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SUMÁRIO A LITERATURA INFANTIL EM PORTUGAL ........................................................ 3 O RATO METEDIÇO ................................................................................................. 10 O PARDALITO FINÓRIO.......................................................................................... 25 O CÃOZITO COM SORTE ........................................................................................ 30 A PÊGA ADIVINHA.................................................................................................... 36 ÍCARO E O SAPO ....................................................................................................... 43
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A LITERATURA INFANTIL EM PORTUGAL "Contar e ouvir histórias é por certo uma das mais antigas actividades humanas" Se considerarmos que a Literatura é constituida não só pelas obras escritas mas também pelas faladas, podemos dizer que, desde tempos muito recuados e nas mais diversas nações, se encontram formas narrativas orais que estão na génese de toda a Literatura e em particular da Literatura Infantil. Segundo esta perspectiva, para se fazer a história da Literatura Infantil teremos que procurar as suas origens na Literatura Tradicional Oral. Esclarecimento Num estudo recente sobre livros infantis e juvenis reconhecia-se que a literatura para a infância e para a juventude, à qual se concede um lugar cada vez mais importante nos meios da educação, se tem tornado pouco a pouco objecto e tema de investigações sistemáticas, em pedagogia, psicologia, sociologia e literatura. Obviamente que este interesse se explica pela cada vez maior atenção concedida pelas ciências relacionadas com a pedagogia às camadas jovens e, por outro lado, pelo papel que os jovens conseguiram conquistar, e mesmo impuseram, às gerações mais velhas. É importante referir que não se considera apenas Literatura Infantil a que foi escrita intencionalmente para as crianças. São também incluidas as obras para adultos que são lidas ou contadas às crianças para as formar e divertir, sobretudo em épocas em que a instrução não era generalizada. Poderemos então perguntar se estas obras merecem ou não ser consideradas "literárias". Não nos referindo ao assunto, diremos apenas que temos de reconhecer que uma obra destinada a jovens raramente obedecerá aos cânones estéticos que encontramos nas obras literárias para adultos. Julgamos, no entanto, que não há nehum inconveniente em utilizar a designação de "Literatura Juvenil". Durante muito tempo as crianças foram consideradas " adultos em miniatura " ou imperfeitos, que teriam, portanto, os mesmos interesses e as mesmas reacções que os mais velhos, não havendo por isso necessidade de distinguir entre o que se destinava a uns e a outros. Este é decerto o motivo pela qual se começa a estudar a literatura infantil e se verifica que ela seguiu a mesma evolução cronológica e sofreu a influência dos grandes movimentos literários e das mudanças sociais que afectaram a literatura em geral. GÉNESE ALGUNS DADOS HISTÓRICOS Na Idade Média, a audição dos contos populares constituía a única forma de distracção numa sociedade em que apenas alguns sabiam ler e onde não havia praticamente teatros: " a quase totalidade da população tinha que se contentar com a comunicação oral do saber encerrado nos livros ". Embora na sua forma inicial, os contos populares não fossem destinados exclusivamente às crianças, é lícito considerá-los nas origens da Literatura Infantil.
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Nesta época, em Portugal, como de resto em toda a Europa, ninguém pensaria em escrever para as crianças. Isso era, certamente, por falta de instrução e pelos hábitos que vinham da antiguidade de se ouvir contar histórias "ao serão à volta da lareira”. As narrativas medievais, decerto também ouvidas pelas crianças, eram por excelência os Exemplários, os quais como que preconizam o aspecto didáctico e de formação de carácter que a literatura infantil irá tomar posteriormente sobretudo no século XVIII. Estes contos moralizantes, "enxemplios" ou "enxempros" são bem reveladores da grande influência do Oriente que marcou a nossa cultura medieval e correspondem às chamadas "pérolas de sabedoria orientais", que estão na base dos provérbios e adágios. Com o declínio da cultura oral, durante o Renascimento, e com a invenção da tipografia, as narrativas populares, que antes se transmitiam de boca em boca e de avós para netos, começaram a surgir sob forma impressa, em "magros folhetos", chamados "de cordel" ou "folhas volantes" (assim referidos por serem transportados ou expostos em barbantes e cordéis). Outro tipo de narrativa, que também aparece nos "folhetos de cordel " e que está na base de um dos aspectos que a literatura para a infância tomou mais modernamente, são os "Autos Tradicionais", antepassados do actual teatro infantil. Estes Autos eram representações litúrgicas que se realizavam no Natal e na Páscoa, com fins morais, através de encenações da Vida de Cristo, da Virgem e dos Santos. Curiosamente na Obra do grande dramaturgo desta época, Gil Vicente, encontram-se muitos destes temas que estão na origem da Literatura Infantil. Na origem da Literatura Infantil portuguesa encontra-se ainda, além dos contos tradicionais orais dos romances de cavalaria , as chamadas " Cartas de Sílabas" ou "Cartilhas ". Não se pode pois deixar de mencionar estas obras "literárias", ligadas à educação, com nome de Cartilhas, mais orientadas para aprendizagem da leitura e os Catecismos, de carácter mais moralizante e religioso. A primeira dessas cartilhas para leitura, "Cartilha para aprender a ler ", é da autoria de João de Barros, o chamado " Títo Lívio português ". Têm especial interesse as suas obras para a literatura infantil portuguesa, por ser um percursor, não na intenção didáctica e moralizante, mas por utilizar imagens e jogos, introduzindo assim um elemento lúdico. Bernardim Ribeiro, em 1557, no seu último livro das "Saudades"História da Menina e Moça - refere-se ao hábito de contar histórias. Aliás o interesse por esse tipo de narrativa mantém-se e ainda hoje é considerado próprio para crianças, pois dele continuam a fazer-se adaptações nos nossos dias . Com a decadência clássica antiga surgem as narrativas em prosa e em verso, dando lugar a um novo estilo, uma nova literatura, que tem como temas os motivos existenciais do homem simples e comum, seus ideais, sua fé, seus deveres, suas heroicidades, seus amores, etc. Sendo o século XVIII marcado essencialmente pelo Iluminismo, a Literatura Infantil não pôde de maneira nenhuma alhear-se dele. O público aumentou, assim como o interesse por traduções de obras de maior popularidade. A influência estrangeira fez-se sentir através dos contactos directos e dessas traduções, que tinham tido já o seu início, em Portugal, nos princípios do século XVII, no respeitante ao "fabulário"; e nos fins do século
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XVIII, no que toca a "novelas" e "diálogos", que, como era exigido pela Literatura Infantil da época, deveriam apresentar sempre feição moralista, tendo servido de inspiração aos nossos escritores de obras infantis. Todavia "o século XVIII em Portugal é bastante pobre do ponto de vista de produção literária culta, tanto de obras para infância como da literatura em geral". O célebre fabulista francês Jean de La Fontaine viria a exercer grande influência na literatura infantil em todo o mundo; mas só mais tarde a sua obra seria traduzida em Português, tendo sido então vários os escritores nacionais que cultivaram a "fábula" nesta época. Aliás, além desta narrativa, outro tipo, também vindo da literatura tradicional e que se encontra na base da infantil, é o Conto (como já foi referido), de que já os pregadores, a partir do século XVII, se serviram para amenizar os sermões. O século XIX, que surge sob os ditames do Romantismo e que reage ao Iluminismo de obsessão científica e ao Positivismo, vai dar à Literatura infanto-juvenil foros de internacionalidade, tornando-a numa verdadeira Literatura Infantil. Com a evolução da Pedagogia e Psicologia, à luz dos legítimos interesses da criança e do adolescente, os artistas e os educadores encontram-se na consubstanciação de um mundo literário para a criança e para o jovem. É de notar que da Inglaterra vieram também para Portugal as ideias românticas de entusiasmo pelo floclore e pelo maravilhoso tradicional, que entre nós, teve mais tarde, como elemento exótico, o interesse pelos temas orientalistas. Há, a partir deste século, uma ruptura mais marcada entre "o livro infantil" e o "livro para adultos"; assim como se acentuou a diferença entre livros para rapazes, cheios de aventuras, por vezes extremadas, e os livros para raparigas, romanescos e com mais fantasia. Na primeira década do século XIX, quando as crianças já podiam escolher entre livros de contos infantis e a literatura de fantasia, surgiu entre as obras pedagógicas um tipo de leituras educativas e instrutivas, que de certo modo procuravam aproveitar o gosto criado pelos livros para dar aos jovens leitores informações sobre os progressos científicos em vários campos. Esta tendência marcadamente educativa nas obras destinadas à infância revela-se na escolha dos temas e no espírito com que estes eram tratados. Com este ciclo de prosa entra-se naquilo que muitos consideram a época áurea da Literatura Infantil portuguesa. Assim, já Almeida Garrett e Herculano se foram "entretendo" a contar vidas e acontecimentos, tradicionais, populares, históricos, que, abrangendo em finalidade última os adultos, continham em si germes de literatura juvenil. São provas de textos, extraidos da tradição oral, a Lenda de Santa Iria e a Novela da Menina dos Rouxinóis, inseridas em Viagens na Minha Terra e sobretudo a peça dramática Frei Luís de Sousa, ouvida contar, segundo ele confgirm, pelas velhas criadas do Candal e vista num teatro de bonecos, na Póvoa de Varzim. Bem como ainda, as narrativas históricas de Herculano, por exemplo, as Lendas e Narrativas portuguesas. A Literatura Infantil constituía então um dos meios mais eficazes que os pais tinham à sua disposição para exercerem influência e moldarem a personalidade dos filhos. Além desta intenção pedagógica e instrutiva, há outro aspecto que a distingue e marcou: é todo um movimento de interesse pelos
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elementos ligados ao passado, intensificado pelo Romantismo, surgindo na Literatura Infantil com o nome exótico de "Literatura Feérica". Mas é sobretudo com Antero de Quental, Eça de Queirós e Guerra Junqueiro, a Geração de 70, que aparece entre nós pela primeira vez uma Literatura para Crianças, como tentativa para compreender e valorizar a natureza infantil, reconhecendo a infância como um mundo aparte. E Guerra Junqueiro foi sem dúvida o que mais se confrontou com esta literatura infantil, afirmando então: “ A alma de uma criança é uma gota de leite com um raio de luz. Transformar esse lampejo numa aurora, eis o problema"; ou “Para crianças ... livros simples?! Nada mais complexo." Também João de Deus, o maior pedagogo deste século, iniciou aquilo que se pode considerar uma campanha de interesse e amor pelas crianças, fomentando pelo menos a instrução elementar para todas as crianças portuguesas. Foi neste século, talvez por causa do desenvolvimento das técnicas de impressão tipográfica e do aumento do público leitor, que apareceram os primeiros jornais infantis e foram dados os primeiros passos para um "teatro infantil". Afonso Lopes Vieira e António Correia de Oliveira trouxeram também a poesia aos olhos e mentes infantis. Hoje, a Literatura Infantil e Juvenil adquiriu tal qualidade e importância que, se até agora as crianças liam pouco, e com relutância e dificuldade, os livros dos adultos, actualmente são os adultos que lêem com gosto as obras destinadas à criança. Por isso, a importância da literatura infantil é tal nos nossos dias que em todos os países se organizam congressos, feiras, exposições e conferências, atribuindo prémios aos melhores autores e suscitando ensaios teóricos sobre a literatura para a infância. Há todavia por vezes quem faça críticas negativas em relação à literatura infantil actual, dizendo que, embora tenha havido melhorias na apresentação exterior das obras pelo desenvolvimento e grande riqueza de materiais, meios e técnicas tipográficas, haja no entanto menor qualidade literária dos textos. A crítica é evidente, mas a literatura infantil existe, tem a sua energia própria, a sua diferença específica, a sua variada função didática, estimulando a imaginação e criação, o gosto pela leitura… O que importa, pois é purificá-la dos ingredientes nocivos, dando razão a Matilde Rosa Araújo, que muito se tem distinguido na escrita infantil e juvenil, opinando a este respeito: "Escrever para crianças é difícil: eu ia dizer um jogo difícil". Parafraseando: as origens da Literatura Infantil mostram-se obnubiladas e nem sempre transparentes, não só pela dificuldade e contornos mal definidos, como também pelos diversas mentalidades e contextos históricos, onde ela foi medrando. TIPOS DE LITERATURA INFANTIL EM PORTUGAL Todas as obras que se destinam às crianças ou jovens, e não sejam traduções, adaptações ou com objectivos de natureza escolar, repartem-se essencialmente do seguinte modo: Literatura de Ficção (Conto, Novela, Romance), Poesia, Teatro, Obras de Divulgação (História, Arte, Ciência, Técnica,etc) e ainda Literatura aos Quadradinhos ou Banda Desenhada. A Literatura de Ficcção abrange dois momentos significativos:
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O primeiro, tudo o que se publicou antes do século XIX, correspondente nomeadamente aos séculos XVIII e XIX. Relevando aqui que as traduções de obras, como o "Telémaco", levaram â imitação e criação de textos semelhantes em Língua Portuguesa e a um maior interesse e atenção pela criança e pelo jovem. Com a queda da Monarquia e a implantação de novo regime, a Literatura para crianças e jovens tornou-se objecto de máxima importância para ideário republicano, já que antes os livros e a leitura eram monopólio, e escasso, dos paços e conventos. Com a República, aparecem pois escritores devotados a esta tarefa de publicar histórias de viagens, exploração e aventura, sobressaindo Ana de Castro Osório, Maria Paula Azevedo, não esquecendo Júlio Dinis, que, embora publicando para adultos, nos traz contos de rara beleza. O segundo período da Literatura de Ficção, no século XX, denominado "período actual", caracteriza-se por uma actividade editorial intensa nesta área com o aparecimento de editoras especialmente interessadas em publicações para crianças e jovens. Apraz ressaltar alguns dos mais dedicados Autores portugueses actuais, que, contra ventos e marés, dedicam muito do seu tempo à literatura para crianças e jovens. São eles: António Torrado, com trechos simples e atractivos para as crianças; Sophia de Mello Breyner (de saudosa memória), mistificando histórias interessantes do agrado das crianças e dos adolescentes; Alice Vieira e Ilse Losa, relevando temas vitais e burilando-os de cambiantes apetecíveis às crianças; Miguel Torga e Aquilino Ribeiro, em texto mais evoluido e profundo, como Contos realistas ou fabulares a fazer pensar; onde por vezes as personagens/animais adquirem elevada importância; Ana Maria Magalhães e Alçada Baptista, com histórias simples de cariz aventureiro; e ainda, António Botto e Fernando Cardoso, fazendo renascer histórias infantis esquecidas. Embora noutro plano, da Literatura Contista para adultos, também os jovens podem ler com agrado os Contos de Miguel Torga, Branquinho da Fonseca e Manuel da Fonseca; ou então, em literatura de intervenção social: as narrativas de Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes e ainda Manuel da Fonseca. Um grande sinal positivo da parte das Editoras está no incremento desta Literatura, que tem atraindo gosto pela leitura dos mais jovens e constituido também um estímulo dos mesmos para a escrita. Reportando-nos à Poesia, autores do século XIX preocupam-se com a escolha de poemas para crianças e também para os pais: Antero de Quental, Guerra Junqueiro, João de Deus, por exemplo. Estes poemas apresentam carácter predominantemente narrativo, expositivo ou confessional, e ainda certa tendência para o teor retórico e artificial. No século XX sobressaem António Correia de Oliveira e Afonso Lopes Vieira. Quanto às Obras de Teatro - embora com gosto mais restrito e peculiar; embora orientadas mais para a representação que para a leitura; embora reconhecidas de início, como actividade lúdica, cultural e educativa - o apoio e o interesse dos nossos escritores tem-se mostrado variegado, consoante se trata de Teatro para adultos, de Teatro para jovens ou de Teatro para crianças.
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O Teatro escrito para jovens e adultos não tem interessado os dramaturgos, ao contrário do teatro infantil, mostrando bastante vitalidade, com o senão de viver muitas vezes de obras estrangeiras, que "deixam muito a desejar" e abafam a ainda pouca produção nacional. A Banda Desenhada portuguesa tem ocupado, embora em pequena escala, os últimos anos, dando ainda vantagem a traduções e cópias de obras estrangeiras, que superlotam as bancas, os programas das TVs …
"O homem descobriu, desde tempos remotos, que qualquer habilidade é um recurso a mais à sua disposição; mas, só depois que aprendeu a criar disponibilidades para seu próprio conhecimento, ele descobriu e cultivou os seus valores, fazendo-se admirado e respeitado". É a literatura infantil que vai criar basicamente essas disponibilidades. A literatura nasceu, desenvolveu-se e cresceu como o homem, com o homem e para o homem. Da infantil literatura, fonte natural da comunicação, à literatura adulta foi longa a trajectória e completo o manancial, mas indispensável ao homem para reforçar as suas mensagens aos outros. Geneticamente, a poesia é a "infância da literatura ", enquanto trnsmissão dos mitos originais, que já os humanos primitivos souberam reconhecer e depois ir transmitindo, inicialmente com meios rudes e naturais, até alcançar épocas áureas de expressividade literária, desde os tempos preclássicos até aos nossos dias. Incidindo na literatura infantil diremos que "a infância foi feita para imitar" (diz Claparède); então "despertemos nela as proveitosas imitações". A fantasia na criança, possui certa actividade interior reprodutiva que a capacita a combinar imagens e refundi-las. Os primitivos não agiram de modo infantil nas suas representações / pinturas rupestres, por exemplo, que hoje ainda admiramos. Por essa capacidade intuitiva e subjectiva, a criança, como os primitivos, é uma "criadora de símbolos, uma poeta" [poetisa será outra coisa]. Todos sabemos que há em cada criança um poeta, como há em todo o poeta uma criança. Aliás, não só o poeta, mas também cada adulto tem, quase sempre, dentro de si uma criança, mais ou menos sufocada pela vigilância de todo o tipo de "censuras” internas e externas. Por isso, os livros de contos infantis devem ser conhecidos e até lidos por aqueles que têm por missão a tarefa de educar as crianças: na escola pelos professores, e no lar, pelos pais ou outros familiares. Ofélia B. Cardoso confirma: "Preocupo-me não só com a influência que, estou certa, eles os contos infantis exercem sobre a mente plástica" da criança, como com as consequências que se refletem no adulto". São palavras de uma psicóloga, que tem, "há trinta anos, o espírito voltado para os contos infantis" e considera que a literatura influencia a criança em todos os aspectos da sua vida: intelectual – abrindo a mente; emocional – aceitando o modo de ser dos outros; social – convivendo em paz; ambiental – respeitando a natureza
Contos Naturais - Oliveira Macêdo envolvente e os seres que a habitam; mesma nos defeitos e nas valores …etc.
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psicológico – conhecendo-se a si
O conto maravilhoso ou de fadas, - primeira manifestação da literatura da criança e a primeira expressão do foclore europeu - conserva a estrutura do mito e seus condicionamentos, tornando-se importante para o crescimento afectivo da criança, pelo uso dos símbolos e a amena perenidade da inocência. No conto infantil reside muito desse mito, dessa poesia, pois ele é uma "chave mágica" que abre as portas da inteligência e da sensibilidade da criança para sua formação integral através do devaneio, da fantasia, da criação, da paz, da bondade natural. Como vertente do mito, o conto de fadas adquiriu novas tendências de revitalização, observando-se entre outras, a sua emancipação dos deuses, que foram substituidos por hérois, seres sobrenaturais, ou animais miraculosos; outra, a nova tendência da divulgação popular dos rituais secretos do mito; outra ainda, a que se prende com a reformulação do comportamento das personagens. Por esta breve resenha se vê que a Literatura Infantil se foi tornando paulatinamente campo de grande interesse para os investigadores actuais. As suas pesquisas e abordagens têm contribuido outrossim para congregar os esforços de instituições e indivíduos: professores, pedagogos, psicólogos, pais e estudiosos para a necessidade cada vez maior de dar importância a um dos pilares fundamentais da formação das gerações vindouras: o conhecimento adquirido pela criança, não só através da sua atitude passiva perante a atração irresistível que os meios audiovisuais lhe provocam, mas também, e sobretudo, pelo simples atitude ativa de ler. "A descrição do que existe, a verificação do que a juventude prefere e a delineação do que ainda falta neste domínio que nos vem ocupando, são aspectos principais a merecer atenção, numa política que pretende a elevação do nível educacional e cultural da juventude - dessa juventude que hoje constitui preocupação acrescida entre as outras e inúmeras preocupações do povo português".. Júlio Oliveira Macêdo Júlia Odete da Costa Macêdo Bibliografia Correia, João David Pinto - A Literatura Juvenil em Portugal: subsídios para o estudo da sua história e de alguns dos seus problemas; ed.M.E., Direcção Geral da Educação Permanente; Lisboa, 1973 Pires, Maria Laura Bettencourt - História da Literatura Infantil Portuguesa; ed. Vega; Lisboa Carvalho, Bárbara Vasconcelos de - A Literatura Infantil: visão histórica e crítica; Global Editora; 6ª edição; S.Paulo, 1989
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O RATO METEDIÇO
Ano de 2012
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Um dia de manhã as duas irmãzinhas, Carolina e Matilde, acordam com um barulhito estranho entre os seus brinquedos, acumulados no quarto.
Curiosas, sem dizer nada aos pais, querem descobrir sozinhas a causa do estranho ruído. Mas, por mais que procurem, nada! Ao mínimo movimento das irmãs, o ruído desaparece. “Será o ar da janela? – pergunta a irmã mais nova, a Carolina. “Não pode ser! – responde Matilde, arrastando a mão direita pela fresta inferior da janela – O ar quase nem se nota, mas se fosse isso o ruído devia continuar! “Então é algum boneco de corda! “Nem penses! Eles só se mexem quando têm corda ou as pilhas ligadas. E estes estão todos parados, não vês? “Sim, mas … e se for algum mosquito? – insiste a Carolina. “Mosquito? Vamos espreitar: tu dás uma vista de olhos pelo tecto e eu pelas paredes! – diz a Matilde. “Se vir o mosquito atiro-lhe com a toalha e pronto! “Deixa-o lá, coitado, também tem o direito de viver como nós! “Mas pica! “Porque nós deixamos! Basta um cheirinho de espantamelgas-e-mosquitos, ele desaparece e não nos incomoda mais! “Está bem, vamos continuar! – concorda Carolina. Elas bem afinam a vista ao redor do quarto e … “ … nada! – exclama Matilde. “… nadinha! – desabafa Carolina – Nem sombra de mosquito. Entretanto a mãe chama as manas para o pequeno almoço: “Meninas, para a mesa, que se faz tarde para a escola! “Já vamos!
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Combinaram então em segredo não dizer nada aos pais e continuar à procura depois de voltarem da escolinha.
Durante os trabalhos na escola, iam olhando uma para a outra, distraídas a pensar no tal ruído, de tal modo que a professora teve de as chamar à atenção. “Meninas, hoje estão com pouca vontade para trabalhar! Há algum problema convosco? “Desculpe, senhora professora! – responde a Matilde -. Não é nada, não se preocupe! “Está bem! Não se distraiam. Elas queriam obedecer, mas o pensamento fugia - lhes para o quarto… para o ruído. E assim foi todo do dia passado na escola!
Até que enfim o toque da campainha!
! !! … e a voz da senhora directora: “Meninos e meninas, as actividades escolares terminam por hoje! Está na hora de guardar os livros, os lápis e os cadernos. Tenham todo o cuidado na rua! Portem-se bem em casa! Obedeçam aos vossos pais! Façam os deveres! Até amanhã! “Até amanhã, senhora professora! – gritaram em coro as crianças, voando para a porta de saída. Chegadas a casa, a Matilde e a Carolina, mesmo antes de tirarem as mochilas, correm para o quarto, com o espanto da mãe ao vê- las numa dobadoira a remexerem os brinquedos, espreitarem para debaixo do beliche e rodopiarem a cabeça pelas paredes e pelo tecto. “Meninas, que pressa é essa? Que aconteceu? “Nada, mãe, apeteceu-nos! – responde a mais velha, aperrando os braços ao peito. “Pois é! – replica Carolina, fazendo o mesmo que a irmã.
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“Mau, mau! – repreende a mãe – Não estou a gostar nada da vossa atitude. Aqui há gato! “Gato, não, mãe, nós não temos gato nenhum! – acertam as duas ao mesmo tempo. “Então um rato! “Um rato? Ui, ui! – gritam a saltar. “Bom, bom! Toca a guardar as mochilas e juizinho! Vamos ao banho! – conclui a mãe, sempre desconfiada, esperando que o tempo esclareça a questão.
Cumprida a obrigação higiénica, foram brincar para o quarto, mas sempre atentas ao mínimo ruído. Nada de anormal! “O barulho desapareceu! – cochicha a Carolina ao ouvido da irmã. “Muito estranho! … - admira-se a Matilde – Vamos para a mesa. Depois, pode ser que … “Temos que descobrir! – concorda a Carolina. Correram para a cozinha, despachando rapidamente o jantar.
Os pais ficaram admirados, pois nos outros dias era um sacrifício para as obrigar a comer! Para não darem a perceber aos pais a pressa que tinham, ligaram
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por alguns minutos a televisão nas aventuras do Rucky, a rádio com as cantigas da Carolina, espalharam alguns brinquedos pelo chão, mas … não tiveram mais paciência e despediram-se logo dos pais com um abraço e um beijo repenicado, correndo para o quarto, vestindo os pijamas … ah!... e rezaram ao Anjo da Guarda, como de costume, mas com mais rapidez e menos devoção:
Meu Anjinho divino minha companhia sê a minha guarda de noite e de dia! Amen
Deitaram-se com o ouvido à escuta. Nada. Depois de uns minutos de voltas nas camitas, quem apareceu foi o malandro do sono. Altas horas da noite, no meio do silêncio dos vizinhos e sem o barulho dos carros, lá se ouve o tal ruído por entre a bonecada espalhada pelo chão: rek – rek, rek-rek A primeira a acordar foi a mais velhinha, a Matilde. Acendeu o candeeiro de vigia, levantou a cabeça e espreitou para o chão sem fazer barulho. O ruído parou. Esperou quietinha e lá voltou o mesmo “rek – rek”. Resolveu então acordar a Carolina. Abanou-a de mansinho, cochichando, baixinho: “Lina, Lina, acorda”!
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Acendeu então a luz do quarto e as duas resolveram procurar com todo o cuidado para não acordarem os pais nem espantarem … o quê ?! De repente, o palhaço de pano colorido começa a mexer-se. Espantadas abraçam-se com receio. Mas, aos poucos vão-se aproximando do boneco. Até que, devagarinho, medroso, farejando o ar com o seu focinho a tremer … sai de lá … um ratito pequenito cinzento-brilhante, olhinhos redondos e piscos. Ao ver as crianças, senta-se e levanta o corpo com as patitas dianteiras erguidas.
A primeira reação foi esconderem-se entre os lençóis, mas, achando tanta graça ao bichito nada medroso, resolveram ficar quietas e esperar, encantadas com o que viam. Resolvida a limpeza do focinho, o ratito, nada importado com a presença das curiosas irmãs, voltou-se e entrou novamente no casacão do palhaço de trapo, que era o seu esconderijo. “Que vamos fazer? – pergunta Carolina. “Deixa-o ficar a dormir, coitadinho, deve ter sono, e de manhã arranjamos-lhe um lugar melhor para passar o dia. “E de comer? – insiste a Carolina – Ele deve ter fome! “Ah, ah, ah! – ri-se a Matilde, apontando para uma boneca – Está toda esfarrapada! Olha o livro do Ruky com as folhas roídas! “Foi o ratinho? Ele come pano e papel? – admira-se Carolina. “Os ratos roem tudo o que encontram com os seus dentinhos como se fossem serrinhas! “Então tem a barriga cheia! “Se tivesse fome já tinha ido à cozinha procurar comida!
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“Ele também deve gostar de outras coisas boas! “Pois gosta … – responde a Matilde - … queijo, cereais… “De manhã, vamos trazer-lhe uns bocadinhos de queijo, às escondidas da mãe… “E água! Deve estar com sede! Combinaram então tudo e, depois de se terem aproximado do palhaço e espreitado para o forro, viram o ratinho todo regalado a dormir enroscadinho. Radiantes, em voz baixa, acenando, iam dizendo “adeus” ao seu amiguinho: “Boa noite, ratinho, dorme bem! “Não roas os bonecos! “Logo vais ter coisas mais saborosas para comeres! ”Xau! E foram deitar-se, pé ante pé.
De manhã levantaram-se cedinho, mesmo antes de a mãe as ir acordar, correndo para a cozinha aos saltinhos silenciosos. Aí cortaram pedacinhos de queijo e migalhas de pão, colocaram-nos num pratinho, deitaram água num dos seus baldes de brincar e levaram para o quarto, colocando tudo num cantinho. Depois acordaram o ratito, que, ao farejar o queijo, esfomeado que estava, correu logo para a refeição improvisada.
A mãe, embora admirada de ver as suas filhas a pé tão cedo, não desconfiou de nada, apenas lhes disse, carinhosamente: “Muito bem, meninas, estão a ficar umas mulherzinhas! Feitas as obrigações higiénicas matinais, tomado o pequeno almoço sem as esquisitices habituais, foram radiantes para a escolinha.
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A educadora notou nesse dia que as irmãs andavam mais despachadas, obedientes e satisfeitas. “Alguém faz anos hoje!–exclama, matreira, a professora. “ “Porquê? – perguntam as duas de imediato. “Nada, nada, estava só a … “ “Não podemos estar satisfeitas? na escolinha? – reage a Matilde. “Podem e devem, mas hoje vocês estão diferentes! “Te “Tem graça que a mãe também nos disse a me mesma coisa! – explica a Carolina, piscando o o olho à irmã. “Vamos então aproveitar o tempo … já que estão muito bem dispostas!
O dia correu lindamente. Novamente em casa, o corropio foi notado pelo pai, que as alertou: “Que pressa, meninas! “Temos muitos deveres para fazer – desculparam-se elas. “Primeiro, tomem banho e depois … “ … mudem de roupa - insiste a mãe. “Vamos já!” – e fecharam-se no quarto. Maravilha! O ratito tinha limpo o prato, bebido muita água e dormia regalado no aconchego do palhaço. Tendo pensado em fazer-lhe uma pequena casota, as irmãs desistiram dessa ideia, pois o bichinhoestava consolado no esconderijo que tinha escolhido. Nessa noite preparam-lhe então, às escondidas, outra refeição com sementes do canário, que vivia na cozinha, numa gaiola, pintada de azul.
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Mas, o que é bom não dura sempre! No dia seguinte, a vizinha do apartamento ao lado, dona Clementina, bate à porta, aflita e preocupada, a perguntar à mãe das meninas: “Dona Eliana, não viu por aí um ratinho hamster pequeno, que me desapareceu de casa? “A vizinha tinha em casa um rato? “ … de estimação. Há dois dias dei por falta dele, mas pensei que estivesse escondido em algum canto. Procurei, mas não o vejo … “ Que eu saiba, não está por aqui!… A mãe desconfiou então da lufa-lufa das filhas! “ Vou perguntar às minha filhas … Matilde e Carolina, tendo ouvindo a conversa por detrás da porta – embora com a pena que iriam ter do bichinho, mas preocupadas com a tristeza da vizinha - resolveram intervir: “Mãe, não se preocupe! - aparece Matilde. Logo a seguir a Carolina: “Dona Clementina, descanse! “Então, meninas, que novidades há por aí? – sorriu a mãe, prevendo a resposta das filhas. “O ratinho veio fazer-nos uma visita, está conosco! “Ah, suas mandrionas, só agora …?! - exclama a mãe. “Deixe lá, dona Eliana, ele esteve bem entregue e as meninas gozaram da sua companhia! Obrigadinha, minhas jóias. A correr, mas com uma lágrima no olho, Matilde foi buscar o seu pequeno amigo. “Anda cá, ratinho querido … Com ele ainda a dormir ao colo: “Vai para a tua dona, que gosta muito de ti. E dando um beijo na cabeça do pequenito entregou-o à dona Clementina. E… … a história vai acabar assim tão tristemente!? Vendo-as chorosas e agradecendo a hospitalidade, a dona do ratinho fez-lhes uma proposta, pois vivia sozinha no apartamento ao lado: “Minhas meninas, já que gostais tanto do Salino … “Salino? – perguntam admiradas. “Sim, é o nome dele! Então, ia eu a dizer, se quiserdes continuar a tratar dele – acariciando o ratito - eu ofereço-vos uma chave da casa,
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se a vossa mãe permitir, e podeis vê-lo à vontade … quando quiserdes! Achas bem, Salino? Ele respondeu, esfregando os bigoditos e cochichando: “Xii-xii-xii! As irmãs acharam graça à resposta do Salino, agradeceram à dona Clementina e prometeram logo comprar um parque daqueles que vendem nas lojas de animais de estimação, composto por
um arco colorido uma escada bamboleante um escorregão e bolinhas de várias cores para o Salino se divertir com a sua companheira Safira, uma ratita tão linda e brilhante como ele.
Hoje os ratitos vivem felizes, brincando, dando alegria à dona da casa e também às suas amiguinhas Matilde e Carolina, que os visitam todos os dias de manhã e à noite, levando-lhes sempre, não só festinhas como também alguma guloseima.
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2 A GATINHA AVENTUREIRA
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O Jonas e as duas primas, Carolina e Matilde, estando a passear pela avenida principal da cidade, ouviram os gemidos aflitos de um gato, que parecia metido em grandes sarilhos:
Pararam logo para descobrir de onde vinham esses mios desesperados. Olhavam para todos os lados e não conseguiam ver o animalzinho. “Onde está ele? – choraminga a Carolina aflita.
“Tem calma! – diz o Jonas, continuando a procurar. “Deve estar aqui perto! – afirma a Matilde, espreitando por todo o lado. Uma senhora, que observava os primos e também ouvia os mios, aproximou-se deles e perguntou: “Posso ajudar, meninos? “Estamos a ouvir os mios de um gatinho e não o descobrimos! – queixa-se a Matilde.
“Está a ouvir? – aproxima-se a Carolina. “Sim, sim! Acho que vem dali! – disse, apontando para o canto do passeio onde estava um contentor do lixo. Os três correram logo para lá com a senhora. Espreitaram por baixo, mas … Miau! Miau! … “Não se vê nada! – dizia o Jonas “É bruxedo! – exclamavam elas. A senhora sorria porque descobrira que os mios
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vinham do interior do contentor de plástico verde - cinzento. “Escutem bem! Estejam atentos! E o animalzinho cada vez miava mais:
“É daqui, do contentor! – exclamam os três, tentando abri-lo. “Nós não conseguimos tirá-lo de lá, coitadinho! – exclama Carolina. “Eu ajudo, eu ajudo! – responde a senhora…- Difícil abri-lo! Upa, upa! O Jonas gritou então para um senhor que ia a passar: “Olhe, por favor, ajude-nos aqui! “Em quê? – pergunta ele sem saber do que se tratava.
“É um gatinho que está aqui dentro, queríamos salvá-lo, mas não conseguimos levantar a tampa … se fizer o favor de nos ajudar… - intervém a senhora. “Oh! Eu ajudo com todo o gosto!– disse sorrindo o senhor. Entretanto a senhora, levantando sozinha um pouco a tampa e tentando espreitar, deixou-a caircom estrondo, exclamando: “Ui, sabem o que está a sair daqui? “O gato? – perguntam os primos. “Um cheiro … horrível! – diz o senhorE, afastando-se e procurando o lenço para proteger o nariz – sperem, eu vou levantar a tampa sozinho. Afastem-se um pouco! Enquanto espreitava para dentro, com cuidado, segurando a tampa com a mão esquerda e a mão direita a apertar o nariz por causa do mau cheiro, saiu rápido de lá um gatão possante, saltando para o passeio e dando turras a quem passava, gemendo de alívio e contentamento:
Os primos correram para ele, acariciaram-no muito, com esforço pegaram nele ao colo à vez, perante a satisfação das pessoas que passavam. Olhando em volta, esperando ver aparecerem os donos do animal, as crianças estavam com receio de ter problemas. Mas, como não apareciam, resolveram levá-lo para casa, despedindo-se dos senhores que os ajudaram e agradecendo:
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“Muito obrigado, senhores! Obrigado! Porém, mal deram alguns passos, aparece uma menina, gritando: “Larguem o bicho, a gatinha é minha! Obrigado por a terem descoberto, mas … é minha, muito minha! “Uma gata? – exclamam os primos, admirados. “Sim, a minha Fofa, que fugiu de casa!
O senhor e a senhora acalmaram a menina, que estrebuchava no chão para arrancar o animal do colo do Jonas, que tentava fugir com ele. Mas, por obra dos adultos, tudo acalmou. Como a menina morava ali perto, os primos concordaram então entregar a bichana, na condição de poderem visitá-la. “Prometes deixar-nos ver a gatinha sempre que quisermos? – pergunta o Jonas, apertando o animal contra o peito. “Está bem! – concorda a menina – Eu chamo-me Lúcia … e quero ser vossa amiga. Venham a minha casa para vos apresentar à minha mãe, o meu pai ainda não chegou do trabalho. Os senhores, radiantes e satisfeitos por terem participado no salvamento da gatita e contribuido para a paz entre as crianças, despediram-se mais uma vez deles: “Adeus, meninos, fizeram uma boa acção! – elogia a senhora. “Cuidem bem da Fofinha! – aconselha o senhor. “Adeus e obrigados! – respondem as crianças, satisfeitas. Os três primos, depois de terem pedido licença aos pais para irem a casa da Lúcia, ganharam mais uma amiga com quem brincar e uma gatinha para acariciar. E ela, que mais parece um gatarrão, vai passando de colo em colo,ronronando feliz.E por vezes faz de palhaço de circo.
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Entretanto os primos quiseram saber como foi possível a gata, com o lindo nome de Fofa, ter entrado naquele contentor malcheiroso. A menina explicou: “A Fofa é uma gatarrona espertalhota! Sente-se muito presa em casa e passa a vida à janela, miando a qualquer amigalhaço, gatarrão também, que passeie pelos quintais. Para a consolar, os meus pais resolveram lançar uma escadinha em corda grossa da janela da cozinha até ao nosso jardim. Ora, nesse dia, a Fofa resolveu passear pelo muro do jardim, como costumava fazer, e viu o contentor do lixo meio aberto. Curiosa ou atraída por algum cheiro agradável não hesitou, saltou para dentro … mas alguém, vendo o contentor aberto, naturalmente baixou a tampa sem imaginar que a menina curiosa estivesse lá… Assim, a Fofa acabou por ficar aprisionada, sem possibilidade de sair. Ajudados pela amiga, os primos observaram então o caminho que os pais da menina, com pena da Fofa, lhe tinham oferecido para gozar de liberdade e se distrair.
Afinal os animais domésticos também precisam de viver felizes … à sua maneira. Não é?
MIAU MIAU
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O PARDALITO FINÓRIO
Ano de 2012
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A minha casa está construida numa zona onde antes abundavam árvores de grande porte, como pinheiros e eucaliptos, e outros arbustos naturais. Aves de várias espécies, como melros, pardais, rolas, majangras, pêgas e outras, alimentavam-se das sementes dos campos em volta, faziam os seus ninhos, criavam os filhotes, e cantavam, em alegre convívio, cada uma a seu jeito, parecendo um grupo musical variado e divertido, sobretudo na primavera. A destruição das árvores, a construção desordenada de edifícios, o movimento das pessoas e o barulho ensurdecedor dos automóveis, acabaram com esse espaço natural, feito de frescura verde, sombras apetitosas, ar puro e aves amigas e cantadeiras.
Assim, ficando sem a vegetação para viverem descansadamente, os animais desapareceram para os montes, que felizmente ainda existem por lá. Mas alguns habitantes das novas casas, com pena e saudade da alegria do cantar e esvoaçar dos pássaros, resolveram plantar árvores e arbustos nos seus jardins e fazer com que eles voltassem. Foi assim que as rolas, os melros, e sobretudo os pardais, começaram a aparecer, aproveitando os restos de comida e as poucas árvores para fabricarem os seus ninhos refazerem os pousos, e criarem novamente os seus filhotes.
Ora os pardais toda a gente os conhece! O nome de pardal vem da sua plumagem ser parda e acastanhada. E foi então que um grupo de pardais oportunistas, traquinas e barulhentos, assentou arraiais
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nos telhados e nas palmeiras acolhedoras do lugar. Dois ou três tinham-se multiplicado de tal modo que a sua algazarra barulhenta de manhã e à tardinha, começou a ser notada, criando admiração e satisfação nos vizinhos que por ali moram. Então, pouco a pouco, perdendo o medo aos humanos, vão lentamente espreitando às janelas das cozinhas e saltitando pelas varandas à procura de algum cibaco de pão ou migalha ou grão de arroz. Os pardalitos mais novos, nascidos ali, inocentes e habituados de pequeninos à presença humana, aproximam-se das habitações e das pessoas, aprumados em fila nos corrimões das varandas ou nos terreiros, esperando habitualmente que alguém se lembre deles, atirando-lhes umas bolitas de pão. E até os outros, que vivem nas redondezas, aproveitam a ocasião e aparecem por lá, voando dos telhados ou das árvores, parecendo paraquedistas a aterrar nos quintais. Ora, certo dia, um desses pequenitos, aproveitando uma janela aberta, entrou por ela sem medo algum e foi pousar numa trepadeira da sala, chilreando contente e bisbilhotando o ambiente.
Quem ouviu o xiu-xiu do passarinho foram a Alice e o Mário, que brincavam no quarto, procurando a solução para um quebracabeças de encaixes de papelão colorido. Pé ante pé para não espantarem o passarinho observaram-no por algum tempo a saltitar entre os ramos da trepadeira, depenicando levemente as folhas. Alegres com a presença ousada do pardalito, mas também com pena dele, que ia piando, talvez com fome, talvez por falta de
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companhia dos seus amigos, foram preparar-lhe um pratinho com pequenas migalhas de pão e, com toda a cautela, colocá-lo em cima duma mesinha no canto da sala e que ele pudesse descobrir.
E esconderam-se à espera. Mas, para admiração dos irmãos, quem se aproveitou do prato foi um par de pardais mais velhos, que, ouvindo o piar, desconfiados e com todo o cuidado, resolveram também abusar da confiança e entrar na sala. Foram comendo gulosamente tudo à pressa enquanto o pequenito, vendo os seus colegas, se ia aproximando todo atrapalhado a esvoaçar. Mas, chegou tarde, os outros fugiram espavoridos e ele ficou a tamborilar com o seu biquito nalguma migalhita que tinha sobrado no prato. Sem mais nada, imitando os outros, aflito, desorientado, resolveu também desaparecer. Alice e Mário não desarmaram. À tardinha, prepararam novo prato, esperando a visita do pardalito. E ele apareceu. Espreitou, espreitou, piou duas vezes, xiu-xiu, abanando o rabito, e, sem se fazer rogado, foi direito ao prato e gulosamente encheu o papito, de tal modo que, quando os mais velhos atrevidos apareceram em bando, não viram senão o prato quase vazio.
XIU - XIU – XIU
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A partir desse dia os pais dos meninos ajudaram-nos a tratar da pardalada, não na sala, que ia ficando cheia de penas e lixo, mas num recanto da varanda, onde prepararam um lugar apropriado e resguardado da chuva e do sol, com comida e água. Hoje, todos os dias, um bando de pardais “domesticados” invade com ruido a varanda, onde, sem a prisão das gaiolas, gozam da vida, livres e felizes, alegrando também a vizinhança com seus chilreios.Tudo por obra e graça de um finório pardalito, que se considera gente grande por ter contribuído para a satisfação do seu bando.
XIU - XIU – XIU
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4 O CテグZITO COM SORTE
Ano 2012
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Foi encontrado na rua a vadiar, farejando em todas as esquinas. Estava magricela e teria pouco mais de dois meses de idade. O pêlo, malhado de cinzento com manchas brancas, não brilhava, encontrava-se cheio de poeira e com pequenos restos de sujidade colados ao corpo.
Até que a criançada da escola reparou nele: primeiro, com medo, depois com algum nojo pela mau aspeto do animal, e depois … o cãozito, até ali também com medo, resolveu, cabisbaixo, abanar o rabito, aproximar-se devagarinho do grupo de meninos e, por fim, quando reparou que o chamavam, começou a saltar às pernas da pequenada, que corria e saltava também, convidando-o à brincadeira. A hora das aulas aproximava-se e os meninos começaram a ficar com pena do pequenote, que não os largava: “Vamos levá-lo para a sala? – perguntava a Cassilda. “Nem penses – aconselhava o André. “E vai ficar aqui abandonado? – comentava o Fábio.
Cada um ia então dando a sua opinião:
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“cheio de fome e sede, vai ficar debaixo dos carros, ser apedrejado por algum colega mais malandro, preso nalguma jaula … Que fazer?” A professora Ana, que de longe apreciava o movimento das crianças, resolveu intervir: “Que se passa aqui, meninos? As crianças, atrapalhadas e medrosas, não queriam descobrir o problema. “Então, meninos, eu posso ajudar! – disse a professora, sorridente para acalmar o nervosismo dos alunos. “É que – resolve falar a Cassilda – apareceu na escola este cãozinho sem dono e nós temos pena de o deixar andar por aqui abandonado e esfomeado. “Pois é, professora, não sabemos como o vamos ajudar! – afirmou o André, entristecido, fazendo festas ao animal. “É um problema, é! – aparece um professor, que se aproximou do grupo, e do cãozito. - Mas com a vontade de todos podemos … Sem o deixar acabar a frase, a professora adiantou: “… podemos colocar-lhe esta linda coleira! “Sim, professora! – gritaram todos em uníssono. Foram saltos e palmas de alegria e festa!
“… e também esta capa colorida para o defender do frio! A algazarra e as palmas chamaram a atenção do senhor Almiro, o porteiro da escola. Não se dando conta da professora, interveio: “Então, meninos, que barulheira é esta? A professora foi a primeira a esclarecer o senhor Almiro, que pediu desculpa de não a ter visto.
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“Não se perturbe, está tudo em ordem, temos aqui apenas um pequeno problema que até o senhor pode ajudar a resolver. “Pois sim, senhora professora, às suas ordens! – respondeu prontamente. “Olhe, a escola não precisa de um cão de guarda? À noite fazia jeito! “Sim, sim, a senhora directora até já me tinha pedido o favor de eu arranjar um! “Mas este é muito pequenino! – intervém a Mafalda. “É pequenino, mas vai crescer! – responde o sabichão do Anselmo. “Como é que sabes? Há cães pequenos, que não crescem mais! – reage a Sara. “Eu sei, eu sei, eu explico – levanta mão outro sabichão, o Salvador. “Explicas o quê? – ri-se a Rosita, empurrando amigavelmente o colega. “Sim, senhora, queres ver? “Queremos! – exclamam todos às gargalhadas. O Salvador não desanimou, pegou no cachorrinho, pô-lo no chão de barriga para cima e ei-lo…
“Coitado do bicho! – gritam as meninas. “Calma aí. Vedes estas patas? “Sim! – gritam todos. “São pequenas, não são? “Siiiim – todos em coro. “Estão sujas, mas vê-se bem … “Ai, sim? – admiram-se alguns. “Claro. Não é, senhor Almiro? – pergunta o Salvador. “É, sim, senhor. Este cão não vai crescer muito, mas nós vamos criá-lo aqui conosco … se a direcção da escola consentir, claro! Ah, e ele vai ladrar muito quando for preciso.!
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“Não há problema, meninos, eu trato da licença e das vacinas e vocês, com o senhor Almiro, ficam encarregados do bichinho! “Ficamos, sim, senhora professora! “Mas – intervém a Manuela, apertando o nariz de nojo – ele está tão sujinho e cheira … “Não há problema, vou já tratar da higiene do … como é que lhe vamos chamar? – pergunta o porteiro. “Dragão! Pantufas! Cocas! Roni! Kaiser! Douro! Bekas! Vicky … - iam gritando estes e outros nomes cada um mais variado que outro. “Basta! – grita a professora – Está na hora de ir para as aulas. O senhor Almiro vai limpar o cachorrinho, vocês vão pensando no nome a dar-lhe e depois se verá! “Senhora professora, posso dizer ao meu pai para oferecer à escola a casota do nosso cão, que morreu há pouco tempo …? “E ela não vai fazer falta para outro cão, que tu com certeza vais arranjar? “Faria, senhora professora, mas eu vou deixar passar muito tempo até esquecer a tristeza que sinto por esse grande amigo, que se chamava VIKY, tinha a mesma idade que eu e festejou o seu aniversário comigo na mesma data … foram onze anos de vida comigo. “Viva o Salvador! Viva o VIKY! “Óptima ideia! Viva o VIKY da nossa escola! – anuncia a professora, entusiasmada. “VI-KY, VI-KY, VI-KY! - gritam todos, batendo palmas e rodeando o cãozito, atarantado com a algazarra.
A campainha soou …
“Oooohhh! Que chatice! – murmuraram todos. E vagarosamente, cada um foi - se despedindo do cãozito, dirigindo-se depois para as aulas: “Até já, VIKY, até logo! Adeus!
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Depois das aulas, estava o VIKY, lavadinho e bem cheiroso, tratado pelo constínuo da escola, Sr. Almiro, e aceitando as festas da criançada, dando saltos de alegria. E foi assim que passou a ser o mascote, a companhia e a alegria diária de toda a escola. Naquela noite o cãozito foi dormir a casa do Salvador. No dia a seguir, o pai do aluno entregou a casinhota para o guardião da escola, o célebre VIKI, salvo de uma vida de cão abandonado e aclamado agora por todas crianças, que saltavam e dançavam de alegria pelo novo e especial colega de brincadeira.
A rua ficou lá fora, ele tem uma casinhota colorida para mostrar aos seus amigos de quatro patas – aos cães, sim, mas aos gatos, nem pensar!, porque eles bufam fffffff e arranham-no sem piedade se o apanham. A estes ele apenas manda umas ladradelas para os afugentar, coitados! A partir desta data, apesar de ter as patas pequenas, é o guarda fiel da escola. Ao pôr do sol, cansado das brincadeiras do dia, aprecia a comida que o porteiro, senhor Almiro, lhe apresenta e começa a preparar-se para descansar e dormir, sabendo contudo que tem de estar sempre de olho guicho e ouvido atento a qualquer ruído estranho. Será vida de cão … e ele não se queixa, aceitando esta sina canina, que o criador lhe ofereceu. E agradece aos seus donos o bem que lhe fazem, cumprindo o seu dever de guarda e amigo.
béu béu! béu!
béu! béu! béu!
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A PÊGA ADIVINHA
Ano 2012
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Nem todos os meninos conhecem uma ave, mais ou menos do tamanho de uma pomba, vestida de negro, com listas brancas, chamada Pêga, que habita nos campos e matas da nossa terra, que não canta mas solta uns sons estranhos, como, xê-xê-rê-xê ou grã-grã-grã, daí o povo lhe chamar também gralha. Faz os ninhos no cimo das árvores ou nos telhados das casas de campo e alimenta-se sobretudo de frutos silvestres, restos de comidas e de toda a casta de insectos, como gafanhotos, carochas ou borboletas. Até tem o dom de falar, como os papagaios, se lhe fizerem uma pequena operação à língua, cortando-lhe uma prega, chamada trave. Os habitantes das terras rurais e campos de cultivo estão habituados à sua presença há muitos e muitos anos. E embora não dando muita confiança às pessoas, é considerada uma ave muito companheira com o bando ao qual pertence. Por esta sua atitude de camaradagem ela raramente se encontra sozinha, e, se tal acontecer, as pessoas dizem que é de mau agouro e sinal de alguma desgraça. Por isso, todos acreditam na lenda, confirmada pelas gentes das aldeias, de que as pêgas adivinham o que de bom ou de mau pode acontecer às pessoas que se encontrarem com elas ou à terra onde vivem. Se avistar um casal de pêgas, a pessoa pode ficar descansada porque a sua vida correrá normal e sossegada. Se as pêgas aparecerem em bando ou em grupo, a população sentir-se-á satisfeita, pois de certeza, dizem os camponeses, irá ter uma grande alegria, tanto maior quanto maior for o número de pêgas encontradas juntas. Mas, o triste encontro com uma pêga a vaguear sozinha é sinal de desgraça certa ou para quem a vê como para a aldeia.
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Será realmente assim? As lendas são consideradas como sendo mais um conto inventado do que a certeza de uma realidade. Mas, normalmente elas nascem com base num acontecimento passado, de que já não há grande memória. Antigamente, quando não havia livros, as notícias eram transmitidas de boca em boca de vizinho para vizinho ou dos pais para os filhos ou ainda dos avós para os netos.
Sendo assim, como “quem faz um cesto faz um cento” e “quem conta um conto ajunta um ponto”, cada contador ia acrescentando ou modificando a história à sua maneira. Por isso, não nos podemos fiar muito na verdade dos contos e das lendas porque dependem muito da imaginação de quem as conta. No entanto, nós gostamos muito de ler ou ouvir ou ver nos desenhos ou TV lendas antigas, pois são fruto da sabedoria popular, transmitida de geração em geração, contendo sempre alguma lição a reter. Além disso, ficamos também a saber de alguma coisa, que desapareceu, e da qual hoje não teríamos conhecimento, se não fosse o interesse dos nossos antepassados em a transmitir às novas gerações. Certo certo é que dificilmente se encontra uma pêga solitária. E a atitude sociável destas aves vai dando uma grande lição de convivência e ajuda mútua aos humanos, que são muito egoístas. Há uma lenda interessante que as avós de hoje ainda costumam contar aos netos sobre o poder de adivinhação dessas aves.
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Um dia, uma menina encontrou uma pequenina pêga ainda quase implume [sem penas], caída de algum ninho, perdida à beira do caminho da escola. Temendo que ela morresse de fome e frio, a menina resolveu aconchegá-la ao peito e levá-la para casa, alimentá-la como pudesse, com a intenção de a criar e libertar depois nesse mesmo lugar, quando já estivesse em condições de sobreviver - e talvez até encontrasse os seus pais e o grupo. Com o acordo da família a pequena pêga foi criada num pequeno ninho depositado na mesa da cozinha, perto do calor do fogão. Foi crescendo, e já praticamente adulta e com penas para voar, a pêga foi-se habituando a andar em liberdade pela casa. Mas um dia escapuliu-se para o terreiro, procurando o convívio das galinhas e dos patos.
Com eles aprendeu a debicar tudo o que lhe aparecia para comer. A menina andava satisfeita com ela … … mas ia pensando: “Coitada, vou levá-la para o seu habitat natural ao encontro das suas amiguinhas, que ela nem sabe que existem!” Assim fez. Com os seus colegas de escola, libertou-a no lugar onde a encontrara. A pêga saltitou, esvoaçou um pouco, olhou aflita para todos os lados e gralhou “xê-xê-rê-xê”, três vezes. Silêncio. De repente um bando enorme de pêgas apareceu, saltitando e gralhando em volta da estranha.
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rek-rek
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grã-grã
grã-grã Foi um momento feliz para os meninos e para as gralhas… Mas, para a gralhita, não. Assustada, saltou para o ombro da sua amiga, que tentou várias vezes fazê-la esvoaçar para o grupo… Em vão! O único remédio foi levá-la para casa, onde se encontra feliz ainda hoje com as galinhas do terreiro e a cozinha abençoada! Familiarizou-se tanto que partilha as alegrias e as tristezas com a família que a acolheu: resta empoleirada, murcha e adormecida, quando a patroa está abatida ou tem algum problema, xê-xê-rê-xê; saltita alegremente e gralha feliz “grã-grã-grã” quando a vê sorridente e contente! A aldeia também vive satisfeita pela presença da ave e continua a acreditar que as pêgas pressentem ou adivinham realmente os acontecimentos, dando sinais deles às pessoas! Até conhecem um caso real… acontecido com um vizinho, que teve a intervenção dessas interessantes aves. Ia ele para o trabalho no seu automóvel, passa por uma pêga solitária, que saltita na beira da estrada.
À frente o homem sofre um acidente: o carro embate numa carrinha em sentido contrário. Além do susto e do prejuízo, ficou ainda mais
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triste porque o seguro não lhe queria pagar a indemnização a que ele julgava ter direito. Com o carro na oficina, acabou por ter que ir a pé para o trabalho. Alguns dias depois, calcorreando a estrada, resolveu assobiar uma música ligeira com sabor a bailarico, para esquecer tristezas. Eis senão quando lhe aparece de repente um grupo de pêgas, esvoaçando e gralhando alegremente, associando-se ao assobio satisfeito e afinado do homem:
Grã
Grã
rek
rek
Grã
Grã
Admirado com a gentileza das pêgas, chama os amigos que se encontravam ali perto para admirarem tal cantoria. Que acontecera afinal para elas estarem tão alegres? Quando chegou a casa ficou a saber a boa nova de que o seu problema com a seguradora do carro ficara resolvido a seu favor. Ele ia receber o dinheiro a que tinha direito!
Teria sido coincidência, acaso ou sorte? No dia do desastre, vira apenas uma pêga, que lhe previu o azar; agora, o encontro com um grupo delas anunciara-lhe uma alegre notícia. Verdade ou não, a lenda sobre o dom que as pêgas têm de prever os acontecimentos continuará a ser acreditada, sempre, enquanto
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houver factos sem explicação ou a imaginação do povo assim a encontre para explicar o que quiser! …
… e as pêgas não deixarem de gralhar grã-grã-grã” !!! e de se “rir” rek-rek-rek!!! do povo supersticioso que continua a acreditar grã – grã Rek – rek
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ÍCARO E O SAPO
Ano de 2012
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No tempo em que os animais falavam e os deuses da mitologia[1] se divertiam a governar o universo, o jovem ÍCARO [2] cavalgava pelos ESPAÇOS na quadriga [3] de cavalos alados [4] de seu pai Dédalo, a alta velocidade, irritando os heróis e maravilhando os humanos.
Cá em baixo, na TERRA, um SAPINHO, salpicado de verde e amarelo, durante o dia passava o tempo a nadar na lagoa e a alimentar-se de pequenos insectos, que invadiam o prado, e à noite a coaxar, coax... coax... coax, encantando as meninas sapinhas. Certo dia ÍCARO desceu aos Campos Elíseos, jardim encantado para a entrada dos céus mitológicos, para descansar um pouco e refrescar-se. Ao aterrar nas margens do lago de águas limpas, que brilhavam no jardim, e saltar para as ervas, ouviu uma voz aborrecida que gritava:
1
Histórias fantásticas de heróis a quem os gregos e romanos chamavam deuses Segundo a mitologia grega, Dédalo inventou e construiu o labirinto de Creta e seu filho Ícaro fabricou umas asas de penas coladas com cera ao seu corpo para fugir da prisão. 3 Carro puxado por quatro cavalos 4 Alados: com asas 2
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“Calma, menino, não vês onde colocas os teus pés? Assustado, o jovem atrevido saltou logo do carro divino e sacudiu as asas, voando alguns metros afastados da voz desconhecida. Espreitou com a mão direita em pala sobre os olhos e … nunca pensara encontrar coisa tão estranha no jardim das delícias! [“Que coisa pequenita nunca vista!”] - exclamou ele, cochichando para consigo mesmo. Espantado, foi remirando devagar e cautelosamente o ser desconhecido, meio escondido entre as ervas. O deusinho penetrara pelas nuvens formadas de algodão fugidio, viajara pelos planetas de cores divinas, percorrera espaços sem limite … e nunca descobrira qualquer bicho parecido àquele, que estava ali, escondido e medroso.
Ali com os pés na Terra, depois de todo o espanto, começou a sentir, sem saber por quê, uma alegria enorme, ao deparar-se com aquele BONECO REDONDO como a lua, pensando logo ver nele um colega de brincadeira, que não conseguia encontrar nos espaços celestes! Seu pai nunca lhe falara da existência deste tipo de seres.
Lá em cima
era tudo sério, não havia lugar para brincadeiras! Os deuses, quando se juntavam para fazer leis sobre o mundo e reger os humanos, entravam sempre em grandes discussões, atirando raios e coriscos uns sobre os outros, cujas faíscas acabavam sempre por cair sobre a Terra, ribombando em trovões, causando grande medo e provocando graves danos e prejuízos.
[“Este encontro fica comigo, em segredo; meu pai não precisa de saber”] - pensou o deusito.
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Pergunta então ao animal desconhecido: “ Quem és tu? Como te chamas? “ SAPO. “ Sapo”? Rapidamente reviu na memória vários nomes mitológicos, seus parentes: Júpiter, deus dos deuses; Mercúrio, seu mensageiro; Vénus, a bela deusa do amor; Marte, deus da guerra; Cupido, o jovem deus da paixão; Neptuno, deus do mar; Diana, deusa da caça; Urano, Saturno, Plutão, etc … mas Sapo?! … Sapo!? Correu ao dicionário divino que guardava no carro,
e não encontrou nenhum nome igual ou parecido! “ Perdão, amigo Sapo. O teu nome é tão estranho, tu és da cor da erva, que eu nem te via, e para mais assim tão pequeno… “ Pequeno, eu? – inchou o papo, vaidoso, dando um salto enorme e coaxando: coax! coax! “ Não metes medo a ninguém, e pelo visto vais ficar assim barrigudo e tudo para sempre … ah ah ah! … e com essas pernas minúsculas, que não te deixam correr! “ E tu, gabarola? Tens asas, e andas num carro de cavalos? ... Porque não voas? Voa, rapaz, quero ver! “ Não te preocupes comigo, eu consigo voar por toda a parte, tu é que não vais sair da cepa torta! [5] “ Ai sim!? Vamos fazer uma aposta, menino atrevido? “ Porque não? O sapinho aponta para o prado ali perto e diz-lhe com ares de importante: “ Vês aquela VACA a pastar no horto da divina Vénus? “ Vejo! “ Então a aposta é esta: eu vou crescer, crescer, crescer até ficar do tamanho dela e tu vais ter que subir até ao SOL e abraçá-lo. O primeiro que conseguir a sua façanha [6] é o campeão. Combinado? – termina o sapo todo sério e empertigado. “ Ah ah ah ah ah ah! – ri-se o menino. “ Estás a rir? Não acho graça nenhuma. Tens medo de perder, hein! 5 6
Quer dizer: nunca vais ser nada na vida! Aventura
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“ Para mim alcançar o Sol e abraçá-lo é fácil demais com este carro de rapidíssimos cavalos! Agora tu chegares ao tamanho do boi … é uma ideia só de doidos! “ Apostamos ou não? Coax, coax! Seu medricas! “ Ah ah ah! Vamos a isso! – resolve o deusito.
[ OS ÁRBITROS ] Apregoando a amizade e o amor entre os seres. Preparados para a estúpida aventura, os dois tolinhos são interrompidos neste momento por dois deusitos, conhecidos da mitologia, CUPIDO e MERCÚRIO[7], que andavam por ali e pararam para apreciar a discussão. “ Alto aí! – grita Mercúrio.
“Quem és tu? – admira-se o Sapo. “Eu sou Mercúrio, o mensageiro mais rápido do universo, e este …
“ … sou eu – aproxima-se o outro – Sou Cupido, o deus dos namorados, que atira a seta do amor aos seus corações! “Só faltavam cá estes a estragarem-nos a festa! – coaxa o Sapo com desprezo. O deusinho Ícaro, preparado com os seus cavalos para a corrida até ao Sol, resmunga também: “Deixai-nos em paz com a nossa aposta, que essa coisa do amor ou da amizade é para adultos. “Calma, a vossa aposta não interessa nada à humanidade, mas o amor e a amizade entre a gente são sentimentos muito fortes e um assunto muito sério!, pois sem eles … “Bem, bem, vamos lá então, e rápido!, resolver o vosso problema! – diz irritado Ícaro.
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Mercúrio era o mensageiro e correio dos deuses e Cupido, filho de Marte e Vénus, andava sempre equipado com um arco e uma aljava de setas, com as quais feria de amor o coração dos enamorados
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“Isso mesmo, estou de acordo com o meu concorrente – anima-se o Sapo. “Concordais que o amor e amizade entre os seres são os sentimentos mais importantes da vida? - pergunta Mercúrio.
“Com certeza! Sem eles a vida seria uma guerra pegada! – explica Ícaro. “Uma desgraça! – acrescenta o Sapo. “Considerais que esses sentimentos são tratados como deve ser por todos os seres? – quer saber Cupido. O Sapo coaxou e entalou: “Bem, cá entre a nossa família sapina poucas vezes há guerra ou zangas. É tudo muito simples: nas noites de luar toda a gente coaxa, as sapinhas escolhem os seus namorados ou amigos e a vida continua sempre do mesmo modo: coaxar, comer, nadar … dito e feito. “Isso é entre os animais, mas os homens são mais esquisitos! – adianta Mercúrio. “E eu que o diga! – ri-se Cupido - Há sempre festa a mais, amores estragados e … muita guerra por todo o lado, ninguém se entende! Ao deusito Ícaro não lhe estava nada a interessar o assunto. “E tu, Ícaro, não tens nada a observar? - pergunta Mercúrio. “Eu? Isso nada me diz. Do que eu gosto é da velocidade pelas auto-estradas das galáxias, nem que seja em contra-mão, sobre a quadriga que o meu pai me emprestou! “A mim … o que mais me estranha entre os humanos - replica o Sapo – é que eles assinam papéis, acordos, apertam as mãos, abraçam-se hoje e …, no dia seguinte, desatam à guerra, com grande ódio, nem parecendo humanos! “Pois é! – reage Mercúrio - A humanidade, com a mania da liberdade, dos tempos e das novidades inúteis, da vaidade e da ganância [8], apaga facilmente os sentimentos do amor e da saudade, desprezando os melhores valores da existência. Cupido, apertando contra o seu peito o arco e a flecha, acrescenta: “Qualquer dia, perco a minha digna e bonita profissão de distribuir amor e alegria pela humanidade com a minha seta de brincar. Vou antes dedicar-me à caça, como a minha irmã Diana, 8
Apego ao dinheiro
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mas uma caça também a brincar, que os coelhos, os veados e as aves até são mansinhos! “Cá por mim – adianta Mercúrio – tenho muita pena das pessoas porque estão a castigar-se a si mesmas, esquecendo a amizade, e até inventam máquinas que deviam ser para unir as pessoas e pelo contrário mais as afastam, pois, hoje em dia, quase já nem há cartas de amor para eu entregar nas caixas do correio. “Mas, tu, que criticas tanto os humanos – ironiza [9] o Sapo – diz-nos lá o que se passa entre os deuses pagãos, entre os quais a amizade e o amor andam também muito mal tratados! Cupido, sabendo das muitas zangas, dores de cotovelo, ciúmes que o amor provoca quando devia servir para a felicidade, explica: “Na terra, o amor é a origem da difusão da amizade e união entre os homens e mulheres e até da criação de novos seres, mas, para a nossa espécie mitológica, a realidade é muito diferente: os deuses querem ser adorados pelos humanos, têm inveja uns dos outros e deixam-se levar de tal maneira pelos ciúmes que acabam por se odiar[10]! Mas, infelizmente para vós, a zanga deles recai sempre sobre os humanos. Fraco exemplo, na verdade! Farto de conversa, Ícaro ia tentando amansar os seus cavalos, que relinchavam, Hi hi hi!, com vontade de arrancar para o espaço, e então terminou de vez com o assunto: “Bem, já esgotaram a conversa? Deixai-nos agora com a nossa aposta, que é o mais importante para nós neste momento! “Muito bem e cautela, que a vossa aventura seja um acto de amizade, tenha sucesso e não passe de uma brincadeira de mau gosto ou … pior: uma guerra! - aconselharam Mercúrio e Cupido. “Sem problemas! Depois disto seremos considerados os maiores aventureiros do mundo! – grita Ícaro, abrindo os braços para o sol. “E sobretudo os melhores amigos, ganhe quem ganhar! Coax coax! – acrescenta o Sapo. O jovem cavaleiro apertou a patita do sapo, que se enfunou todo gabarola e …
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Critica Zangar, guerrear
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A CORRIDA
atenção
Par ti da!
O SAPINHO começou logo a devorar sofregamente a relva – de que não gostava nada! -, a linguarar as libelinhas e insectos que voavam à sua volta e a sorver água, muita água, para alargar o sapino bandulho[11]. ÍCARO, o deusinho mimado e vaidoso, não se preocupou muito com a partida, calmamente foi baboso subindo, subindo, no seu 13 belo carro puxado por cavalos possantes[12], que o pai, [ ], lhe emprestara. E como sabia que num instante venceria a corrida, ia descansando os cavalos, aqui numa nuvem, ali num asteróide, acolá num planeta, além numa estrela, pela colorida auto-estrada da Via Láctea, aproximando-se vagarosamente do astro-rei[14],
que sorria maliciosamente para o concorrente convencido. O SAPO, lá em baixo, comia, arrotava, bebia, resfolegava: sentia-se cada vez mais abafado e empanturrado à medida que o tempo passava. 11
Estômago grande Fortes, poderosos 13 Vaidoso, orgulhoso 14 Sol 12
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ÍCARO ia ficando mais quente: avermelhava, avermelhava, corando, corando, cada vez mais, à medida que a distância ao sol se encurtava. O sapo gemia, respirava pesadamente e já tinha a pele a luzidia esticada como um pandeiro. O menino arroxeava, avermelhava do braseiro solar. Ambos tinham chegado ao extremo da sua resistência. Os dois árbitros, Mercúrio e Cupido, que seguiam a aposta dos aventureiros, começaram a ficar aflitos com o fim dessa aventura perigosa. “Calma! – grita Mercúrio ao Sapo, vendo-o barrigudo como uma pipa, prestes a rebentar, junto ao lago. “Pára – exalta-se Cupido, gritando para Ícaro, quase a abraçar o Sol, com as asas em lume de penas esturricadas a desfazeremse, pingando cera ardente e fumarenta. O deusito, olhando lá do alto sem perceber o perigo em que se encontrava com as asas em chama, ria-se de gozo e gritava, à vista da desgraça do amigo sapo lá em baixo: “venci, venci”! De repente … O Sapo … puuum! rebentou e cobriu o jardim de pedacinhos verdes e coloridos da erva e das flores consumidas à pressa.
A alegria de Ícaro foi curta, pois as suas asas de cera, derretendo desalmadamente sem remédio, acabaram por precipitá-lo, lá do alto, aos trambulhões e aos gritos, no mar Egeu, que o engoliu, no meio de um grande splash de água salgada e de enorme ruído, que abalaram os céus e a terra.
Os árbitros, Mercúrio e Cupido, nada puderam fazer para salvar os apostadores. Esperariam por eles no céu dos pardais, com certeza, porque não mereciam mais – coitados!
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E a vaquinha? Não deu por nada. Continua ainda hoje a pastar a erva fresca do prado, sem outros problemas para resolver. Vive feliz, como é na realidade, sem sonhos de valentias ou de espertezas, que a natureza não lhe concedeu. É ou não é, vaquinha malhada?
UÉEE! UÉEEE! MUUA!
Texto original Invenção, pesquisa, Ilustrações Júlio Oliveira Macêdo Júlia Odete da Costa Macêdo