SLZ/2014 BULHÃO, H.L.J.
Jell Carone/ Marilia Morais
Edição
#3 Editor Layo Bulhão Curadoria Márcio Vasconcelos Dinho Araújo Carolina Libério Assessoria de Imprensa Ricardo Alvarenga Produção Imira Brito Projeto de Exposição Camila Grimaldi Assessoria Executiva Nara Oliveira Revisão Edu Costa Edição de Arte/Design Layo Bulhão Dinho Araújo Diagramação Objeto Contemporâneo
Foto de capa Benjamin Costa | capa L. F. Frandoloso | contra-capa
+IFO // versão online www.revistainsightphoto.com BULHÃO, H.L.J. Revista Insight Photo #3. São Luís: Contemporâneo, 2014.
Objeto
Esta revista tem formato regressivo, iniciando-se na edição três. Direitos reservados desta edição reservados a Objeto Contempoâneo Av. João Alberto, n 71, qd 44, Vila Santa Efigênia. São Luís - MA - Brasil / Fone: 55 98 87480401 layobulhao@ymail.com/revistainsightphoto@yahoo.com.br
Patrocínio
Realização
C o m o u m convite à convergência de olhares, a R e v i s t a Insight Photo nasce como uma poesia visual esboçada por d i v e r s o s p o e t a s da imagem.
Na primeira de suas três edições regressivas, sua marca seria a “aterritorialidade”, onde diferenças e fronteiras são experimentadas no convívio. Nas páginas que seguem, a diversidade cultural, geográfica e conceitual inerente à experiência fotográfica é reordenada dentro de um ambiente/arte, provocando diversas conexões e analogias entre os ensaios. Desse modo, dentre os trabalhos que compõem a publicação, encontram-se registros de diversas regiões do Brasil, com enfoques que chegam a extrapolar o universo da cultura e paisagem nacional. Buscamos proporcionar a participação de artistas experientes, assim como de novos criadores, incentivando a produção e o contato com a diversidade de gêneros. Em consonância com essa perspectiva curatorial, articulamos uma configuração de arte/design, que transita entre palavra e imagem, dando a perceber suas infinitas conexões. A revista possui, ainda, uma versão online, que pode ser acessada através do nosso site, revistainsightphoto.com. Sendo uma iniciativa pioneira no contexto das artes visuais no Maranhão, agradecemos a todos que colaboraram em qualquer medida para a criação deste projeto.
Layo Bulhão, Editor
Mystic Tales Marcelo Cunha // MA
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05 Insólitos Balões Jell Carone e Marília Morais // PI
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Confinamento Tatiana Guinle // RJ
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13 Assim fica claro: roubo, colo e pixo! Ge Viana // MA
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A Família Guajajara Guillermo Giansanti // URUGUAI
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360 Metros Quadrados Pedro David // MG
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Fotografia, fotonovela e hipnose Bruno Azevêdo // MA
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A História de um Poema sobre uma Fotografia Celso Borges // MA
Por que autoretrato?
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Maria Thereza Soares // MA
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Curadores Dinho Araújo Carolina Libério Márcio Vasconcelos Layo Bulhão
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// // // //
MA MA MA MA
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Pó
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Andreas Guimarães e Isabel Soares // SP
Corrida do Porco
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L. F. Frandoloso // PR
Livre Pássaro
47
Arthur Kolbetz // RS
Um eu só
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Lívia Auler //RS
Desangulares
57
Luana Esther Geiss //SC
Relicário
62
Lu Berlese // PR
Salto e Para-quedas
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Yuri Azevedo // MA
Os sonhadores de Gokuldham
71
Benjamin Costa //Mumbai
Paisagem urbana
77
Inácio Rodrigues // MA
são
80
Felipe Abreu // SP
Mansão Manuel Francisco
84
Javier Valado // SE
Abstraturbano João Cosme // MA
89
Mystic Tales Marcelo Cunha
Marinne
Marinne. Esse era o nome da garota que vivia em uma linda cidade no litoral. Uma sonhadora, mas como a maioria, também muito solitária. Batizada como Ana, era tão apaixonada pelo mar e seus mistérios que adotou um novo nome, enquanto sonhava com o dia em que viraria uma sereia, ou qualquer outra criatura do mar, se libertando de todas as fraquezas e frivolidades humanas. Ela não odiava os seres de sua espécie, contudo, se cansara cada vez mais de toda aquela realidade sem graça e entediante.
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Ela se sentia muito só.
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Costumava acordar bem cedinho e admirar o mar, ainda calmo, sereno, começando devagar a se agitar… Marinne costumava pensar enquanto o sol aparecia: ”Que lindo… O mar está acordando”. Esboçava ás vezes um sorriso e sussurrava um “bom dia”. Certa noite, Marinne se sentiu tão fora de si, tão mais perdida como jamais havia se sentido, que mesmo sob as estrelas ela não conseguia pegar no sono. Quando finalmente conseguiu, tivera uma visão ou um sonho muito inquietante. Nele, ela descobriu como se libertar da forma humana, e se tornar em fim, parte do imenso mar. Era como se o próprio oceano falasse para ela:
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-Mergulhe em águas salgadas e livre-se de tudo aquilo que for feito pela sua espécie, mantendo apenas algo que seja muito especial e que lhe lembre de quem você é. -Aguarde pois banharei teu corpo de todas as energias ruins desse mundo, e sinta um novo eu surgindo de dentro de você, muito mais livre, e como jamais sonhou. -Responda com um olhar em direção ao oceano, confirmando que sente os poderes das águas entrando em você. -Introduza seus dedos por entre seus cabelos, e mergulhe. -No fundo das águas encontre as ervas. Você deve ingerir quantidade suficiente para se sentir satisfeita, para que seu corpo seja purificado de dentro para fora, e sua alma mantenha-se intacta juntamente com sua essência. -Não tenha medo! Se deixe levar, mantenha a calma como sempre mantinha ao me observar. -Entregue-se… Pois agora levo-te para o mundo onde não sentirás mais o incômodo e angústia da existência que carrega a humanidade, enquanto a maré enche, e te levo para as profundezas onde viverá eternamente, fazendo parte de mim.
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Insólitos Balões Jell Carone/ Marília Morais
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O balão é um objeto comum, frágil, lúdico, poético e efêmero. Ele tem forma delimitada, porém é maleável e depende do ar para conquistar a leveza indispensável a sua condição de balão, é lindo, mas murcha ou estoura. Balões recheados de CO2 (ar quente comumente expirado de pulmões humanos), é com este recheio de "quase nada" que os balões obtêm forma e a partir dai transformam-se nesse dispositivo mágico, ocupando a cabeça do corpo que agora está exposto à experiência de virar outro, um corpo cabeça de balões.
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Confinamento Tatiana Guinle
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Assim fica claro: roubo, colo e pixo! Ge Viana
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A Família Guajajara Guillermo Giansanti
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360 metros quadrados Pedro David
Com 360 Metros Quadrados pretendo discutir os limites da linguagem fotográfica, ao inserir elementos e questões pictóricas e escultóricas para construir imagens carregadas de sentido plástico, simbólico, e metonímico, pois, apesar da diminuta dimensão geográfica explorada - uma área de 360M2 -, tento alcançar a esfera global.
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Q
Fotografia, fotonovela e hipnose
uando tiramos uma foto, seja um retrato, paisagem, uma cena, aquela foto se propõe a ser um universo em si, um momento ”congelado” no tempo sobre o qual se disse alguma coisa ao clicá-lo. Por mais que um fotograma componha uma cena e proponha um movimento (alguém correndo, um jogo de futebol, algo que cai), a fotografia é, via de regra, um instante capturado em uma imagem. Contudo, existe uma modalidade, única dentro da História da Fotografia, que parece querer quebrar essa ideia:
Fonte: Revista Sétimo Céu, n54, novembro de 1960
...as fotonovelas estão entre os mais intrigantes e transversais usos da fotografia desde sua criação e certamente o mais importante meio a partir do qual se tratou a fotografia enquanto uma construção ou elemento narrativo, uma mídia que pensa a fotografia em sua relação com outras fotos, na qual o retrato, a cena só adquirem significado através de um processo de leitura diferente da informação ou da apreciação comumente dada ao trabalho fotográfico. Dito isso, seria gentil da sua parte voltar e ler novamente a tira ali em cima. As fotonovelas fazem com que a fotografia funcione numa composição análoga aos quadrinhos, definidos por Will Eisner como “arte sequencial”, ou seja, várias imagens em sequência formando uma história. Contudo, as fotonovelas não têm um elemento importante dos quadrinhos, aquilo que que Scott Mccould considera sua especialidade, a identificação do leitor com a imagem através da redução da imagem “real” ao ícone chamado de cartunização. Quando desenhamos uma pessoa não desenhamos realmente a pessoa, fazemos uma versão mais simples dela, e é com esse “boneco” que a gente se identifica. Nas fotonovelas a fotografia é responsável não somente pela carga dramática, através de luz, maquiagem e “performance” dos atores/modelos, mas também pela justaposição de fotogramas que permite ao leitor criar em sua cabeça outras fotos, “não clicadas”, mas sugeridas no espaço entre uma foto e outra (que nos quadrinhos chamamos de sarjeta), responsáveis pela construção da cena na fotonovela. Alguma coisa acontece entre uma foto e outra.
Nas fotonovelas falamos de uma leitura através da página, não da fotografia isolada. É a composição de várias fotos (geralmente entre 6 e 9) em um mesmo espaço gráfico que define a forma como o público leitor vê a fotografia em fotonovela e é com esse objetivo que se fotografa para fotonovelas. O retrato, a paisagem, a cena são somente alguns dos tipos de fotografias numa fotonovela, o olhar do leitor transita entre todas elas, fazendo conexões, relações, e as completando, dando uma força pra quem está contando a história, como você pode me dar uma força voltando ali em cima e relendo a tira (prometo que é a última vez).
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>> Entre o fim da segunda guerra mundial e a década de 1970 as fotonovelas foram uma das mais populares formas de contar histórias no Ocidente. Surgidas na Itália, inicialmente a partir de cartazes e frames de filmes, os cineromance emancipou-se do cinema e as histórias adquiriram nos anos seguintes características próprias de produção, publicação e consumo, consolidando-se como uma linguagem que transita entre os quadrinhos, o cinema e a literatura. No Brasil, as fotonovelas estavam entre as maiores tiragens nos anos 1950/70, seja com material importado ou produzido em estúdios locais. No começo da década de 1970 havia 31 títulos de fotonovelas nas bancas brasileiras, com temas, abordagens e editoras diversas. Capricho, Grande Hotel e Sétimo Céu foram algumas das maiores. As vendas das fotonovelas só eram batidas pelos quadrinhos da Disney.
As fotonovelas eram produzidas visando o público feminino, que consumia avidamente outros produtos relacionados ao amor e ao romantismo seja na música popular, no rádio, na crescente televisão ou mesmo na literatura através dos chamados romances cor-de-rosa. A maior parte do que era publicado no país vinha da Itália, França ou Argentina, sendo que somente a Sétimo Céu tinha uma produção regular no país, com corpo técnico e elenco brasileiro, geralmente usando atores/celebridades já famosos no rádio ou na TV. Grandes nomes do entretenimento brasileiro como Erasmo Carlos, Tony Ramos, Wanderleia e Silvio Santos atuaram em fotonovelas. Apesar da imensa popularidade, as fotonovelas deixaram as bancas no final da década de 1970, e hoje quase não se pode encontrá-las. Então, sobre a tira lá atrás, quem hipnotizou o personagem, meu amigo, foi você.
por Bruno Azevêdo escritor e editor da PItomba! livros e discos
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A HISTÓRIA DE UM POEMA SOBRE UMA FOTOGRAFIA Um poema aéreo?
A
ntes de começar a escrever poesia, na segunda metade da década de 1940, o maranhense Ferreira Gullar era apenas José Ribamar Ferreira, conhecido simplesmente como Zeca entre amigos e parentes, e vivia em São Luís (MA), onde nasceu em setembro de 1930. A cidade tinha aproximadamente 200 mil habitantes e uma forte tradição literária, mas ainda vivia da fama do século 19, cuja linhagem intelectual formada, entre outros, por Gonçalves Dias, João Lisboa, Odorico Mendes, Sousândrade, Arthur e Aluisio Azevedo, era respeitada em todo o país. As duas gerações seguintes não conseguiram produzir autores à altura desses, exceto talvez o simbolista Maranhão Sobrinho, falecido em 1914. Nos anos 1940, mesmo o Modernismo de 22 ainda era desconhecido dos escritores de São Luís. Algum sopro da poesia moderna só chegaria à cidade em 1947, pelas mãos do poeta Bandeira Tribuzi, recém chegado de Portugal, onde estudara na Universidade de Coimbra. Tribuzi desembarcou em São Luís com a alma incendiada pelos versos de Fernando Pessoa, José Régio e Almada Negreiros, além dos modernistas brasileiros, principalmente Mário de Andrade. Seu livro de estreia, Alguma Existência, de 1948, é a primeira obra a se distanciar de uma tradição parnasiana ainda muito presente na ilha. Ferreira Gullar nunca falou sobre o impacto desse livro. No pequeno universo da literatura provinciana, ele se aliava muito mais aos conservadores, que se reuniam em torno do Centro Cultural Gonçalves Dias. Bandeira Tribuzi, ao contrário, fazia parte da chamada Movelaria Guanabara, preocupada com uma dicção poética mais ousada. Aos 21 anos, depois de ganhar um concurso nacional de poesia, Gullar se mudou para o Rio de Janeiro, onde vive até hoje. Nos anos seguintes voltou algumas vezes a São Luís, experiência para ele sempre dolorosa, porque cheia de lembranças e personagens de uma infância distante. No Rio, nos primeiros 15 anos, mergulhou em experiências de rupturas estéticas. Aderiu ao concretismo, rompeu com ele, lançou as bases do neoconcretismo e, por último, largou tudo e foi escrever poesia de cordel. Esse período coincide com seu engajamento radical na luta contra a ditadura militar, o que o levaria à clandestinidade e ao exílio, no início dos anos 1970. Fora do país, Gullar reaproxima-se de São Luís poeticamente, e de forma visceral, ao escrever o Poema sujo, um delírio afetivo amoroso que mergulha na São Luís de sua infância, lançado em 1976. No ano anterior já havia ensaiado essa aproximação no livro Dentro da Noite Veloz, com dois poemas ambientados em sua cidade natal: Praia do Caju e Uma fotografia aérea. O escritor contaria a história de Uma fotografia aérea num disco vinil duplo, que gravou em 1979 – Antologia poética – com participação especial do instrumentista Egberto Gismonti. Diz ele que certa vez, já adulto, viu num arquivo de uma revista de arquitetura uma foto aérea tirada de São Luís, aproximadamente no final dos anos 1930, quando ele tinha cerca de 10 anos de idade. A foto mostra o encontro dos rios Anil e Bacanga, que banham a cidade, com o oceano Atlântico, formando a Baía de São Marcos. A família de Gullar morava numa casa perto dali, no bairro do Jenipapeiro. Ou seja, na hora em que a foto foi tirada, o menino Zeca estava ali próximo e com certeza deve ter ouvido o ronco de um avião sobrevoando a cidade. Afinal, a presença de um avião naquele tempo nunca passaria despercebida pelo menino que gostava de empinar papagaio e jogar futebol. Ele estava lá embaixo, naquela cidade, no norte do Brasil, naquele dia em que a fotografia aérea foi tirada. Trinta anos mais tarde, Gullar está diante dessa foto, que a partir daí não lhe sai da cabeça e que o leva a escrever um poema tempos depois. Eu devo ter ouvido aquela tarde um avião passar sobre a cidade aberta como a palma da mão entre palmeiras e mangues vazando no mar o sangue de seus rios as horas do dia tropical aquela tarde vazando seus esgotos seus mortos seus jardins eu devo ter ouvido aquela tarde
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em meu quarto? na sala? no terraço ao lado do quintal? o avião passar sobre a cidade geograficamente desdobrada
Os versos seguem pelo mundo da memória e da invenção. Gullar divide o poema em cinco partes. Nas quatro primeiras, o menino fotografa pelas mãos do poeta (ou o poeta fotografa pelos olhos do menino?) o lugar em que vive, com seus cheiros, ruas e personagens. E ao mesmo tempo registra o espanto que teve ao ouvir um barulho entre outros barulhos, o ronco de um pequeno avião sobrevoando a cidade. Começa a imaginar onde poderia estar naquele momento. eu devo ter ouvido no meu quarto um barulho cortar outros barulhos no alarido da época rolando por cima do telhado eu devo ter ouvido (sem ouvir) o ronco do motor enquanto lia e ouvia a conversa da família na varanda dentro daquela tarde que era clara e para sempre perdida que era clara e para sempre em meu corpo a clamar (entre zunidos de serras entre gritos na rua entre latidos de cães no balcão da quitanda no açúcar já-noite das laranjas no sol fechado e podre àquela hora dos legumes que ficaram sem vender no sistema de cheiros e negócios do nosso Mercado Velho - o ronco do avião)
E como que para reforçar o significado daquele barulho, o ilumina nos versos, como um relâmpago visto pelos olhos dos habitantes da ilha, principalmente ele, Zeca, que ali está, em algum lugar. Gullar começa a mensurar o alcance do ronco do avião (não seria um pássaro branco?). eu devo ter ouvido seu barulho atolou-se no tijuco da Camboa na febre do Alagado resvalou nas platibandas sujas nas paredes de louça penetrou nos quartos entre redes fedendo a gente entre retratos nos espelhos onde a tarde dançava Seu barulho era também a tarde (um avião) que passava ali como eu passava à margem do Bacanga em São Luís do Maranhão
no norte do Brasil sob as nuvens O poeta chega mesmo a precisar o horário em que o avião fotografou a cidade. Por causa da luz? Ou uma simples invenção poética? eu devo ter ouvido esse avião que às três e dez de uma tarde há trinta anos fotografou nossa cidade
Depois de sobrevoar a cidade e fotografar quase tudo que está lá embaixo, o menino passa a voz para o poeta adulto vendo a fotografia, muitos anos depois. Gullar fecha o poema de forma brilhante, relativizando a matéria, o espaço tempo, como se proclamasse a vitória da imaginação e da invenção sobre a realidade. A poesia é muito maior do que uma imagem num pedaço de papel. É preciso inventar a realidade para suportá-la. A poesia é maior do que a vida? A fotografia real é aquela inventada pelo poeta. Essa ninguém rasga. Se a vida de Gullar não é eterna, seu poema é. meu rosto agora sobrevoa sem barulho essa fotografia aérea Aqui está num papel a cidade que houve (e não me ouve) com suas águas e seus mangues aqui está (no papel) uma tarde que houve com suas ruas e casas uma tarde com seus espelhos e vozes (voadas na poeira) uma tarde que houve numa cidade aqui está no papel que (se quisermos) podemos rasgar
Será que foi esta a foto que o poeta Ferreira Gullar viu na revista? Ela foi tirada pela norte-americana Amélia Earhart em 1937. Earhart sobrevoou o nordeste brasileiro naquela década pilotando sozinha um avião e fotografou várias cidades, entre elas São Luís. O poema é maior do que a fotografia? A poesia é maior do que a vida.
Outra fotografia Boa parte de minha geração, aquela que começou a escrever no final dos anos 1970 em São Luís, foi influenciada pela poética gullariana. Por um lado, sua poesia trazia um lirismo “sujo” sobre a cidade, inaugurava um novo olhar sobre ela, diferente de outros poetas contemporâneos importantes, como José Chagas, Nauro Machado e Bandeira Tribuzi. Por outro, Gullar era um poeta exilado, de esquerda, uma simbologia influente naqueles anos duros de luta contra a ditadura. Tudo isso nos fascinava. Quando morei em São Paulo, de 1989 a 2009, costumava ouvir o disco de Gullar e Egberto Gismonti, principalmente Uma fotografia aérea. Era uma forma de me reencontrar com a cidade e suas lembranças, tão caras para mim. No final dos anos 1990, uma dessas “ouvidas” me inspirou a escrever algo que tivesse esse poema como referência. Imaginei-me menino do colégio Marista vendo São Luís por meio de um atlas geográfico e escrevi Outra fotografia que cheguei a mandar para Gullar quando ele completou 60 anos, em 1999. Nunca soube se recebeu a minha fotografia. 33
vista de cima a cidade não se parece com um presépio se a olhamos desenhada num livro de colégio suas ruas, praças e quitandas não são nada só ilusão de pedra evaporada o livro - um atlas geográfico, 35cmx40 cm - mostra na página 32 que ali está uma ilha a dois graus ao sul do equador com seus pedaços de terra, pastos de lama, ao lado do rio anil uma ilha minúscula de 905 km² mas que no papel não passam de 15 cm medidos por régua de plástico uma ilha na garganta da baía de são marcos em cima do brasil farol do atlântico bem pertinho da cara e das mãos de quem a vê e sente naquele exato momento dentro de uma tarde azul uma ilha - à esquerda ou à direita - dependendo da posição do mapa visto de cima por um aluno da segunda série ginasial do colégio marista em 1972 no máximo, dependendo do atlas a ilha são linhas pretas, algumas de cor verde, pra distinguir as diferentes coisas que compõem o corpo da cidade cercada de um mar de papel por todos os lados ou ainda, por causa das mãos lindas de daniela, que bordou esta fotografia sem querer, a ilha são finas linhas vermelhas sombras, sangue, galhos e veias, o corpo definitivo da cidade cercada cercada cercada por todos os lados
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Daniela Rodrigues
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mas ninguém pode afirmar que lá embaixo - ainda que passemos para a página seguinte existem mirantes e azulejos ruas estreitas, amores dores, risos, beijos
é que vista de cima não existe nada só ilusão de vida elaborada dessa forma a cidade desconhece gullares, nauros, chagas e tribuzis e mesmo eu que agora a vejo dentro de mim tenho dúvidas se nasci ali na rua da paz 350 se fui batizado por padre paulo se vou ser enterrado no cemitério do gavião perto da madre deus ou se essa tarde não passa de uma simples ternura inventada vista de cima não nasci ali, não orei, não badalei sinos, não morrerei e sei, daqui do ventre do século XXI que a cidade não é aquela vista de cima por um menino magrelinho, virgem de orelhas de abano e coração de passarinho que a verdadeira cidade de meninas, anáguas, cheiros e ladeiras é mais que uma página de papel - celulose com seus dias contados é mais que um presépio - que tribuzi construiu como bandeiras de volpi mais que um mirante - que chagas apontou com seus canhões de silêncio mais que um livro de mário meireles que uma aurora de ouro - que nauro iluminou com lamparina e álcool – que um beco que um olho d'água que um botequim mais que a fotografia aérea de gullar - dentro daquela tarde que era clara e para sempre perdida -
por Celso Borges Poeta e Letrista
mais que qualquer outro poema como este que por incrível que pareça aquele menino de alguma forma já fabricava dentro de sua alma 28 anos atrás
Por que autorretrato?
Na moda do #selfie,
Moça com brinco de pérola (Vermeer) + Frida Kahlo
(paródias sem autorias identificadas)
Ao longo da trajetória da história da arte, muitos pintores se retrataram em diversos períodos e movimentos. De uma maneira geral, os autorretratos eram vistos como exercícios técnicos. A fotografia, bebendo nesta primordial fonte de referências, seguiu e segue nesta tradição, num infinito processo de ressignificação. O tema do autorretrato na fotografia contemporânea é abundante em produção, porém um pouco escasso em reflexões e literaturas. Por que se autorretratar? Nomes de fotógrafos evidenciados pela obra voltada ao gênero são diversos, em diferentes períodos históricos: a mítica norte-americana Francesca Woodman (1958-1981), a recémrevelada-e-já-cultuada babá fotógrafa-de-final-de-semana Vivian Maier (1926-2009) e, mais célebre de todas, Cindy Sherman (nascida em 1954). E a lista continua interminável. No Brasil, podemos apontar para os trabalhos relevantes de Fernanda Magalhães, Helenbar, Luiza Bulamarqui, Sheila Oliveira, entre outros.
O selfie (palavra do ano do dicionário Oxford, 2013) pode facilmente ser associado ao estereótipo que segue numa fórmula quase universal: jovens + redes sociais + ostentação + exibicionismo = mais do mesmo. O interesse está restrito ao círculo de conhecidos e lá se encerra. Algumas enumerações de características próprias do selfie podem ser apontadas: espontaneidade, narcisismo, superficialidade, o ângulo de tirada de fotografia restrito ao alcance do braço (sem muitas possibilidades de variação), a pessoa está segurando a câmera (identificável pela presença do braço nos cantos da foto), baixa qualidade de imagem (câmera de celular), pessoa só ou em grupo. Hoje em dia, os selfies se estenderam aos vídeos de curta duração, cuja plasticidade se assemelha à da fotografia, ambos feitos com intuito de autopromoção e para compartilhamento em redes sociais. Que linguagem é essa? Que narrativa?
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É bastante comum que os fotógrafos produzam autorretratos: Stanley Kubrick (antes de se aventurar no cinema, ele era fotógrafo e tinha obsessão estendida à cinematografia e teve uma lente produzida pela NASA especialmente para as filmagens à luz de velas de Barry Lyndon), André Kertész, Jacques-Henri Lartigue e assim vai. Dentre as características singulares dos autorretratos, pode-se apontar: a utilização de uma câmera, que pode estar aparente na foto ou não (a pessoa pode usar o temporizador ou controle remoto), sua silhueta refletida ou sua sombra marcada, como mostram as imagens de Vivian Maier. É bastante comum que os fotógrafos produzam autorretratos: Stanley Antes de se tornar cineasta, Stanley Kubrick era fotógrafo e já fazia Kubrick (antes de se aventurar no cinema, ele era fotógrafo e tinha autorretrato. obsessão estendida à cinematografia e teve uma lente produzida pela NASA especialmente para as filmagens à luz de velas de Barry Lyndon), André Kertész, Jacques-Henri Lartigue e assim vai. Dentre as características singulares dos autorretratos, pode-se apontar: a utilização de uma câmera, que pode estar aparente na foto ou não (a pessoa pode usar o temporizador ou controle remoto), sua silhueta refletida ou sua sombra marcada, como mostram as imagens de Vivian Maier.
Série de autorretratos de Vivian Maier, explorando elementos característicos do gênero: espelhos, sombras, silhuetas e retrato sem câmera aparente.
O que separa, então, um selfie de um autorretrato? Ambos têm narrativas e linguagens próprias. Tendo definido um selfie e um autorretrato, agora parte-se para a versão mais artística do autorretrato e suas particularidades: um fotógrafo, ao se retratar para uma série, elege se despir de sua vaidade ou não; não há necessidade de sorriso nem da busca do ângulo mais fotogênico; a tomada fotográfica não precisa ser imediata ou espontânea; a pessoa opta por estar presente na foto e como será sua presença; caso o fotógrafo opte por estar ausente em corpo, ele marca sua presença por meio dos objetos que irão representá-lo; representação total ou parcial do corpo; a pessoa utiliza o corpo enquanto matéria de elaboração da obra. Por trás da imagem há uma operação. Na fotografia, como em qualquer campo das artes, sejam elas visuais ou não, a verdadeira arte não é gratuita. Nada está lá por acaso. Existe um porquê. O autorretrato é um processo subjetivo, criativo, solitário e que demanda um procedimento. Pode resultar de experiências, fantasias, vivências, sonhos e sensações. Por isso, não se pode confundir um autorretrato com um selfie simplesmente, e vice-versa. Basta ver e observar. Série Nos templos do Armário, de Luiza Burlamaqui (2009)
por Maria Thereza Soares Formada em Cinema e Vídeo / UFF Especialista em Artes Visuais / SENAC
Moinho
Pó
Forno
Andreas Guimarães e Isabel Soares
Fotoperformance realizada nas ruínas de uma área fabril: a Antiga Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus. >> Escolhemos ou fomos tomados por esse lugar tão instigante, que habita entre o abandonado e a perspectiva de transformação, que é ícone da luta de tantas gerações, que é território da memória, onde vive o vestígio, o resquício, a matéria da lembrança. Em busca daquilo para além do que se vê, entramos em decomposição junto à coisa do lugar para pretender uma origem comum, um ponto de fusão, a recomposição e reconfiguração do corpo a partir da relação com um espaço tão vivo quanto aquele que o percebe. 38
Moinho
Forno
Corrida de Porco L. F. Frandoloso
Este trabalho foi feito em Medianeira – PR com película fotográfica preto e branco no formato 35mm e 6x6 cm. É o registro documental da tradicional Corrida do Porco, que acontece anualmente na cidade do interior do Paraná. Tal corrida se tornou um evento que cresceu com os anos. A região é tradicional criadora de suínos e o evento é muito famoso e esperado pela população. Após a corrida, onde cada participante tem seu próprio porco treinado para correr, serve-se um almoço com carne, claro, suína.
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Livre Pássaro Arthur Kolbetz
“Livre Pássaro” é um projeto experimental, fotografado na praia de Atlântida Sul, Osório/RS, com posterior intervenção de elementos digitais na composição das imagens. O projeto foi motivado pela beleza e sutileza da natureza, das flores e da figura feminina. O elemento triangular foi inserido em referência à divina proporção, presente nas artes e na própria natureza.
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Em outro chão
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Um eu só Lívia Auler
A praça
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Passeio gelado
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Submerso
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O projeto “um eu só” propõe uma reflexão sobre a solidão. Não a solidão como forma de um isolamento sofrido e insuportável. Pelo contrário, pretende mostrar o “estar só” como uma forma de encontro consigo mesmo, de paz, harmonia e equilíbrio; geralmente substituído, então, pela palavra solitude. O que a artista deixa entrever a importância desses momentos – essenciais e especiais – de solitude. Como sugere Carlos Drummond de Andrade, “há certo gosto em pensar sozinho. É ato individual, como nascer e morrer”.
Liberdade
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Desangulares Luana Esther Geiss
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Desangulares propõe investigar o espaço pela desarticulação do ângulo ”tradicionalmente” visível em variáveis composições e personas que habitam o campo de visão. Desangulares é convidativo, é a abstração da imobilidade. Desangulares permite ser explorado, sugerindo que o observador deve estar atento ao possível movimento que não irá suceder o momento.
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Relicário Lu Berlese
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Relicário propõe uma reflexão sobre a memória afetiva e a sua relação com a fotografia. Qual é a magia que faz com que os laços afetivos se perpetuem mesmo após a morte? Qual a função da imagem fotográfica enquanto memória? Numa releitura das proposições de Boris Kossoy, este ensaio busca resgatar na solidão das lembranças o resplendor do passado.
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“A saudade me moveu, inesperadamente, para uma tentativa do aprisionamento da memória. Não pela força, pois ela é feita de matéria efêmera. Mas uma tentativa delicada de aprisionála. Ou seduzí-la, para que livremente me visite, de quando em quando, como um novelo emaranhado do qual puxamos um fio que parece solto. Alguma coisa parece sempre fora do lugar. Um relicário de sons, sonhos e sombras. Uma ponte simbólica construída em algum lugar entre a nostalgia, a devoção e a memória.”
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Salto e Para-quedas Yuri Azevedo
Este trabalho é uma (pro)posição sobre a arte de fotografar por meio de câmeras de bolso, com baixa qualidade, e a utilização de aplicativos para edição das imagens. Como um micro roteiro, este ensaio fotográfico tem como objetivo expor um posicionamento critico-estético em relação a questões contemporâneas, como a experiência de gênero e a intermidialidade.
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Os sonhadores de Gokuldham Benjamin Costa
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Quando eu cheguei na Índia o meu relógio parou. Nunca soube se tudo o que estou vivendo aqui é verdade ou ficção. Há seis meses fui acolhido no bairro de Gokuldham e desde então criei laços e afetos com os moradores desse misterioso pedaço de terra na cidade de Mumbai. Sem turistas e holofotes, Gokuldham está longe dos cenários de Bollywood. A meu ver, Gokuldham não é cinema, mas poesia. Todos os dias, ao acordar com o leiteiro de cabelo cor-de-laranja na minha porta, percebo que estou em terras distantes. Nós não nos entendemos verbalmente, mas nossos sorrisos se correspondem. Assim, desenvolvi essa série com retratos das pessoas que me envolvem. Primeiramente, achei que todos eles eram um sonho, com o tempo, percebi que somos todos sonhadores.
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Paisagem Urbana Inácio Rodrigues
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Neste ensaio, todos os retratados pertencem ao convívio familiar do fotográfo, entre parentes e amigos. A ideia é burlar a imagem que fazem de si próprios, sem uma linha estética rígida norteadora. Em Paisagem Urbana deixo-me guiar pela geometria e textura dos materiais e as tantas formas que as retas podem compor, unindo-se ou desmembrando-se da forma inicialmente pensada para, na fotografia, se reinventar.
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são Felipe Abreu
O ensaio consiste em uma série de dípticos que exploram a relação entre construções e habitantes no Centro da capital de São Paulo. As duplas dividem-se igualmente entre prédios e homens, com composições que unem as duas imagens por paralelos de cor ou forma. Nas imagens de «são» arquitetura e humano preenchem totalmente o quadro. Não há respiro, não há céu. «são» encontra ordem neste caos, buscando padrões na desordem paulistana e unindo imagens que dão o tom da rotina no Centro da cidade.
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Mansão Manuel Francisco Javier Valado
“Uma casa, né?”. Assim é possível que te respondam muitos dos moradores da Mansão Manuel Francisco, em Aracaju-SE, sobre qual sonho é mais urgente. O prédio de dez andares é uma comunidade com 225 famílias, um espaço de ocupação e lutas liderado pelo Movimento Sem Casa (MSC), desde 5 de maio de 2013. Condenado pela Defesa Civil tem as paredes úmidas e o fosso do elevador já retirado assusta. Até o final do nosso trabalho os moradores esperam pelo benefício do auxílio-moradia no valor de trezentos reais mensais. (Ed Soares)
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Abstraturbano João Cosme
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A série “Abstraturbano” é constituída por composições criadas com os elementos visuais do cenário urbano; Utilizando o contraste de tons e o contraluz, reduz-se o objeto fotografado à linhas e formas, num contraste entre figuração e abstração.
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Curadoria
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Dinho Araújo
Curador
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Márcio Vasconcelos
Curador
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Curadora
Carolina Guerra Libério
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Layo Bulhão
Curador/Editor
performer Mavi Veloso
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Javier Valado