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BL
Ă€s nossas FamĂlias, ao Fernando Paulouro, a todos os que amam o Rio e transportam consigo a carga afectiva das Terras e das Gentes deste Concelho. 3
DG
Título: Edição e Propriedade, Produção e Fotografia: Textos: Poemas Escolhidos: Maquetização: Impressão: Tiragem: Depósito Legal:
Santuário da Senhora da Rocha O Mistério do Poço do Caldeirão Belarmino Lopes (BL) / Diamanatino Gonçalves (DG) Fernando Paulouro Augusto Cardoso - poeta da Barroca, 1886 Belarmino Lopes Grafisete - Artes Gráficas, Lda. - Fundão 1.000 exemplares 200623/03 Reservados todos os direitos, Reprodução proibida, mesmo parcial e por qualquer forma. 2003
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Como um rio que canta
Como um rio que canta
Um rio é um curso de alegria. Esta viagem é como o sopro do vento. E como a água que é matéria-mãe. Há uma suave música que brota da água e se enleia nos amieiros, que às vezes são margem do caminho, nos milharais dos lameiros, nas oliveiras paradas, que sobem por muros apertados. Os pinheiros estão mais longe, mas também escutam o rio e algumas vezes se reflectem nas suas águas, quando as vertentes também são de verde pinho. A música da água é irmã do rio e por isso os pássaros são felizes quando bebem a sua água ou incendeiam a tarde nos ramos das árvores. Não há como um rio para nos obrigar a parar - e ver! E, às vezes, sonhar. Poisamos os olhos na água que corre e seguimos com ela tumultuosa à descoberta das surpresas e dos instantes que se abrem em cada curva do seu curso. O Zêzere é um rio de diversidades, como se quisesse ter dentro de si a matriz identitária desta Beira, tão "manta de retalhos", no dizer de Orlando Ribeiro, ora branda, com a geometria variável dos verdes e doirados dos vergéis da Cova da Beira, ora agreste, com a montanha onde afloram cumes de granito e terrenos áridos de xisto, ora mar verde de pinhal onde a brisa inventa ondas, ou campina feita de terras do sol onde os sulcos da sede parecem ter ficado como memória de antigas servidões. O Zêzere inscreveu no espaço o desenho da sua topografia, e, como se quisesse desafiar os deuses, fez-se impetuoso como os cavalos selvagens que nunca se deixaram domar, criou a sua própria natureza rica em bio-diversidades. Por onde passa (indiferente às malfeitorias do homem) dá o que tem para dar: água e mil fertilidades. O rio, na sua caminhada, desceu das alturas da Estrela, onde ganhou eternos ímpetos, rompeu por gargantas apertadas, espreguiçou-se na planura da Cova da Beira, foi ao encontro do país do pinhal, em vales cavados fundo, mas logo as suas águas
se alargam quando as margens lhe oferecem escassos palmos de terra. Vieram peixes e aves habitar este paraíso movente, e logo o homem navegou por esse rio abaixo, aprendendo com ele a fazer-se a si próprio, edificando à sua beira comunidades originárias, lugares e aldeias, fixando gente que encontrou nele um factor civilizacional que acabou por moldar o seu viver colectivo. Este rio vem de muito longe e vai para longe, num andamento muito próprio, só dele, rápido ou lento, consoante o leito que é o seu berço. O que ele andou para aqui chegar! Às vezes, caminha-se com ele à beira, debruçamo-nos para colher mãos cheias de água, outras afasta-se surpreendentemente, fazendo ângulos raros, curvas apressadas, mas logo nos chama para o tomarmos inteiro e nos banharmos num açude ou em piscinas naturais poisadas em conchas de pedra. Que pena a insensatez do homem ter feito dele um esgoto… Mas o rio luta e ergue-se de novo, na respiração da água. Os peixes regressam logo que o caudal sacode para longe a míngua da estiagem. Mesmo quando o prendem em barragens (que depois alimentarão de água Lisboa) e mini-hídricas (que depois produzirão energia) não fica domado por inteiro. Volta a correr como se o ímpeto e a raiva ganhos porventura nas alturas da Estrela, na imensidão do Cântaro Magro, fossem eternos. Ainda um dia destes tive a mão cheia de água, lá onde ele nasce. Um fio de água cristalina e pura. Este rio é indomável, ou assim parece, desde a sua génese. Assim vai ele, sempre levantado, até que o Tejo se atravessa no seu caminho como que a dizer-lhe: alto aí, que o rei sou eu!. E, mesmo aí, não morre logo. Mistura lentamente as suas águas em outras mais profundas e assim se dissolve à medida da sua grandeza, caminhando com "o mais belo rio" à procura de um destino comum. Fernando Paulouro
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Mil surpresas nos oferecem aquelas pedras que est達o no meio do rio ou lhe cavaram a margem 6
...e se apurarmos o ouvido percebemos a mĂşsica do vento a inventar lendas de princesas em magoado pranto pelo amado 7
...não há como essa estrada de água para potenciar sonhos e fazer dos dias territórios onde o imaginário busca raízes seculares. 8
Santuário da Senhora da Rocha O Mistério do Poço do Caldeirão
Cansados de tanto flagelar pedras com o olhar, parámos... para descansar, no tempo quebrado pelo langor das águas. Às cinco da tarde lemos a carta ali vazada no xisto, servida em pedra de altar, que se levanta do rio, ao encontro do Sol! E partilhamos, ali, o abraço que a carta trazia. Barroca, 1 de Junho 2003
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Diamantino Goncalves / Belarmino Lopes
BL - Sr.ª na Rocha 10
Santuário da Senhora da Rocha
Ella dormia, linda como um anjo, Serena como a Virgem n’um altar! E ao ver tão bello o candido jasmim Quiz-lhe os divinos labios ir beijar. Mas o luar que andava alli por ella Disse-me, olhando a virginal donzella: - Oh! Como é linda, encantadora assim Cuidado não a vás pois acordar.
BL - Sr.ª na Rocha - pormenor
E’ tão suave, é tão pura A expressão do teu olhar, Ha n’elle tanta doçura, Tanto amor, tanto brilhar Quando contemplo a luz calma D’esse olhar, mar insondavel, Sinto cá dentro em minh’alma Um prazer tão ineffavel, Que me chego a convencer De que é o céu cá na terra; Que só pode ter a dita De o paraizo gosar Quem tem a sorte bemdita De ser alvo d’esse olhar! Meu anjo, se o paraizo Do teu olhar ou sorriso A morte tambem requer, Que Deus me leve, Maria... Porém que a illuminar A scena triste e sombria Da minha ultima agonia Tenha a luz do teu olhar! 11
DG - Eccus Caballus
O Mistério do Poço do Caldeirão 12
DG - Eccus Caballus
O cavalo é um símbolo de liberdade, e este, que foi capaz de atravessar o tempo da história, desde o Paleolítico Superior, resistiu a tudo, voou até aos dias de hoje, eterno como o rio que continua a correr. 13
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Vou ás vezes sentar-me junto ao rio Que banha os pés da minha pobre aldeia, Debaixo dum salgueiro ermo e sombrio, Nas noites estivaes de lua cheia; Ponho-me a comparar a veia calma Das aguas entre as rosas Com, da minha pobre alma, As maguas tumultuosas ... Canto: e parece-me que as aguas param Para me ouvir, e que o luar me escuta Almas que julgo ainda não provaram O fel da dôr e a agitação da lucta; Desprendo a minha voz triste, magoada, Pela amplidão sem fim Scismatica, calada; E o meu canto é assim: - Aguas de leite, puras, tão felizes Que até dormis no leito de rochedos, Que daes vigor aos troncos e ás raizes E aos toucados gentis dos arvoredos; Luar sereno a que eu amo tanto, Nos ondeados folhos Das sedas do teu manto, Enxuga-me os meus olhos! 14
BL - Poço do Caldeirão
Minh’alma não descança... Se consigo Pegar no somno, é só sonhar... sonhar... Ver coisas lindas p’ra maior castigo... P’ra que a desillusão do despertar Depois me seja mais cruel ainda! Dae d’essa santa calma, Da vossa paz infinda A’ martyr da minh’alma! Mas logo volvem as bondosas aguas: - Como te enganas... São mysteriosas, Mas peiores que as tuas, nossas maguas; Escuta as elegiacas chorosas, As queixas que gememos sem cessar, E olha este agro mister De andarmos sem parar, Sempre, sempre a correr... E a lua n’um fallar dorido e brando: - Ha milhões d’annos vivo a andar, a andar... Não sei p’ra onde vou, nem mesmo quando Virá o meu fadario a terminar... A tua sorte eu bem trocára à minha: Coragem, trovador! Que esta vida mesquinha E’ irmã gêmea da Dor. 15
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Há uma suave música que brota da água e se enleia nos amieiros, que às vezes são margem do caminho... 16
De muitas pedras se faz a viagem do rio. E se atentarmos bem logo perceberemos que não há como essa estrada de água para potenciar sonhos e fazer dos dias territórios onde o imaginário busca raízes seculares. Em toda a corda de aldeias que o ladeiam, as aldeias do xisto, o rio está presente. Foi pão elementar, criador de vida, deu o calhau rolado para as casas, alimentou de água as terras, ofereceu de beber às gentes. Desde a Argemela, onde o imaginário parece brotar das pedras do velho castro — e se apurarmos o ouvido percebemos a música do vento a inventar lendas de princesas em magoado pranto pelo amado —, que a memória do rio está presente na identificação do território e na sua modelação humana. Lá do cimo, o rio é um corpo de água que navega mais apressado, apertado pela clivagem das margens, depois da Cova da Beira lhe ter oferecido terra para espreguiçar-se à vontade. Aí os campos vestiram-se de verde, em regadios de grande diversidade, em pomares e vinhas que fazem da paisagem uma bênção para o olhar. O rio desce para Silvares não sem antes se terem ouvido no ar estranhas sonoridades guerreiras dos bombos de Lavacolhos. Estarão a acordar os homens do seu prolongado tropor anímico? Talvez. Ainda não se perderam de todo as sonoridades telúricas dos bombos e já ele corre mais depressa, como se quisesse defender-se das ofensas dos humanos. Quando passa pelas Minas da Panasqueira olha as feridas profundas de um assassinato programado. Mas até esse drama de longa duração adquiriu uma dimensão fantástica. O tempo fez-se pintor e escultor. Olha o Poço do Caldeirão, na Barroca! O espaço é mítico. O cenário deslumbrante. Que pintor lograria tão singulares cromatismos! Que escultor seria capaz de tão surpreendentes formas! As rochas guardaram as cores que o tempo lavrou e agora o sol poisa nelas estranhas figurações. Não longe a Senhora da Rocha como que certifica o carácter sacral do lugar. Há quinze mil anos, o homem também se deixou seduzir pela beleza do espaço, gravando na pedra gravuras rupestres. Numa pausa da caça ou da pesca, ali deixaram a caligrafia da sua arte, num diálogo entre a mão e o espírito. 17
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Respirar pela água
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O cavalo é um símbolo de liberdade, e este, que foi capaz de atravessar o tempo da história, desde o Paleolítico Superior, resistiu a tudo, voou até aos dias de hoje, eterno como o rio que continua a correr. Ferido de morte o rio, com feridas de muitas contaminações, 18
urbanas e industriais, o seu curso tem como destino o futuro. Ganhou o Zêzere a batalha? Parece que sim, apesar dos ferimentos ainda sangrarem. Agora já respira outras águas. Janeiro de Cima é uma festa. A sua relação com o rio é mais presente na topografia das ruas e na arquitectura. Vamos lá por esse rio abaixo.
“Furtivo fio de água que baloiça por entre rudes pragas e a bruma é um vulto que sem olhos ultrapassa quanto se oponha à sua lenta marcha ao tortuoso trilho que ele fecunda” Rio Zêzere. “Respirar pela água. Respirar absolutamente”. Respirar. Respirar. 19
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Volta-se a gritar Ó da Barca!, é entrar meus senhores! Regressam à memória os tempos de outrora, quando a travessia do rio, no Inverno, era um sobressalto e um inferno. O rio é uma festa verdadeiramente colectiva. No seu caminhar reinventa a alegria. Está um fim de tarde magnífico e em tudo o que toca, o sol doira. As casas de xisto que povoam toda a região, mesmo as aldeias que de certo modo viraram costas ao rio e foram fazer a sua vida para longe, mais vocacionadas ao coração da serra, ficaram marcadas pela identidade das pedras que o rio dá. São todas aldeias do xisto. Desde Lavacolhos que o traço identificador da arquitectura cria esse universo original. Enxabarda, Açor, Boxinos (Pá Negral é uma memória) Bogas, Maxial, Ladeira, todas pertencem ao mesmo mundo, cavado à margem ou virado para dentro de si próprio, como se quisesse produzir uma identidade singular. O rio é mais traço-de-união do que fronteira de água. Acena às terras como madre originária, oferece vida. Daí a cumplicidade das aldeias na sua relação com o Zêzere. A esta hora, em todas elas, o xisto recorta-se melhor na paisagem. O mar verde dos pinhais começa a bulir suavemente. Bate mais depressa o coração da terra. Os incêndios trouxeram o inferno a estas paragens. Há terra calcinada, cinzas, árvores queimadas. Um velho petrificado, à beira do caminho, já secou as lágrimas do desespero. É a fatalidade do Verão. O rio é a fronteira que o fogo tenta passar. Mais uma vez é nas suas águas que a esperança se renova. O rio. O nosso Zêzere! “Nascendo faz nascer em tudo a vida / — e a paisagem funda”. Leio, para mim, versos do João Rui de Sousa sobre este mistério da água que se faz rio. E sobreponho a poesia ao corpo de água que tenho à minha beira:
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Estas pedras que surgem no meio do rio são criadoras. É como se o rio chegasse ao Poço do Caldeirão e se fizesse um enorme museu aberto... 20
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...às vezes uma pedra ou uma gota de água, 21
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...esculturas petrificadas que sinalizam a alegria da รกgua 22
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De muitas pedras se faz a viagem do rio. 24
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Ă€s vezes, parecem mares cristalizados na pedra, ondas de espuma que se fizeram pequenas ilhas no meio do rio... 25
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O Zêzere inscreveu no espaço o desenho da sua topografia, e, como se quisesse desafiar os deuses, fez-se impetuoso como os cavalos selvagens que nunca se deixaram domar. 26
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O rio é mais traço-de-união do que fronteira de água. 27
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...um animal pré-histórico petrificado parece espreitar o mundo ou estará a guardar as verdes águas 28
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NĂŁo hĂĄ como um rio para nos obrigar a parar - e ver! 29
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E, Ă s vezes, sonhar.
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A lua vem beijando meigamente As cristas das montanhas escalvadas E poisa o olhar doce, tristemente, Em baixo... nas correntes prateadas. Tudo repousa n’um dormir silente. A custo, ouvem-se apenas - muito mal, Os regatos n’um frémito dolente Beijar com ancia os lagos de crystal. E a minha pobre aldeia lá ao longe Merencórea e tristonha como um monge, Mas toda em luz, ditosa, luarisada; Dorme... dorme tambem placidamente Um somno sem cuidados, doce e quente, Pelo manto da crença agasalhada. 31
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O ZĂŞzere corre por entre cores que se misturam e se reflectem nas suas ĂĄguas. 32
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À beira da água os azuis parecem dissolver-se em outros azuis que julgávamos só existirem na imaginação. 33
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...continentes fantĂĄsticos de pedras rugosas, leitos de geometria difĂcil 34
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...uma espécie de jardim aquático de animais petrificados, como se Noé tivesse andado a semeá-los neste lugar do rio. 35
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NĂŁo faltam jangadas de pedra, penso eu, se calhar Ă espera que as libertem para poderem navegar com as ĂĄguas do rio... 36
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Que escultor seria capaz de tão surpreendentes formas! As rochas guardaram as cores que o tempo lavrou e agora o sol poisa nelas estranhas figurações. 37
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Olhos fitos no azul immenso, ethereo, Scismo ás vezes, n´um extase profundo, Buscando a explicação d´este mysterio: O que é o homem? que sou eu no mundo? Vou os astros, os ceus interrogando, Mas nada me responde... E fico doente Ao ver que tudo me despreza, quando Eu me julgava grande, omnipotente... 38
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O mar verde dos pinhais começa a bulir suavemente. Bate mais depressa o coração da terra. 39
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Rio Zêzere. “Respirar pela água. Respirar absolutamente”. 40
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Respirar. Respirar. 41
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O tempo fez-se pintor e escultor. Olha o Poรงo do Caldeirรฃo, na Barroca! 42
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O espaço é mítico. O cenário deslumbrante. 43
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A minha musa é pobresinha e vem - Olhal-a desconsola Envergonhada, humilde como quem Anda pedindo esmola. Ao bordão encostada da amisade, - Imagem da indigencia Vem, fiada na vossa lealdade, Pedir benevolencia. Vem mal vestida... – a aldeã singela Mette dó, coitadinha! Não a maltrateis, pois, tende dó d’ella Já que é tão pobresinha. 44
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...os campos vestiram-se de verde, em regadios de grande diversidade... 45
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Em termos plรกsticos, a viagem caminha de surpresa em surpresa... 46
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Essas surpresas s達o tesouros. 47
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Agora, subitamente, ĂŠ um rio de cores que corre para os nossos olhos. Quem as inventou foi o tempo, esse escultor. E para que o esplendor cromĂĄtico seja completo, veio o sol poisar nelas estranhas e fantĂĄsticas luminosidades. 48
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A água continua a passar, uma estranha cabeça de pedra é a serenidade absoluta. 49
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Azuis, mais azuis. 50
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Pareceu-me ainda h谩 pouco ver um p么r-do-sol no alto mar... 51
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Este rio de cores continua a correr para lรก do tempo. 52
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Anos e anos de químicos provenientes das Minas da Panasqueira cristalizaram nas rochas dando-lhes surpreendente expressão plástica. 53
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As cores parecem a síntese de um universo onírico. Cores de outros mundos: que galáxias serão estas? 54
Agora, subitamente, é um rio de cores que corre para os nossos olhos. Quem as inventou foi o tempo, esse escultor. E para que o esplendor cromático seja completo, veio o sol poisar nelas estranhas e fantásticas luminosidades. Estas pedras que surgem no meio do rio são criadoras. É como se o rio chegasse ao Poço do Caldeirão e se fizesse um enorme museu aberto. De cada vez que olhamos, de cada ângulo, o espectáculo é diferente. Mil surpresas nos oferecem aquelas pedras que estão no meio do rio ou lhe cavaram a margem. Ali, onde há quinze ou dezasseis mil anos, os nossos antepassados foram capazes de buscar a transcendência do pensamento feito arte. Só quem ama um rio o pode retratar como fizeram o Diamantino Gonçalves e o Belarmino Lopes. Caçadores de imagens, eles conhecem de cor e salteado os segredos do Zêzere. Partem à aventura, medem a intensidade da luz, exercitam o pastoreio do olhar como forma de colher a felicidade dos instantes. Às vezes, uma flor, às vezes, o céu azul, às vezes uma pedra ou uma gota de água, às vezes uma folha que balança levada pelo vento, às vezes uma nuvem ou uma ave que rasga o céu, às vezes uma casa ou uma rua, às vezes uma porta ou janela, às vezes um arado abandonado num curral, às vezes a cravelha de uma porta, às vezes uma foice que resiste ao tempo num muro de pedra solta, às vezes uma árvore e outra e outra e outra ainda, às vezes a floresta, às vezes um moinho, às vezes uma mó abandonada à beira do caminho, às vezes os pássaros simplesmente, às vezes a gente que traz o sol dentro dos olhos, às vezes as aldeias fora do mapa, às vezes um rosto lavrado pelo tempo, às vezes um rio que trazem dentro do pensamento. Isso e tanto. Essa maneira de andar e ver, de fazer do detalhe tão simples que não se vê, a glória do espanto, 55
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Um rio de cores
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essa forma de recriar a realidade através da objectiva, numa recusa sistemática do facilitismo e do cliché para o postal ilustrado, fazem parte do livro de bordo destes fotógrafos, que palmilham quilómetros por montes e vales, se esquecem do tempo quando os momentos são surpreendentes, que limpam o pó às botas para as sujarem, logo a seguir – pois os instantes, em fotografia, não se repetem. São como um rio e talvez essa natureza lhes confira a singular capacidade para descobrir coisas. E que coisas! O Zêzere é o seu sereno desafio. Sentam-se à beira do Poço do Caldeirão e… olha ali um cavalo! Como se tivessem entrado na máquina do tempo, ei-los numa viagem de 15 mil anos! Tudo tão longe e tão perto. Mas logo regressam a este chão de água e poisam outros olhares em realidades que só eles vêem e reinventam para oferecer aos outros, a todos, num convite à imaginação e ao sonho de cada um de nós. Voltaram não sei quantas vezes ao cenário de pedras do Poço do Caldeirão. Agora, sim, a luz está a preceito. O sol poisou nas telas de xisto e as cores parecem saltar da pedra. A Nikon pode capturar os instantes. À beira da água os azuis parecem dissolver-se em outros azuis que julgávamos só existirem na imaginação. Há uma caligrafia de riscos, veios de pedra acastanhados, alguns parecem rendilhados brancos, porventura a projecção criadora da mãe-natureza, desafio à mão humana que desenhou o cavalo rupestre. Azuis, mais azuis. Às vezes, parecem mares cristalizados na pedra, ondas de espuma que se fizeram pequenas ilhas no meio do rio, ou esculturas petrificadas que sinalizam a alegria da água. Mas logo o olhar se poisou noutra plataforma onde a erosão cavou mais fundo, como se quisesse, com as bolas redondas, exprimir continentes fantásticos de pedras rugosas, leitos de geometria difícil, sabe-se lá se matéria fantástica para ficções siderais, onde o tempo não tem começo nem fim.
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Em termos plásticos, a viagem caminha de surpresa em surpresa. Há cascatas de cor e um branco leitoso que escorre da pedra em simetria, um barco de pedra que navega – ou será antes a metáfora de um pedaço deste país, debruado de água? Mas logo um animal pré-histórico petrificado parece espreitar o mundo ou estará a guardar as verdes águas, na esperança de que o veneno dos químicos acabe, definitivamente? A pequena bola de granito será o mundo? A água continua a passar, uma estranha cabeça de pedra é a serenidade absoluta. O Zêzere corre por entre cores que se misturam e se reflectem nas suas águas. Não faltam jangadas de pedra, penso eu, se calhar à espera que as libertem para poderem navegar com as águas do rio, mas o desígnio do Zêzere é o fantástico. Impõe-se, então, uma espécie de jardim aquático de animais petrificados, como se Noé tivesse andado a semeá-los neste lugar do rio. Essas surpresas são tesouros que o Diamantino Gonçalves e o Belarmino Lopes nos revelam. O seu rasgo criador resgata da obscuridade e dá existência a um universo de dimensão onírica, é verdade, mas sem nunca esquecer a Natureza como o grande património essencial à respiração da terra e dos homens. A arte da fotografia é um desafio à dominação do tempo, ou, pelo menos, ao seu prolongamento para lá das balizas que a vida impõe como metas intransponíveis. Quando elas se transformam em arte e vivem através do nosso olhar superam a contingência da sua efemeridade. Este rio de cores continua a correr para lá do tempo. E da forma que os artistas o retrataram, apontando ao imaginário de cada um a sublimação do fantástico que cada imagem contém, há sempre um mundo de sugestões que nascem da leitura destas belíssimas fotografias. Algumas impõem-se pela natureza da mensagem, pelo sentido da metáfora que encerram, pela eficácia da narrativa. Outras recusam o mero figurativismo e assumem uma expressão plástica notável.
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Fragmentos de fantĂĄstico elevam-se da leitura da realidade trazida por um rio, o ZĂŞzere. 58
“De um rio que em argamassa se transporta e traz um odor de esteva e serrania é extensa a construção que a sede implora! E altaneira! E fortes os seus braços De bronze e cal de musgo e pedra — tal um brado que o tempo não destroça! 59
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Um dos significados mais profundos do conjunto de fotografias radica nas que mergulham no mais puro abstracionismo, embora a matéria prima de que se fazem esses sonhos seja a mineralização das cores em que o rio se desdobra. Anos e anos de químicos provenientes das Minas da Panasqueira cristalizaram nas rochas dando-lhes surpreendente expressão plástica. São cores fantásticas a que a patine do tempo deu um cromatismo luminoso. Telas magníficas por onde a imaginação caminha lentamente. Vemos o que lá não está. As cores parecem a síntese de um universo onírico. Cores de outros mundos: que galáxias serão estas? Coloco as fotografias sobre a mesa e o olhar conduz-me por surpreendentes navegações. Fragmentos de fantástico elevam-se da leitura da realidade trazida por um rio, o Zêzere. Pareceu-me ainda há pouco ver um pôr-do-sol no alto mar e já outras cores me transportam para um mundo subaquático e outras para um mundo vegetal. São cores do tempo, pintadas pelos dias, pelo sol e pela chuva, pela água corre e não volta mais a moldar estas cintilações. Zêzere, o nosso rio. Água como um corpo indomável e puro. As cores irrepetíveis ficam comigo enquanto regresso às fotografias do Diamantino Gonçalves e do Belarmino Lopes, e aos versos do João Rui de Sousa, que leio para mim como quem depõe as pétalas de uma rosa sobre as águas no espaço mágico do Poço do Caldeirão.
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SĂŁo cores do tempo, pintadas pelos dias, pelo sol e pela chuva, pela ĂĄgua corre... 60
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...e não volta mais a moldar estas cintilações. 61
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Telas magníficas por onde a imaginação caminha lentamente. 62
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Vemos o que lรก nรฃo estรก. 63