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Perecível

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San La Muerte

San La Muerte

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Fotografías y texto FELIPE CAMILO

O Brasil não tá fácil. É certo que nunca foi fácil para a grande maioria viver no Brasil, mas convenhamos que 2019 coroou uma nova era política marcada em prática e em discursos por uma velha violência contra populações negras, indígenas e periféricas [para citar apenas parte]. Num país que nunca buscou reparação ou prestar contas com as mortes promovidas pela ditadura militar e tão pouco com quase 400 anos de escravidão, não faria diferente agora em 2020 quando apologias ao fascismo e ao nazismo são feitas em manifestações antidemocráticas nas ruas e mesmo em vídeo institucional da secretaria de cultura do país. Muito não vai bem em todo o território, mas entre o povo preto, a coisa se agrava. Em plena pandemia, têm cor certa os corpos mais suscetíveis à morte e às violações por ação policial que só aumentam seu número de tragédias. Tenho em mente o menino João Pedro de 14 anos que, enquanto permaneço vivo e escrevo quase impotente de casa, ele foi assassinado por tiro de soldado também em sua casa. O militar matou o garoto negro por ‘acidente’ em perseguição na favela, retirando o corpo da cena do crime e só deixando a família vê-lo no dia seguinte. Diante de nossa brevidade e pequeneza diante desse tipo de morte, acredito que o mínimo que fazemos é não deixar esquecer e saudar como pudermos os que fazem sua passagem em circunstâncias tão cruéis e ainda coloniais. É disso que me ocupo com o projeto Perecível, que amadureço desde 2016 enquanto artista negro, imprimindo as intercessões entre minhas experiências e da coletividade sobre superfície frágil e efêmera de folhas. Um jogo entre imagens e legendas, mas também entre o tempo e a memória.

Lembro de meu espanto com outras notícias. Mais especificamente de uma manchete que dizia algo como ‘homem é fuzilado com 80 tiros por soldados do exército enquanto levava a família à praia no domingo’. Aconteceu também no Rio, mas poderia ser aqui no Nordeste. Se tratava de um homem negro de 50 anos. Vivia talvez o sonho mais banal entre a classe trabalhadora - levar esposa e filha para ver o mar no fim de semana. Tinham 04 pessoas com ele. Escaparam com vida. 80 foram os tiros que o acertaram. Mais de 200 balas foram disparadas. Seus executores, que seguem impunes, alegam tê-lo confundido com um bandido e não se deram o trabalho de confirmar antes de alvejar o carro. Também mataram um passante que testemunhara tudo. Eu, preto, muito chocado, poderia ser comigo, imediatamente fui verificar o diâmetro de um projétil desses fuzis, não sabia que caberiam 80 balas num corpo. Comecei a furar fotos e folhas com um perfurador de papel que pela proporção me daria a ideia do estrago. Faltou folha e papel. Conclui que o estrago é sempre maior. Evaldo dos Santos, presente. Marielle Franco, presente. Vereadora negra e lésbica ativista de direitos humanos assassinada por miliciano que residia no mesmo condomínio que o presidente. Dois anos depois, a polícia ainda não identificou o mandante. Mestre Moa do Katendê, presente. Capoeirista preto morto no dia das eleições em 2018. João Victor, presente - 13 anos, morto com soco de segurança de restaurante de comida árabe em 2017. Pedro Gonzaga, presente - 19 anos, assassinado em 2019 com mata-leão de segurança de rede supermercados.

O projeto não se trata de apenas mobilizar ressentimento nas legendas e saudosismo no sépia das imagens. Perecível vê potência na ruína e evidencia ruína na imagem. Tem por princípio que a arte põe à vista a ruína para devolver à memória da coletividade aquilo que a história oficial tenta recalcar - armada com concreto, emplacada por regimes de verdades. Trata da fragilidade e das metamorfoses da memória diante da passagem do tempo na cidade.

O projeto tinha por intento original perseguir uma poética de atravessamentos do tempo na superfície das plantas, das peles, dos rostos, do concreto, da cidade. Daí ruína, memória e

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