se o canto teria a mesma força se emitido de outros lugares, a partir de outros contextos e por um intérprete que não tivesse a mesma genialidade. A partir dessa premissa apressada, temos uma volta por cima das adversidades, um canto que é doloroso e festivo, cruel e epifânico, dolente e modulado. Ouvir Gonzaga é ouvir a multiplicidade das bandas cabaçais que se apresentam na cena nordestina. Aqui, a flauta do deus Pã, de osso, é substituída pela taboca, pelo talo do bambu, colhido em determinadas fases da Lua, de determinados meses, como a evocar rituais de agradecimento à fertilidade do solo. Bandas cabaçais que pretendem e conseguem estilizar sons e grunhidos de macacos, onças, acauãs, gaviões, cachorros e fazem dessas manifestações anímicas o legado de antigas crenças indígenas e um fator de integração entre natureza e cultura. Gonzaga é a flauta e também a zabumba, a caixa e os pratos, que entraram muito depois, como referência e homenagem às bandas de música – e às orquestras de frevo – que proliferaram pelo País inteiro, com seus dobrados e suas retretas. Ouvir Gonzaga é também ouvir as várias possibilidades de encenação dessa dança dramática que é o reisado. Permeia muitas de suas composições o baião do boi, com seus crescendos, seu clima 179


de empolgação e com o baticum dos pés no chão batido dos terreiros. Gonzaga canta também para emas, bodes, carneiros, jaraguás, Donanas, Cazuzas e vaqueiros, dependendo de como o folguedo se organiza e de onde ele é apresentado. Se no Nordeste prevalece no ciclo natalino, no Maranhão e em Parintins (AM), a brincadeira é junina. O que dizer do maneiro-pau, com sua dança ritmada, com a marcação percussionista e com o aspecto de litania que transmigrou para algumas de suas composições? Podemos deixar de falar no coco, que é mais dança, mas não subsiste sem o duelo que se estabelece, com motes e rimas que se alternam e se altercam, com precisão e sincronia? Ao fundo, talvez como influência mais forte, a cantoria de viola (algumas vezes de rabecas, como a do Cego Oliveira, de Juazeiro do Norte). Parece ser aqui que pulsa mais forte nossa oralidade, revestida de uma poeticidade que vem das rimas, das métricas e das inflexões, das síncopes e das sílabas que se dilatam para que se consiga o efeito que se busca e para que as regras sejam mantidas. A cantoria que tem origens tão longe, no tempo e no espaço, parece ter se refeito, altiva, na Serra do Teixeira, na Paraíba, de onde saíram monstros sagrados, que ainda hoje são presentes em nossa memória. Uma cantoria que – não se pode esquecer – foi emitida por jograis, trovadores, goliardos, foi expressa pela poesia provençal, virou baladas e, por fim, ganhou modalidades, como gabinetes, mourões, martelos agalopados, Pai Tomás, galopes à beira-mar e está hoje na maior parte das emissoras de rádio do sertão, onde madrugam seus apresentadores, no horário que podem alugar, horários mais desvalorizados pelos departamentos comerciais, mas, por isso mesmo, aqueles nos quais os radinhos já estão ligados. O homem (e a mulher) do campo já se prepara para a jornada e são transmitidas mensagens de chegadas, boas-novas, prêmios e também notícias agourentas de mortes, doenças graves e perdas. Gonzaga traduziu essas cantorias para outros códigos, fez ele próprio (por meio dos seus letristas) protagonista e antagonista, superou a viola, que ganhou versão mais encorpada de sanfona, triângulo, metais e percussão. Estava formada a orquestra que iria colocar no ar e nos fazer ouvir seus desafios, plangentes uns, festivos outros. Que rei Luiz é esse, capaz de façanha tão sinfônica? Essa poesia oral também se amplifica nas “contações” do romanceiro, onde a tradição se cristalizou antes de ser recolhida, num trabalho profícuo e dedicado de equipes de pesquisadores que 180

tentaram (conseguiram, na maioria das vezes) recuperar variações do mesmo romance, detectar adaptações e riquezas que língua e imaginário são capazes de engendrar. Seu canto também evoca (e como!) aboios. E vale lembrar as boiadas que se arrastavam sertão afora, na busca de pastos mais verdejantes e generosos. Vale relembrar a luta do vaqueiro, homem livre, tendo o Sol por testemunha e todo o chão à sua frente, com lajedos, carrascais, caatinga fechada, com matas de juremas, louros, paus brancos.

Gonzaga foi buscar no encourado, mais que a roupa, a forma anímica do homem se comunicar com a rês desgarrada, evitar o estouro da boiada ou saudar o fim do dia, aquele instante de lusco-fusco, quando o Sol se põe e ainda não é noite e as rádios tocam a Ave Maria. Canto gutural, onomatopáico, espécie de mantra, que não precisa de rima, de métrica, sai do coração e dialoga com ventos, com o crepitar dos cascos dos animais, com a chuva – quando tem chuva – e com um Deus cósmico. E o que dizer dos chocalhos, enchendo de faíscas e fagulhas um sertão que é puro Sol? Uns maiores, dos bois, portanto mais pesados e solenes. Outros menores, que repicam a agilidade e a inquietação de cabras, ovelhas, carneiros e bodes, pastando livres, na cata de algo para comer e voltando para os chiqueiros no final do dia. Chocalhos que compõem uma percussão pastoril, espécie de trilha sonora de nossas errâncias e desses animais que perseguimos ou criamos. Gonzaga foi buscar motivo nas adivinhas, espécie de jogo onde prevalece uma sabedoria de vida ancestral, que tem a ver com provérbios (ditados) e se torna uma construção do senso comum, expressão da vida que não cobra explicações mais fundas. Está na sua obra o jogo das parlendas e aqui cantava o “amanhã é domingo / do pé do cachimbo / galo monteiro / pisou na areia / a areia é fina/ que deu no sino / o sino é de prata / que deu na barata/ a barata é de ouro/ que deu no besouro / o besouro é valente / que deu no tenente / o tenente é mofino / que deu no menino”, como registrou mestre Cascudo. E o que dizer do “papagaio real / pela Portugal / quem toca meu louro / é o rei que vai à caça / com seus cachorros de raça / todos três de boa caça / toca trombeta, meu louro”? Cantigas de roda também se diluem nessa obra panorâmica e enciclopédica de Gonzaga. Aí estão donas Sanchas, “com seus anjos guerreando / é de noite, é de dia / Pai Nosso / Ave Maria”.

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Também outros instantes de canções de ninar e de cantos de trabalho, dos vários ofícios, começando pelos cortadores de coco e passando pelas fiandeiras, pelos mineradores, pela colheita do algodão, do café e pelos carregadores de piano do Recife. Não podiam ficar de fora os toques dos pastoris, quando repicavam pandeiros com fitas e as cançonetas da tradição lusa incorporavam outras sonoridades. Entre os cordões dos partidos azul e encarnado, comandado pela figura ambígua e/ ou conciliadora da Diana, exibiam-se ciganas do Egito, borboletas pequeninas, estrelas, Sol, pastores e canções que antecipavam um Natal de anjos de asas brancas, tiaras recobertas com areia prateada e vestes de cetim. A estética de caixinha de música se amplificava nesse concerto para comemorar o nascimento de Cristo. O mesmo que acontecia com os dramas, série de esquetes, representados sobre uma mesa, com meninas vestidas de papel crepom, representando flores, bichos, bêbados, negros, fazendo humor, falando de amor, cantando a vida e a natureza, acompanhadas por violas, rabecas ou sanfonas. Ou nas apresentações dos mamulengos, instante de um teatro de dicção popular que faz dos bonecos intérpretes das verdades que precisam ser ditas. A nau catarineta era uma chácara portuguesa de tema marítimo, narrando uma travessia do Atlântico, marcada pela tragédia. Uma barca era construída e as conquistas lusas eram reencenadas em praças públicas, com direito a uma transposição desse assunto para o Fandango. Gonzaga teve profunda imersão nesse meio e tudo isso deve ter ficado numa memória privilegiada, o que levou o compositor, mais que processar, a sintetizar todos esses sons e influências, na composição de uma obra única e ao mesmo tempo coletiva, porque feita de retalhos, como o artesanato de “fuxicos”, ou um painel de mosaicos ou os cacos de um vitral. Gonzaga deu a todo esse conjunto seu toque de gênio, quebrou arestas, preencheu lacunas e abriu caminho para essa construção vigorosa, para esse verdadeiro legado musical de um povo. A ambiência religiosa sempre foi forte e se reforçava com um sincretismo que ia beber nos chocalhos e maracás dos pankakarus, nas etnias fulniô e em outras que se espalham pelo Cariri cearense, pelas franjas da Chapada do Araripe, onde está sua Exu, terra natal, e se espalha pelo Agreste, pela Zona da Mata, território que se expande e se concentra, também marcado pela herança africana, com seus banzos, seus batuques e seus maracatus de baque solto ou virado, que tanto enriquecem a cena cultural pernambucana. 182

Gonzaga vai beber na fonte dos benditos. Eles estão presentes, marcando um tom solene dos instantes de seriedade, dando graças e fazendo a festa, quando é tempo de festa, mesmo que seja festa pequena, com suas novenas, ou solenes, como as procissões da Semana Santa, marcadas pelo toque fúnebre das matracas. Aqui se reforça a presença do Padre Cícero, com as romarias gigantescas a Juazeiro do Norte, com os caminhões lotados de romeiros, enfrentando estradas em paus-de-arara e entoando o canto de fé e de esperança. Ou as prédicas de Frei Damião, um português ininteligível para os fiéis das Santas Missões, apavorados com o fogo do inferno e o mundo ainda dividido entre o bem e o mal. Depois de morto, Luiz Gonzaga cumpriu o destino romeiro e o caixão que embalava seu corpo foi levado à presença da imagem do “santo do povo”, na capela erigida em 1940, diante da Igreja do Socorro, onde o Padre do Juazeiro está enterrado, para o último adeus antes do enterramento e da viagem para os céus. Gonzaga deve ter ouvido, nas noites mais soturnas, o lamento de vozes que pareciam de mortos, dos penitentes, segurando cruzes e se flagelando nas noites que antecipam a Paixão de Cristo, por exemplo. Os cachos de lâminas teriam sido introduzidos na região por Padre Ibiapina, cearense de Sobral, que se dedicou à causa religiosa e trabalhou pelos excluídos e pelo avivamento da fé. De acordo com alguns velhos penitentes, Ibiapina teria introduzido uma série de benditos, inclusive uma versão do “Stabat Mater”, chamado de “Pranto”, que reproduz a dor de Maria ao ver seu filho ser retirado da Cruz. Essa musicalidade bebe também nas incelenças, o canto para os mortos antes que eles empreendam a última viagem ao seio do Pai. Vozes rascantes e sofridas entoam virtudes, pedem misericórdia e embalam nesta litania fúnebre corpos marcados pela dor e pela expectativa da salvação. Ou na vociferação histriônica e apocalíptica dos beatos. A dança de São Gonçalo, feita em homenagem ao santo português de Amarante, monge beneditino que se transformou no violeiro sertanejo, era paga como promessa por uma graça alcançada. As jornadas, intermitentes, repetitivas e quase antecipatórias de um transe, duravam a noite inteira. Diziam que o santo, que era um lindo rapaz, dançava com as profissionais do sexo para que elas largassem a vida de pecado e luxúria. Rabecas, sanfonas e violas marcavam o ritmo das coreografias, que devem ter sido ouvidas por Luiz, em algum momento de sua vida. 183


Fusão com o canto dos pedintes, muitas vezes cegos, espécie de litania da resignação e da expectativa da esmola. Corte para um sertão em festa, em tempo de colheita. Essas comemorações que remontam ao paganismo agradecem a fertilidade da terra, à deusa Ceres dos gregos. Elas se dão no mês de junho, com direito a fogueiras (como no então frio Hemisfério Norte), a comidas feitas com milho, batata doce e macaxeira (aipim). O terreiro é decorado com fileiras de bandeirinhas de papel de seda, de cores variadas, com mastros votivos e paus-de-sebo, que os mais ousados escalam em busca de presentes. A adivinhação é uma brincadeira corrente. Nas noites que antecedem as festas de Antônio, João e Pedro, são feitas cerimônias rituais para saber de casamento e outras sortes. A faca virgem enterrada no tronco da bananeira pode trazer impresso o nome do futuro marido ou mulher. Para criar a ambiência de festa, música, muita dança das quadrilhas, que são estilizações das danças de cortes europeias, aqui Gonzaga amplificou a festa, tirando partido do que existia. Deixou uma série de composições que animam e animarão para sempre esses minuetos sertanejos, hoje com roupas onde prevalecem as cores e os brilhos, com coreografias e até enredos, como nas escolas de samba cariocas, e o velho resfolegar da sanfona da tradição, que continua a ser exigida nos grandes festivais juninos que acontecem em Caruaru, Campina Grande, Mossoró e Fortaleza.

Pensar em Luiz Gonzaga é pensar na música como totalidade, mas vale a pena abrir um espaço para a sanfona, que começou pequena, de oito baixos, “pé-de-bode”, ainda nas mãos do pai Januário. Curiosa a trajetória desse instrumento de procedência alemã que se aclimatou tão bem ao sertão nordestino. Talvez pela portabilidade e pelo preço, talvez pela necessidade de criar um contraponto para rabecas e violas. Certo é que a harmônica sofreu uma interferência. Era aberta e trocavam umas peças para que o som passasse a ser mais festivo. Luiz Gonzaga devia saber dessas coisas. Desde pequeno via o pai tocar e a velha sanfoninha devia ser um sonho de menino, como deve ter sido de tantos outros tocadores por este sertão afora. Tantos tocaram para que ele atingisse a excelência; tantos anônimos, animando festas nos terreiros das fazendas e ele, coroado como o rei do baião, nos auditórios das emissoras de rádio, fazendo apresentações em praças públicas, sempre com a sanfona a postos, aplaudido, aclamado. 184

Lembro do dia em que meu pai me levou ao auditório da Ceará Rádio Clube (PRE-9), edifício Pajeú, em Fortaleza, e me colocou na “cacunda”, como se dizia então, para ver o rei. Foi em meados dos anos 1950. A agitação era grande. A expectativa nos deixava ansiosos. Até que chegou o grande momento da apresentação do rei e ele entrou esplendoroso para meus olhos de menino – aquela visão marcaria para sempre minha ideia de Indústria Cultural, de entretenimento e de “show-bizz”. Esse Luiz estaria para sempre no imaginário de muitos, não apenas no Nordeste, mas em todo o Brasil. Porque as artes da performance, das conversas moles antes do espetáculo, ele foi buscar nos terreiros das fazendas, nos diálogos sob o céu todo estrelado. Foi buscar também no bodejado dos vaqueiros, na lida dura de capinar o chão nem sempre fértil para a roça, na ordenha do gado, nas brincadeiras de feira, regadas a um bom trago de cachaça e ao som de pregões, que também rimavam e tinham o mesmo número de sílabas que os motes das cantorias. Esse sentido de espetáculo ele afinou nos terreiros, sabendo dosar uma música mais lenta com outra mais animada, tocando o que o povo queria ouvir ou dançar. Essa performance foi aprendida na prática, com cheiro de gás, com poeira subindo e água sendo jogada para abafar a poeira. Êta Luiz Gonzaga danado de bom! Como milhões de sertanejos, ele faz parte desta cultura com predominância oral, mas não prescindia do velho “Lunário Perpétuo”, de uma ensebada edição da “História de Carlos Magno” e, em alguns casos, de um volume da “Missão Abreviada”. Isso para não deixar de falar nos folhetos de feira, com suas narrativas rimadas de Donzelas Teodoras, bois mandingueiros, cavalos misteriosos, reis invencíveis, princesas irresistíveis, dragões da maldade, Padre Cícero e todo esse imaginário que Luiz incorporou, digeriu e amplificou, em versões sonoras. Importante que o cordel não é apenas uma poesia da voz, com rima, métrica e melodia, que se perfaz no instante da performance. Daí a importância das leituras em voz alta, onde os analfabetos podiam ter acesso às histórias. Mas o cordel é um universo encantatório e foi aí que Gonzaga conseguiu revolver camadas ancestrais de uma universalidade e construir seu “corpus”, que é do tamanho do sertão ou do tamanho do mundo.

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Gonzaga passou a ser personagem do cordel. Não apenas com o ciclo que desencadeou sua morte, em 1989, mas com a apropriação diluída de sua obra e dessa imbricação maior feita entre o que ele representou e representa e a literatura mítica que passou do trancoso para o “jornal do sertão”, como no documentário de Geraldo Sarno.

O universo de Luiz Gonzaga é mágico, na alegria da festa e na dor. A seca, por exemplo, encontra uma tradução capaz de ser cantada e compreendida por todos. A conotação didática está longe de ser o fator preponderante. O que importa é a fruição, uma recepção vivenciada. Canta-se aquilo que se conhece ou que se viveu. E a acauã antecipa a seca que vem desastrosa. Pintam as cores de um drama épico, que afeta gerações e se instala com a força de uma tragédia grega, com seu coro de vozes retirantes e sua impotência diante do nada ou diante de tudo. Foi quando ele “olhou a terra ardendo” e compôs “Asa Branca”. Variações dessa mesma “Asa Branca” foram cantadas pela mãe de Patativa do Assaré (1909/2003) e foi gravada pelo Cego Oliveira. Disseram, anos depois, que a versão “gonzagueana” seria gravada pelos Beatles. Era piada, mas os quatro rapazes de Liverpool não sabem o que perderam. Gonzaga foi ao encontro de Patativa do Assaré e foi quando gravou a “Triste Partida” (1964). Até o fim, ele esteve antenado com o que se fazia no mundo. O Nordeste mudara. Tinha televisão em Campina Grande e faculdade em Caruaru. A energia de Paulo Afonso trouxe uma onda de desenvolvimento. A Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) investiu pesado para a industrialização. Antes, o Banco do Nordeste se posicionou como motor da economia regional.

que entraram em cena, como os DJs com seus remixes e a música que atualiza o que foi feito, como o “Baião de Viramundo – Tributo a Luiz Gonzaga”, um dos melhores discos do ano 2000, de acordo com os críticos do jornal “The New York Times”. Gonzaga resiste. Foi dele a voz que disse o mundo sertanejo pela primeira vez. Senão de fato, pela recriação e pela ocupação de espaços na mídia. Inegável que ele teve essa função adâmica e soube fazer dela o melhor uso possível.

BibliogrAfia

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Apesar de tudo, Gonzaga continuou a ser a referência mítica. Ele está presente em todas as praças públicas e nos auditórios dos programas de televisão, quando a família retirante toca sanfona, zabumba e triângulo e canta uma de suas canções. Está presente no discurso nostálgico dos “bons e grandes momentos” da canção dita regional, quando as bandas de forró eletrônico estão mais preocupadas em fazer dançar e em acompanhar os modismos e nada interessadas em fazer uma crônica do mundo, como a obra de Gonzaga. Também está presente e latente na apropriação que se faz de suas composições, agora em versões “tecno”, com batidas eletrônicas, para tocar com a assinatura dos novos personagens 186

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Quero ser lembrado como um sanfoneiro que cantou seu povo, que foi honesto, que criou seus filhos, que amou a vida deixando um exemplo de trabalho, de paz e amor Luiz Gonzaga

” Ensaio em xilogravura

Francorli e Carmem

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Antes de mim o baião já existia, só que de forma ainda indefinida. Era conhecido como “baiano” em algumas regiões do Nordeste. Quer dizer, o baião em sua forma primitiva não era um gênero musical. Ele existia como uma característica, como uma introdução dos cantadores de viola. Era um ritmo, uma dança Luiz Gonzaga

O SERTÃO EM RITMO DE BAIÃO Sulamita Vieira

XILOGRAVURA

João Pedro do Juazeiro XILOGRAVURAS

Francorli

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Em meados do século XX, a história da música brasileira é marcada pelo

surgimento do fenômeno Baião,1 que entra em cena ao som da sanfona de Luiz Gonzaga. Assim, de forma singular, esse novo estilo musical e o seu principal porta voz conquistam a sociedade brasileira. Considerando inseparáveis esses dois fenômenos sociais, abordo, nas páginas que se seguem, aspectos da trajetória desse grande músico e intérprete, examinando a construção da sua figura artística, e, simultaneamente, imagens do sertão que encontro no seu repertório. Ou, mais precisamente, analiso representações do sertão em um conjunto de canções que, nas décadas de 1940 e 1950, principalmente, difundiu-se por todo o Brasil, chegando também a outros países dos continentes americano, europeu e asiático.

O texto está norteado por algumas indagações: por que Luiz Gonzaga e sua música alcançaram, em um determinado momento histórico, tanto “sucesso”? Esta formulação pressupõe uma outra, fundante: produzida historicamente, a cultura constitui-se em teias de significados (GEERTZ, 1978). Ora, sendo a produção musical uma expressão cultural, ela não pode ser concebida como fruto de supostas genialidades individuais (ELIAS, 1995). Então, pergunto-me qual o significado do baião ou, talvez, que significados ele terá aglutinado e em que contingências, a ponto de conquistar amplos espaços sociais? E, ainda, considerando a frequência com que a palavra sertão aparece nas canções, me vem a inquietação central: afinal, que sertão cantou Luiz Gonzaga? Empiricamente, esta análise está ancorada em uma pesquisa que realizei na década de 1990. Tal investigação fez-me debruçar sobre acervos de algumas instituições por esse Brasil afora, entre as quais cito: Fundação Joaquim Nabuco, em Recife; Museu do Gonzagão, em Exu-Pernambuco; Museu Luiz Gonzaga, em Caruaru-Pernambuco; acervo do Nirez, em Fortaleza; Museu da Imagem e do Som (MIS/SP), Biblioteca Oneyda Alvarenga, bibliotecas dos cursos de Ciências Sociais, de História e de Comunicação Social, da Universidade de São Paulo (USP); acervo de imagens da Fundação Padre Anchieta/TV Cultura, em São Paulo; Biblioteca Nacional, MIS/RJ, e Collectors 1

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Utilizo o termo baião também para designar, genericamente, a música da qual Luiz Gonzaga se consagrou como principal intérprete. Nesse sentido, aqui, baião é empregado como sinônimo da expressão “música de Luiz Gonzaga” e inclui, além do próprio gênero, dentre outros ritmos: marchinhas, toadas, mazurcas, xotes, arrasta-pés, etc. Ressalte-se, ainda, que estou lidando com uma produção cuja autoria pode ser de Luiz Gonzaga individualmente, dele com parceiros ou, em alguns casos, de outros compositores; ou seja, canções integrantes do seu repertório, sem a sua parceria. Assim, em várias passagens deste texto, embora adotando a idéia de posse (sua música), a rigor, refiro-me a uma produção que é coletiva

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Editora (espécie de guardiã de grande parte do acervo da Rádio Nacional), no Rio de Janeiro. Além disso, pelo menos durante três anos, nesse período, reservei parte do meu tempo para ouvir, repetidas vezes e com muito prazer, mais de trezentas gravações do repertório de Luiz Gonzaga2. O baião e o seu intérprete maior foram se edificando, ao longo de alguns anos, em meio à dinâmica da sociedade brasileira e a processos de produção e reprodução de práticas e orientações culturais; uma dinâmica que envolve relações entre classes sociais, entre categorias e que diz respeito também à existência de uma complexa pluralidade cultural e a interações entre regiões geográficas e entre campo e cidade. Enfim, o baião e a figura artística de Luiz Gonzaga são fenômenos produzidos historicamente em uma sociedade marcada, dentre outros aspectos, por intensas contradições sociais e por profundas desigualdades, em um período de acentuado movimento migratório entre sertão e cidade e entre as regiões do país, estas, à época, concebidas, genericamente, como Norte e Sul3.

Quando eu vim do sertão, seu moço4... As raízes desse fenômeno estão fincadas no sertão do Araripe, mais precisamente na Fazenda Caiçara, município de Exu, em Pernambuco. Nascimento, no caso, não é sobrenome. O menino que veio ao mundo em 13 de dezembro de 1912, “na hora em que uma zelação cortava o céu”, se chamou Luiz em homenagem a Santa Luzia; Gonzaga, “pra completar o nome do santo padroeiro, São Luiz Gonzaga, da nossa devoção”, e Nascimento reverenciava o mês do Natal (SÁ, 1986: 9). Integrando uma família de camponeses sem terra, Luiz Gonzaga era o segundo filho em uma série de nove. Ainda criança, acompanhava o pai, Januário José dos Santos, nas suas atividades do dia-a-dia, quer no roçado, quer com a sanfona (além de tocar sanfona de oito baixos, Januário consertava ou afinava esse tipo de instrumento que lhe traziam os outros sanfoneiros da redondeza). Junto da mãe, Ana Batista de Jesus – agricultora e dona de casa –, aquele menino também se aproximava do “mundo da música”, de algum modo: segundo ele, Dona Santana, como era conhecida, “puxava” as rezas e os benditos quando o “povo do lugar” se juntava nos festejos. Eis aí o cenário em que se situa a primeira grande escola do artista. Ou seja, Luiz Gonzaga teve naquele espaço suas primeiras aulas; aulas às quais ele próprio, mais tarde, atribuiria grande 2

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A análise de parte do material coletado nessa pesquisa se constituiu na minha tese de doutorado em Sociologia (1999). Posteriormente, passando por adaptações, esse trabalho foi publicado sob o título O sertão em movimento: a dinâmica da produção cultural. São Paulo: Annablume, 2000 [1ª reimpressão, 2009]. Este artigo é uma espécie de síntese de algumas das questões abordadas no livro. Apesar de o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) haver definido a divisão do Brasil em várias regiões desde 1941, por longo tempo, na linguagem corrente (no senso comum, nos discursos dos políticos, na música, na literatura, etc) falava-se do país como se fosse dividido em dois grandes blocos: Norte e Sul. Ressalte-se que esse tipo de abordagem continua existindo, porém não é mais predominante. Para intitular este item, tomo emprestado um verso de Pau-de-arara, composição de Guio de Moraes e Luiz Gonzaga, 1952.

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importância para a música e para a vida. Foi ali que, segundo ele, começou a enveredar pelo “mundo da música”. Antes de completar dezoito anos, esse menino sem sobrenome familiar e que nunca frequentou uma instituição escolar, deixando para trás o pai, a mãe e muitos irmãos, correu Brasil afora e tornou-se, mais tarde, o Rei do baião. Na sua trajetória, a um só tempo e de forma entrelaçada, estava em gestação um novo estilo musical e construía-se uma imagem artística de grande impacto. E, assim, o baião e o artista conquistaram a simpatia de brasileiros espalhados por todo o território nacional. É desse modo que me ocorre falar de um retirante que, nominalmente, entrou para a história como Luiz Gonzaga e, afora o honroso título monárquico (em plena República), recebeu ainda cognome de Lua e, já nos anos 1970, passou a ser chamado também de Gonzagão, quando o seu filho despontou no cenário musical como Gonzaguinha. Luiz Gonzaga do Nascimento saiu do sertão de Pernambuco, “lá no [seu] pé de serra”, em 1930. Seguiu para a cidade de Crato, sul do Ceará, e, na ocasião, para comprar a passagem de trem para Fortaleza, desfez-se de um bem precioso, a sanfona. No Araripe, deixava principalmente um sertão de novenas e terços5, de procissões, de promessas; de beatos e de cangaceiros; de fartura e flagelo; um sertão de seca e tristeza e, também, de festas e alegrias trazidas na correnteza dos rios cheios, embaladas na zoada das cachoeiras. No longo trecho compreendido entre Pernambuco e Rio de Janeiro, como de resto em todo o país, com aguçada sensibilidade, aquele jovem foi, gradativamente, visualizando muitas estradas, caminhos e veredas por onde circulavam, num movimento constante, retirantes de todo o Brasil. E, aqui e ali, de um modo ou de outro, o baião e o artista foram incorporando aspectos dos muitos saberes gestados nesse movimento migratório. Chegando à cidade, antes de se tornar artista, Luiz Gonzaga ingressou no Exército como recruta. Nove anos depois, após percorrer vários estados, desligou-se da instituição militar. Assim, partiu de Ouro Fino, em Minas Gerais, para o Rio de Janeiro, passando por São Paulo, onde comprou uma sanfona. No Rio, aguardaria o navio para “voltar pro Norte”. E, num período em que a população brasileira aguardava, assustada, uma eventual entrada do país na Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que, no âmbito interno, experimentava-se, ufanisticamente, uma campanha nacionalista sob a batuta do ditador Getúlio Vargas, Luiz Gonzaga via a então capital da República crescer de galope e sem condições ou preparo para absorver, como cidadãos, os muitos brasileiros componentes dos contingentes populacionais que lhe chegavam de toda parte do país. Em meio a tudo isso, morador provisório daquela cidade, esse nordestino ousado foi se esgueirando habilmente, por entre praças e ruelas na área do Mangue, procurando um lugar para ficar com sua sanfona, mostrando a sua arte, usando às vezes um pedaço de calçada como palco, segundo ele, tendo como público mais frequente prostitutas e marinheiros.

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Novenas e terços integram um conjunto de práticas da religião católica; funcionam como uma espécie de ação socializadora ou integradora de comunidades locais e têm, muito fortemente, um caráter festivo, sobretudo para “populações pobres”.

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É desses lugares social e geográfico que um retirante bem especial se põe a olhar o mundo, a reordenar suas representações e começa a construir uma nova interpretação de sertão (de Nordeste e de Brasil), a partir da música e da sua própria imagem artística. Percorrendo outras veredas na cidade, algum tempo depois, Luiz Gonzaga terminou encontrando o advogado cearense Humberto Teixeira (1915-1979) e o médico pernambucano Zé Dantas (1921-1962), os quais se tornaram seus grandes parceiros6. Em comum, além da origem nordestina, essas três figuras integravam uma mesma geração e traziam consigo reconhecido talento poético e musical e um jeito muito particular de olhar a vida, o mundo ao seu redor, o Brasil e os brasileiros, conforme se pode constatar por meio da vasta produção que se consagrou na voz de Gonzaga. Na capital da República, na medida em que conquistava parceiros e incorporava novas peças ao seu repertório, Luiz Gonzaga ampliava seu espaço de atuação artística: além das apresentações na noite carioca, o som da sua sanfona foi se amplificando e o baião passou a ecoar bem mais longe com a chegada do artista ao “mundo do rádio”. É sob esse ângulo que percebo o surgimento e a propagação dessa música, que, saindo do campo para a cidade, reinventou um sertão diferente. Um sertão de lembranças e que, simultaneamente, incorpora novas experiências; um sertão fruto da criatividade de quem partiu, mirou a cidade e mergulhou num mundo maior. Nesse sentido, sendo uma produção cultural, o baião configura-se, ele próprio, uma forma de interpretação. Assim, exaltando a natureza, cantando lendas e costumes ou recriando representações de crenças e valores evocativos do dia a dia de populações em situações as mais diversas, Luiz Gonzaga difundia sua arte, presenteando os brasileiros com uma imagem muito particular de sertão. Nessa produção musical, de diferentes maneiras, se entrelaçam sertão e cidade, lendas e histórias, velho e novo, local e nacional, sagrado e profano e, assim, vão se criando e recriando representações sociais do “mundo do sertão” e do “mundo da cidade”, em meio a múltiplos processos interativos.

E o povo só pede só dança o baião7 Se, conforme afirmei antes, tomando como referência teórica o raciocínio de Norbert Elias (1995), na explicação do fenômeno aqui analisado não é suficiente nos atermos apenas a uma suposta genialidade do artista, cabe indagar: que outras variáveis nos ajudariam a compreender o inegável êxito alcançado por Luiz Gonzaga e sua música? Para começar, devo lembrar que a presença de baião no Nordeste antecede o surgimento de Luiz Gonzaga e de seus parceiros no campo musical. Segundo Câmara Cascudo (1988), o baião tem 6 7

Ressalte-se que, ao longo de sua carreira artística, Luiz Gonzaga contou com muitas outras parcerias; estou destacando os dois dentro do período analisado. Aqui também, o título deste item é um verso de outra canção, A dança da moda, composição de Zé Dantas e Luiz Gonzaga, 1950.

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raízes no maracatu africano, em danças populares do Nordeste, no fado português e na batida dada na viola pelos cantadores sertanejos. Tais cantadores, tradicionalmente, se constituíram numa das expressivas atrações das feiras nordestinas. No sertão, a feira é também uma festa. E os cantadores – tocadores de rabeca ou de viola, esta em período mais recente – contribuíram substancialmente para a alegria dessa festa. Em torno deles, pessoas se reuniam para ouvir as cantorias ou para dar um mote e se deleitar com os repentes ou as pelejas. Tem-se, assim, nesse contexto, um espaço importantíssimo para a comunicação entre os que circulam na feira e para a relação destes com um mundo mais amplo (VIEIRA, 2003). Olhando-as sob esse ângulo, pode-se dizer que, juntamente com suas funções econômicas, as feiras revestem-se de grande significado social para as populações sertanejas, em termos de comunicação e socialização, a partir de ações interativas as mais diversas. Nesse espaço festivo, portanto, o baião também passeou nos braços dos rabequeiros e violeiros. Antes de abraçar o baião, por volta de 1941, Luiz Gonzaga fez suas primeiras gravações em disco; àquela altura, restringia-se à execução de músicas instrumentais, uma vez que sua voz não agradava aos responsáveis pelos programas de rádio. Sua primeira gravação cantando data de 1945. Até então, seguia tocando sanfona em bares e botecos, na noite, no Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, fazia suas incursões no “mundo do rádio”, espaço fundamental para o êxito na trajetória do artista e do baião, principalmente porque Luiz Gonzaga não demorou a tornar -se exclusivo da renomada Rádio Nacional (isto ocorreu a vários outros nomes de relevo no campo artístico-musical brasileiro). Naquele contexto, o “sucesso” alcançado logo depois no âmbito radiofônico era uma espécie de atestado público do seu talento e também de reconhecimento da produção musical da qual se tornara protagonista. Ressalte-se, porém, que num primeiro momento Luiz Gonzaga não tinha um diferencial que marcasse seu começo de carreira. Ou seja, como sanfoneiro, executava ritmos em voga, em boa parte estrangeiros, como valsa, fox, bolero, etc. Sua diferenciação começou a “dar sinais”, no entanto, quando – atendendo à demanda de um grupo de estudantes que o assistia em um daqueles botecos –, tocou um xamego de sua autoria, intitulado Vira e mexe. Conforme depoimento dele próprio, diante da acolhida efusiva da plateia, após ouvi-lo naquela noite, pensou consigo: “Agora vai! Agora, achei o caminho do Norte!”. E acrescenta que o passo seguinte foi apresentar a mesma música em um programa de calouros, no qual já se apresentava. Segundo ele, a partir dali, foi ampliando o seu repertório e passou a ser visto, e também a se ver, de modo diferente, positivamente, com aceitação. Os dados da pesquisa sugerem haver se iniciado, de fato, ali, uma nova estrada. Luiz Gonzaga parece ter “descoberto”, com aquele episódio, o rumo da sua triunfante carreira, cuja consolidação associa-se também às afinidades surgidas nas parcerias estabelecidas com outras figuras artísticas de talento. Nessa nova estrada, posteriormente, fruto da criatividade de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, o baião referido por Cascudo (1988), passando por adaptações, tornou-se gênero musical e

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passou a ser associado de modo mais particular à sanfona ou ao acordeão. E em 1946, a música intitulada Baião, composta por esses dois artistas e interpretada pelo grupo 4 Ases e 1 Curinga, assinalava a estreia desse gênero no campo musical brasileiro. No ano seguinte, foi a vez de Asa branca, uma toada, evocação metafórica de movimento migratório e seca. E, nas asas da Asa branca, ao som da sanfona de Luiz Gonzaga, seguiram-se ao seu lançamento pelo menos dez anos de pleno êxito do baião. Nas palavras de Humberto Teixeira: “De 1947 a 1957, quer queiram, quer não, os documentos, a história dos suplementos, das fábricas, as gravadoras, o rendimento autoral das sociedades, tudo era feito em torno do baião...” (NIREZ, 1995, p. 35). Contando com grandes parceiros, principalmente os dois já referidos, nessa mesma fase, coroando a sua condição de músico-sanfoneiro-intérprete maior desse estilo musical, Luiz Gonzaga consagrou-se Rei do baião. Construía-se, assim, dentro do mesmo processo, todo um simbolismo da sua imagem artística, cuja singularidade, mais visível, está no uso do chapéu de couro estilizado, evocando representações das figuras do vaqueiro e do cangaceiro nordestinos. Na minha interpretação, esses são aspectos centrais do ingresso e da expansão do baião no campo da música popular brasileira, no período compreendido entre a segunda metade dos anos 1940 e a segunda metade da década de 1950. Ao me referir à expansão do baião, considero que houve não somente uma extensa produção dessa música – conforme revelam, por exemplo, as estatísticas das gravadoras, a partir dos suplementos veiculados sistematicamente – como também o baião passou a ocupar um lugar na hierarquia daquele campo, alcançando também o estatuto de símbolo da nacionalidade brasileira. Conforme tenho tentado demonstrar, a análise do fenômeno baião exige um olhar cuidadoso, de modo a dar conta de outras variáveis, além do talento artístico-musical ou da competência do seu principal intérprete e de seus parceiros. Assim, com base na pesquisa, posso afirmar que a expansão espacial do baião se mostra, por exemplo: por meio de uma ampla aceitação do mesmo pelos diversos segmentos da sociedade; no fato de Luiz Gonzaga haver conquistado a maior gravadora do país à época; na frequência com que o baião passou a ser veiculado pelo rádio, principal meio de comunicação de massa de então e também na ocupação de espaços na imprensa como objeto frequente de matérias jornalísticas. Além disso, a conquista de novos espaços pelo baião se evidencia, também, na gravação de suas músicas por diferentes intérpretes, sobretudo, por nomes já consagrados publicamente, por exemplo, na voz de figuras femininas de grande aceitação naquele contexto, como Emilinha Borba, Marlene e Carmélia Alves; pela sua execução através de diversos outros instrumentos e ainda pela sua presença em espaços tradicionalmente associados à chamada música erudita. De modo semelhante, focalizando-se particularmente Luiz Gonzaga como principal porta-voz dessa música, com suas peculiaridades artísticas, constata-se a sua ampla aceitação por parte de diversos públicos, numa demanda crescente, que o levava a circular pelos mais variados espaços sociais. Não por acaso, os periódicos da época exibem inúmeras fotos suas – quase que invariavelmente com um sorriso estampado no rosto e tocando sanfona –, seja nos programas das emissoras de rádio, animando auditórios superlotados; seja em eventos privados, divertindo 220

autoridades políticas e seus convidados; seja em festas do Jockey8 ou no Copacabana Palace9 para as elites; na Praça São Cristóvão ou em outros espaços, ensinando aquele novo ritmo; e, muitas vezes, tendo a carroceria de um caminhão como palco improvisado, recebendo aplausos de populações na periferia das grandes capitais ou em cidades menores, o fato é que lá estava ele, sempre cantando e tocando para grupos ou para verdadeiras multidões. E, em épocas posteriores, os vídeos registram sua imagem, sempre simpática, reconstituindo passagens interessantes da sua trajetória, em que aparece também em viagens de trem para o interior, em estações ferroviárias da grande São Paulo ou simulando seu começo de carreira, quando circulava, com a sanfona, apresentando o baião à sociedade, nos bondes, em horários regulares, na capital da República. De uma forma ou de outra, portanto, por meio de Luiz Gonzaga e de outras vozes e instrumentos com trânsito entre públicos diversos, o baião foi levado a praticamente todos os espaços na sociedade brasileira, conquistando, cada vez mais, novos adeptos.

Com Luiz Gonzaga, um sertão em movimento Abordando a trajetória do artista e do baião, chamo a atenção para relações que podemos encontrar entre uma biografia e determinados processos históricos. Com isso, quero realçar também que o sertão da música de Luiz Gonzaga traz as marcas da articulação de elementos de diferentes tradições e experiências, o que expressa bem aspectos do fazer-se da cultura. Além de músico, instrumentista, Luiz Gonzaga revelou-se um grande artista e um grande ator: reagrupando artefatos e um conjunto de símbolos, ele foi, sabiamente, adaptando-os a novos contextos e criou um estilo, que incluía, dentre outros aspectos, uma fantasia, expressa na indumentária especial e no jeito próprio de interpretar as canções ao mesmo tempo em que expunha a sua interpretação de sertão. Observando-o no palco, tinha-se a imagem de um movimento harmônico, em que, junto com o canto, se abriam o riso e a sanfona sobre o peito, como se tudo fosse sendo comunicado ao mesmo tempo, numa fantástica interação com o público. Na construção da sua imagem artística, retirou o chapéu de couro da cabeça do vaqueiro e da cabeça do cangaceiro e, associando-o ao próprio riso, à sanfona e a um jeito singular de tocar e cantar, inventou uma terceira figura: o Rei do baião. Nas suas palavras, 8

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Para se ter uma idéia mais precisa do significado contextual desse ambiente, lembro que, em matéria publicada pela revista O Cruzeiro, sob o título “Esporte e elegância”, em meio a várias fotos de senhoras e senhoritas, trajando o “requinte” da época, dentre outras coisas lê-se: “[...] as festas do Jockey Club arrastam sempre para as suas dependências o que de mais seleto e elegante existe na alta sociedade carioca” (O Cruzeiro, edição de 8/11/1947, p. 75). O Copacabana Palace – propriedade de Otávio Guinle, membro de uma família, à época, detentora da maior fortuna do país – começou a funcionar em 1923, na então distante e paradisíaca Praia de Copacabana. Dirigido durante quase meio século pelo próprio dono, o Copa tornou-se conhecido pela ostentação de luxo, pelo requinte e qualidade dos serviços, acolhendo “personalidades de todo o mundo [...] de Einstein ao Príncipe de Gales”, e, no mundo artístico, também, pelo apoio dado a indivíduos e grupos (BOECHAR, 1998, p. 42-3).

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[...] pra um matuto, um sertanejo demonstrar que é sertanejo e que é vaqueiro, ele num precisa trazer o cheiro de vaqueiro [...] Basta uma estilização. Eu cheguei a usar roupa de couro, mas pesava muito, era muito incômoda e não se encontrava couro bom pra mandar fazer a roupa... Então, eu fui modernizando [riso malicioso], acabei ficando só com a cabeça de Lampião, que foi essa que escolhi pra caracterizar o meu tipo10. Essa imagem artística evoca uma espécie de tradução emblemática do retirante, movimentando-se Brasil afora, ao som do baião. Ressalte-se que, dependendo do contexto e de que lugar se fala, na nossa cultura, às figuras do cangaceiro e do vaqueiro, associam-se, também, valores como bravura, justiça, destemor, dignidade e coragem. Com uma aguçada sensibilidade poética e um sentimento ufanista, significativamente voltados ao telúrico, na edificação da sua imagem artística, Luiz Gonzaga imprimiu ao chapéu de couro um novo sentido. Construiu-se, portanto, nesse movimento, uma outra ordem simbólica (KERTZER, 1988). Assim, na cabeça do sanfoneiro, coroando o Rei do baião, o chapéu de couro não pode ser tomado como simples tradução de uma suposta genuína cultura do sertão (esta não encontra lugar neste meu raciocínio); nem tampouco é domínio do emergente contexto urbano-industrial. A figura artística desse Rei é, sem dúvida, uma invenção, fruto da criatividade e ousadia de um astucioso artistamigrante, que, vivendo num determinado tempo e circulando por certos espaços, vivenciando determinados processos históricos, parecia acompanhar a saga de retirantes despejados, diariamente, à época, nos grandes centros urbanos do país. Desse modo, foi se construindo na música um (outro) sertão. Para compreendermos melhor esse sertão a que me refiro aqui, é importante lembrar que o baião guarda relações bastante estreitas com o cotidiano das pessoas. Ou seja, essas músicas são narrativas. Assim, tomando as canções interpretadas por Luiz Gonzaga, vemos que elas contam histórias, histórias as mais diversas, histórias também que alguns até conhecem como lendas (o próprio Luiz Gonzaga falou sobre isso: “às vezes, a gente pensava sobre uma lenda e saía uma música...”). Elas narram situações e acontecimentos; falam de costumes e representações de crenças e valores. E, fazendo isto, o baião acompanhava, de um modo ou de outro, transformações pelas quais passava a sociedade em determinados contextos. Analisando-a sob esse prisma, percebo que a música de Luiz Gonzaga veicula uma multiplicidade de representações, entre as quais se incluem: “natureza”, sensualidade da morena, autoridade do doutô, bravura do vaqueiro, valentia e honra do “cabra macho”. Essa música, em cujo centro situa-se a temática das migrações, produz e reproduz representações de sonhos, visões de mundo e lembranças, constituindo-se assim também como lugar de memórias. Articula símbolos de diferentes contextos culturais e rompe simplificações do tipo sertão-cidade, Norte-Sul, etc. Como se acompanhasse o movimento incessante dos retirantes, carregando a dor da partida e pedaços de sonhos, a música de Luiz Gonzaga reinterpreta o sertão (ou o Nordeste), misturando, à poeira da estrada, fragmentos de experiências na cidade grande e idealizações ou utopias. 10 Luiz Gonzaga, programa Proposta, TV Cultura, São Paulo, 1972.

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No trecho do Baião de São Sebastião, a seguir, encontro representações do retirante que, num primeiro momento, ao fitar a cidade, guiado por símbolos de outra ordem, parece deparar-se com o caos (KERTZER, 1988)11, e, quase que simultaneamente, vai reordenando aquele mundo: Vim do Norte O quengo em brasa Fogo e sonho do sertão E entrei na Guanabara Com tremor e emoção Era o mundo todo novo Diferente, meu irmão Mas o Rio abriu meu fole E me apertou em suas mão. Ê Rio de Janeiro Do meu São Sebastião Pare o samba três minutos Pr’eu cantar o meu baião [...] (BAIÃO DE SÃO SEBASTIÃO, baião – Humberto Teixeira, 1950). Esta canção aponta para um movimento interativo: (...) Mas o Rio abriu meu fole / E me apertou em suas mão. Ou seja, aí, a cidade “se abre” ao migrante que nela procura uma forma de inserção: (...) Pare o samba três minutos / Pr’eu cantar o meu baião. É nesses termos que nos remete à noção de reordenação do mundo.

No vai-e-vem das migrações, em que, empurrados pela precisão ou guiados por algum sonho, homens se deslocam permanentemente, o baião se reveste de especial significado e, enquanto produtor e difusor de um conjunto de símbolos, interpreta a provisoriedade desse processo (SAYAD, 1997) e estabelece, assim, uma mediação, não simplesmente preservando formas e práticas culturais nordestinas, no mundo urbano-industrial, e assim ajudando num certo “equilíbrio psicológico” dos migrantes (RISÉRIO, 1990). Não. Na minha interpretação, a música de Luiz Gonzaga vai muito além disso; ela cumpre um papel revolucionário, na medida em que ultrapassa o contexto de origem, processando-se aí bem mais do que uma espécie de transposição de valores. Para usar a metáfora do próprio artista, citada anteriormente, diria que a música perdeu o cheiro e ganhou um estilo. Trata-se de um modo particular de olhar o sertão; de um outro modo de olhar a cidade e de olhar a própria migração e a condição de migrante. 11 Cabe ressaltar que o País experimentava intenso fluxo migratório Nordeste / Sul / Sudeste, por sua vez, guardando relações também com o impulso industrial de São Paulo, a partir de 1950, estimulado pela entrada de capital estrangeiro (SINGER, 1975). Ao mesmo tempo, vivenciava-se uma série de dificuldades, no que diz respeito a meios de transporte de comunicação, por exemplo, entre as várias regiões do País; entre o “mundo do sertão” e o “mundo da cidade”. Basta lembrar a inexistência de linhas de ônibus ligando o Nordeste ao Sul e Sudeste, no que pese a grande demanda referida na imprensa da época. Ressalte-se, ainda, a inexpressiva quantidade de vias férreas no território nacional (isto, até hoje).

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Na música de Luiz Gonzaga, percebo, pois, um grande movimento no qual posso distinguir pelo menos três dimensões: movimento migratório, em que populações camponesas de várias regiões do Brasil se deslocam, a um só tempo expulsas do campo e, de algum modo, atraídas pela industrialização do Sudeste ou pelo sonho de incremento de lavouras em “terras do Sul”; um movimento de trocas culturais, “colado” nas transformações impostas pela industrialização/ urbanização e pelas migrações; e um movimento pessoal daquele “menino”, filho de Seu Januário e de Dona Santana, mais tarde consagrado Rei do baião. Crescido no sertão do Araripe, engolindo poeira de estrada ao lado da mãe, no percurso das procissões, e o pó que levanta do “chão batido” nos sambas de pé-de-serra, ao lado do pai, Luiz Gonzaga ingressou ainda lá, conforme dito antes, na sua primeira escola de arte e cultura. Examinando-se a trajetória do artista e do baião, percebe-se que sua inserção na cidade grande – na qual se processam contatos com outros artistas e com outros ritmos ou estilos; música e músicos têm acesso aos modernos meios de comunicação de massa, etc – contribuiu para que incorporassem outros elementos culturais, ou, para que reordenassem experiências, o que lhes possibilita transitar mais livremente entre o sertão e a cidade, aparentemente dois mundos distantes, porém, articulados mediante relações estruturais, considerando-se a sociedade brasileira como um todo. Nesse contexto, percebo o artista e o baião como colaboradores expressivos na “fabricação” de um tecido cultural novo, no qual se juntam fios desses dois mundos ou, quem sabe, de vários mundos. Reorganizando memórias do sertão, confrontando a sua atividade com experiências vistas ou vividas no novo contexto [nas palavras do artista: (...) eu senti que a música nordestina precisava de couro (...) como no Rio se usava couro de gato], Luiz Gonzaga decidiu reunir à sanfona o zabumba e o triângulo, respectivamente, tirados das bandas esquenta muié12 e do vendedor de tinguilim. Emblematicamente, encontro nos trechos que se seguem representações que evocam a trajetória diferenciada do baião e do seu Rei: Quando eu vim do sertão Seu moço, do meu Bodocó A malota era um saco E o cadeado era um nó Só trazia a coragem e a cara Viajando num pau-de-arara Eu penei, mas aqui cheguei Eu penei, mas aqui cheguei. Trouxe um triângulo No matulão Trouxe um gonguê No matulão 12 Brandão (1973) se refere também à existência, em Alagoas, de orquestras rústicas de pífanos e zabumbas, depois denominadas em Maceió de Esquenta Mulher [que] tocavam nas vilas e arrabaldes de Maceió ou das Alagoas, quer angariando espórtulas e prendas para leilões, quer acompanhando cavalhadas ou a dança dos Quilombos (p. 21).

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Trouxe um zabumba Dentro do matulão Xote, maracatu e baião Tudo isso eu trouxe No meu matulão. (PAU-DE-ARARA, maracatu – Guio de Moraes / Luiz Gonzaga, 1952). A música de Luiz Gonzaga expressa a construção de uma outra linguagem, capaz de ajudar nas relações entre migrantes e entre estes e não-migrantes. Em outras palavras, diria que uma das contribuições do baião repousa no movimento de “atualização da tradição” e, por esse caminho, essa música ajuda a operar diferenciações ajuda a construir uma outra identidade do retirante: Paulista é gente boa / Mas é de lascar o cano Eu nasci no Pajeú / E só me chamam de baiano (MEU PAJEÚ, toada – Luiz Gonzaga / R. Grangeiro, 1957). Nesse sentido, é como se, no seu movimento, o baião fosse tecendo, paciente e artisticamente, um terceiro cenário, um outro sertão, no qual se arrumam ou se encaixam de maneira singular, pedaços de “lá” (local/tradicional) e “daqui” (nacional/moderno), combinados ou reagrupados de modo a manter uma articulação desses mundos. Esta compreensão nos leva a refletir: o sertanejo tem, sim, identidade específica; além de sertanejo, ele é também nordestino e é brasileiro. O baião vai, assim, juntando lembranças e produzindo imagens a partir da evocação de sentimentos e experiências comuns ou de proximidade estreita, cantando e contando histórias “do sertão”, alimentando sonhos repovoados pelas visões da cidade ou de um mundo maior, que, lentamente, vai invadindo essa memória: Lá no meu pé de serra Deixei ficar meu coração Ai que saudade tenho Eu vou voltar pro meu sertão. No meu roçado Trabalhava todo dia Mas, no meu rancho Tinha tudo que queria Lá se dançava Quase toda quinta-feira Sanfona num faltava E tome xote a noite inteira. (NO MEU PÉ DE SERRA, xote – Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira, 1946). Desse modo, Luiz Gonzaga carrega o sertão por todo o Brasil, como que estampado na sua indumentária, na sua voz e gestualidade e na sua sanfona, mesclando a sua linguagem musical ou recriando-a, de modo a se fazer entender, conquistando públicos de lugares diversos.

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Projetando-se inicialmente, conforme referido antes, no Rio de Janeiro e em São Paulo e, em seguida, viajando pelo Brasil inteiro, cantando e tocando para diferentes plateias, Luiz Gonzaga, com sua música e sua arte, vai carregando o retirante e re-construindo um sertão deixado para trás e interpretando a cidade, berço de uns, morada provisória de outros: Rio de Janeiro-ôi Rio de Janeiro-ôi Eu vou-m’imbora Mas para o ano eu vorto cá. Rio de Janeiro Bota um visgo na gente É terra boa pro caboco farriá Eu só num fico Porque Rosa diz oxente! Será que o Zeca Já deixou de me amá? E desse jeito Pode ser que o diabo atente E minha Rosa descontente Bote outro em meu lugá. Quando eu me alembro De deixar Copacabana E as morenas Que eu tenho visto por cá Eu fico triste Sinto frio, sinto medo Fico achando tudo azedo Com vontade de chorá Mas mesmo assim Adeus, ó morenas dengosas Me adescurpe mas a Rosa Tá em primeiro lugá. (ADEUS, RIO DE JANEIRO, xote – Zé Dantas/Luiz Gonzaga, 1951). Observem-se aqui representações do retirante que parte deixando o coração no sertão. Se há aspectos da cidade que o seduzem (Bota um visgo na gente / É terra boa pro caboco farriá), razões afetivas o puxam de volta (Me adescurpe mas a Rosa / Tá em primeiro lugá) e, simultaneamente, se põe como projeto um terceiro movimento sertão-cidade (Eu vou m’imbora / Mas para o ano eu vorto cá).

Enfeitando o sertão, Luiz Gonzaga fez dele motivo também de vaidade para o sertanejo e, junto com a dureza da retirada, romantizou a partida com a saudade da amada que fica à espera, regando assim o imorredouro desejo mútuo de retorno: Creuza, espere por mim Se meu amor merecer Eu voltarei para o ano, morena Pra me casar com você. Creuza, morena mimosa Florzinha de muçambê O sertão vai pegar fogo, morena Quando eu casar com você. (CREUZA MORENA ou INGAZEIRA DO NORTE, valsa – Lourival Passos / Luiz Gonzaga, 1961). O baião descreve, pois, um movimento que reinterpreta o sertão e a relação deste com a cidade. É dessa maneira que reinterpreta o retirante que deixou o sertão “por causa da seca”, pondo-lhe um coração apaixonado, inundado pelo sentimento da saudade: Rios correndo as cachoeira tão zuando Terra moiada mato verde, que riqueza E a asa branca tarde canta, que beleza Ai, ai, o povo alegre mais alegre a natureza Sentindo a chuva me arrescordo de Rosinha A linda flor do meu sertão pernambucano E se a safra não atrapaiá meus pranos Que é que há, o seu vigário Vou casar no fim do ano. (A VOLTA DA ASA BRANCA, toada – Zé Dantas / Luiz Gonzaga, 1950). Luiz Gonzaga, portanto, tira o retirante do flagelo, da aridez do sertão estorricado pela seca e o põe nos vales, no pé-de-serra, na sombra do juazeiro, ouvindo o cantar dos pássaros, o ronco do trovão, sonhando com a morena de corpo sensual e peito arfante (... O mar é belo / Lembra o seio de Ceci...), pronta para o abraço do reencontro. O baião joga esse retirante na rede para aprender a embalar, levando-o a redescobrir o balanço do corpo da morena na Farinhada13. Encontro nessa produção musical – ao lado de uma diversidade de imagens, atravessando tradições religiosas, festas, crenças e costumes – uma certa constância de movimento entre as temáticas da partida (quase sempre associado à seca) e da saudade.

13 Com os grifos, faço, aqui, alusões a algumas canções do repertório de Luiz Gonzaga.

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Para falar de movimento, A TRISTE PARTIDA (Patativa do Assaré) é exemplar. Além de toda a riqueza do conteúdo narrativo, aqui a saga é realçada pela extensão da letra e pelo ritmo e melodia repetitivos (característicos de cantorias), com final melódico de todas as estrofes em tom grave – enquanto o refrão é agudo –, o que parece enfatizar a dor da partida, como se o retirante fosse sendo arrancado da terra. É como se ele se arrastasse por sobre tabuleiros desérticos, sob um sol escaldante, tentando, aqui e ali, se agarrar a uma raiz exposta à superfície ressequida. Esta canção é uma grandiosa peça interpretativa de modos de vida – envolvendo representações de um universo familiar, visões de mundo, valores, crenças, sentimentos e práticas culturais várias –, permeada por todo um conjunto de símbolos. Trata-se de uma construção que se apropria, dentre muitas outras, de noções de “tempo de seca”, “castigo”, “pobre”, “esperança”, “nordeste”, “desesperança”, “sinais de chuva”. Além de diferentes imagens e elementos, recombinando-os, tais como: intervalos de tempo determinados, eventos do calendário litúrgico e comportamento de animais, para citar apenas alguns: Setembro passou Cum oitubo e novembro Já tamo em dezembro Meu Deus, que é de nós? Assim fala o pobre Do seco Nordeste Cum medo da peste Da fome feroz. A treze do mês Ele fez experiença Perdeu sua crença Nas pedra de sá Mas noutra esperança Cum gosto se agarra Pensando na barra Do alegre Natá. Rompeu-se o Natá Porém barra não veio O sol bem vermeio Nasceu muito além Na copa da mata Buzina a cigarra Ninguém vê a barra Pois barra não tem.

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Sem chuva na terra Descamba janeiro Depois fevereiro E o mesmo verão. (A TRISTE PARTIDA, toada – Patativa do Assaré, 1964). Na extensa letra de A Triste Partida, encontro representações de todo um processo, através do qual o sertanejo e sua família, referenciados em um conjunto de símbolos, aguardam com ansiedade a chegada da chuva e vão, gradativamente, eliminando todas as esperanças, na medida em que os “sinais de inverno” anunciam-se negativos: (...) Tá tudo sem jeito / Lhe foge do peito / O resto da fé (...). Sem esperança e sentindo-se expulso, o sertanejo vai se desfazendo dos seus pertences, deixando aquele seu lugar, para sair mundo afora, na tentativa de salvar a própria vida e dos seus familiares: (...) E vende seu burro / O jumento e o cavalo / Inté mesmo o galo (...). Enfim, tudo vai ficando para trás como se lhe fosse arrancado: (...) A seca terrive / Lhe bota pra fora (...) Logo aparece feliz fazendeiro / Por pouco dinheiro / Lhe compra o que tem. A expectativa é de enfrentar o desconhecido, o incerto: Por terras alheia / Nós vamo vagá (...). A terra alheia evoca um universo ordenado com outros símbolos. Uma vez a descrença confessa, o sertanejo se entrega à fatalidade, guardando a remota esperança da volta: (...) Diz isso é castigo / Não chove mais não (...) Se o nosso destino / Não for tão mesquinho / Pro mesmo cantinho / Nós torna a voltá (...). Ressalte-se que aqui desfazer-se dos parcos pertences não significa, de maneira alguma, desenraizar-se, o que torna a partida um ato dilacerador, ameaçador da própria vida: (...) Aquele nortista / Partido de pena (...) De pena e saudade / Papai sei que morro (...) E assim vão deixando / Cum choro e gemido (...). Destaco também nesta canção a expressiva representação de movimento da partida, a meu ver, fazendo-se presente de maneira mais viva pelo fato de se tratar de uma toada: (...) O carro já corre / No topo da serra / Oiando pra terra (...) Já tudo enfadado / E o carro embalado (...). Nesse sentido, imprime também grande riqueza à narrativa, mantendo-a entranhada no cotidiano do sertão. Sendo um processo, essa partida tem um momento especial que marca bem a diferença e, ao mesmo tempo, a busca de referências entre o que ficou para trás e aquilo que será experimentado, ou seja, a nova experiência: (...) Sem cobre, quebrado / E o pobre acanhado / Procura um patrão (...). Assim, preso ao sertão, o retirante se vê “solto” na cidade (caótica), isto é, se vê desgarrado, sem referenciais, acentuando-se, desse modo, o impacto da partida: (...) Só vê cara estranha / De estranha gente (...). E mais: ali, nesse primeiro momento, sente-se completamente jogado, negado: (...) Exposto à garoa / À lama e ao paú (...). Paradoxalmente, a evocação de negação de identidade se afirma na imagem de paú, redução a pó14.

14 O próprio Luiz Gonzaga se referia a esta canção como a que “mais gostava de cantar”. Dada a riqueza da narrativa que nela encontro e considerando também a sua centralidade no repertório “gonzagueano”, não poderia deixá-la de fora, mesmo restringindo-me a estas breves observações. Assim, tratando-se de um artigo e dada a extensão da letra, considero inviável prosseguir na análise de representações que poderiam ser ainda assinaladas.

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Na canção Asa Branca, a partida é também movida pela seca: Quando oiei a terra ardendo / Qual fogueira de São João (...) Que braseiro que fornaia / Nem um pé de prantação / Por falta d’água perdi meu gado / Morreu de sede meu alazão (...). Ao final, a metáfora acena com mensagem de esperança: (...) Quando o verde dos teus óio / Se espaiá na prantação / Eu te asseguro / Não chore não, viu / Que eu vortarei, viu / Meu coração. (ASA BRANCA, toada – Humberto Teixeira / Luiz Gonzaga, 1947). Conforme se pode observar, a noção de movimento apresenta-se como uma constante. É como se a cadência do baião acompanhasse o movimento sertão-cidade-sertão desenhado pelo migrante que parte, embalado pelo sonho de voltar. Sob outra ótica, que não é a do baião, o êxodo pode ser visto também como uma estratégia de populações que enfrentam enormes dificuldades, muitas das quais decorrentes de uma estrutura fundiária marcada, dentre outras coisas, pela concentração de grandes propriedades nas mãos de poucos e relações de produção que, historicamente, têm inviabilizado qualquer possibilidade de acumulação por parte dos camponeses sem terra e pequenos proprietários. No Nordeste, isso é agravado pela irregularidade na distribuição das chuvas, associada à falta de uma política agrária capaz de alterar esses aspectos “naturais” e criar condições de trabalho e vida no campo. É nesse contexto que se produz, historicamente, a figura do retirante. E assim, a migração passa a integrar a própria dinâmica de reprodução da sociedade. É dessa maneira que se constitui parte da “matéria-prima” do baião. No baião, o retirante tira o chapéu de palha rasgado, a roupa em farrapos, e exibe a sua fantasia, tradutora de felicidade, de fartura; põe na cabeça o chapéu de couro, veste um gibão (resistente às agressões externas), abraça a sanfona, cria com ela um som diferente, sofisticado, que desperta admiração; e o seu canto, vibrante, teatral, põe multidões aos pés do pau-de-arara transformado em rei. É “tempo bom”: O cabôco Marculino Tinha oito boi zebu Uma casa cum varanda Dando pro Norte e pro Sul Seu paió tava cheinho De feijão e de andu Sem contá com mais uns cobre Lá no fundo do baú... (XANDUZINHA, baião – Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira, 1950). Como dizia o grande poeta Patativa do Assaré, ninguém se lembra de praga / nem de fome, nem de peste / quando escuta no Nordeste / a voz de Luiz Gonzaga.

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E, seguindo “com sua sanfona e sua simpatia”, o Rei do Baião conquista outros espaços e ganha a admiração das diversas camadas, nas diferentes classes sociais. Contrariando, por exemplo, imagens do sertão que encontramos nas páginas da revista O Cruzeiro, no período estudado, de variadas maneiras ou veiculando uma linguagem plena de significados, embora cantando também a seca e dificuldades a ela associadas, o baião evoca, em grande medida, representações de um “lado bom” do sertão, impondo, simultaneamente, a imagem da dignidade, inversa à do retirante-pedinte: Seu doutor os nordestinos Têm muita gratidão Pelo auxílio dos sulistas Nesta seca do sertão Mas doutor uma esmola A um homem que é são Ou lhe mata de vergonha Ou vicia o cidadão (VOZES DA SECA, toada – Zé Dantas / Luiz Gonzaga, 1953). Contribuindo para mudar certas imagens negativas, o baião apropria-se de noções integrantes de um universo religioso e ajuda a construir, simbolicamente, um lugar para o homem e a mulher retirantes: A seca fez eu desertar da minha terra Mas felizmente Deus agora se alembrô De mandá chuva pr’esse sertão sofredô Sertão das muié séra Dos homes trabaiadô. (A VOLTA DA ASA BRANCA, toada – Zé Dantas / Luiz Gonzaga, 1950). Em outras canções, o apelo se volta para a ideia de incorporação do próprio baião pela cidade: (...) No Rio tá tudo mudado Nas noites de São João Em vez de polca e rancheira O povo só pede, só dança o baião. (A DANÇA DA MODA, baião – Zé Dantas / Luiz Gonzaga, 1950). Obviamente, muitos outros aspectos poderiam ser lembrados, em se tratando da construção do sertão na música de Luiz Gonzaga. Dentro dos nossos limites, no entanto, encerro este artigo com mais uma alusão à figura da mulher. Além da “seriedade” evocada em A volta da Asa Branca, o baião homenageia também a sensualidade da morena. Assim, no trecho que se segue, simultaneamente à evocação de representações de um instrumento de trabalho estreitamente

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associado à mulher no contexto da “tradição sertaneja” (o pilão), há a recorrência a valores de um ideário de beleza, supostamente da cidade ou do “mundo moderno” (cintura fina), na recriação de novas imagens: Minha morena venha pra cá Pra dançá xote Se deite em meu cangote E pode cochilá Tu és muié pra home nenhum Butá defeito Por isso satisfeito Com você vou dançá. Vem cá cintura fina Cintura de pilão Cintura de menina Vem cá meu coração. (CINTURA FINA, xote – Zé Dantas / Luiz Gonzaga, 1950). Enfatizo a noção de movimento, que vai além da recombinação de símbolos e que expressa a capacidade de criar uma ideia de sertão, de nordestino, de regionalidade e também uma ideia de Brasil, enfim, como se fosse um hino que fala de diversidades culturais integrantes de uma unidade (sertão, região, nação, etc). Nesses termos, a música de Luiz Gonzaga é muito significativa: correndo por fora do plano institucional, opera uma espécie de ruptura – ajudando a se pensar sobre “cisões culturais” – que constrói visões de mundo. Encontro, assim, no baião um movimento que traduz uma “revolução simbólica”. Enfim, sem negar a aridez do solo, o trabalho, a seca, a exploração e conhecendo as veredas, grotas e riachos de uma suposta região, a música de Luiz Gonzaga embrenha-se também por outros caminhos, e, através deles, nos oferece outras trilhas e outras lentes para uma leitura do sertão, um sertão no qual a tristeza da seca se mistura à alegria do inverno. Nesse sertão, a nega entra no salão, como muié pra home nenhum butá defeito, e, ao som da sanfona, leve como uma pluma, ensina ao mundo um ritmo “do Brasil”, o baião.

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Dona Santana e Seu Januário, pais de Luiz Gonzaga Década de 1950

“Mas minha mãe também me influenciou. Porque em casa se rezava o mês de Maria todinho, o mês de maio. Trinta e uma novenas. Quando terminava a novena, os benditos, os zabumbeiros, tocadores de pífaro, entravam na sala para beijar o altar. E eu quase sempre era componente dessa banda. Uma hora tocava caixa, às vezes zabumba. Quando faltava um, pegava no pífaro também. Então era uma casa de música. Minha mãe era tiradeira de novena. (...) Com aquelas cantigas religiosas recebi influência para ser artista, para cantar”. Luiz Gonzaga

Diário Popular – 1980

“Dei por mim já crescido, vendo meu pai mexer em velhas sanfonas, endireitando-as pra ganhar dinheiro, nas horas que lhe sobravam das limpas e dos plantios de milho e feijão e das farinhadas na serra do Munduri. Eu fazia também minhas incursões àquele misterioso mundo de sons, arrancando melodias, inventando minhas próprias músicas, em improvisações que, por vezes, me valeram safanões de minha mãe, irada com aquele repetir de trechos de músicas, surgidos eu não sabia de que mistérios. Gostava de ver meu pai naquele trabalho, desmontando velhos foles de cujas entranhas saíam melodias inesperadas”. Luiz Gonzaga

O Sanfoneiro do Riacho da Brígida, de Sinval Sá – 1966

Luiz Gonzaga e Seu Januário Década de 1950

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Luiz Gonzaga Década de 1930

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Luiz Gonzaga Década de 1940

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Luiz Gonzaga

Luiz Gonzaga

Década de 1940

Década de 1950

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Ensaio realizado no estúdio da ABA Filme Fortaleza/CE – 1954

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“Aí o diretor da rádio veio me dizer que ali não era casa de cangaceiro, não, que eu tinha de tocar era de summer.” Luiz Gonzaga

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Luiz Gonzaga no quintal da ABA Filme Fortaleza/CE – 1954

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Luiz Gonzaga é uma legitimidade do sertão tradicional. Sua inspiração mantém as características do ambiente poderoso e simples, bravio e natural, onde viveu. Não imita. Não repete. Não pisa rastro de nome aclamado. E ele mesmo sozinho, inteiro, solitário, povoando os arranha-céus com as figuras imortais do Nordeste, ardente e sedutor, fazendo florir cardeiros e mandacarus, levantando o mormaço dos tabuleiros através das cidades tumultuosas onde permanece. Fui menino no Sertão. 1809-1913. Tenho na memória o timbre das grandes vozes infatigáveis, ímpeto de guerrilhas no açodamento dos “crescendo”, nasalamente infalível na modulação para “fechar” na dominante. Sertão sem rodovias, luz elétrica, gasolina. Vaqueiros, cantadores, romeiros de São Francisco de Canindé, Juazeiro, Santa Rita dos Impossíveis. Poeira heróica das feiras e das vaquejadas. Viola do rojão de dois-por-quatro, sanfonas de oito-baixos, pobreza milionária na emoção irradiante, inexplicável alegria das coisas suficientes. Luiz Gonzaga é um documento da Cultura Popular. Autoridade da lembrança e idoneidade da convivência. A paisagem pernambucana, águas, matos, caminhos, silêncio, gente viva e morta. Tempos os idos nas povoações sentimentais voltam a viver, cantar e sofrer quando ele põe os dedos no teclado da sanfona de feitiço e de recordação. Não posso compará-lo a ninguém. Luiz Gonzaga é uma coordenada humana que as ventanias urbanas fazem vibrar sem modificação. Não é retentiva, artificialismo, sabedoria de recursos mentais “aproveitando” o Sertão. Ele próprio é a fonte, cabeceira e nascente de suas criações. Sertão

é ele, como a Bretanha está no

bretão e a Provença em Mistra. Bem logicamente, a sua terra muda a fisionomia pelas mãos de ferro do Progresso. Técnicas, máquinas, combustíveis, sonhos novos. Mas, pelo lado de dentro, o Homem não muda, como a sucessiva aparelhagem em serviço do seu interesse. Luiz Gonzaga presta-nos, a nós, devotos das permamentes culturas brasileiras, a colaboração sem preço de uma informação viva, pessoal, humana. Sanfoneiro do Sertão, brasileiro do Brasil, os que amam terra e gente nativa te saúdam na hora em que tua voz se eleva, vivendo a sensibilidade profunda da tu’alma sertaneja... Luís da Câmara Cascudo Natal, janeiro de 1973 Texto para contracapa do LP “Luiz Gonzaga”

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Foto: Elenora de Martino

Foto: Elenora de Martino


Luiz Gonzaga com Salário Mínimo no triângulo e Aluízio na zabumba, em programa de auditório na Ceará Rádio Clube em Fortaleza/CE Década de 1950

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Luiz Gonzaga e suas apresentações públicas na década de 1950

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Luiz Gonzaga e suas apresentações públicas na década de 1950

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Luiz Gonzaga e os músicos Zequinha, na zabumba e Catamilho, no triângulo Década de 1950

Luiz Goonzaga em programa de TV com os músicos Zequinha e Catamilho Década de 1950

Luiz Gonzaga e seus Cabras da Peste, Abdias do Acordeon, Zito da Borborema, Miudinho e Marinês 1956

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Luiz Gonzaga e fãs na década de 1950

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Luiz Gonzaga e Marinês, em apresentações na década de 1950

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Luiz Gonzaga, Marinês, Abdias do Acordeon e músico desconhecido

Luiz Gonzaga dança com Marinês. Os músicos são Abdias do Acordeon, Zito da Borborema e Miudinho

Década de 1950

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Luiz Gonzaga com os músicos Zequinha e Catamilho Década de 1950

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Luiz Gonzaga com os participantes do grupo musical Januário Seus Filhos e Seus Oito Baixos: os Gonzagas Januário, Luiz, Aluísio, Chiquinha, Geni, Severino, Socorro e Zé Década de 1950

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Juraci, Zequinha, Luiz Gonzaga, Salário Mínimo, Zé Dantas e desconhecido Década de 1950

Luiz Gonzaga com seu pai Januário na sanfona de oito baixos, Toninho na zabumba e Salário Mínino no triângulo Década de 1950

Luiz Gonzaga com Dalva de Oliveira 1958

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Luiz Gonzaga apresenta Dominguinhos: “Esse cabra da peste é meu herdeiro artístico” Década de 1950

Gilberto Gil na casa de Marinês canta para Abdias do Acordeon e Luiz Gonzaga a música Procissão Rio de Janeiro/1966

Sivuca e Luiz Gonzaga Década de 1950

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Luiz Gonzaga e, ao lado esquerdo, o político Manoel Carlos Gouveia e Humberto Teixeira na sua campanha em 1954 para deputado federal em Iguatu/CE

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Luiz Gonzaga atuando no filme da Atlântida É Com Esse Que Eu Vou em 1948

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Luiz Gonzaga com sua esposa Helena Gonzaga e sua filha Rosinha Gonzaga Década de 1960

Januário, Luiz Gonzaga e seus irmãos Geni e Aluízio Década de 1950

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Luiz Gonzaga com sua esposa Helena Gonzaga Década de 50

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Luiz Gonzaga com Zé Dantas

Luiz Gonzaga com Humberto Teixeira

Década de 1950

Década de 1950

Gonzaga tocava uma escala que ia da nota sol à nota sol, como o astro que permeia a paisagem nordestina. Trata-se de uma escala usada no jazz e no blues e que, na obra de Gonzaga, aparece no ritmo marcado do baião. Aparece a influência moura na música nordestina e, nessa comparação com o blues, a música dos cantadores do Nordeste, repleta de sétimas menores, entra na categoria das canções eternas, daquelas que se ouve e se canta, mas que não se sabe de onde vêm. Ignorando a teoria musical, o ouvinte aceita a poesia, a alegria e, sem saber, a sofisticação do baião, do xote e do xaxado. Num exemplo clássico, Asa Branca tem uma construção harmônica tão sofisticada que pôde ser aproveitada como peça de concerto sinfônico. Patrícia Palumbo Revista Bravo! - 1999

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Luiz Gonzaga na entrada de sua fazenda no Estado do Rio de Janeiro Década de 1950

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Luiz Gonzaga com Aluízio, Catamilho, Zequinha, Januário e Santana Década de 1950

Luiz Gonzaga em Brasília no começo dos anos de 1960

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Luiz Gonzaga em anúncios nas décadas 1950 e 1960

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Luiz Gonzaga em anúncios de sua gravadora RCA Victor Década de 1950

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Luiz Gonzaga em anúncio para o refrigerante Mate Couro e em capa de revista Década de 1950

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Luiz Gonzaga em anúncios da Bicicleta Monark Década de 1970

Luiz Gonzaga e Reginaldo Silva – motorista e apresentador dos shows – na excursão artística patrocinada pelo Fumo Dubom 1986

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Foto: Aymoré Moreira/Agência o Dia

Luiz Gonzaga e Odaléia, os pais de Luiz Gonzaga Jr ao centro Luiz Gonzaga com Luiz Gonzaga Jr, Odaléia e Xavier Pinheiro, o padrinho de Gonzaguinha que o criou no Morro de São Carlos no Rio de Janeiro Década de 1940

...e além de tudo que nos legou, Luiz Gonzaga ainda nos deu a presença de Gonzaguinha... 298

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Toquei coisas que eu inclusive tinha vergonha de dizer que eram minhas. Nem sabia se era autor de certas coisas que eu fazia. Fazia aquilo lá no sertão e soltava por lá mesmo. Isso é seu? É do povo. Quando eu comecei a procurar os parceiros, é que vim a saber que aquilo era meu mesmo Luiz Gonzaga

Invenção do Nordeste Hermano Vianna

XILOGRAVURAS

João Pedro do Juazeiro

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A maioria dos brasileiros pensa que o trio de forró - com sanfona,

zabumba e triângulo - é algo muito antigo, primitivo, “de raiz profunda”, que existe desde que o mundo é mundo ou que o Brasil é Brasil. Eu mesmo, que há tanto tempo dedico talvez a parte mais importante dos meus estudos para desvendar os mecanismos complexos e sutis das invenções de tradições culturais, sendo cético diante de qualquer proclamação de autenticidade, me espantei quando descobri que essa formação instrumental só existe na história de nossa música desde os anos 50. E que teve um inventor bem determinado: Luiz Gonzaga. Não era mero desenvolvimento de algo pré-existente. Não era refinamento ou simplificação de um conjunto musical conhecido. Tratava-se de uma criação realmente inédita, de uma combinação original e criativa de elementos que estavam separados e que não se encontraram por acaso ou naturalmente. O encontro foi intencional e tinha objetivo claro. Luiz Gonzaga narra, assim, sua invenção em depoimento a Dominique Dreyfus, publicado no livro “Vida de viajante: a saga de Luiz Gonzaga”: “Eu, no início da minha carreira, tocava sozinho... porque não sabia tocar, só sabia imitar os tocadores de valsas, de tangos. Só depois é que eu precisei de uma banda. Foi quando me lembrei das bandas de pife que tocavam nas igrejas, na novena lá do Araripe e que tinham zabumba e às vezes também um triângulo. Quando não havia triângulo pra fazer o agudo, o pessoal tanto podia bater num ferrinho qualquer. Primeiro, eu botei zabumba me acompanhando. Mais tarde, numa feira no Recife, eu vi um menino que vendia biscoitinho e o pregão dele era tocando triângulo. Eu gostei, achei que daria um contraste bom com a zabumba, que era grave. Havia os pífanos, que têm o som agudo, mas eu não quis utilizá-los porque a sanfona, com aquele sonzão dela, ia cobrir os pífanos todinhos. Depois eu verifiquei que esse conjunto era de origem portuguesa, porque a chula do velho Portugal tem essas coisas, o ferrinho (o triângulo), o bombo (a zabumba) e a rabeca (a sanfona)... é folclore que chegou de lá no Brasil e deu certo. Agora, o que eu criei, foi a divisão do triângulo, como ele é tocado no baião. Isso aí não era conhecido.” (Dreyfus, 1996: 152/3)

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O tom é hesitante, vai e volta, como se até para Luiz Gonzaga fosse estranho pensar que a formação instrumental era algo realmente novo. Ele se refere à chula de Portugal como raiz ibérica da invenção brasileira. Porém, mesmo que essa ascendência fosse comprovada, não poderia ser de um Portugal tão “velho”.

Primeiro, Luiz Gonzaga usou a zabumba. Quem tocava era João André Gomes, que tinha o apelido de Catamilho, por causa do modo como batia no pandeiro, seu instrumento anterior, com dedos juntos e na vertical. O domínio da zabumba não era algo “de berço”: foi fruto de aprendizado, já quando sua carreira de músico estava adiantada.

Afinal, a sanfona (ou acordeão) era um instrumento também recente na história da música portuguesa, não havia dado tempo para ser considerado realmente “tradicional”. Como sabemos, a invenção do acordeão aconteceu na primeira metade do século XIX, em algum lugar entre Berlim e Viena. Era, portanto, algo alienígena tanto para o folclore português quanto para o brasileiro1. Era uma novidade internacional, tanto quanto a guitarra elétrica foi nos anos 1950. E estava sendo adaptada, ao mesmo tempo no Brasil e em Portugal, para as musicalidades locais, com invenções de maneiras de tocar específicas em cada país.

O triângulo entrou para o conjunto de baião quando a zambumba já estava incorporada. Luiz Gonzaga só se decidiu mesmo por sua incorporação depois de viagem ao Recife, ouvindo pregão de menino que vendia biscoitos na feira2. Tudo parece relato de uma longa experiência de química sonora, quase em laboratório. Não sabemos se houve tentativas descartadas de uso de outros instrumentos. Na fala, sabemos que os pífanos foram descartados diante do volume da sanfona.

Voltemos às palavras, citadas acima, de Luiz Gonzaga. Primeiro, ele diz que imitava tocadores de valsas e de tangos. Esses estilos musicais eram populares em todo o Brasil, inclusive no Nordeste. As formações instrumentais que animavam as festas e os bailes nordestinos tinham repertório eclético, influenciado pelas últimas modas dançantes, que já eram também globalizadas. Veja-se o sucesso que a polca, também criada no século XIX em algum lugar da Europa de língua alemã, fez pelo mundo todo, sendo ingrediente fundamental para o surgimento de várias músicas populares afro-americanas, do jazz ao samba, passando pela habanera e pelo tango. Vejam-se também os termos franceses que, até hoje, reaparecem com sotaque “caipira” em nossas quadrilhas de festas juninas. Não havia, então, um repertório nordestino muito distinto do repertório de bandas populares de outras regiões brasileiras. Porém, houve um momento em que Luiz Gonzaga precisou de uma banda diferente para tocar um repertório recém-composto, identificado com o Nordeste. Vamos contar a história desse repertório mais abaixo. Por enquanto, o que podemos adiantar é que a formação dos “regionais” - com flautas, instrumentos de cordas, pandeiros etc. - comuns na época para vários estilos musicais, não combinava mais com a imagem e o som que Luiz Gonzaga procurava criar. Ele se voltou, então, para as recordações de sua infância no sertão da Chapada do Araripe, não para as bandas dos bailes onde seu pai tocava, pois, apesar de diferentes, elas se pareciam com o que existia no Rio de Janeiro ou em qualquer outra cidade do Brasil. O que procurava, a diferença que podia chamar atenção para sua música, estava nas bandas de pífanos, que tocavam menos em festas profanas e mais nos pátios das igrejas, para louvar santos católicos e até acompanhar suas novenas. Essas bandas usavam zabumbas, de som grave, e triângulos ou ferrinhos, de som agudo, como base rítmica.

1 As duas culturas populares, apesar do vasto oceano entre elas, têm longa história de influências mútuas, não só da metrópole para a colônia, mas também do hemisfério sul para o norte, como comprovam as sagas interatlânticas da modinha, do lundu e até da Fofa da Bahia (estilo que influenciou a chula do século XVIII), descritas com detalhes em vários livros de José Ramos Tinhorão e resumidas no artigo “Intercâmbio Brasil-Portugal na área da cultura popular”, publicado na coletânea “Cultura popular - temas e questões” - Tinhorão, 2001.

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Quanto tempo levou, a partir de então, para chegar ao som ideal, considerado a tradução sonora do que existe de mais essencial na alma nordestina? Impossível conhecer com exatidão. Pelo visto, não foi algo muito demorado. Nem difícil de ser aceito. Parecia que o Brasil estava esperando e preparado para aquela nova música e, quando escutou o trio sanfonazabumba-triângulo pela primeira vez, saiu dançando aliviado e alegre, como se aquela formação instrumental fosse a coisa mais natural do mundo. Quase ao mesmo tempo, surgiria outra novidade. Luiz Gonzaga não trocou apenas de banda, trocou também de roupa. Tirou o terno típico dos músicos dos regionais. Seguindo o exemplo do acordeonista gaúcho Pedro Raimundo (na época, já havia o termo gaiteiro para designar o sanfoneiro dos pampas?), que já se apresentava com bombacha, nosso ídolo nordestino (e que se tornou realmente ídolo, por se assumir nordestino, ao mesmo tempo em que inventava o que hoje é entendido como identidade nordestina) adotou primeiro o chapéu de couro e depois a vestimenta completa dos cangaceiros, que, por sua vez, era uma recriação bem estilizada do uniforme de trabalho dos vaqueiros nordestinos, que precisavam de tecido forte para enfrentar os espinhos da caatinga. Essa mudança de visual não foi inicialmente tão bem recebida quanto 2

Sou nordestino também. Lembro de ouvir, na infância, muitos vendedores ambulantes de balas e “cavaco chinês” passando pelas ruas cantando as delícias de seus produtos acompanhados apenas por triângulos. Até hoje, seu som metálico me lembra o gosto de açúcar.

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a revolução instrumental. A reação contrária também é lembrada em depoimento a Dominique Dreyfus, no livro já citado: “Eu pensei que ia fazer uma surpresa lá na [rádio] Nacional: Pedro Raimundo tocava vestido de gaúcho e eu ia me confrontar com ele vestido de nordestino. Quando cheguei no domingo, na hora de entrar no auditório, botei o chapéu, peguei a sanfona... Floriano Faissal, o diretor artístico, me olhou, perguntou: “Para onde você vai?”, nem esperou a resposta, abanou a cabeça e falou: “Han, han! aqui não. Cangaceiro na Nacional, não! Pode guardar seu chapéu”, e me proibiu de cantar de chapéu de couro. Tive que aceitar, disciplinado que era, fui soldado muitos anos...” (Dreyfus, 1996: 136) Contudo, mesmo disciplinado pelas Forças Armadas (instituição que o trouxe do Nordeste para o Sudeste), a idéia permaneceu na sua mente. E depois deixou de ser apenas um chapéu: todo o seu trio apareceu vestido de roupa de couro e, apesar da má vontade da diretoria, caiu na graça popular. O estilo cangaceiro virou o estilo nordestino, o estilo do forró, o estilo de Luiz Gonzaga por longos anos. Porém, a roupa e os instrumentos eram a embalagem (não menos importantes por serem embalagem, algo essencial na indústria cultural, que também foi o “barro do chão” do baião) de algo mais decisivo, que tinha surgido antes. Luiz Gonzaga, nas suas primeiras tentativas de fazer sucesso no mundo da música, buscou imitar o que estava na moda nas rádios e gravadoras do Rio de Janeiro. Queria ser igual, não marcar diferença. Tocava tudo que todo mundo que fazia sucesso também tocava. Em termos de sucesso, não foi muito à frente assim. Teve que voltar ao Nordeste por uma via surpreendente. Uma vez, tocando no Mangue carioca, deparou-se com uma plateia de estudantes nordestinos, todos de classe média para cima. Foram eles e não imigrantes pobres, que, com saudade de casa, pediram uma música que lembrasse mais sua terra natal. Luiz Gonzaga foi buscar alguma coisa do repertório com o qual seu pai, Januário, animava os bailes do Araripe. O sucesso foi enorme, gente parou para ouvir na rua, até mesmo cariocas da gema. Foi assim, com tino comercial apurado, que descobriu o que deveria fazer para sua carreira decolar. Tinha que reaprender a ter sotaque, pois até aquela data, “Ninguém sabia que eu era nordestino. Eu já era um malandro, me atirava no meio dos crioulos, vestido igual a eles, até cantava samba nas gafieiras. Eu tinha interesse em me adaptar ao sotaque carioca. Sotaque nordestino, havia muito tempo que eu já tinha perdido. Também, já tinha saído do Nordeste há mais de nove anos.” (Dreyfus, 1996: 81) A partir desse momento, do surpreendente sucesso no Mangue justamente com aquilo que deixara para trás procurando o sucesso, tem início seu longo caminho de volta para o “pé de serra”, que dá também na zabumba e no chapéu de couro.

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Companheiros da “viagem de regresso” ao sertão e também novamente de volta, trazendo o sertão para o imaginário popular nacional, foram Humberto Teixeira e Zé Dantas, os dois de classe média e de formação universitária, que se tornaram letristas dos maiores sucessos de Luiz Gonzaga. O laboratório do forró não foi obra de camponeses perdidos no sertão e que pouco a pouco conquistaram a cidade. Foi produto multi ou transcultural, de solo urbano, envolvendo criadores geniais de várias classes, que não necessariamente tinham a vivência direta dos problemas de um retirante ou viajante de um pau-de-arara. Só depois, pelas ondas radiofônicas, pelos discos, pela crescente indústria de shows, é que o baião voltou para o sertão, foi apropriado por músicos locais e virou o centro da identidade, não só musical, de milhões de nordestinos. Como resume a antropóloga Letícia Vianna: “Por um lado, o baião funcionou como entretenimento, novidade, para as massas consumidoras. Por outro lado, foi didático na medida em que trouxe, estilizada, a especificidade cultural de uma região para o “campo de visão” de grande parte da nação (até onde os meios de comunicação de massa alcançaram), contribuindo para uma reavaliação funcional da categoria sertão. Nesse sentido, favoreceu a auto-estima do imigrante nordestino nas cidades do sul, que geralmente fica subordinado à condição de assalariado mal pago e perseguido pelo estigma de “nortista”, “pau-dearara”, miserável e atrasado. E abriu novos caminhos para o músico nordestino nos centros urbanos.” (Vianna, 2001: 64)

A confusão entre o nordestino e o nortista ainda hoje presente no linguajar das ruas brasileiras, não importa a região (mesmo no Nordeste, ouvimos as pessoas falarem “aqui no Norte”), reflete uma grande transformação cultural pela qual o país passou e da qual Luiz Gonzaga foi um dos principais protagonistas, quem cuidou do seu arremate popular. O que, desde o início, não é somente a invenção de um gênero musical, é a invenção do Nordeste. Como mostra Durval Muniz de Albuquerque Jr. no livro intitulado (justamente) “A invenção do Nordeste - e outras artes”, o Nordeste não existia como região geográfica ou cultural distinta até o final do século XIX, portanto, até bem recentemente. Antes o país era dividido entre Norte e Sul e pronto. No imaginário nacional criado no Sudeste (há muito, centro do poder político e econômico), o Araripe ocupava a mesma região que o rio Trombetas. Era tudo um grande e longínquo Norte. Foi a seca de 1877-79, “a primeira a ter grande repercussão nacional

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pela imprensa” (Albuquerque Jr., 1999: 70), que acabou por destruir a unidade “nortista”. Políticos originários das áreas atingidas pela seca passaram a exigir verbas específicas, às quais os Estados amazônicos não teriam direito. A tragédia teve como consequência um tratamento diferenciado por parte da União, algo que, por sua vez, acabou gerando também uma percepção (e autopercepção) distinta de seus habitantes, que começam a ser vistos (e a verem a si próprios) como donos de tradições culturais específicas. O processo de consolidação do novo modo de dividir a nação teve muitos colaboradores, para além das verbas federais, em várias épocas e em várias mídias: Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Ascêncio Ferreira, Ariano Suassuna, Cícero Dias, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz e tantos outros, inclusive não nordestinos, como o paulista Nelson Pereira dos Santos, que filmou “Vidas Secas” de Graciliano Ramos. Entre eles, Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira e Zé Dantas provavelmente foram aqueles cuja obra teve maior penetração popular, sendo lembrada sempre que qualquer brasileiro pensa no Nordeste. Ou ainda quando qualquer nordestino que, sendo forçado a migrar do sertão para a cidade grande, sente saudade de seu “pé de serra”. Albuquerque Jr. acrescenta: “Luiz Gonzaga se tornou aquele artista capaz de atender à necessidade do migrante de escutar coisas familiares, sons que lembravam sua terra, sua infância, sons que o levavam até este espaço da saudade em meio a toda polifonia do meio urbano.” (Albuquerque Jr., 1999: 156) Contudo, isso não torna sua música retrógrada, passadista. Ela é invenção constante, ruptura por vezes extremista, antitradicionalista, em elementos muito evidentes e essenciais: “o uso inovador da sanfona quase como instrumento de percussão, sendo balançada, aberta e fechada com rapidez, diferentemente de seu uso tradicional para tocar valsas, quando era aberta e fechada lentamente” (Albuquerque Jr., 1999: 163). Inovadora também na divisão original para o toque do triângulo, que Luiz Gonzaga, em citação anterior, se orgulhava em ter criado. O pensamento que elogia a manutenção da tradição, a pesquisa de raízes, a defesa do puro é tão forte em meus julgamentos estéticos e críticas culturais - sempre denunciando o “artificial” - que pode parecer, para um leitor desavisado, que desvalorizo o trabalho de Luiz Gonzaga, ao lembrar o que nele é invenção ou absoluta novidade nascida fora das cartilhas da autenticidade mais óbvia. A intenção é outra, radicalmente outra: no meu entender, tudo isso torna Luiz Gonzaga mais genial e mais autêntico. Ele soube lidar com forças muito distintas, inclusive do mercado fonográfico em transformação, e conseguiu que funcionassem a seu favor, para sua criação. A biografia artística de Luiz Gonzaga nos incentiva a ser o que realmente queremos ser, nem que para isso seja preciso inventar uma nova música e uma nova maneira de pensar a música e nosso lugar no mundo.

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XILOGRAVURA – Withiney Denilson / 9 anos Projeto Gravura de Inverno (SE)

BibliogrAfia ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. 1999. A invenção do Nordeste - e outras artes. Recife, FJN/Ed. Massangana, São Paulo, Cortez. DREYFUS, Dominique. 1996. Vida de viajante - a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo, Ed. 34. TINHORÃO, José Ramos. 2001. Intercâmbio Brasil-Portugal na área da cultura popular. In: Cultura popular - temas e questões. São Paulo, Ed. 34. pp. 125-145. VIANNA, Letícia. 2001. O rei do meu baião - mediação e invenção musical. In: VELHO, Gilberto & KUSCHNIR, Karina. Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano. pp. 61-87.

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Só acredito no céu da boca de onde sai o meu canto e o meu sustento

Luiz Gonzaga

em depoimento ao autor do livro em 1988

Eu e o Rei um depoimento Bené Fonteles

XILOGRAVURA

João Pedro do Juazeiro

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Foto: Antonio Andrade/Abril Imagem

Durante minha infância e adolescência, nos idos de 1960,

vivi e brinquei as festas juninas, com seus fogos e fogueiras, quadrilhas e comidas típicas. Essas festas animavam, desde as casas de chão batido até as grandes cidades do Nordeste. Comum a todos esses cantos e recantos, a trilha sonora que animava as festas era sempre a das canções de Luiz Gonzaga, que eu aprendi a ouvir com meu pai, o cearense José Ribamar. Assim, foi muito natural produzir o texto do espetáculo Luiz Lua, Obrigado, em 1971, aos 18 anos. Espetáculo que seria encenado no mesmo ano em Fortaleza, no Teatro Universitário da Universidade Federal do Ceará. Foi levado também à praça do Passeio Público e à cidade vizinha de Aquiraz, por uma trupe de atores que também tinha Gonzaga como forte referência cultural. A intenção do espetáculo era a de falar sobre a vida e a obra de Gonzaga, ainda pouco conhecidas pela nova geração de estudantes. O intento era também mostrar a influência da obra de Luiz Gonzaga para a música popular brasileira contemporânea, mais especificamente na geração de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo, Geraldo Vandré e Sergio Ricardo, cujas canções eram interpretadas junto com as de Gonzaga. Em 1972, começando a escrever no jornal Tribuna do Ceará, resolvi “tomar coragem e procurar Luiz Gonzaga”. Ele estava hospedado em um hotel da cidade e decidi fazer com o Lua a minha primeira entrevista. Também tinha por objetivo entregar a Gonzaga o texto do espetáculo Luiz Lua, Obrigado e tudo o que a imprensa havia publicado sobre esse trabalho. O material deixou-o encantado, pois ele agora assistia à retomada e valorização de sua música por uma nova geração de compositores. Caetano Veloso havia gravado Asa Branca em seu LP londrino, como uma nova canção de exílio. Gonzaga ouviu a gravação pela primeira vez junto comigo, numa loja de discos, extremamente emocionado. E feliz. No nosso primeiro encontro, ele me apresentou o tímido e jovem Dominguinhos. Naquele momento, todo o meu receio se desfez diante de tanta generosidade e afeto. Gonzaga, de imediato, tratou-me como a um amigo íntimo. Amigo a quem ele chamaria, posteriormente, de filho postiço. Na foto dele, que lhe pedi para autografar, escreveu: “Bené, meu bichinho, meu abraço, minha amizade e minha abensa.” Assim mesmo, abensa, como se fala e escreve “certo” 313


o português do Nordeste. Era o dia 6 de junho de 1972 e foi, a partir daí, que nossas vidas ficariam visceralmente ligadas por quase duas décadas. Nosso último encontro aconteceu em 1988 também num hotel, para outra entrevista, um ano antes de sua morte, quando faria em Cuiabá seu último show, cancelado por problemas de saúde. Naquela ocasião, perguntei a Luiz, já sentindo sua passagem bem próxima, se ele acreditava no conceito de céu. Ele respondeu que só acreditava no céu da boca, que lhe dava espaço do canto e sustento de vida. E que vida! Vivida intensamente com uma disposição generosa de se dar a sua gente. Conta-se, mais para verdade do que para o mito, que adotou em torno de 450 afilhados e a eles deu centenas de sanfonas. Mais de uma delas a Dominguinhos, que conheceu aos nove anos quando o viu tocar em Pernambuco, num trio de forró chamado Os Pingüins, formado com mais dois irmãos, e o adotou musicalmente aos quatorze anos no Rio de Janeiro. Dominguinhos transformou-se no seu mais legítimo e natural herdeiro, contagiando-se também pela simpatia e a generosidade do grande coração.

Muitos foram meus encontros com Gonzaga pelas estradas da vida. Lembro-me

Foi também em 1983 que vivi com ele uma das nossas mais fascinantes venturas. Ao gravar meu primeiro disco, queria uma participação de Gonzaga na faixa Ao Rei, composta em sua homenagem. Luiz disse que não iria cantar nenhuma canção que lhe fosse habitual. E, justificando-me que os produtores de seus discos sempre o impediram de cantar um aboio, dizendo que era “coisa de vaqueiro e boiadeiro”, não iria desperdiçar essa chance e entoou o aboio preso na garganta no meu primeiro trabalho como compositor. Estava gravando parte desse disco, o “Benditos”, no estúdio Porão de Egberto Gismonti, que também participava como arranjador e instrumentista, quando falei a ele da ida de Luiz à gravação. Gismonti ficou encantado com a possibilidade do primeiro encontro com o Rei do Baião. Dispensou o técnico de som e ele mesmo gravou e mixou a faixa com um prazer enorme, pois coincidentemente estava produzindo na Alemanha o disco Sanfona, em homenagem a Gonzaga. Assim foi que, naquele disco, ficou registrado o precioso momento de Gonzaga imitando à capela um resfolegar de sanfona e soltando um aboio, que é mais uma ‘abensa’ do que qualquer outra coisa. Quando Elba Ramalho gravou seu cd Canta Luiz, mais uma homenagem ao Rei, pediu-me autorização para incluir essa faixa em dois momentos do disco e também no show Elba ao vivo, gravado em DVD em 2005.

especialmente do dia em que me fez descer do ônibus, em Feira de Santana, e seguir viagem de carro até São Paulo. Era o ano de 1972 e Gonzaga iria se apresentar com Gonzaguinha e Quinteto Violado no Tuca, num show histórico de lançamento de seus primeiros discos. Lembro-me também que, em um dos nossos animados almoços em sua casa, na Ilha do Governador, apresentei as cantoras e compositoras Luli e Lucina, pelas quais ficara fascinado. Eram fartas refeições que sua incansável esposa, Dona Helena, preparava e a quem Gonzaga recomendava de imediato, ainda ao telefone: “Helena, faça aquela comida errada, que Bené vem comer aqui hoje!”. É que sou vegetariano.

A última vez em que falei com Gonzaga foi por telefone, quando ele estava hospitalizado em Recife, pouco antes de morrer. Quando liguei, Idelzuita, seu último amor, foi quem atendeu ao telefone e me contou que ele tinha de fazer um esforço muito grande para falar. Porém, quando Gonzaga lhe perguntou sobre quem estava ligando e ela lhe respondeu que era eu, Gonzaga insistiu para falar comigo, apesar de sua debilidade física. Foi nesse dia que ele me deu sua última lição em vida, confirmando-me o que eu já sabia: que morria realizado com o reconhecimento público, sem problemas com o ego e que, sobretudo, não se tornara um velho amargo, pois não havia guardado mágoas ou rancores. Digno na vida e na morte.

No começo dos anos 1980, concebi o primeiro projeto do Museu do Baião, que ele desejava fundar em Exu, sua cidade natal, composto por seu rico acervo pessoal, organizado por Dona Helena com todo o cuidado habitual.

Em 2009, o compositor e cantor baiano Gereba me entregou uma das preciosidades que Luiz Gonzaga gravara apenas em versão instrumental. Era a valsa Passeando em Paris, para a qual, a pedido de Gereba, fiz a letra, tendo a honra, embora póstuma, de me tornar parceiro do Rei. Quando Gonzaga compôs a canção em 1944, ainda não havia ido a Paris e eu nunca estive lá, mas creio que a letra não envergonharia o Rei do Baião. Elba Ramalho, a meu pedido, gravou esta valsa para o cd Luas de Gonzaga, do qual também participaram, como letristas, Zeca Baleiro, Chico César, Capinam, Lirinha, dentre outros.

Foi nessa casa onde ele realizou uma cerimônia, condecorando-me com uma espécie de “Ordem Luiz Gonzaga”, cujo ritual consistia em pôr solenemente sobre a nossa cabeça seu chapéu de Rei do Baião e, no nosso pescoço, o seu tradicional lenço. Honraria igual somente receberiam mais quatro privilegiados: Dominguinhos, Gonzaguinha, Gilberto Gil e Milton Nascimento.(1) 314

Assim, este livro é mais que um tributo. É um ato de profunda gratidão à generosa amizade e cumplicidade do pai postiço, no qual se transformara para mim. Sinto saudades de tudo o que vivi com Gonzaga e ainda sinto fortemente a sua presença musical e espiritual. Uma presença que tem um quê de xêro do eterno, por tudo o que ele fez para alumbrar nossa carente e brasileira imaginação. (1) Era costume de Luiz Gonzaga registrar todas estas cerimônias de paramentação. Aqui, a foto foi feita pela cantora e compositora Lucina.

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Era preciso que viesse a mando de Deus um cantador de voz de muita força para afastar do lugar tudo que tivesse ranço de maldade e cheiro de pólvora. E ele veio, um moleque de olhos de vidro, sorriso permanente nos lábios e na garganta a cantiga mais bonita, montada em todos os tons de suave paz. (...) Luiz Gonzaga veio vindo numa nuvem branca e era como se fosse um anjo aquele menino mulato, que acabara de descer para louvar sua gente, namorar a beleza da menina de cintura fina, cintura de pilão, seu baile, seu folguedo, seu descanso do trabalhar de plantar e de colher Fernando Lobo

ILUSTRAÇÃO –

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Pedro Eymar / Bené Fonteles

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Me criticavam naturalmente, porque eu cantava mal. Eu ainda estava aprendendo. Trabalhando e aprendendo. Minhas músicas não tinham apanhado assim uma consagração respeitável. Eu cantava de maneira diferente, não imitava ninguém, estava na minha. E Deus me ajudou e tudo deu certo. E esses críticos botaram a viola no saco, porque o povo me acompanhou Luiz Gonzaga

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Indicações para compreender e sentir o universo gonzagueano

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As capas dos LPs que Luiz Gonzaga gravou desde o final dos anos 1950 até 1989 aqui são agrupadas pelas temáticas abordadas. Estas capas, em seu conjunto de mais de 50 LPs, já constituem um motivo de tese – dentro da antropologia cultural – para a melhor compreensão do universo Gonzagueano. Nestas capas, vemos as transformações por que passa sua figura iconográfica e simbólica no decorrer das décadas. Temos as visões que artistas ilustradores criam de sua figura e dos motivos nordestinos que evoca. Observamos os usos, costumes e tradições nordestinas e ainda a inserção de Gonzaga na paisagem e no contexto cultural sertanejo.

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A caixa Luiz Gonzaga – 50 anos de

chão é a mais importante coletânea de sua obra. Editada pela gravadora RCA - BMG em 1988 com cinco LPs e reeditada em 1996 com três CDs, a caixa reúne 60 canções essenciais, perfazendo uma trajetória de 1941 a 1987. O livreto tem ótimo texto e pesquisa iconográfica de João Máximo. O projeto é de José Milton, que fez a seleção de repertório da melhor qualidade junto com o próprio Gonzaga. Entre os depoimentos do encarte, estão o da cantora Nara Leão, que diz que sempre achou Gonzaga a maravilha máxima; do ator Nélson Xavier, que afirma que fazer a tragédia nordestina atingir a expressão musical é o que dá a Luiz Gonzaga a sua dimensão mitológica.

A gravadora Sony Music lança em 2009 a caixa Luiz Gonzaga – Monumento Nordestino, com três cd’s e um dvd com o show Danado de Bom, gravado pela Rede Globo. A edição é um projeto de Carlos Alberto Sion com texto de Tárik de Souza e privilegia as gravações de clássicos gravados por Luiz Gonzaga entre as décadas de 1940 a 1980. Tárik evidencia que a caixa “Monumento Nordestino”, essencialmente autoral, captura três fases de uma saga. Em “O rei do baião”, o eixo principal de seu legado, que multiplicou-se por entonações diversas do mesmo compasso binário e influenciou gerações seguintes. (...) “Na toada do xote” alia dois ritmos que também pontilharam sua obra, a começar pelo hino Asa Branca, cujo registro original se deu sobre a rubrica de toada. (...) Já em “Lua Brasil”, evidencia-se o Gonzaga plural, capaz de adaptar-se e amoldar a seu estilo diversos gêneros regionais do país com a sabedoria musical de matuto polimorfo.

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A gravadora Revivendo lançou, entre 2006 e 2008, as duas preciosas caixas Luiz Gonzaga – Seu canto, sua sanfona e seus amigos, cada uma com três CDs - um sétimo avulso – cada um com 18 músicas. Os encartes com todas as letras e ficha técnica das canções têm ótimos textos de José Silas Xavier e Assis de Ângelo, explicitando as gravações e as participações especiais. Na primeira caixa, além das originais gravações de Noites Brasileiras, A Volta da Asa Branca, Vozes da Seca, Acauã, Forró no Escuro, Algodão, Abc do Sertão e Riacho do Navio - todas feitas nos anos de 1950 – e ainda A Triste Partida, de 1964, vamos encontrar muitas raridades na voz de Gonzaga, como O Torrado

e o grupo Januário Seus Filhos e Seu Oito Baixos, formado em 1954, com o qual interpreta Pra Onde Tu Vai Lui?, Januário vai Tocar e O Balaio de Veremundo. Há ainda Gonzaga em maravilhas, como Forró do Zé Buchudo, O Mangangá, Meu Pajeú, Padroeira do Brasil, Ave Maria Sertaneja e Aboio Apaixonado. Outros intérpretes de seus baiões e toadas – até uma valsa – são Carmem Costa, em Sarapaté, Heleninha Costa e Os Cariocas, em Que é Que Tú Qué, 4 Ases e 1 Coringa, em Tudo é Baião, Augusto Calheiros, em Dúvida, e até Geraldo Vandré, em Asa Branca, num arranjo duvidoso. Por causa desta gravação de Vandré para seu disco Hora de Lutar de 1965, Gonzaga gravou, em um compacto de 1968, Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores, que, nesta antologia, se faz presente belamente gravada pelo Rei. Na segunda caixa, as raridades são as gravações ao vivo com o parceiro Onildo Almeida, em A Feira de Caruaru, numa interpretação impagável. Temos também os duetos com Alceu Valença em Plano Piloto, Nelson Gonçalves em Asa Branca, Elba Ramalho em Farinhada, Sérgio Reis em Baião da Garoa e até o inesperado: Gonzaga junto com o Trio Elétrico de Dodô e Osmar – Armandinho de lambuja – na música

Instrumento Bom, que Moraes Moreira compôs com Fred Góes para homenagear o Rei. Muitas gravações estavam perdidas nos arquivos de gravadoras, entre elas, o baião Renascença, de Onildo Oliveira, que nunca tinha sido lançado. Há raridades, como Edu da Gaita interpretando em 1950, com orquestra de cordas, o Capricho Nordestino, composto de temas musicais das parcerias de Gonzaga com Humberto Teixeira; Os Cariocas interpretando Baião de Vassouras; a cantora portuguesa de fado Ester Abreu cantando o baião meio fado Ai, Ai Portugal, com o Conjunto Regional Brasileiro, em gravação de 1951, num arranjo pra lá de curioso; 4 Ases e 1 Coringa em O Machucado, sem falar nas interpretações geniais de Gonzaga para Toque de Rancho, Nordeste pra Frente, Vaqueiro Véio, Cavalo Crioulo, Maria Cangaceira, Festa - de Gonzaguinha - e muitas outras.

No sétimo CD – de onze lançados – podemos encontrar a aventura de Gonzaga compondo com outros ritmos como o samba em Quem É, uma parceria com Jararaca, gravado em 1945 por 4 Ases e 1 Coringa; o maxixe Bamboleando, em parceria com Miguel Lima, gravado por Neusa Maria e o chôro Galo Garnizé, em parceria com Antonio Almeida, gravado em 1951 pelo clarinetista Abel Ferreira. Há ainda as gravações de dois medleys por outro genial sanfoneiro que é Sivuca. Em um deles, acompanha a destreza vocal de Carmélia Alves na faixa No mundo do baião, em composições da parceria de Gonzaga, com Teixeira. E ainda há gravações preciosas do próprio Gonzaga como Se não fosse meu fole, Sanfoneiro Zé Tatu, Aquilo Bom e sua voz criativa e potente na faixa De Teresina a São Luís, dele com João do Vale. Bom demais!

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O nº 10 da Coleção Folha Raízes da Música Popular

Em 1970, a editora Abril Cultural lançou a

primeira coleção em fascículos sobre Música Popular Brasileira. O número 13, como não poderia deixar de ser, foi dedicado a Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Gonzaga nasceu no dia 13 de dezembro. O fascículo trazia uma ótima e sintética biografia dos dois compositores e um LP com composições fundamentais para compreender a trajetória de Teixeira e Gonzaga e suas largas influências na MPB: Asa Branca, Paraíba, Vira e Mexe, Vozes da Seca, Dezessete e Setecentos – todas com o próprio Gonzaga – Kalu, com Dalva de Oliveira, e Dezessete Légua e Meia, com Gilberto Gil, e a primeira gravação de Baião, de 1946, com os 4 Ases e 1 Coringa. O fascículo foi reeditado duas, vezes em 1977, privilegiando as interpretações de Gonzaga, e em 1982, ganharia texto de Tárik de Souza, que escreveu: Gonzaga construiu a síntese do som nordestino – triângulo, zabumba e

acordeão de até 120 baixos. Com refrões adaptados dos cantos do povo e com motes próprios, a parceria Gonzaga/Teixeira elevou a música sertaneja ao nível de obras-primas. (...) Seu Nordeste musical primevo, no entanto, não dispensa a observação vanguardista de metalinguagem no manifesto Inbalança, que transmite as características da música comentando-as, assim como Desafinado e Samba de uma Nota Só fariam, depois, na bossa nova. José Ramos Tinhorão também escreveu: No Brasil, Gonzaga, o pernambucano que encontrara a fórmula difícil de se tornar parceiro musical de seu próprio povo, podia sorrir e acenar feliz seu chapéu de couro para a posteridade, pois, como um pequeno deus da nova criação, ganhava um reinado incontestável: era o Rei do Baião. O fascículo tem ainda novas faixas, como Assum Preto por Gal Costa, Riacho do Navio por Fagner, Vem, Morena por Alceu Valença, Macapá por Gilberto Gil, e Algodão pelo Quinteto Armorial.

A Editora Globo lançou em 1997 a Coleção MPB Compositores e

destacou Luiz Gonzaga no número 20. O fascículo tem pesquisa e texto de Márcia Blasques, com boa biografia de Gonzaga, mas sem nenhuma análise de sua obra, como foi feita em outras coleções da Editora Abril e da Editora Folha de São Paulo. O fascículo é acompanhado de um CD com capa de Elifas Andreato, e no repertório, temos Luiz Gonzaga em Pau de Arara e Assum Preto, Quinteto Violado em Asa Branca, Chico Cesar em Paraíba, Gilberto Gil em Respeita Januário, Fagner em Riacho do Navio, Carmélia Alves em Estrada de Canindé, Trio Nordestino em A Vida de Viajante e Carmem Costa em Xamego. São estranhas as inclusões de intérpretes não familiarizados com a obra de Gonzaga, como Miltinho em Dezessete e Setecentos, Carmina Juarez em Qui Nem Jiló e Simonetti em Baião.

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Brasileira de 2010 é dedicado a Luiz Gonzaga. O texto é novamente de Tárik de Souza, que traça um perfil preciso e profundo. Ele diz: Coube ao pernambucano de Exu, Luiz Gonzaga do Nascimento (1912 – 1989), um negro semianalfabeto, de cara redonda, em formato de lua, a ciclópica tarefa de colocar um naco substancial da diversidade estética de sua região – o Nordeste, então chamado genericamente de norte – no mapa da música popular brasileira. A edição de Carlos Calado traz uma primorosa pesquisa de imagens e uma seleção de repertório essencial cantado por intérpretes convincentes e legítimos, como Clara Nunes, Fagner, Gonzaguinha, Elba Ramalho e Dominguinhos, sendo Gonzaga, a grande presença na maioria das faixas, sem dúvida, por ser o melhor intérprete de suas próprias composições.

Em 1971, Gonzaga grava um dos seus mais importantes discos, que é

O Canto Jovem de Luiz Gonzaga. Era uma forma de retribuir a toda uma geração de compositores e cantores que passaram a valorizar a sua obra, depois de quase uma década de indiferença vivida por Gonzaga nos anos 60 com o evento da Bossa Nova, Jovem Guarda e Tropicália. Assim, pode-se ouvir sua voz potente e clara interpretar, de forma extraordinária nos arranjos de Rildo Hora, as canções de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Luiz Gonzaga Jr, Dori Caymmi e Nelson Mota, Edu Lobo e Capinam. A mais bela e comovente gravação do disco é Caminho de Pedra, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

Extraordinário é o disco que registra o show Luiz Gonzaga – Volta pra curtir, de 1972, gravado ao vivo com a direção de Jorge Salomão e roteiro dele e de Capinam e ainda com o genial Dominguinhos na sanfona. No show, Gonzaga mostra sua vitalidade rítmica na performance de palco e sua grande vontade de voltar a estar em evidência depois de uma injusta década de ostracismo. O crítico e historiador musical Sérgio Cabral disse: Meninos, eu vi! Graças ao aval assinado de Caetano Veloso & Gilberto Gil, Luiz Gonzaga, que jamais havia cantado na Zona Sul carioca, apresentou-se no Teatro Tereza Raquel numa temporada em que empolgou plateias sucessivamente superlotadas, cuja maioria sem dúvida, o via pela primeira vez. Enfim, a Zona Sul carioca conheceu Luiz Gonzaga, o cantor e sanfoneiro do rádio e das cidades do interior. E viu que se tratava de um dos maiores artistas da

música popular brasileira: como compositor, um dos pais de nossa música (com Humberto Teixeira, inventou o baião na forma em que se consagrou no Brasil e no mundo); como cantor, o melhor intérprete da música nordestina; como instrumentista, criador de uma escola.

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Em 1977, a RCA lançou o disco Luiz Gonzaga & Carmélia Alves,

Três são os grupos musicais que refletem a

gravado ao vivo no projeto Seis e Meia do Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, com direção musical de Albino Pinheiro. O encontro foi antológico do Rei com a Rainha do Baião – como Gonzaga a denominou nos anos de 1950 – pois estavam à vontade na casa dos seus ritmos e cantando com prazer seus repertórios clássicos para um público que raramente podia assistí-los num teatro. Carmélia fazia já 15 anos que não se apresentava para o público carioca. Sérgio Cabral, escreveu na contracapa do LP: Multidões lotaram diariamente o teatro na certeza de encontrar os dois artistas que melhor interpretam o baião e os vários gêneros criados no Nordeste. Os que já conheciam de perto Carmélia e Luiz viram confirmada a certeza do talento de ambos e os mais jovens descobriram dois artistas tão jovens quanto eles. O que fizeram no palco serviu para mostrar não só os artistas extraordinários que são, mas também a vitalidade, a alegria de viver, dois exemplos de gente, de pessoas, de um povo cheio de energia. Como disseram Luiz Gonzaga e Luiz Bandeira na música Reis do Baião: “A franqueza nordestina / no que vê e no que sente / tanto aplaude uma verdade / como combate o que mente”. Luiz Gonzaga e Carmélia Alves são verdadeiros. E por isso mesmo são muito aplaudidos.

grande influência da música de Luiz Gonzaga. Quarteto Novo, grupo instrumental composto por músicos geniais, como Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte, Airton Moreira e Théo de Barros, gravou em 1967 um único e fundamental LP. No disco, há um arranjo extraordinário para Algodão, de Gonzaga e Zé Dantas. A mesma canção é gravada pelo Quinteto Armorial no disco Sete Flexas, em 1980. O outro importante grupo musical é dos pernambucanos do Quinteto Violado – lançado pelo próprio Lua – com seu disco inaugural de 1972. No LP, figuram gravações antológicas de Asa Branca e Baião da Garoa. Em 1974, o Quinteto gravaria Assum Preto e Pau de Arara no disco A Feira. Em 1977, gravaria Antologia do Baião com muitas canções do repertório de Gonzaga. E o Quinteto ainda faria duas homenagens ao Rei em 1983, ao lançar Coisas que o Lua Canta, com gravações extraordinárias de Boiadeiro, Estrada de Canindé, Beata Mocinha, Juazeiro e uma versão instrumental de Forró do Mané Vito – feita a pedido de Gonzaga – e ainda o disco de 2002, Retirantes de Safona e Violadas, resultado, segundo eles, de um espetáculo baseado nos encontros vividos com Mestre Lua e o Quinteto, quando a música era o cenário das estórias que o Rei contava.

Um diálogo sempre esperado de pai e filho foi acontecer plenamente somente em 1981. Entre junho e julho, numa série de apresentações para uma platéia muito seleta no estúdio da EMI-Odeon no Rio de Janeiro, gravou-se quase ao vivo: A Viagem de Gonzagão & Gonzaguinha. O álbum duplo – que saiu em CD em 1994 – é um projeto de Gonzaguinha, que canta suas canções – então, um sucesso em sua voz e de outros intérpretes – e Gonzaga narra meio cantado suas histórias saborosas e jocosas. Enfim, estavam os dois atuando juntos, emocionados também de fazer as pazes e aparar algumas arestas de toda a vida.

Duas preciosidades são os discos

Luiz Gonzaga & Fagner, o primeiro de 1984 e o segundo de 1988. Neles, Gonzaga está completamente à vontade, num repertório enxuto e propiciador de um diálogo fluente entre duas gerações de nordestinos tocados pela mesma natureza, ritmos e afinidades. Fagner, que também produziu e fez direção musical, deixa Gonzaga solto nos duetos em desafios e improvisos, dos quais era um mestre, e privilegia, no segundo LP, o lado autoral do Rei. Fagner afirma que só por ter gravado os dois discos com Gonzaga, já se sentia gratificado pela profissão que escolheu. É um encontro antológico e imperdível!

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Para conhecer melhor a importância do agitador cultural, do político e do grande compositor, é preciso ver os dois volumes do Cancioneiro Humberto Teixeira – Biografia e Obras Escolhidas, editados em 2006 pela Jobim Music e Good Ju-Ju. A Biografia, fartamente ilustrada, tem textos de Sérgio Cabral e Ricardo Cravo Albin. Cabral Comenta: Mas, sem dúvida, o que há de mais importante na obra de Humberto Teixeira são as suas músicas e, principalmente, a poesia que escreveu para elas. Para entender a sua participação na história musical do País, é preciso saber, primeiramente, que, no organismo da Música Popular Brasileira no século XX, a música do Nordeste é um dos seus órgãos vitais. (...) Ao juntar-se a Luiz Gonzaga, como numa volta a Iguatu (sua terra natal) reassumiu sua condição de nordestino e despontou logo como um dos maiores compositores de toda história da MPB. Revelou-se o poeta (e muitas vezes também o melodista) que trazia “a poesia e a música no coração”, como acentuou certa vez o grande romancista José Lins do Rego. Afinal, quem escreveria algo mais bonito do que versos como “Quando o verde dos teus óios se espáia na prantação”? E o baião tomou conta não só do Brasil mas do mundo inteiro. Obras Escolhidas tem ensaio de Tárik de Souza - que diz que Humberto Teixeira moldou o cenário nordestino básico da trajetória do Rei do Baião - e as partituras com arranjos primorosos de Wagner Tiso para canções como Deus me Perdoe, Baião, Asa Branca, Meu Pé de Serra, Xanduzinha, Assum Preto, Juazeiro, Légua Tirana, Mangaratiba, Que Nem Jiló, Lorota Boa, Baião de São Sebastião, Paraíba, Baião de Dois, Estrada de Canindé, Respeita Januário, Adeus Maria Fulô, Kalu, Dono dos Teus Olhos, Eu Sou o Baião, entre outras 50 obras-primas. Muitas delas não foram gravadas só por Gonzaga, mas por todos os mais importantes intérpretes como Dalva de Oliveira, Carmélia Alves, Emilinha Borba, Carmem Miranda, Marlene, Marinês, Elba Ramalho, Gal Costa, Maria Bethânia, Bebel Gilberto, 4 Ases e 1 Coringa, Os Mutantes, Orlando Silva, Cyro Monteiro, Ivon Cury, Geraldo Vandré, Caetano Veloso, Fagner, Alceu Valença, Zé Ramalho e Gilberto Gil. Quase

Ao violonista Nonato Luiz coube transformar as canções de Luiz Gonzaga

e Humberto Teixeira em verdadeiros clássicos no CD Baião Erudito, gravado em 2004. Nonato escolheu um repertório perfeito para sua forma extraordinária de tocar violão, que, no CD, se aproxima até do resfolegar manhoso da sanfona de Gonzaga. Assim o que já era tão popular se transforma também em erudição pelas canções já muito conhecidas, como A Volta da Asa Branca, Juazeiro, Asa Branca, Assum Preto, Vem Morena e outras não tão usuais, como Fogo Pagô, Algodão, Légua Tirana, Dono dos Teus Olhos, Xanduzinha e Baião de Dois. Esta última com a participação muito especial de Dominguinhos. Um disco para a eternidade.

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nenhum dos grandes artistas e criadores brasileiros ficou incólume às inesquecíveis composições de Humberto Teixeira e seus parceiros que invadiram durante décadas o rádio e a TV, o cinema nacional e até internacional e as festas populares e grã-finas. Canções como Asa Branca vão ainda ressoar nos anos 2000 até na voz do escocês David Byrne – ex-Talking Heads e um apaixonado pela música do Brasil – que coloca o chapéu de vaqueiro para gravá-la junto com o grupo Forró in the Dark – uma referência ao sucesso de Gonzaga Forró no Escuro – que há anos, faz shows semanais para agitar com baião, xote e xaxado as noites de Nova Yorque.

Humberto Teixeira – Voz e Pensamento, editado em 2006, é um depoimento do compositor para o Museu Cearense da Comunicação de Nirez, gravado em 1977. O livro, além do precioso acervo de imagens, tem Humberto Teixeira inspirado falando de sua vida e obra efalando generosamente de Gonzaga: O baião, se tivesse sido feito só por mim, o que não foi, fui eu e Luiz Gonzaga, ele continuaria sendo apenas um negócio inédito, ao passo que, com Luiz, ele se tornou esse marco extraordinário dentro da música popular brasileira, marcando uma década de sucessos fantásticos, formidáveis. (...) Eu tenho impressão que fatalísticamente, predestinadamente, eu tinha que me encontrar um dia com o Luiz Gonzaga para fazermos isso juntos. E nunca me incomodei, o Luiz foi um pioneiro em vários aspectos. Você vê que quando os compositores se apresentam de smoking, gravatinha e tudo isso, o Luiz já vinha de talabarte, chapéu de couro, pra mim o Luiz é o primeiro hippie da MPB, daí, puxa, essa fidelidade. Eu vou dizer pra você, eu gosto muito às vezes de evoluir, de estilizar, de coisa e tal, e eu agradeço muito o policiamento do Luiz, ele é como uma espécie duma SWAT em cima de mim não deixando que a minha imaginação doure muito a pílula; ele é muito autêntico, muito fiel e ele merece tudo isso. Bem, Luiz, eu sou suspeito, Luiz é meu irmão, grande parceiro, grande amigo, ele é autor de tudo e eu não sei de nada. (...) Bem, a verdade, você vê, eu fui uma espécie de menestrel do sol, cantando a minha terra, cantando a minha gente, usando o sortilégio, a magia, a ubiquidade da música, levando assim um protesto lírico, conclamando os nossos irmãos do Sul, pedindo para os irmãos menos protegidos do Nordeste. Tudo isso fiz ao lado desse homem extraordinário, meu companheiro, meu irmão Luiz Gonzaga, e seguindo aquela trilha luminosa de sons antes de mim.

O Doutor e o Baião – Humberto Teixeira é um CD lançado em 2002 em homenagem ao grande parceiro de Luiz Gonzaga. Juntos definiram com suas canções toda a grande importância que tem o baião na música popular brasileira. Gravado em parte no estúdio da Biscoito Fino – que editou o CD – teve a outra parte registrada ao vivo no Teatro Rival. Os arranjos são de Wagner Tiso e os intérpretes são dos melhores, entre eles, Maria Bethânia, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gal Costa, Elba Ramalho, Gilberto Gil, Sivuca, Rita Ribeiro, Fagner, Lenine, Carmélia Alves e Zeca Pagodinho. Destaque para a energética atuação do Cordel do Fogo Encantado, que traz o baião Mangaratiba – dos dois tradicionais parceiros – para a cena contemporânea.

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Em 1959, A RCA-Vitor lançou o LP Luiz Gonzaga canta

seus sucessos com Zé Dantas, em que são regravadas especialmente as doze parcerias fundamentais entre os dois compositores. Entre elas, Sabiá, O Xote das Meninas, Vem Morena, A Volta da Asa Branca, A letra I, A Dança da Moda, Riacho do Navio, Vozes da Seca, Algodão e Cintura Fina. Na contracapa, Zé Dantas escreve: Em 1947, conhecemos Luiz Gonzaga em recife, na residência de um amigo comum, onde havia uma festa íntima. Luiz puxando o fole da sanfona, com sua voz nasalada de tenor caboclo, cantava toadas sertanejas que nos faziam evocar com emoção o longínquo Riacho do Navio e nos levaram às margens do Pajéu das Flores. O autor destas “mal traçadas” contava “causos” e cantava loas aprendidas no chão batido dos forrós à luz mortiça dos candieiros. A identidade de vocação artística nos dispensou apresentação, a surpreendente coincidência de motivação nos tornou amigos e a música nos fez parceiros. Desde então, baseados mo sincretismo musical das melodias ibéricas, ameríndia e gregoriana, que deu origem à música sertaneja, apoiados no ritmo da viola e firmados no pitoresco linguajar caboclo, temos divulgado os costumes, a arte e a vida social do homem nas caatingas do Nordeste brasileiro. Zé Dantas ainda comenta as doze canções escolhidas. Vejamos o que diz de uma delas: Em 1953, o Nordeste sofreu uma das maiores secas entre as que periodicamente assolam aquela região, deixando a terra calcinada e a população faminta. Por esta época, foi lançado um apelo à generosidade do povo do sul, em favor dos flagelados nordestinos, através de uma campanha intitulada: “Ajuda teu irmão”. Os poderes públicos, além de não tomarem qualquer providência substancial, pareciam desfrutar a comodidade que lhe proporcionava a iniciativa popular. Revoltados com o fato, lançamos Vozes da Seca, cujo sucesso nos estados atingidos pela calamidade deu-nos a impressão de que interpretamos nesta música o verdadeiro pensamento do Nordeste.

Em 2008, o violonista Claudio Almeida lançou o CD Noites

Em 1963, um ano após a morte de Zé Dantas, Gonzaga gravou um compacto duplo Homenagem a Zé Dantas, com duas canções inéditas do parceiro: Xô Pavão e A Profecia e ainda Zé Dantas, de Onildo Almeida, e Homenagem a Zé Dantas, de Antônio Barros.

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Brasileiras – A Música de Zé Dantas, com a participação especial de Dominguinhos, Jehovah da Gaita, Genaro, Nilsinho Amarante, dentre outros. Almeida escolheu um repertório de clássicos de Zé Dantas e Luiz Gonzaga, como ABC do Sertão, A Volta da Asa Branca, A Letra I, Algodão, Vem Morena, Noites Brasileiras, Cintura Fina, O Xote das Meninas, Riacho do Navio e outras menos conhecidas como Corina, São João no Arraiá, Mané e Zabé, Xô Pavão e Braia Dengosa. Há ainda uma canção inédita de Zé Dantas, Fulô Ingrata, na qual Dominguinhos reparte a cena musical com outro extraordinário sanfoneiro, que é Adelson Viana. No encarte do CD, Claudio Almeida fala sobre a vida de Zé Dantas e seu encontro com Luiz Gonzaga e o Rei diz: Humberto Teixeira era um poeta versátil, que versejava sobre qualquer tema, Zé Dantas aprofundava mais o sertão. Ele era mais brabo, mais cabra macho.

Em 2003 a gravadora Som Livre lançou o CD Todos Cantam

Zé Dantas & Luiz Gonzaga, com gravações antológicas retiradas de várias coletâneas ou discos originais dos artistas Chico Buarque, Fagner, Alceu Valença, Zé Ramalho, Elba Ramalho, Quinteto Violado, Gilberto Gil, Gal Gosta e Gonzaguinha. Além das notáveis composições como Riacho do Navio, Acauã, O Xote das Meninas, Vem Morena, A Letra I, Cintura Fina, ABC do Sertão, A volta da Asa Branca, Farinhada, Vozes da Seca, Algodão. Há ainda Riacho do Imbuzeiro com Dominguinhos, que fez a música para esta letra inédita de Zé Dantas, e Sabiá com Marina Elali, as únicas gravações feitas especialmente para o CD. Iolanda Dantas, viúva do compositor, escreveu para o encarte: Ao lado do parceiro e amigo Luiz Gonzaga, O Rei do Baião, Zé Dantas mostrou nas suas músicas a beleza do sertão, que muito cedo aprendeu, na sua terra Carnaíba – PE. Admirador do canto dos pássaros e estudioso do folclore, Zé Dantas tinha a facilidade em compor suas músicas, tocando violão ou simplesmente batendo os dedos em uma caixa de fósforo. Desta forma, logo surgia uma nova música, cada uma com um motivo próprio. Usava até um pouco de malícia, mas também foi romântico, no jeito de homenagear as pessoas amadas.

Zé Dantas – Segundo a Letra I, editado em 2010, é o número um da Coleção Arquivo Vivo do Memorial Luiz Gonzaga de Recife. Traz uma reveladora entrevista com a viúva de Zé Dantas, Dona Iolanda Dantas, contando fatos importantes para compreender a grande pessoa e o criador que foi o compositor pernambucano. Ela diz, ao falar de algumas “parcerias” de Gonzaga com Zé Dantas: Geralmente, Luiz Gonzaga tinha pouca participação. Gonzaga reconhecia isso. E muitas vezes falou: “Ele (Zé Dantas) me dá a parceria e eu que não sou besta, aceito”. Mas acontece que o Zé falava para mim o seguinte: “Ah! O povo me criticava”... O Zé batia, ele não tinha música, mas fazia o compasso e encaixava na letra e dizia: “Luiz Gonzaga completa a música com o canto. O que eu quero em qualquer ritmo para o meu sertanejo, Luiz Gonzaga encaixa e muitas vezes ele trabalha a introdução”. A publicação tem ainda um rico acervo de imagens e textos geniais de Zé Dantas, como a original narrativa de Samarica Parteira – gravada por Gonzaga em 1973 – que Dantas chamava de O Parto de Juvita ou A música folclórica e um “crítico”, em que ele responde bravamente à provocação do apresentador Flávio Cavalcante, que havia quebrado ao vivo discos com suas composições, como Siri Jogando Bola, Cangote Cheiroso e As Quatro Imbigadas, e ainda comentando todas as músicas na contra capa do LP Luiz Gonzaga canta seus sucessos com Zé Dantas. A pequena publicação é apenas o começo para suprir a enorme carência de informação sobre a imensa importância do compositor que foi Zé Dantas que ao desaparecer em 1962, deixa Gonzaga sem seu criador com mais jeito de sertão. O Rei dizia que Dantas, de tão sertanejo, tinha o cheiro de bode. 333


Em 1978, a gravadora Copacabana editou o LP A Grande Música de

Luiz Gonzaga, com arranjos sinfônicos e regência de orquestra do grande maestro e compositor Guerra Peixe. A música de Gonzaga ganha, dessa forma, dimensões nunca sonhadas. A vestimenta erudita que lhe cabe e a valoriza muito bem enfatizou as riquezas melódicas e harmônicas das canções também por colocar o ritmo em segundo plano. Os climas de extremas sutilezas cromáticas orquestrais criados por Guerra Peixe para as canções, que, se já eram clássicos do repertório de Gonzaga tornaram-se ainda mais sofisticadas e complexas nas composições Asa Branca, Paraíba, Légua Tirana, Vozes da Seca, Baião, Respeita Januário, Algodão e Qui Nem Jiló. O LP faz parte da coleção A Grande Música do Brasil, que teve a concepção e direção musical de Marcus Pereira. Este iria lançar mais tarde, por sua gravadora de mesmo nome, o que havia de melhor e desconhecido da arte musical de todas as regiões brasileiras num mapeamento jamais visto e igualado.

Em 1994, a gravadora BMG/RCA

lançou o CD É Forró É Xote É Baião – Viva Gonzagão, um projeto de José Milton em homenagem ao Rei. No repertório, encontramos Alceu Valença em Baião, Dominguinhos em Vem Morena, Alcione em Qui Nem Jiló, Chico Buarque em O Xote das Meninas, Geraldo Azevedo em Sabiá, Fagner em Asa Branca, Marinês em Forró no Escuro, Zé Ramalho em Paraíba, Quinteto Violado em Juazeiro e Luiz Gonzaga e Gonzaguinha em A Vida de Viajante. Os destaques ficam para as interpretações geniais de Fagner e Marinês cantando Olha Pro Céu, São João na Roça e Noites Brasileiras, e de Dominguinhos, Sivuca e Oswaldinho do Acordeon para Pagode Russo, Eu Quero Chá e Fuga da África.

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O CD Duetos com Mestre

Lua, de 2001, é uma bela homenagem, que tem os conhecidos diálogos musicais originais de Luiz Gonzaga com Elba Ramalho, Gonzaguinha, Fagner, Gal Costa, Dominguinhos e Milton Nascimento. O inusitado, todavia, fica por conta do acréscimo às gravações originais de Gonzaga – em fonogramas de 1971, 1979, 1981, 1982 e 1985 – das vozes de Chico Buarque, Lenine, Zé Ramalho, Emilinha Borba e até as inesperados presenças de convidados como Jorge Aragão, Falamansa e Chitãozinho e Xororó.

Sivuca Sinfônico é um CD gravado em 2004 no Teatro da UFPE, com a Orquestra Sinfônica do Recife e regência do maestro Osman Giuseppe Gioia. Lançado em 2006 pela Biscoito Fino, o CD tem duas faixas primorosas, que são Rapsódia Gonzagueana e Concerto Sinfônico para Asa Branca, composições e arranjos de Sivuca para temas musicais de Luiz Gonzaga. Sivuca foi um dos mais geniais instrumentistas do país, que deu e tirou da sanfona tudo que ela podia dar como um instrumento musical de grandes possibilidades expressivas.

Herdeiro musical de verdade e de direito do Rei, Dominguinhos fez-lhe um tributo inesquecível em 1997, ao reunir cantores e compositores para o disco Asa Branca – Convidados. São dois volumes dos mais puros baiões, xotes, xaxados e toadas interpretados magistralmente pela voz potente e soberana do grande sanfoneiro que é Dominguinhos. Ele faz reviver algumas coisas esquecidas, mas não menos geniais, do repertório de Gonzaga, como Lorota Boa, Tacacá, De Teresina a São Luís, Não Vendo nem Troco, Forró do Mané Vito, Estrela de Ouro e A morte do Vaqueiro. Vai compartilhando estes e outros clássicos, como Estrada de Canindé, Vozes da Seca, Légua Tirana, A Vida de Viajante, Súplica Cearense, Cintura Fina, em momentos antológicos com Gilberto Gil, Djavan, Marinês, Geraldo Azevedo, Chico Buarque, Fagner, Zé Ramalho, Guadalupe, Alceu Valença e Elba Ramalho nas faixas mais fortes e emocionantes da coletânea. Os arranjos são de Heraldo do Monte, tocados pelos duetos de acordeom de Dominguinhos e Genaro, além dos músicos de primeira, que fazem a cama para os astros Toninho Carrasqueira, Proveta, Toninho Tavares, Zazun, Dio de Araújo, Arismar do Espírito Santo, Zé Antonio, Mário Manga e outros. Temos nos encartes os textos de João Máximo, que nos conta a história de Dominguinhos totalmente entrelaçada com a de Gonzaga desde 1949, quando se conheceram em Garanhuns – Pernambuco. O pequeno sanfoneiro tinha apenas oito anos e o reencontro no Rio de Janeiro, em 1954, quando o Rei lhe dá de presente uma sanfona de oito baixos e sela a amizade e a parceria para sempre.

Em Zé Ramalho Canta Luiz Gonzaga, o paraibano visita o mestre pernambucano em gravações feitas do começo dos anos de 1990 até 2009. São participações de Ramalho em discos em homenagem a Gonzaga, como Asa Branca com Dominguinhos, Duetos com Mestre Lua ou discos do próprio artista, como Nação Nordestina, Academia Brasileira de Música e Estação Brasil e até uma participação inusitada em Arraiá da Xuxa. Embora o projeto tenha muita sinceridade, fica uma vaga impressão de que Ramalho não está muito à vontade no mundo animado do baião, do xote e do xaxado. Uma exceção é quando interpreta Pau de Arara ou quando faz a única gravação inédita para este CD, que é Amanhã eu vou. Nesta canção, passa todo o clima de melancolia e mistério com que está impregnada sua intrigante e importante obra. Na contra capa, Ramalho escreve: A reunião das músicas do mestre Luiz Gonzaga, que eu fui gravando pelos anos que se passaram, é de uma riqueza e verdade contagiantes. É um trabalho de garimpo e carinho, que revela todo o envolvimento que tive com esse artista único – o inventor do baião! – que inspira até hoje, e para sempre, as gerações que procuram um algo misterioso que vem de longe e que dá segurança. A benção, Seu Luiz!

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Nos anos de 1950, Gonzaga descobre em Campina Grande, na Paraíba, uma cantora fundamental para a música do Nordeste. Ela é Marinês que tornaria a matriz vocal de todas as cantoras que vieram da região e Elba Ramalho está entre elas. Gonzaga logo a coroou como Rainha do Xaxado e Marinês gravou discos antológicos, como Outra Vez, de 1962 e outros na CBS, entre os anos 1960 e 1970 – produzidos por seu marido, o grande sanfoneiro Abdias – quando praticamente abandonou a carreira, retornando apenas nos de 1990. Elba Ramalho, em gratidão à inspiração que dela teve para sua carreira e por tudo que Marinês representa para a música brasileira, produziu em 1999 o disco Marinês & Sua Gente – 50 Anos de Forró. Os convidados eram também artistas muito inspirados por ela, como Zé Ramalho, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Chico César, Dominguinhos, Lenine, Moraes Moreira e outros. Para o encarte do CD, Gilberto Gil escreveu: Marinês é uma Grande Mãe nordestina. Entre seus traços característicos, estão a incomensurável força do corpo e da infinita beleza da alma. E tanto mais: a grande Artista, com sua voz de precisa concisão, é a senhora de todos os ritmos; a sustança que verte de seus pés passa pelo metal do triângulo, pelo couro da zabumba, e pelo fole da sanfona, transubstancia na matéria viva que plasma o baião, o xote e o xaxado, cuja história jamais poderia ser contada sem essa “Luiz Gonzaga de saias”. Em 2005, Noaldo Ribeiro produziu o pequeno livro e o CD Marinês Canta a Paraíba, em que ela é acompanhada pela Orquestra Sinfônica da Paraíba, com regência do maestro Luiz Carlos Durier e direção artística e arranjos de seu filho, o sanfoneiro Marcos Faria. No disco, além de algumas composições do repertório de Gonzaga, como Aquarela Nordestina, Saudade de Campina Grande e Meu Cariri, há uma esplêndida gravação de Asa Branca com a voz forte e majestosa da rainha Marinês. Na orelha do livreto, Alceu Valença depõe: Marinês e Sua Gente eu ouvia desde a minha infância e adolescência... Pra mim ela é uma coisa fantástica, a própria voz nordestina, e é fundamental para a cultura do nordeste. Elba Ramalho é, certamente, uma filha dela, real. E quando falo na arte nordestina, eu não tenho esse problema de nordestino, não: o Nordeste é o Brasil! Então ela é fundamental pra música brasileira. Eu já gravei com ela uma música minha e uma música minha ela gravou comigo. E foi um prazer... Eu me senti muito honrado. Ou seja, ela é raiz, ela é cultura, ela é verdade, sobretudo. E a questão da verdade, pra mim é fundamental, porque hoje a arte é uma coisa muito mentirosa: ela obedece a critérios do mercado e da indústria cultural. E eu acho fundamental que existam pessoas como a Marinês, que acredita no que faz, no que diz e no que canta. Eu sou meio assim que nem ela. Como também tive a honra de gravar com Marinês a minha composição Mãe do Mar – no CD Coração de Mãe, produzido e idealizado por Elba Ramalho – sei muito bem de que honra Valença está a falar. Marinês, a descoberta essencial de Gonzaga, é sem dúvida, uma das maiores cantoras e intérpretes da música feita no Brasil.

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Em 2002, Elba Ramalho voltou a colocar Luiz Gonzaga renovado no mundo da

música popular com o CD Canta Luiz. E tudo do jeito só dela, com uma animação brejeira, uma alegria em festa. Escolheu um repertório incomum, onde colocou as canções Calango da Lacraia, Facilita, Aquilo Bom e Cheiro da Carolina junto às gostosas e dançantes Quer ir mais Eu, Vem Morena, Numa Sala de Reboco e Xamego. Em homenagem a Gonzaga, Elba canta, junto à voz macia de Dominguinhos, a canção Canta Luiz, uma música ao Rei em parceria com o Poeta Oliveira. Elba diz no encarte do cd que a voz de Gonzaga: É a voz que aprendi a amar desde criança e até hoje me enleva e me leva ao sertão (...) É tudo tão verdadeiro, tão original, essencial e bom, que o jeito foi trilhar os caminhos da emoção e fazer um disco com músicas que estavam acesas na fogueira do meu coração. Pra que mais?

O show Elba ao Vivo, registro do disco Elba Canta Luiz, de 2002, é dirigido por Gabriel Villela, que disse: Elba é uma profunda e poderosa voz que recria possibilidades e mistérios. Creio que de algum lugar do mundo vêm mulheres assim, elevadas, heróicas, almas de rainha, capazes e dispostas ao domínio sobre todas as coisas da Terra, pois nelas o melhor da Terra tornou-se ideal encarnado. Elba não olha em torno à procura de louvores, é águia, visa o que está longe. Elba não enxerga próximo; vê astros, estrelas e madonas. Elba caminha na obra de Luiz Gonzaga rumo à sua dor suprema, rumo à sua alegria suprema. Eu a admiro, sobretudo quando noto o amor no seu “timbre”. Neste magnífico e energético show, Elba atualiza e renova o repertório de Gonzaga buscando o essencial e o poderoso da obra gonzagueana, como em Asa Branca, e cantando os pássaros de sua fauna, como em Acauã, Assum Preto e Sabiá. O momento mais forte do show é quando Elba interpreta Festa, de Gonzaguinha – que Gonzaga gravou nos anos de 1970 – e incorpora citações de músicas de Chico Science e poemas de João Cabral de Melo Neto e Manoel Bandeira. Por saber-se uma das preferidas e mais queridas intérpretes e amigas do Rei, Elba tem uma intimidade emocionante com seu repertório, que pode ser notada também quando canta e dança Pagode Russo, Numa Sala de Reboco, Vem Morena, Óia Eu Aqui de Novo, Inbalança, e é solene e mágica em Juazeiro, Luar do Sertão e Súplica Cearense. Um destaque é a participação de Dominguinhos, que brilha – como diz Elba – como um arco-íris pela sua atuação com a sanfona na grande agilidade melódica e rítmica, e ainda pela voz suave e bem colocada nas canções. Não deixar de ver e ouvir o choro de Gonzaga e Zé Dantas 13 de Dezembro, na qual Gilberto Gil colocou uma letra genial para homenagear o nascimento de Gonzaga. E ainda a valsa Dúvida, de Gonzaga e Domingos Ramos, para não pensar que ele só fazia muito bem feitos os baiões, as toadas ou os xotes.

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Gilberto Gil, grande discípulo do mestre Gonzaga, ao compor a trilha sonora do filme

Eu Tu Eles de Andrucha Waddington, ambientado no sertão baiano, não poderia deixar de colocar no filme os clássicos interpretados ou compostos por Luiz Gonzaga, como Baião da Penha, Juazeiro, Asa Branca, Qui Nem Jiló, Assum Preto, A volta da Asa Branca, Pau de Arara, Óia Eu Aqui de Novo, todos revisitados com a voz ágil e com o arrojo habitual dos arranjos instrumentais que caracterizam os discos de Gil. Assim, é fundamental ouvir o CD da trilha Eu tu Eles e o CD São João Vivo! – ambos de 2000 – nos quais Gilberto amplia o repertório com suas canções próprias e afins ou outras preciosidades gonzagueanas, como Olha pro Céu, Baião e O xote das Meninas.

Um filme para compreender melhor o alcance da Viva São João! é um documentário de Andrucha Waddington de 2002, muito bem conduzido pela devoção de Gilberto Gil – a Gonzaga e pela festa – pelo interior do Nordeste, em cidades como Barbalha e Juazeiro, no Ceará, Exu, Sairé e Caruaru, em Pernambuco, Amargosa e Cruz das Almas, na Bahia e Campina Grande, na Paraíba. Gil colhe boas narrativas do povo por ocasião das festas juninas, quando Luiz Gonzaga é quase onipresente, também pelas recordações evocadas nos diálogos com Dominguinhos, Marinês, Chiquinha Gonzaga e outros personagens e parentes. Gonzaga também está presente nas canções que Gil interpreta no show filmado na praia de Botafogo, no Rio de Janeiro, e nas incursões pelas tantas cidades interioranas durante as festividades. O documentário, que, até agora, é o mais vibrante e abrangente sobre toda a tradição brasileira de festejar o tempo da colheita – do milho, da mandioca e do feijão – mostra por inteiro a festa que é ao mesmo tempo profana e sagrada. Deixa de mostrar, infelizmente, que as festividades juninas estão a perder sua força de raiz pelas invasões de ritmos e tendências musicais alienígenas – o axé carnavalesco baiano –, por exemplo, que descaracterizam e enfraquecem a tradição.

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obra de Luiz Gonzaga pelo país é O Milagre de Santa Luzia de Sérgio Roizenblit, lançado em 2009. O documentário é uma viagem emocionante pelo desconhecido país dos safoneiros e é conduzido por Dominguinhos, que viajou por todas as regiões do país para conversar com muitos safoneiros e mostrar a força com que este instrumento se espalhou e participa ativamente da cultura brasileira. Dominguinhos dialoga belamente e naturalmente – como é de seu feitio – com sua voz e sanfona com outros grandes músicos devotados ao instrumento, como Arlindo dos Oito Baixos, Camarão, Genaro, Pinto do Acordeon, Dino Rocha, Elias Filho, Renato Borghetti, Thelmo de Lima Freitas, Edson Dutra, Luiz Carlos Borges, o grupo Quartcheto, Gilberto Monteiro, Bagre Fagundes, Mario Zan, Toninho Ferragutti, Gabriel Levy e algumas crias de Gonzaga, como Oswaldinho do Acordeon e Sivuca. O documentário ainda nos reserva o prazer da presença inspiradora de Patativa do Assaré declamando – como sempre de memória – um longo poema de sua autoria em homenagem ao Rei, quando ele partiu em 1989.

Outro documentário importante para o

universo Gonzagueano é O Homem que Engarrafava Nuvens, do pernambucano Lírio Ferreira. O filme de 2010 é sobre a vida e a obra do parceiro e amigo de Gonzaga, o advogado e político cearense – foi deputado federal - que também, por isso, era chamado de Humberto Teixeira, Doutor do Baião. Lançou com Gonzaga, por certo, estrategicamente, o ritmo e a moda do baião para ser assimilada por quase todo país. Produzido e idealizado pela filha de Teixeira, a atriz Denise Dummont – que é também uma ótima condutora da narrativa – o documentário é iluminado quando Gonzaga entra em cena com sua música e simpatia contagiante. O filme faz justiça à obra de Teixeira, um compositor da melhor qualidade até quando compõe letras e músicas como no caso de Kalu, Dono dos Teus Olhos e outras. O documentário se reporta às letras geniais que escreveu para o Rei, Sivuca, Lauro Maia e outros. Um filme precioso e imperdível!

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O DVD Danado de Bom, baseado num programa musical da TV Globo de 1984, com direção artística de Sérgio Bittencourt, é o único registro importante de um show de Luiz Gonzaga. Entremeado por filmagens feitas em sua terra e de outros shows, o documentário torna-se também imperdível pelo encontro dele com o filho no especial de 1981 da TV Globo Gonzaquinha – Luiz Gonzaga do Nascimento Junior quando Gonzaga canta a capela e emocionado Légua Tirana, e juntos, pai e filho, cantam Vida de Viajante. O show Danado de Bom é quase que como uma despedida de Gonzaga dos palcos e nele celebra a sua carreira vitoriosa junto com seus afilhados artísticos como Dominguinhos e Oswaldinho do Acordeon. Os dois músicos fazem uma cama instrumental para receber convidados com os quais Gonzaga sempre muito se identificou como Sivuca, Guadalupe, Fagner, Elba Ramalho e Gonzaguinha. Muito animado e a vontade em casa, o palco, o Rei canta e toca seu repertório clássico enquanto o público delira e dança maravilhas como Pagode Russo e Forró no Escuro. Dominguinhos bota pra derreter tocando, cantando e dançando em Sete Meninas. Dois outros momentos espetaculares são o dialogo musical de Fagner com Gonzaga, e nos extras, a comovente encenação que o Rei faz em frente à janela da casa onde morou seus pais em Exu, contando de quando na década de 1950, faz sua primeira visita a terra natal depois do sucesso no sul.

A Irmãos Vitale, editora de grande parte da obra musical de Luiz Gonzaga com seus parceiros essenciais, como Humberto Teixeira, Zé Dantas, João Silva, Miguel Lima e Hervê Cordovil, editou dois álbuns com partituras de suas canções: Música para Acordeon – Tributo a Luiz Gonzaga, de 2003, com arranjos de Roberto Bueno. O maestro – que é também acordeonista – conta no texto introdutório sobre as origens do instrumento inventado em 1829 por Cyrillus Demiam, austríaco de Viena que, no mesmo ano, registrou a patente de um organeto com cinco botões formando cinco acordes, batizando-o com o nome de acordeon. Conta ainda que, em 19 de junho também de 1829, Sir Charles Wheatstone (em Londres) registrou a patente de um instrumento chamado concertina. São, porém, os três irmãos italianos, Paolo, Settimo e Pasquale, que a partir de 1863 vão aperfeiçoar o instrumento,

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estabelecendo a sua primeira fábrica no mundo na cidade de Castelfidardo. Os primeiros clientes eram músicos ciganos, peregrinos e vendedores ambulantes. Os primeiros acordeons chegam ao Brasil pelas mãos dos migrantes italianos e alemães no começo dos anos de 1900, vendidos para São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Era comum, nos anos de 1950, encontrar nessas capitais até dois instrumentos na mesma casa. Esta edição expõe detalhado método de tocar o instrumento com a Grafia Universal do Acordeon, o quadro de baixos e todas as indicações para os acordes maiores, menores e as sétimas dominante e diminuta. E ainda as partituras para clássicos do repertório de Gonzaga, como Baião, Asa Branca, Assum Preto, A vida de Viajante, Juazeiro, Boiadeiro, Cintura Fina, Dezessete e Setecentos, Olha pro Céu, Qui Nem Jiló, São João na Roça e Xote das Meninas.

A outra edição é O Melhor de Luiz Gonzaga – Melodias e letras cifradas para guitarra, violão e teclados, de 2000, organizado por Roberto Moura, com transcrição musical de Luiz Alfredo. A apresentação é do próprio Gonzaga, que nos conta: Tomei conhecimento da sanfona quase desde que nasci. Meu pai era mestre, técnico afinador de sanfona e eu fui desenvolvendo o ouvido vendo-o tirar o som. Mais tarde, virei “sanfoneiro de prova” de Januário, que me consultava para ter certeza se o instrumento estava afinado ou não. E, nesse tempo, eu já pensava; “Um dia eu vou ter uma sanfona melhor do que estas”. Comecei a tocar quando eu devia ter uns 9 a 10 anos, para treinar. Mas também tinha que trabalhar, porque eu era o segundo filho de nove filhos e o casal era pobre, morava numa casa de taipa. Meu trabalho era ir para o mato junto com a mãe Santana e a irmã mais velha, a Geni, tirar fibra de corda. No sábado, na feira de Exu, mamãe e Geni vendiam as cordas e eu tomava conta do jegue. Quando eu tinha uns 12 anos, já me convidavam para tocar nos sambas. É bom lembrar que naquele tempo chamavam “samba” mesmo; “forró” é agora. E Gonzaga relata que foi um coronel local quem financiou na época sua primeira sanfona de oito baixos, que ele pagou tudinho e ligeiro ao propiciante: Logo eu já estava desasnando e ia batendo até meu pai nos preços, pois eu tocava mais moderno e era mais apreciado. A edição vai desfilando canções como ABC do Sertão, A Triste Partida, A Volta da Asa Branca, Baião da Garoa, Derramaro o Gai, Forró no Escuro, Noites Brasileiras, No Ceará Não Tem Disso Não, O Cheiro da Carolina, Paraíba, Pau de Arara, Respeita Januário, Riacho do Navio, Sabiá, Xamego e muitos dos outros sucessos do Rei editados no álbum já comentado. 341


Ao escritor Sinval Sá coube a honra de ouvir do próprio Gonzaga toda a sua curiosa e emocionante saga, que foi relatada com fidelidade no livro O Sanfoneiro do Riacho da Brigida – Vida e Andanças de Luiz Gonzaga. Lançado em 1966, o livro é uma espécie de biografia autorizada que o próprio escritor vendia de mão em mão ou o próprio Gonzaga os distribuía com prazer – e uma certa vaidade – em suas viagens infindas de shows pelo Brasil. Em depoimento a Sinval, Gonzaga disse que, desde moço: Sonhava, num quase delírio, com uma noite de glória, com um terno novo de brim, alpercatas pelas ruas, para que me vissem bem trajado, com a sanfona dependurada no pescoço, todo mundo admirado. E ganharia fama. Seria chamado pra outros lugares, até para o Crato. E não é que o sonho do cabra se realizou até para além da Chapada do Araripe! O escritor Eduardo Campos na apresentação do livro nos chama a atenção para outros Tantos episódios que melhor estarão dimensionados no jeitão que tem Luiz Gonzaga de dizer as coisas. Ele fala um brasileiro-cearense, em que os repentes, os modismos enchem as frases de saborosa musicalidade. O livro, mais do que nenhum outro sobre sua obra, soube dar esta dimensão de musicalidade na fala e no cantar e é a base narrativa de tudo que se escreverá sobre a vida e a obra de Gonzaga.

Precisou que uma francesa de nome Dominique Dreyfus – formada na Sorbonne, que dirigiu a edição francesa da revista Rolling Stones e foi repórter cultural no jornal Libération – para escrever a mais importante biografia do Rei no livro Vida do Viajante: A Saga de Luiz Gonzaga. Dominique começou sua intimidade com o sertão de Pernambuco quando morou em Garanhuns dos três aos treze anos e, logicamente, teve uma relação íntima com a música de Gonzaga. Este lhe abriu o coração e seu arquivo de memória para que Dominique fizesse um livro fundamental para compreender e amar sua trajetória. Com orelha escrita pelo crítico de música Tárik de Souza, o potente livro ainda tem um prefácio precioso de Gilberto Gil, que disse: Este livro escrito por Dominique Dreyfus, uma jornalista francesa com profunda vivência das coisas do Brasil e da cultura nordestina,

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vem fazer justiça à vastidão e riqueza da paisagem humana gonzagueana, finalmente retratada na sua variedade e tonalidades existenciais, topografias morais, microclimas afetivos – com suas serras amenas e seus rasos de cactus e cipoais ameaçadores. Paisagem ora representada por uma estrada plana na campina aberta do amor incondicional ao povo, ora por uma gruta insondável e misteriosa no interior de um lajedo da alma. Paisagem, enfim, iluminada, aqui, com a luz ofuscante e inebriante do canto de peito aberto, ou obscurecida, ali, pela fumaça sufocante da fogueira das vaidades e ambições. E o livro ainda vai mais fundo do que poderia dizer a inspirada poética de Gil, porque vai fundo na inestimável ética e estética essenciais da vida e da obra de Gonzaga.

Gonzaguinha e Gonzagão – Uma história brasileira de Regina Echeverria – editado em 2006 – é um livro que não se pode deixar de ler quando se quer entender duas vidas que, por mais antagônicas que fossem, eram amalgamadas não só pelo parentesco. Ambas representam muito da arte e dos sentimentos que revelam ao Brasil um outro país desconhecido; um revelado a partir dos anos de 1940 e outro, a partir dos anos de 1970. A autora soube nos encantar ao contar a vida de ambos de forma precisa e correta. Junta as duas vidas para nos presentear com estórias curiosas e desveladoras, para compreender as personalidades ímpares dos dois artistas, que, apesar das divergências políticas e ideológicas, estavam ligados por algo maior: os laços familiares, a música e a identificação com a cultura popular de uma região. O que faltava era urdir o duro resgate dos afetos de ambos os lados. Regina escreveu que, para Gonzaguinha, Gonzaga era como Uma sombra presente a se alimentar de mistério, dúvida e incerteza... e isso é o que fez ... florescer a personalidade de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior. Essa sombra atendia pelo nome de “pai”. Ironia do destino, ele carregou seu nome pelos 45 anos que viveu e, para se diferenciar de quem o batizou, ganhou a alcunha de Gonzaguinha. De Gonzagão, herdou o nome. Mas o amor foi preciso arrancar das entranhas do famoso Rei do Baião. Não só o amor, mas ainda o respeito. O livro revela ainda que, apesar de ter sido pouco o tempo de amor vivido entre os dois, enquanto durou, foi intenso e verdadeiro. No livro, há também a melhor discografia já traçada da obra de Gonzaga – elaborada pelo seu mais dedicado pesquisador, o paraibano Paulo Vanderley Tomaz, fundamental para qualquer pesquisador que precisar saber das gravações realizadas de 1941 a 1963 em 78 rpm e dos LPs de 1961 até 1989. Mesmo que nos anos de 1950, o formato LP já era comercialmente consagrado, Gonzaga continuou gravando em 78 rpm, porque seu público nordestino ainda não tinha condições de adquirir o vinil de 33 rpm.

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Em 1952, o poeta-vaqueiro Zepraxedi lançou Luiz Gonzaga e Outras Poesias, com prefácio de Câmara Cascudo, que escreve: O que ele disser é diretamente nascido nas melhores águas e da mais pura das fontes populares. Está impregnado no sentido, da essência, do sangue da tradição popularesca. Se Zepraxedi, o poeta vaqueiro, não assinar seus versos, esses versos participam da poética milagrosa dos sertões. Cascudo é profético, pois os versos iniciais do poema sobre Gonzaga que lhe dá voz, se incorporou ao linguajar popular e foi quem melhor traduziu o aparecimento do mito do Rei do Baião no mundo:

Meu nome é Luiz Gonzaga / Não sei se sou fraco ou forte / Só sei que graças a Deus / Té pra nascê tive sorte / Apôs nasci em Pernambuco / Fanmôso Leão do Norte. / Nas terra de Nôvo Exu / Da fazenda Caiçara / Im novecentos e dôze / viu o mundo a minha cara. / No dia de Santa Luzia / Purisso é qui sô Luiz / No mês qui Cristo nasceu / Purisso é qui sô feliz.

Gildson Oliveira ouve muita gente boa e chegada do

Rei do Baião para escrever seu livro-reportagem Luiz Gonzaga – O matuto que Conquistou o Mundo, editado em 1989. Entre os depoimentos, destaca-se o da grande cantora paraibana Marinês – lançada por Gonzaga nos anos 50 como Rainha do Xaxado – ao falar de sua amizade com ele: Muito bonita, muito pura, assim de eu chegar, olhar para ele e ver meu pai, ver meu irmão, ver meu avô, ver meu ídolo. Comecei cantando por causa de Luiz Gonzaga, e ele exercia sobre mim um poder extraordinário, de forma que bastava olhar para ele e o meu coração estremecia. Além das muitas e raras revelações que o livro nos traz, há dois belos poemas, um de Patativa do Assaré, É Triste a Separação, e outro, Mestre Lua, também do genial Oliveira das Panelas. Ficamos com o de Patativa: Tudo escutava animado / alegre entusiasmado / quando Luiz dedilhava / seu precioso teclado / nosso povo nordestino / homem, mulher e menino / não se lembrava de nada / não se lembrava da praga / nem de fome nem de peste / quando ouvia no Nordeste / a voz de Luiz Gonzaga / No seu requebro gaiato / do seu grito de vaqueiro / a gente via o retrato / do Nordeste brasileiro / Do cão ouvia o latido / da mansa vaca o mugido / e a gaita do velho touro / com os festejos comuns / do sertão de Inhamuns / terra do Chapéu de Couro / Sua sanfona saudosa / com quem vivia abraçado / era santa milagrosa / ressuscitando o passado / até mesmo a criatura / sisuda, de cara dura / e de cruel coração / ficava alegre ditosa / ouvindo a voz milagrosa / do grande Rei do Baião.

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O paraibano Assis Ângelo, que já

havia lançado em 1990 o livro Eu vou contar pra vocês, sobre vida e obra de Luiz Gonzaga, editou em 2006 o Dicionário Gonzagueano, de A a Z. O livro, que se mostra didático e eficaz para entender o fenômeno do Rei do Baião na cultura brasileira, ainda tem estórias maravilhosas contadas por Dominguinhos, Sivuca, Carmélia Alves – ela, Gonzaga coroou Rainha do Baião, mas que confessa não ter aprendido a dançar o ritmo – Oswaldinho do Acordeon, Anastácia e Hermeto Pascoal, que lamenta nunca ter conhecido pessoalmente a Gonzaga. Pascoal diz que ganhou dele um presente e um recado: Já que eu não vejo o Hermeto, vou deixar um chapéu de couro pr’aquele cabra da peste. O livro revela também preciosas imagens iconográficas e nos lembra um depoimento de Gonzaga em sua celebre entrevista ao Pasquim em 1971: Eu já toquei em assustado. Fui sanfoneiro, rei do baião, quase sumi na poeira; agora sou lúdico, autêntico, virei um tal de folclore.

A Editora Martin Claret lançou em 1990, na Coleção Vozes do Brasil –

coordenada pelo compositor e jornalista Carlos Rennó – o livro Luiz Gonzaga, do pesquisador e jornalista Luiz Chagas. O livro é composto de Um Estudo, Perfil Biográfico e Cronologia, escritos por Chagas, que são fundamentais para compreender a obra gonzagueana. Isto sem falar em Gonzaga Por Ele Mesmo e Na Visão do Mundo, com depoimentos de artistas e poetas, como Caetano Veloso, Elba Ramalho, Nara Leão, Gilberto Gil, Torquato Neto, Fagner, Dominguinhos, Gonzaguinha, Oswaldinho do Acordeon, Capinam, Guerra Peixe e de críticos, pesquisadores e jornalistas como José Ramos Tinhorão, Tárik de Souza, Miguel de Almeida, Ana Maria Bahiana, Eduardo Martins, João Máximo, Câmara Cascudo, Maurício Kubrusly e Wladimir Soares. Há ainda uma parte só de curiosidades sobre Gonzaga e a sua discografia básica. Chagas diz que A obra do cantor, compositor e sanfoneiro, que já influenciou três gerações de músicos brasileiros, colocou o Nordeste no cenário principal da música popular brasileira moderna. Diante de uma figura da dimensão de Luiz Gonzaga do Nascimento, o velho e bom “Lua”, apelido adquirido na infância e recuperado por Paulo Gracindo, na Rádio Nacional, chamá-lo de “rei do baião” apenas, é minimizar-lhe a importância. O cantador e sanfoneiro de Exu, Pernambuco, reinou em muitos outros territórios, os quais desbravou pessoalmente, demarcando-lhes as fronteiras, instituindo a língua oficial de cada um. Caetano Veloso depõe: Ele mereceu dizer que mereceu sua coroa de rei e que sempre a honrou. Eu o adoro desde os meus oito anos. Ele foi também a marca forte da visão nordestina das formas e dos sentimentos. Seu timbre era o da dor nordestina, e o design sonoro ‘sanfona, zabumba, triângulo, que ele criou, foi exemplo da lucidez nordestina que, ainda hoje, fascina um David Byrne.

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Três teses acadêmicas editadas em livros são fundamentais para compreender o fenômeno cultural gonzagueano. Baião dos Dois: a música de Zé Dantas e Luiz Gonzaga no seu contexto de produção e sua atualização na década de 1970, de Mundicarmo Ferretti, publicada em 1988. O livro é o resultado de sua dissertação de mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na qual explica como perceber a música dos dois parceiros como uma forma de integração da cultura popular nordestina à comunicação de massa (contribuindo para) o fortalecimento do gênero nordestino na música popular de massa (...) e afirmação da cultura nacional. Luiz Gonzaga: a Síntese Poética e Musical do Sertão da cearense Elba Braga Ramalho, lançado em 2000 pela Editora Terceira Margem, é o resultado de sua tese de doutorado em musicologia pela Universidade de Liverpool na Inglaterra. Com certeza, este é um dos trabalhos mais consistentes feitos na academia para mostrar não só o que Gonzaga representou como figura emblemática e influente culturalmente, mas por sua intrínseca contribuição musical ao panorama da MPB. São fundamentais os capítulos em que a autora traça sua Visão Panorâmica da Música Popular Brasileira, a Biografia e as Razões da Popularidade de Luiz Gonzaga, as letras selecionadas e o Guia para a Discografia de Luiz Gonzaga. O capítulo O Repertório de Luiz Gonzaga, em que se destaca a Análise de Asa Branca, é o que podemos usufruir por privilégio e por inteiro neste livro O Rei e o Baião. O Sertão em Movimento – a dinâmica da produção cultural de Sulamita Vieira, lançado em 2000 pela Editora Annablume, é mais do que uma brilhante análise de sociologia cultural. O livro esclarece com profundo rigor, sem cair na mera erudição acadêmica, qual é o sertão de Gonzaga e o que ele faz para colocar a sua região na pauta musical do país. A contra capa do livro sintetiza a intenção: O Sertão em Movimento – a dinâmica de produção cultural analisa, a partir do processo de construção do baião, a complexidade cultural brasileira desde os anos 1920, consagra-se como veículo de massas e passa a difundir novos artistas e gêneros musicais. Mas este é apenas uma ponta do iceberg cultural que estava emergindo neste período. Sulamita Vieira mostra como se ampliou nestes anos o horizonte cultural no Brasil, brindando o leitor com um abrangente e detalhado estudo sobre a música de Luiz Gonzaga. Este livro O Rei e o Baião também tem o privilégio de contar com uma síntese feita especialmente pela autora.

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Luiz Gonzaga na Literatura de Cordel é o livro lançado em 1991 e organizado pelo poeta Pedro Bandeira, que também escreveu o cordel O Rei Chegando no Céu. Outros autores são notáveis nesta importante coletânea que revela à admiração e o sentimento puro dos poetas de cordéis registrando a perda de Gonzaga. Temos, por exemplo, Vida e Morte de Luiz Gonzaga, escrito por João Batista Ferreira Lima e Expedito F. Silva; Exú Chora a Perda de seu Rei Luiz Gonzaga de Vicente Antonio Batista, Festa no Céu e o Encontro de Luiz Gonzaga com Januário no Céu, de Moacir Carneiro; Eu Vi São Pedro Dançando no Forró de Seu-Luiz, de Zé Paraíba; A Visita de Luiz Gonzaga ao Padre Cícero Romão, de Lucas Evangelista; A Chegada de Luiz Gonzaga no Céu, de Otávio Menezes. E ainda são muitos os outros autores, que cantam e louvam, por meio dos versos rimados, o que eles chamam de seu Herói Popular.

Em 2002, a Editora Ibrasa publicou o livro Luiz Gonzaga – A

música como expressão do Nordeste de José Farias dos Santos, uma notável dissertação de mestrado para a PUC de SP. A orelha do livro o define como Um trabalho que trata um pouco da vida do artista, mais, bem mais, de sua obra, principalmente da parte política ainda pouco comentada. Fala do fenômeno Luiz Gonzaga – Rei do Baião, da situação de penúria até hoje vivida por boa parte dos nordestinos e da questão política brasileira dos anos 50, passando por Vargas, Juscelino e todo período da ditadura militar. Apresenta a música do cantor e compositor Luiz Gonzaga e sua relação com a cultura, a sociedade e a política brasileira. Aponta, ainda, a importância da Música Popular Brasileira com uma postura crítica da realidade – como possibilitadora de compreensão das etapas históricas e das situações sócio-regionais do país.

Em 2009, o radialista, professor e ator José Mário Austregésilo,

lançou, pela Comunigraf Editora, o livro Luiz Gonzaga – O Homem, sua Terra e sua Luta, que é uma versão menos acadêmica de sua dissertação de mestrado pela UFPE, A Oralidade e Imagética em Luiz Gonzaga: uma análise de conteúdo da obra musical do rei do baião. O autor justifica a escolha pelo coração, muito mais do que pela paixão acadêmica, e diz que elegeu Gonzaga: Pela expressão nacional que obteve, pela presença/influência que continua tendo, tornando-se uma matriz da cultura popular, e pelo profundo enraizamento com seu povo, o qual representou de forma significativa, a análise da obra de Luiz Gonzaga tornou-se imprescindível para o estudo da comunicação, principalmente nas áreas de mídia e cultura. O livro se enriquece com as extraordinárias xilogravuras do gravador pernambucano J. Miguel.

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Os folhetos da literatura de cordel declamados e vendidos em feiras no Nordeste foram os grandes responsáveis pela divulgação da obra e da vida de Luiz Gonzaga, elevando-o ao plano mítico de um herói da cultural popular. O livro Luiz Gonzaga na Literatura de Cordel de Pedro Bandeira, aqui resenhado na pagina anterior, expõe a ampla dimensão que povoa ainda o imaginário popular através dos versos inspirados de sábios poetas do povo que Gonzaga tanto respeitava. Antonio Vicelmo, na apresentação do livro citado, observa que: A imagem messiânica de Luiz Gonzaga, arrastando a sua sanfona branca no palco das nossas lembranças, continua presente, alimentando a saudade de todos nós, que descobrimos com ele a alma nordestina. Aquela sanfona branca, aquele chapéu de couro compõem o caleidoscópio da nossa imaginação. A voz sonora, afinada ecoa no infinito como o aboio do vaqueiro quebra o silêncio da caatinga. As capas dos cordéis vão da utilização de várias técnicas de expressão como a xilogravura, o desenho e a fotografia, cumprindo a velha tradição gráfica das antigas às novas oficinas de impressão. Redimensionam os mitos em encontros quase impossíveis, como o de Gonzaga com Raul Seixas, querem compreender a vida e alargar a obra. Assim o fazem também os poetas Evaristo Geraldo e Antonio Queiroz de França, que escreveram a quatro mãos o cordel Vinte Anos da Partida de Luiz Gonzaga O Rei do Baião, e, no final do livreto, sintetizam a dimensão cultural e mítica do Rei: Aqui busquei exaltar os feitos e a trajetória do grande Luiz Gonzaga homem que merece glória porque soube conquistar o nosso povo cantar e assim entro pra história.

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O Coral da Universidade Federal do Ceará realizou

em 2006 o espetáculo Gonzagas – Quando a atitude de viver é uma extensão do coração..., levado a cena no Teatro do Centro Cultural Dragão do Mar em Fortaleza e gravado em DVD com direção geral e regência dos maestros Erwim Schrader e Elvis Matos. No encarte, a proposta: Em “Gonzagas”, o Coral da UFC vislumbra a possibilidade de, em um espetáculo inteiramente alicerçado em vinte músicas de Luiz Gonzaga e Gonzaguinha, arranjadas para coral, abordar a questão da identidade e da subjetividade de homens e mulheres, principalmente nordestinos, que no conturbado ritmo da cotidianidade alienam-se de si mesmos – de seus desejos, sonhos e aspirações mais íntimas – em busca da satisfação das necessidades mais imediatas. O espetáculo retoma parcialmente o tema do êxodo – a caminhada dos “sem chuva”. Em “Gonzagas”, o Coral da UFC enfoca o desejo do retorno, o sonho com a origem amputada e, simultaneamente, enfrentará o desafio de discutir a questão da identidade dos que vivem nos grandes centros. Discutir esteticamente a questão do deslocamento geográfico e suas implicações culturais é o que se propõe a fazer o Coral da UFC que, neste procedimento, busca encontrar a sua própria identidade subjetiva diante da objetiva missão de cantar o Brasil. Gonzagas, que é uma criação coletiva em que o coral dramatiza as canções em criativas releituras dos dois compositores, revela também que não são grandes as distâncias musicais e poéticas entre pai e filho.

Dois CDs são fundamentais para atualizar para as linguagens musicais contemporâneas a obra de Luiz Gonzaga e de seus parceiros. Forró in the Dark, gravado em 2006, com o grupo do mesmo nome liderado pelo músico zabumbeiro Mauro Refosco, tem a participação especial do escocês David Byrne cantando Asa Branca, da brasileira Bebel Gilberto cantando Wandering Swaltow – não mais do que a popular Juazeiro – e da cantora japonesa Miho Hatori interpretando Paraíba em sua língua natal. Baião de Viramundo – Tributo a Luiz Gonzaga – sem data, mas lançado nesta década de 2000 – radicaliza ainda nas interpretações geniais de Black Alien, Speed Freaks e Rica Amabis em Vozes da Seca, Mestre Ambrósio em Cacimba Nova, DJ Dolores em A Dança da Moda, Otto em Orélia, Nação Zumbi em O Fole Roncou, Mundo Livre s/a em Dezessete e Setecentos, Skeik Tosado em Assum Preto, Cascabulho em De Juazeiro a Crato, Naná Vasconcelos e João Carlos em Juazeiro, Stela Campos em Sabiá e Nouvelle Cuisine em Acauã, entre outros. Cada música recebe ótimos comentários da arte da danação de escrevinhar, em que é mestre o jornalista Xico Sá.

Luiz Gonzaga – A Luz dos Sertões é um documentário de 1999, com roteiro e direção de Rose Maria, que mostra sua vida e sua obra e a influência de Gonzaga sobre artistas que nos dão depoimentos contundentes e esclarecedores como o do seu irmão Zé Gonzaga, o de Dominguinhos e de Gilberto Gil. As vozes de Gonzaga e Gonzaguinha criam ambiências emocionadas para as imagens que sintetizam o pensamento gonzagueano e fazem do documentário, um dos raros já produzidos, um belo momento de reflexão sobre o que Luiz iluminou além do sertão.

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Duas edições paradidáticas são muito importantes para divulgação da obra de Gonzaga no

sistema educacional: Luiz Gonzaga de Luís Pimentel - coleção Mestres da Música no Brasil – da Editora Moderna, lançado em 2007. A edição tem um Suplemento Didático elaborado pela historiadora e pesquisadora de música brasileira, Maria Clara Wasserman, que instrui e sugere ao professor dentro de um projeto pedagógico, como adaptar o conteúdo ao ensino fundamental para a área de arte na educação. Em 1998, a Editora Dimensão lançou na coleção Arte e Vida o livro para crianças Luiz Lua, escrito por Lúcilia Garcez e ilustrado pelo extraordinário artista Jô Oliveira.

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Duas entrevistas importantes para compreender melhor o pensamento de Gonzaga foram editadas nos anos de 1970. Uma delas pela revista Bondinho – feita em 1972 – com dois ótimos depoimentos do poeta baiano Capinam. Em um deles, explica ponto por ponto o por quê da importância de Gonzaga no panorama da MPB, e no texto Sacumé?. Capinam explicita o que foi o show de Gonzaga – para o qual fez o roteiro – no Teatro Tereza Raquel em 1972. O show era Luiz Gonzaga Volta pra Curtir que fez o Rei ressurgir e ser realmente curtido e descoberto pela moçada da época. A entrevista Ó eu aqui de novo xaxando pode ser encontrada na publicação Entrevistas Bondinho, editada em 2008 por Beco do Azougue Editorial e organizada por Miguel Jost e Sérgio Cohn. Gonzaga revela modéstia no depoimento: Prestando bem atenção na sanfona que eu toco, você vai chegar à conclusão de que eu sou mais um ritmista do que um solista. Que eu criei na sanfona a minha maneira de cantar, uma maneira de me acompanhar sem que a sanfona encubra a voz. Então, ter a sanfona amarrada ali, como se tivesse um pandeiro, um violão, uma bateria, um triângulo. Então, tá presa ali, só fazendo cadência pra mim cantar. Então, sou um ritmista.

Outra preciosa entrevista com Gonzaga – que teve grande repercussão naquela época – foi publicada no jornal O Pasquim no ano de 1971. A entrevista pode ser encontrada na publicação O Som do Pasquim, em sua primeira edição, pela Editora Codecri em 1976 e na reedição de 2009 da Agir Editora. Nesta entrevista, Gonzaga conta como assumiu a sua tradicional vestimenta: Naquela época, eu percebia que todo cantor regional, todo o cantor estrangeiro tinha uma característica própria. O gaúcho, aquela espora, bombacha, chapelão. O caipira tinha lá o seu chapéu de palha. O carioca tinha a famosa camisa listrada. O chapéu-coco. Os americanos, os cowboys. Quando Pedro Raimundo veio pra cá vestido até os dentes de gaúcho, eu me senti nu. Eu digo: “Por que o Nordeste não tem a sua característica? Eu tenho que criar um troço.” Só pode ser Lampião. Apanhei por causa de Lampião. Eu digo: “Eu vou usar o chapéu de Lampião.” Aí escrevi para mamãe pedindo um chapéu de cangaceiro com toda urgência. No primeiro portador que ela teve, ela mandou o chapéu. Rapaz, quando eu botei o pé no palco da Rádio Nacional só faltaram me matar de raiva. “Como é que você, um mulato formidável, um artista fabuloso, se passa por um negócio desse? Reviver o cangaço, cangaceiros, facínoras, ladrões, saqueadores?” Eu disse: “Não se trata disso. É outra coisa.” Eu agora sou um cangaceiro musical. Aí figuei com esta característica.

Em 1972, o jornal O Pasquim, lançou a segunda

edição do Disco de Bolso, produzido por Sérgio Ricardo em que Caetano Veloso canta A Volta da Asa Branca, como uma canção da volta do exílio londrino. No encarte, uma entrevista de Veloso falando da importância de Gonzaga em sua vida e ainda um belo desenho de Ziraldo mostrando Luiz como a própria lua do sertão sertanejo.

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Quem quiser ir fundo pela internet na vida e na obra do Rei precisa consultar o site

www.luizluagonzaga.com.br. Criado e mantido pelo paraibano Paulo Vanderley Tomaz – que se denomina “Cabra do Sítio” – que viaja incansavelmente pelo Nordeste à procura de tudo que estiver relacionado com a música de Gonzaga, seus traços comportamentais, seus parceiros e o que envolve o imaginário popular em torno do Rei. Se quiser estar por fora de Gonzaga, não entre no sítio do cabra da peste do Tomaz, pois é capaz do caboclo ficar animado e não sair mais.

Quatro instituições são fundamentais para se conhecer melhor a obra do

Rei do Baião: o Museu do Gonzagão em Exu, Pernambuco, que reúne o seu mais importante acervo iconográfico. O museu reúne fotos, recortes de jornais, documentos, instrumentos e roupas, discos, livros, troféus e títulos deixados pelo próprio Gonzaga para compor um espaço museológico que sonhava instalar em sua terra natal, no Parque Asa Branca, idealizado por Gonzaga, mas realizado por Gonzaguinha. Museu do Forró Luiz Gonzaga em Caruaru, Pernambuco, com um acervo de objetos, fotos,documentos, discos, livros e instrumentos. Memorial Luiz Gonzaga em Recife (www.recife.pe.gov.br/mlg), que não possui objetos originais do Rei, mas é um importante centro de memória e pesquisa que documenta e divulga de forma exemplar, por meio de uma rica iconografia, a obra musical de Gonzaga, principalmente para uso de professores e alunos da rede de ensino. Entre os principais eventos educacionais, o Memorial promove as Mostras de Curtas de Animação Luiz Gonzaga, produzidos por alunos da Rede Municipal de Ensino do Recife, dos quais já foram editados oito DVDs que documentam a produção destas mostras. Museu Fonográfico Luiz Gonzaga em Campina Grande, na Paraíba, criado pelo colecionador José Nobre, com seu rico acervo de cinco mil discos relacionados a Luiz Gonzaga ou artistas por ele influenciados e ainda instrumentos e roupas, fotos, livros e outras raridades gonzagueanas.

Em 6 de setembro de 2005, o Presidente da República Luiz Inácio da Silva sancionou a Lei nº 11.176, instituindo o Dia Nacional do Forró em 13 de dezembro, dia em que nasceu Luiz Gonzaga.

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Muitos foram os artistas

DESENHO –

Marcus Wagner

Fascículo nº 10 da coleção Folha Raízes da MPB

que tiveram sua imaginação inspirada pela figura mitológica de Luiz Gonzaga: os desenhistas Ziraldo, Elifas Andreato, Marcus Wagner, Jô Oliveira, Juarez Carvalho, Richárdi, Ique, Aroeira, Ciça Fittipaldi e outros, que ilustraram discos, livros e fascículos sobre Gonzaga; os gravadores, como João Pedro do Juazeiro, José Lourenço, Francisco de Almeida, Arievaldo Viana e Elias Santos, que fizeram xilogravuras inéditas para este livro; o álbum gravado por Francorli e Carmem há vinte anos sobre o nascimento, vida e morte de Gonzaga ou os inúmeros xilógrafos que estamparam as capas dos cordéis sobre o Rei que, em parte, são aqui reproduzidos; os escultores que, em diversas técnicas de expressão, como madeira, durepoxi e cimento armado, deram sua original visão gonzaguena, como Din, Demóstenes F, Cícero Santana Arraes, Frank Castro, J. P. Passos e Caxiado, que conceberam obras privadas e públicas para imortalizar a figura do Rei do Baião. Muitas esculturas de Gonzaga, em diversas técnicas são encontradas pelas estradas e entradas, praças e avenidas de cidades nordestinas eternizando sua presença e ressaltando sua importância para as comunidades locais. Em todas essas obras, sejam desenhos, gravuras ou esculturas, algumas na tênue fronteira entre arte e artesanato, o que figura de mais importante é a força simbólica falando claro que a arte de Luiz Gonzaga deixou um legado inspirador inestimável para o imaginário do povo nordestino.

ESCULTURA EM MADEIRA – Foto: André Santangelo

Din

PINTURA –

Elifas Andreato

Fascículo da coleção Nova História da MPB – Abril Cultural

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PINTURA –

Aroeira

Encarte do CD Duetos com Mestre Lua – Gravadora BMG

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XILOGRAVURA

Elias Santos

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PINTURA SOBRE PAPEL

Ciça Fittipaldi

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Foi numa noite igual a esta Que tu me deste o coração O céu estava assim em festa Porque era noite de São João Havia balões no ar Xote, baião no salão E no terreiro, o teu olhar Que incendiou Meu coraçãor

Luiz Gonzaga e José Fernandes

XILOGRAVURA

Arievaldo Viana

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ESCULTURA EM MADEIRA

Cícero Santana Arraes Fotos: André Santangelo

ESCULTURA EM MADEIRA

Frank Castro

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ESCULTURA EM DUREPOXI

Demóstenes F. Fotos: André Santangelo

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Altar para Luiz Gonzaga Bené Fonteles - 2007

ÓLEO SOBRE TELA Murilo , 1990, com interferência da imagem mais popular de São João Batista.

Salete Diniz Clínio Moura ESCULTURA EM DUREPOXI Demóstenes F.

ESCULTURA EM MADEIRA ESCULTURA EM BARRO Fotos: Mila Petrillo

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ESCULTURA EM BRONZE

J. P. Passos Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas Feira de São Cristovão/RJ

ESCULTURA EM CIMENTO ARMADO

Caxiado Museu do Forró Luiz Gonzaga – Caruaru/PE Foto: Paulo Vanderley Tomaz

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Uma homenagem aos parceiros de Luiz Gonzaga:

Miguel Lima, Humberto Teixeira, Zé Dantas, Guio de Moraes, Hervê Cordovil, José Marcolino, Nelson Barbalho, José Clementino, Helena Gonzaga, João Silva, Onildo Almeida, Luiz Gonzaga Jr, Nelson Valença, Janduhy Finizola, Luiz Ramalho, Severino Ramos, Orlando Silveira, Lourival Passos, Beduíno, Jeová Portela, Nestor de Holanda, Victor Simon, Luiz Queiroga, Aguinaldo Batista, David Nasser, Julinho, José Jatahy, C. Barroso, Carmelina, Francisco Anísio, Carlos Barroso, A. Nogueira, C. Albuquerque, Joquinha, Hugo Costa, Solange Veras, Aguinaldo Silva, J. de Castro, M. Rossi, Antônio Almeida, Amâncio Cardoso, Jorge de Altinho, Raimundo Granjeiro, Waldemar Gomes, G. Chiaroni, Otacílio Batista, Dalton Vogeler, Carlos Diniz, V. de Abreu, XILOGRAVURA – Wesley dos Santos / 12 anos Projeto Gravura de Inverno (SE)

Zé Ferreira, Gothardo Lemos, José Fernandes, Assis Valente, Sylvio de Araújo, Maranguape, Audizio Brizeno, Luiz Bandeira, Marisa Coelho, Zé Mocó, R. G. Amorim, Dario de Souza, M. Valentim, Zé Renato, Jota Ferreira, Geraldo Nascimento, Francisco Reis e outros...

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Indicamos 99 músicas essenciais do repertório de Luiz Gonzaga

Vira e Mexe • No Meu Pé de Serra • Asa Branca • Baião • Vem, Morena • Juazeiro • Légua Tirana • Boiadeiro • Cintura Fina • No Ceará Não Tem Disso Não • A Volta da Asa Branca • Qui Nem Jiló • Assum Preto • Respeita Januário • Paraíba • A Dança da Moda • Estrada de Canindé • Xanduzinha • Sabiá • Olha Pro Céu • Acauã • Pau de Arara • Baião da Garoa • Imbalança • São João na Roça • O Xote das Meninas • ABC do Sertão • Vozes da Seca • Noites Brasileiras • Riacho do Navio • Forró no Escuro • A Feira de Caruaru • A Morte do Vaqueiro • A Triste Partida • Sanfona do Povo • Oia Eu Aqui de Novo • Apologia ao Jumento • A Vida do Viajante • Depois da Derradeira • Danado de Bom • Súplica Cearense • Pagode Russo • Sanfoninha Choradeira • Forró nº 1 • Nem se Despediu de Mim • Cavalo Crioulo • Baião da Penha • O Bom Improvisador • O Mangangá • De Teresina a São Luís • Numa Sala de Reboco • Estrela de Ouro • Forró do Mané Vito • Lorota Boa • Algodão • O Cheiro da Carolina • Cigarro de Paia • Vaca Estrela e Boi Fubá • Pássaro Carão • Xamego • Derramaro o Gai • Pobre Sanfoneiro • Amanhã Eu Vou • Mangaratiba • Farinhada • Samarica Parteira • A Letra I • Aboio Apaixonado • Ave Maria Sertaneja • Festa • Meu Pajeú • O Fole Roncou • Fogo-pagou • Baião de São Sebastião • Cantarino • Cidadão de Caruaru • Só Xote • Sangue Nordestino • Aquarela Nordestina • Siri Jogando Bola • Hora do Adeus • Aquilo Bom • Quer Ir Mais Eu • Calango da Lacraia • Penerô Xerém • Facilita • Orélia • Cortando o Pano • São João do Carneirinho • Toque de Rancho • Karolina com K • Deixa a Tanga Voar • 17 Légua e Meia • Dezessete e Setecentos • Moreninha Tentação • Baião de Dois • Sanfoneiro Zé Tatu • Moça da Feira • Onde Tu Tá Neném

XILOGRAVURA – Wagner Menezes / 14 anos Projeto Gravura de Inverno (SE)

e a de número 100 fica para sua escolha

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Agradecimentos

em especial a Daniel Gonzaga

Instituto Cultural Chico Albuquerque Fortaleza/CE

Museu Cearense da Comunicação de Nirez Fortaleza/CE

Museu do Gonzagão

Gilberto Gil Sulamita Vieira Yara Magallhães Lilian Barg

Exu/PE

Nirez Azevedo

Museu Fonográfico Luiz Gonzaga

Ricardo Albuquerque

Campina Grande/PB

Memorial Luiz Gonzaga Recife/PE

Francisco Alemberg Paulo Vanderley Tomaz Iolanda Dantas Denise Dumond José Nobre Izaíra Silvino Maria da Guia Dantas

XILOGRAVURA – João Victor Santos / 11 anos Projeto Gravura de Inverno (SE)

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Lêda Dias

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Eu agradeço ao povo brasileiro Norte, centro, Sul inteiro onde reinou o baião Se eu mereci minha coroa de rei é que sempre eu honrei foi a minha obrigação Minha sanfona, minha voz e meu baião este meu chapéu de couro e também o meu gibão Vou juntar tudo dar de presente ao museu É a hora do adeus de Luiz, Rei do Baião

Onildo Almeida e Luiz Queiroga

XILOGRAVURA

João Pedro do Juazeiro

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No Brasil, só é nacional o popular, ou aquilo que está ligado ao popular. Teremos sempre de voltar a Gonzaga, como a árvore se prende ao chão. Ele vem do limbo onde fermenta e evolui a alma nova que estamos forjando Ariano Suassuna

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